China
Luiz Carlos Azedo: Argentina, China e EUA
As relações do Brasil com os três países estão sob estresse político, provocado por declarações inamistosas e de cunho ideológico do presidente Bolsonaro e dos seus filhos
Vamos começar pela Argentina, que ontem perdeu seu maior ídolo, o ex-jogador Diego Maradona, cujo prestígio entre nós era tão grande que a velha rivalidade entre as torcidas brasileira e argentina perde qualquer sentido diante da sua genialidade e importância para o futebol mundial. Aliás, essa rivalidade, do ponto de vista geopolítico, perdeu o sentido desde a Guerra das Malvinas, quando os Estados Unidos, o aliado principal dos argentinos, apoiaram os ingleses, que recuperaram o arquipélago depois de impor dura derrota militar aos nossos vizinhos.
Ao contrário do que imaginava o presidente da Argentina, o general Leopoldo Galtieri, a primeira-ministra britânica Margaret Tatcher não quis saber de negociação e resolveu o assunto pela força, exibindo o poder naval do Reino Unido no Atlântico Sul. Foi um golpe de morte na ditadura militar argentina, desmoralizada na guerra. Muito do prestígio de Maradona se deve à vitória da seleção argentina contra os ingleses, na final da Copa do Mundo do México, em 1986, quando fez dois gols, um com a “mão de Deus” e o outro, numa arrancada em linha reta, driblando todos os ingleses à sua frente. Lavou, em campo, a alma de uma Argentina humilhada.
A Guerra das Malvinas aproximou o Brasil da Argentina, a partir do governo do presidente José Sarney, tanto do ponto de vista diplomático como militar, estreitando a cooperação entre os dois países. Essas relações, porém, vão de mal a pior desde a eleição do presidente Alberto Fernández, um peronista moderado. Bolsonaro nunca esteve com o presidente argentino, contra quem fez campanha aberta na eleição presidencial e a cuja posse nem sequer compareceu, quebrando uma tradição diplomática importante para o Mercosul.
O país vizinho era o nosso terceiro parceiro comercial, agora é o quarto. Com um desempenho comercial de USD 3,7 bilhões tanto em importação quanto em exportação, no primeiro semestre de 2020, mesmo assim, continua sendo o parceiro mais importante para a nossa indústria de automóveis e de eletrodomésticos. Entretanto, em razão da pandemia e da péssima relação de Bolsonaro com Fernández, esse desempenho está muito abaixo do que seria possível. A Holanda passou a ocupar a terceira posição. No primeiro semestre deste ano, exportamos USD 4,5 bilhões para os holandeses, contra USD 647 em importações.
Tecnologia
Nosso segundo parceiro comercial são os Estados Unidos, que estão em guerra comercial com a China. A aliança de Bolsonaro, porém, era com o presidente Donald Trump, que perdeu a eleição. Fez campanha aberta contra o democrata Joe Biden, cuja política está em contradição com os rumos que tomamos na cena internacional e também internamente, em áreas como meio ambiente e saúde pública. Para ajudar Trump na eleição, Bolsonaro fez concessões comerciais que prejudicam a indústria brasileira e não obteve, do ponto de vista prático, nenhuma vantagem significativa.
No primeiro semestre deste ano, a balança comercial do Brasil com os Estados Unidos foi negativa: importamos USD 13,2 bilhões e exportamos USD 10 bilhões. Ou seja, o alinhamento automático com Trump somente nos deu prejuízo. Exportamos petróleo bruto, semimanufaturados de ferro e aço, aviões e pastas químicas; em contrapartida, importamos óleo diesel, gasolina, hulha betuminosa e nafta, principalmente. Por que, com Biden, será diferente?
Há mais de 10 anos, o nosso principal parceiro comercial é a China. No primeiro semestre de 2020, o Brasil exportou mais de USD 34 bilhões para o país. No mesmo período, a importação de produtos chineses foi de USD 16,7 bilhões. Vendemos soja, óleos brutos de petróleo, minérios de ferro e seus concentrados, pastas químicas de madeira e carnes desossadas de bovino congeladas, principalmente. Compramos plataformas de perfuração ou de exploração, flutuantes ou submersíveis; componentes para aparelhos receptores de radiodifusão, televisão etc; para aparelhos de telefonia/telegrafia; células solares em módulos ou painéis; e celulares.
Desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência, porém, as relações do Brasil com a China estão sob estresse político, provocado por declarações inamistosas e postagens provocativas, de cunho ideológico, nas redes sociais do presidente da República e dos seus filhos. Os chineses são conhecidos pela paciência, mas resolveram reagir duramente a um comentário do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL -SP), acusando a China de espionagem, na segunda-feira. “Isso é totalmente inaceitável para o lado chinês e manifestamos forte insatisfação e veemente repúdio a esse comportamento”, diz a nota da embaixada chinesa. O plano de fundo é a disputa pelo mercado brasileiro de internet 5G. Responsáveis por 33,5% das nossas exportações, se forem excluídos da disputa por Bolsonaro, a priori, os chineses vão se reposicionar em relação ao Brasil.
Rubens Barbosa: Visões de futuro, China e Brasil
Os chineses fazem um sólido planejamento e o País deixa o grupo das dez maiores economias
A quinta sessão plenária do 19.º Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh), concluída em 29 de outubro, apresentou as linhas gerais do 14.º plano quinquenal econômico e social do país (2021-25). O plano quinquenal registra os objetivos gerais para os próximos cinco anos e, além disso, estabelece o planejamento de médio prazo, até 2035. Mantendo a retórica de “paz e desenvolvimento”, o PCCh traçou as principais linhas estratégicas levando em conta, sobretudo, a crescente competição global. Os documentos indicam que as lideranças do partido, refletindo as incertezas no cenário global, buscaram mudanças em três áreas: fortalecimento da economia, autossuficiência em tecnologia e mudança de clima.
Na sua visão de futuro, os líderes chineses abandonam a ênfase no crescimento econômico com o aumento do PIB e passam a focar “o aumento significativo no poderio econômico e tecnológico” do país até 2035, com foco em questões estruturais e qualidade de vida. O comunicado final do plenário do congresso não fixa uma taxa de crescimento para 2035 e menciona somente o objetivo de alcançar, “em termos de PIB per capita, o nível de países moderadamente desenvolvidos”. Manter o foco no crescimento faz sentido para a China num momento de crescente competição entre grandes potências, que o comunicado, em outras palavras, denomina “profundos ajustes no equilíbrio de poder internacional”. Uma economia forte vai “assegurar que a China tenha recursos necessários para a defesa nacional e a pesquisa científica” e para a expansão de seus interesses globais.
Em vista da gravidade da crise pandêmica, a China teve de adiar o projeto da Rota da Seda (Belt and Road Initiative), uma forma de projetar seu poderio econômico além-fronteira.
As sanções dos EUA e as restrições à venda de semicondutores a empresas chinesas motivaram mudanças na atitude da liderança do PCCh no tocante à dependência de tecnologia do exterior. As vulnerabilidades da China foram exploradas geopoliticamente pelos EUA, apesar dos custos econômicos e da oposição de parte da indústria norte-americana. O plenário do partido afirmou que “autossuficiência em ciência e tecnologia é um pilar estratégico do desenvolvimento nacional” e demandou que “importantes avanços sejam conseguidos em tecnologias críticas” para que a China se torne “líder global em inovação”. Essa diretriz já estava presente nas medidas tomadas para o avanço na política industrial Made in China 2025, com resultados concretos em várias áreas, entre as quais o país já mostra significativa liderança global: tecnologia 5G e 6G e inteligência artificial.
A liderança chinesa passou a ver na política ambiental e de mudança do clima uma forma de ganhar prestígio global e obter benefícios econômicos. A proteção ambiental tem sido uma prioridade crescente para as autoridades chinesas nos fóruns internacionais. Em setembro, na ONU, Xi Jinping anunciou que a China fixou a meta de o pico das emissões de gás carbono ser alcançado em 2030 e a de emissão zero, obtida em 2060. Embora ambiciosos, esses objetivos indicam a participação cada vez mais intensa da China nas discussões sobre políticas ambientais, com potenciais reflexos sobre outros países.
Enquanto a China faz seu sólido planejamento com visão de futuro, o Brasil mantém uma atitude preocupante em termos de planejamento de médio e longo prazos. O FMI projeta uma queda de perto de 5% em 2020 e um crescimento de mais de 4% em 2021, apesar de estimativas de analistas econômicos de que as questões fiscais, a ausência de reformas, a queda no crescimento do comércio exterior e nos investimentos externos não prenunciam uma saída em V, como repetido pelo ministro da Economia. Por outro lado, o baixo crescimento da economia nos últimos anos, agravado pela pandemia, fez o Brasil deixar de ser uma das dez maiores economias globais, segundo o Ibre/FGV. Em termo de PIB em dólares, neste ano, Canadá, Coreia do Sul e Rússia devem ultrapassar o Brasil, que cairá para a 12.ª posição.
A preocupação aumenta quando se verifica não haver um plano claro de saída da crise atual, nem prioridades para avanços econômicos, sociais e tecnológicos. Sem maior discussão, o governo editou decreto que institui a Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031, com cinco eixos: econômico, institucional, infraestrutura, ambiental e social. Trata-se um uma medida tímida, que vai na direção correta. O Congresso e a sociedade civil deveriam ser chamados a participar da análise e discussão dessa estratégia. Dois aspectos chamam a atenção no documento do governo federal: a ausência de uma clara prioridade para a inovação e a tecnologia e de metas claras no eixo ambiental no tocante à preservação da Floresta Amazônica e à mudança do clima.
China, Europa, Japão e EUA (com Biden), no atual cenário internacional, colocam mudança de clima e tecnologia como objetivos centrais, como ficou evidente na reunião do G-20 no final da semana. Quando o Brasil vai juntar-se a eles?
*Presidente do Irice
‘Falta de educação de qualidade e igual para todos é maior problema do país’, diz Evandro Milet
Em artigo na Política Democrática Online de novembro, consultor explica porque o Brasil não conseguiu seguir exemplos do Japão e da Coreia do Sul
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“O maior problema para o desenvolvimento do país é a falta de educação de qualidade e igual para todos, pobres e ricos, que coloque o país entre os primeiros do mundo nesse fundamento, com muita tecnologia e inovação”. A avaliação é do consultor em inovação e estratégia Evandro Milet, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de novembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.
Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de novembro!
Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP. Em seu artigo, Milet afirma que, para o pleno desenvolvimento do país, também é fundamental a redução das desigualdades sociais com programas focados nos mais pobres e na redução dos problemas que tiram grande parte da população da atividade produtiva.
“Cabe aqui enumerá-las: evasão escolar, gravidez na adolescência, homicídios, acidentes de trânsito, discriminações em geral e a falta de creches e escolas de tempo integral, o que tira mulheres do mercado de trabalho”, diz o autor, no artigo publicado na revista Política Democrática Online de novembro.
Em sua análise, Milet observa que, sem ênfase em educação e exportações, o Brasil não conseguiu seguir o exemplo de países como o Japão e a Coreia do Sul, que alcançaram um forte desenvolvimento industrial e tecnológico com sólida atuação do governo. “O Brasil passou muitos anos com sua economia fechada, colocando a culpa da falta de desenvolvimento em fatores externos, subsidiando empresas para substituir importações e acreditando que o governo é o grande motor da economia”, afirma, em outro trecho.
De acordo com o autor do artigo, uma série de problemas ainda assolam o país. “Empresas ineficientes, incapazes de competir internacionalmente; baixa produtividade; governo grande, caro, também ineficiente e corrupto; carga tributária alta; despesa maior que receita implicando dívida alta; ambiente de negócios burocratizado e demonizando o lucro; justiça lenta e que não promove segurança”, critica.
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El País: China e outros 14 países da Ásia e Oceania assinam o maior acordo comercial do mundo
Tratado RCEP, que englobará 30% do PIB e da população mundial, representa um impulso econômico e político para Pequim, em detrimento da influência dos EUA na região
Macarena Vidal Liy, El País
Quinze países da Ásia e da Oceania assinaram no domingo (15) um acordo para formar a maior associação comercial do mundo, em uma grande vitória para a China, principal promotora do projeto desde que ele começou a ser negociado, em 2012. A Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês) exclui os Estados Unidos, mas reunirá 2,1 bilhões de consumidores e 30% do PIB mundial.
China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia assinaram o pacto, juntamente com os dez países que compõem a Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) ―Indonésia, Tailândia, Singapura, Malásia, Filipinas, Vietnã, Myanmar, Camboja, Laos e Brunei― ao fim da reunião de cúpula desta organização, realizada neste ano por videoconferência devido à pandemia. A Índia, que decidiu abandonar as negociações no ano passado devido ao temor de que produtos chineses baratos inundem seu mercado, terá a possibilidade de se incorporar à RCEP no futuro, se quiser.
Como a reunião foi por videoconferência, a assinatura do acordo seguiu um protocolo próprio, adaptado às circunstâncias da pandemia. Cada país realizou sua própria cerimônia, na qual o respectivo ministro do Comércio firmou o documento sob o olhar de seu chefe de Governo ou de Estado.
“Estou muito satisfeito porque, depois de oito anos de negociações complexas, finalmente concluímos hoje de forma oficial as negociações da RCEP”, afirmou o primeiro-ministro vietnamita, Nguyen Xuan Phuc, cujo país preside atualmente a Asean.
Impulso
O sucesso das negociações e a assinatura do acordo representam um impulso econômico e político para Pequim. Como principal propositor dessa iniciativa, a China consolida sua influência na Ásia, em detrimento dos Estados Unidos. Envia a mensagem de que é Pequim, e não Washington, o Governo que está realmente interessado na região. Ela poderá desempenhar um papel-chave no desenvolvimento das regras comerciais do continente. O pacto abre ainda novos mercados para suas exportações, em um momento de incerteza sobre a evolução da economia global. E reforça as credenciais que o país busca como defensor global do multilateralismo, em meio a uma tendência à desglobalização que foi acelerada pela pandemia de covid-19.
O pacto é uma alternativa ao TPP, o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica. A administração do ex-presidente americano Barack Obama via o ambicioso acordo entre países dois lados do Pacífico, do qual a China estava ausente, como um pilar econômico para sustentar a influência dos Estados Unidos na Ásia. Quando chegou à Casa Branca, o presidente Donald Trump ordenou a retirada americana do pacto, que outros 11 países ratificaram.
A saída americana foi um golpe quase fatal para o TPP e reforçou os argumentos de quem afirmava que a maior potência mundial não tem interesse em se envolver realmente na região. A decisão de Trump reavivou as negociações para a RCEP, que se arrastavam havia anos. O interesse dos Governos regionais de encontrar formas de estimular suas economias, afetadas primeiro pela guerra comercial e tecnológica entre EUA e China e depois pela pandemia, fez o resto.
Para o primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, “nas atuais circunstâncias mundiais, [o acordo] traz um raio de luz e de esperança em meio às nuvens escuras” deixadas neste ano pela pandemia e pelas tendências desglobalizantes. A RCEP, acrescentou, “mostra claramente que o multilateralismo é o caminho correto e representa a direção adequada para a economia mundial e o progresso da humanidade”.
“Acreditamos que a RCEP, como o maior acordo de livre comércio do mundo, é um importante passo rumo a um marco ideal de comércio global e regras para o investimento”, assinalaram os países signatários em um comunicado. É um grupo muito diverso, que inclui algumas das economias mais avançadas do mundo, como o Japão; a “socialista com características chinesas” em Pequim; e algumas das mais pobres do planeta, como Laos e Camboja.
Diferenças
A RCEP e o TPP são muito diferentes. Enquanto o TPP se concentrava na redução de barreiras não tarifárias (proteção do meio ambiente, padrões para investimento estrangeiro), a RCEP dá ênfase principalmente às tarifas, sem a preocupação com proteções dos direitos trabalhistas, oferecidas pela tratado promovido originalmente pelos EUA.
A aliança elimina tarifas sobre mais de 90% dos bens trocados entre os membros. O acordo também inclui proteções sobre propriedade intelectual e capítulos sobre investimentos e comércio de bens e serviços. Além disso, estipula mecanismos para a resolução de disputas entre os países.
No total, a RCEP reduz tarifas e estabelece regras em cerca de 20 áreas. Entre outros, elimina impostos sobre 61% das importações de produtos agrícolas e pesqueiros da Asean, Austrália e Nova Zelândia, juntamente com 56% da China e 49% da Coreia do Sul.
Com a assinatura do acordo, aumenta a pressão sobre o presidente eleito dos EUA. Joe Biden, para demonstrar o compromisso de seu futuro Governo com a região que acumula o maior potencial de crescimento nos próximos anos. Biden afirmou no ano passado que tentará renegociar o TPP para que os Estados Unidos se reincorporem ao pacto, o que não parece ser uma tarefa fácil.
As próprias negociações iniciais para levar adiante o pacto promovido pelos EUA já se mostraram muito espinhosas, e é possível que economias como a japonesa exijam condições mais rígidas. O próximo inquilino da Casa Branca também terá de lidar com um Congresso muito mais reticente em relação a grandes acordos comerciais. À medida que a campanha eleitoral foi avançando, Biden foi se mostrando menos enfático sobre suas aspirações de retomar o TPP, e já declarou que prefere se concentrar primeiro na recuperação econômica e na luta contra a pandemia.
Ascânio Seleme: Bolsonaro criminoso
Presidente mentiu categoricamente ao afirmar que a CoronaVac causava morte
A contabilidade passava de uma dúzia de crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente da República quando ele deu uma freada por orientação do Centrão. Não porque não tivesse outras barbaridades para dizer, mais ameaças a proferir, novos crimes para cometer. Mas sim porque precisava dar uma envernizada no seu perfil para que o agrupamento mais fisiológico do Congresso pudesse dele se aproximar. Há dois dias, o escorpião venenoso não conseguiu se conter e voltou a seu estado natural de irresponsável maior da República. Desta vez, o alvo do seu atentado criminoso não foi o Congresso, o Supremo ou a democracia. Agora, ele preferiu golpear a saúde do povo brasileiro.
Além de festejar um hipotético fracasso da vacina que está sendo testada pelo Instituto Butantan, órgão do governo de São Paulo, onde identifica um inimigo na figura do governador, disse em rede social que ganhava mais uma sobre João Doria. E mentiu categoricamente ao afirmar que a CoronaVac causava morte, invalidez e anomalias. Foi um crime contra a dignidade, a honra e o decoro do cargo que ocupa, previsto na lei do impeachment. Mas deste mato não sai cachorro. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, único com poder para dar andamento a pedidos de afastamento do presidente, já sentou em cima de mais de 30. Se um novo ocorrer, vai ser aquecido sob a mesma pilha gorda.
Talvez o Tribunal de Contas da União possa identificar um outro crime, de interferência indevida do presidente numa agência reguladora, se tocar para valer a investigação solicitada pelo Ministério Público. Difícil não enxergar essa interferência diante do que se viu antes e logo depois da decisão da Anvisa de suspender as pesquisas do Butantan. Para começar, a nota noturna da Anvisa suspendendo os testes já apontava o caminho pelo qual transitaria o capitão logo em seguida. Ao afirmar que houve um evento adverso grave, e mesmo já sabendo se tratar de possível suicídio, listou o que podem ser esses eventos (morte, invalidez, anomalias), dando munição a Bolsonaro.
Todos os erros cometidos pela Anvisa parecem deliberados. 1) A agência não esperou nem sequer o amanhecer para tomar a decisão de suspender a pesquisa. 2) A Anvisa não aceitou a ponderação do Butantan sobre a morte do homem que testara a vacina por não a considerar formal (queria um boletim de ocorrência da polícia), ao contrário do Comitê Internacional Independente e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. 3) O contra-almirante Antônio Barra Torres, presidente da agência, disse não ser parceiro do Butantan. Patético. Os responsáveis pelos testes mereciam confiança, e o BO poderia se ver depois; claro que a Anvisa poderia esperar mais detalhes antes de suspender os testes. E, evidentemente, todos deveriam estar do mesmo lado contra a pandemia.
O contra-almirante e os dois subordinados que deram entrevista explicando a decisão apressada foram instrumentos do presidente. O que Bolsonaro queria era ter um ganho político sobre Doria na reta final da eleição municipal. Seu candidato a prefeito de São Paulo, Celso Russomanno, vai tão mal que talvez nem chegue ao segundo turno. Doria, por sua vez, torce para que ele avance e seja o adversário de Bruno Covas, para dar uma coça em Bolsonaro. As explicações da trinca da Anvisa, Barra Torres, Alessandra Bastos Soares e Gustavo Mendes, na entrevista de terça-feira foram ridículas. Mesmo sabendo desde a véspera que a morte não se devia à vacina, insistiram que o aspecto formal era inevitável. Não era. Tanto que recuaram 24 horas depois.
Sabia-se desde sempre que o contra-almirante era um bolsonarista sem máscaras. Nos bastidores da Anvisa comenta-se que o mandato da diretora Alessandra Bastos Soares vence em abril do ano que vem, e ela busca sua recondução para o cargo. Talvez isso explique a condescendência com decisão baseada em premissas tão frágeis. Sobre o papel do técnico Gustavo Mendes, que disse na entrevista estar falando em nome de todos os seus colegas sem apresentar procuração, sabe-se na Anvisa que ele é daqueles quadros em que os chefes podem sempre confiar.
RPD || Evandro Milet: Uma agenda para o novo desenvolvimento
Sem ênfase em educação e exportações, o Brasil não conseguiu seguir o exemplo de países como o Japão e a Coreia do Sul, que alcançaram um forte desenvolvimento industrial e tecnológico com sólida atuação do governo
O Brasil passou muitos anos com sua economia fechada, colocando a culpa da falta de desenvolvimento em fatores externos, subsidiando empresas para substituir importações e acreditando que o governo é o grande motor da economia. Grande símbolo desse processo foi o Artigo 219 da Constituição de 1988 estabelecendo que o mercado interno integra o patrimônio nacional e deverá ser incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, […] e a autonomia tecnológica do País. Imaginava-se seguir o exemplo de Japão e Coreia em um desenvolvimento industrial e tecnológico com forte atuação do governo e reserva de mercado para as empresas nacionais. Mas eles tinham duas coisas que nós não tínhamos e, aliás, não temos até hoje: ênfase em educação e exportações.
Problemas que se estendem até hoje: empresas ineficientes, incapazes de competir internacionalmente; baixa produtividade; governo grande, caro, também ineficiente e corrupto; carga tributária alta; despesa maior que receita implicando dívida alta; ambiente de negócios burocratizado e demonizando o lucro; justiça lenta e que não promove segurança.
Uma nova agenda para o desenvolvimento tem de romper com tudo isso. Precisamos de um choque de capitalismo com uma revolução na educação, uma rede focada na proteção social e uma abertura para o exterior – as empresas brasileiras precisam competir internacionalmente.
Mas também o capitalismo de hoje está diferente. Serviços e tecnologia adquiriram peso muito maior, o mercado financeiro criou novos mecanismos que precisamos absorver e a sustentabilidade ambiental é um valor fundamental.
Apesar dos problemas, o Brasil teve um setor com avanços extraordinários, muita tecnologia e sem subsídios: commodities, com agronegócio e mineração. Há certo preconceito contra commodities, como se fossem coisa menor, sendo obrigatória uma agregação de valor nos produtos. A agregação de valor pode ser feita na cadeia, com investimentos privados na logística de ferrovias e portos, insumos e equipamentos, inovação e tecnologia e serviços acoplados, abrindo outras oportunidades de negócios nesses setores. A riqueza gerada pelas commodities e suas cadeias alimenta todas as outras e gera novos espaços de competição na indústria e nos serviços.
O mercado financeiro também abre novas oportunidades. O Brasil nunca teve juros e inflação tão baixos. O investimento em startups, no venture capital e na bolsa, assim como o empreendedorismo em geral, tão comuns nos Estados Unidos, não cresciam no Brasil pela oportunidade das altas taxas de juros reais nas aplicações de renda fixa e pelo financiamento subsidiado para empresas no BNDES. O mercado está em ebulição nesses aspectos e nas oportunidades em privatizações, concessões e PPPs, antes malvistas e agora aceitas pela sociedade.
De outro lado, as taxas de juros internacionais em torno de zero provocam a procura da poupança internacional por investimentos seguros pelo mundo. Toda a infraestrutura brasileira (saneamento, logística, energia, digital) pode sofrer uma revolução com implicações sociais na saúde e no emprego.
Mas os problemas são a insegurança jurídica para investimentos de longo prazo e a incerteza na economia. Quem investe sem saber quais serão a taxa de juros, a inflação e o câmbio nos próximos anos? O equilíbrio fiscal é fundamental para garantir um futuro previsível para investidores.
Para o ambiente de negócios falta uma reforma tributária que reduza burocracia e impostos, uma reforma da justiça para ser mais rápida e mais estável nas suas decisões, e uma reforma administrativa que racionalize a atuação do governo, reduza o custo e elimine as disfuncionalidades do sistema de controle.
Falta atender à grande demanda atual não só dos governos, mas também dos consumidores mundiais, pela preservação do meio ambiente. A importância brasileira nesse tema é tanta que pode nos abrir espaço para exercer um soft power mundial com ótimas repercussões nos negócios em geral e na nova bioeconomia.
Para o pleno desenvolvimento do País, é fundamental a redução das desigualdades sociais com programas focados nos mais pobres e na redução dos problemas que tiram grande parte da população da atividade produtiva. Cabe aqui enumerá-las: evasão escolar, gravidez na adolescência, homicídios, acidentes de trânsito, discriminações em geral e a falta de creches e escolas de tempo integral, o que tira mulheres do mercado de trabalho.
Porém, é possível eleger o maior problema para o desenvolvimento do país: a falta de uma educação de qualidade e igual para todos, pobres e ricos, que coloque o país entre os primeiros do mundo nesse fundamento, com muita tecnologia e inovação.
*Evandro Milet é consultor em inovação e estratégia
Míriam Leitão: Um presidente que atormenta
O Brasil está vivendo a maior tragédia de saúde pública em um século, e o presidente comemora. Há 162 mil mortos, e o presidente diz “mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. Não há vitória para qualquer pessoa num país que conta seus mortos. Esta é uma guerra pela vida que deveria unir, que tinha que seguir o comando apenas da ciência e da medicina. O drama que levou uma pessoa de apenas 33 anos não pode ser vitória de ninguém. Esta não é a primeira vez que Bolsonaro atenta contra a saúde pública espalhando descrédito contra uma vacina que pode vir a ser aprovada, não é a primeira vez que ele trata essa calamidade nacional como se fosse uma disputa de egos ou o palanque antecipado de 2022.
Até quando as instituições vão ignorar o fato de que há crime envolvido nisso? Vários crimes. Tipificados e arrolados no Código Penal para quem ameaça a saúde pública e o faz dessa forma, insistente e cotidianamente. Desde o início da pandemia, o presidente Bolsonaro cometeu inúmeros absurdos como o de combater a proteção contra o vírus. Ontem o país amanheceu com mais um tormento criado por ele.
Ele postou que a vacina que está sendo pesquisada pelo Instituto Butantan e a Sinovac na China traz “morte, invalidez e anomalia”. Não há qualquer comprovação. A postagem delinquente diz ainda que essa é a vacina que o “Dória queria obrigar a todos os paulistanos a tomá-la”. Com essas palavras ele está considerando a suspensão da Anvisa como definitiva? E termina com a frase horrenda, dadas as circunstâncias envolvidas, a de que é “mais uma que Bolsonaro ganha”.
A consequência foi lançar sobre a Anvisa a dúvida da politização. Os brasileiros precisam da Anvisa técnica, mais do que nunca. Os servidores certamente vão seguir seus protocolos com responsabilidade. Mas o evento cria uma névoa sobre a agência. Em nenhum momento, na entrevista de ontem, a Anvisa esclareceu que não considera que a vacina cause o que o presidente insinuou. O contra-almirante Antonio Barra Torres, para defender a agência que preside, deveria negar o que o presidente disse. Preferiu a tangente, ao dizer que não teceria comentários sobre questões políticas. Mas o que Bolsonaro tinha dito era um diagnóstico: “morte, invalidez e anomalia.” Se causa tudo isso, ele tem que dizer. Se não há qualquer indício, ele tem que dizer.
E por que ele não diz? Não é para proteger a Anvisa de contaminação política. Ele é o caminho dessa contaminação. Barra Torres foi o mesmo que participou de uma manifestação antidemocrática ao lado de Bolsonaro, sem máscara, gerando aglomeração no meio de uma pandemia.
Os testes com uma das vacinas mais promissoras foram suspensos pela Anvisa numa decisão que ainda não foi completamente esclarecida. A agência diz que seguiu o protocolo, já que houve um “evento adverso grave”. O Instituto Butantan disse que enviou o comunicado no dia 6, e que na segunda-feira, dia 9, às 20h40, recebeu a resposta de que os testes estavam suspensos. A Anvisa diz que o ataque de hacker impediu que ela recebesse no dia 6. O Instituto disse que como a agência havia convocado a reunião para a manhã de ontem, poderia ter esperado a conversa. A causa da morte do voluntário, segundo o IML, foi suicídio, portanto, sem relação com a vacina em si. Tudo isso poderia ser apenas — e já seria grave no contexto de uma pandemia — desentendimento burocrático entre o regulador e o produtor de vacinas. Mas o presidente da República tornou tudo mais grave.
Numa pandemia, o Brasil precisa manter a confiança na Anvisa e no Instituto Butantan. Se a Anvisa autorizar e o instituto produzir, a credibilidade dos dois órgãos será fundamental para que os brasileiros se imunizem. Da mesma forma o país precisa ter confiança no imunizante a ser produzido pela Fiocruz. Ou qualquer outro que seja importado pelo governo.
O Brasil tem um presidente que atormenta, que escolheu fazer parte do problema e não da solução. Ele politizou o Ministério da Saúde e o transformou numa sombra do que já foi, brincou com essa doença como se ela não tivesse a seriedade que tem, inoculou em seus seguidores a desconfiança na ciência e nas vacinas, prescreveu remédios sem comprovação científica, estimulou aglomeração e maus hábitos. O que falta para Jair Bolsonaro entender a dor do Brasil?
Merval Pereira: O medo da morte
A atitude desprezível e repugnante do presidente Bolsonaro de festejar a paralisação dos testes com a Coronavac, vacina chinesa que está sendo produzida pelo Instituto Butantan em São Paulo, como uma vitória política sobre o governador João Dória, dá bem a dimensão desumana desse político, que brada que o país tem de parar de ser “terra de maricas” e encarar de frente a pandemia.
Se não fosse a barreira do Centrão, esta seria a milionésima vez em que Bolsonaro, cometendo mais um crime de responsabilidade, poderia ser impedido pelo Legislativo de continuar à frente do governo. Não tem a menor condição psicológica ou moral para exercer a presidência da República uma pessoa que não consegue ter empatia com os cidadãos do país que teoricamente lidera.
O tiro de misericórdia tentado acabou saindo pela culatra, pois o pobre do voluntário que morreu, cometeu suicídio ou foi vítima de uma overdose, ocorrência que nada tem a ver com a vacina. O fato de que, mesmo depois de esclarecido o caso, a Anvisa não autorizou a retomada dos testes, mostra que há mais do que uma exagerada cautela por parte do órgão governamental.
Mas há indicações de que o prejuízo pode ser muito maior, pois pesquisas realizadas pelo cientista político Carlos Pereira, com Amanda Medeiros, da Fundação Getulio Vargas do Rio, e Frederico Bertholini, da Universidade de Brasília (UNB), mostram que a maneira como o governo brasileiro está tratando o combate à COVID-19 tem feito com que muitos dos seguidores de Bolsonaro abram divergência em relação ao desprezo que ele tem pelo distanciamento social e uso de máscara.
A crise da vacina é apenas mais uma fase desse negacionismo governamental, apesar dos mais de 5 milhões de infectados e mais de 160 mil mortos. Há também indicações de que a polarização entre os extremos, da esquerda e da direita, está cansando os cidadãos, assim como nos Estados Unidos a virulência de Trump abriu espaço para a vitória do conciliador Joe Biden.
Pereira diz que já é possível observar esse fenômeno nas eleições municipais, “pois os candidatos que estão sendo apoiados por Lula e por Bolsonaro estão apresentando performance pífia nas pesquisas de opinião”.
As pesquisas que Carlos Pereira e outros vêm fazendo sobre as consequências da pandemia mostram, segundo ele, “choque exógeno de proporções tectônicas”. Segundo sua análise, o jogo polarizado entre os extremos estava em relativo “equilíbrio” não apenas no Brasil, mas no mundo, cada um dos polos se retroalimentando. Consumiam informações que reforçavam suas crenças anteriores, e rejeitavam à princípio qualquer informação que contrariasse as suas respectivas identidades.
“As identidades próprias de cada grupo serviam, por um lado, como elementos de pertencimento e aconchego. Mas, por outro, como um escudo ou filtro protetor contra as identidades e valores do grupo rival”. As pesquisas de opinião experimentais que vem desenvolvendo, agora na terceira fase, sugerem que a COVID-19 “foi um choque exógeno de grandes proporções que abalou ou mesmo deslocou os eixos da polarização política no Brasil”.
O “medo da morte” gerado pela pandemia trouxe muitas incertezas, “e nessas condições de risco aberto, as saídas polares começaram a perder sentido, capacidade de agregação e fadiga”. Segundo Carlos Pereira, “uma parcela não trivial de eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018 abandonaram o presidente e não mais consideram votar em sua reeleição em 2022”.
Esse extrato populacional de perfil mais pragmático, as pesquisas mostram, está em busca de alternativas moderadas que preencham suas expectativas. O efeito da proximidade com o risco de morte associado à COVID-19 também é percebido nas avaliações sobre as ações do presidente e dos governadores, ressalta Pereira.
Muitos dos que se autodenominam de direita e centro-direita “se tornaram mais maleáveis quanto mais próximos esses eleitores se encontram de pessoas que desenvolveram a doença, em especial se vieram a óbito”. A gravidade da contaminação que eventualmente venha a gerar óbito leva as pessoas a minimizar as potenciais perdas econômicas.
“O medo da morte parece não aproximar apenas polos ideologicamente opostos, mas também diferentes classes sociais e pessoas que estão vivenciando diferentes níveis de prejuízos econômicos em decorrência da política de isolamento social”.
Fernando Gabeira: Uma ponte com o mundo
Vitória de Trump representaria a perda de esperança na sobrevivência da própria humanidade
Na noite das eleições pensei em ver um jogo da Copa do Brasil para não passar a noite em claro, sofrendo com algo que não posso influenciar. Trump ou Biden, Botafogo ou Goiás? Este último duelo tinha funcionado para embalar meu sono na semana anterior.
No entanto passei mais uma noite em claro. Afinal, há tanta coisa em jogo. Minha ideia dos Estados Unidos não se alterou. Como nunca fui lá, conecto-me pela cultura, e alguns pontos importantes do mapa são Nova York e a Califórnia. Nesses lugares, Trump foi derrotado de forma acachapante. Continuam, de certa maneira, familiares para mim.
O problema são as decisões tomadas em Washington. No dia anterior, os EUA formalizaram sua saída do Acordo de Paris, deixando os outros países com a enorme tarefa de adaptação ao aquecimento global.
Para os estrategistas, uma solução pró-Trump seria interessante para a China, pois acentuaria a decadência americana no mundo. Para mim, ela representaria a perda de esperança na sobrevivência da própria humanidade, deixando-nos com a alternativa de apenas lutar para que isso seja mais lento.
No meu país, seria um estímulo para que Bolsonaro e Salles acelerem a destruição dos recursos naturais e reduzam as chances de encontrarmos nossa moderna vocação econômica: a exploração sustentável da Amazônia, das fontes renováveis de energia, a abertura de milhares de empregos num projeto de recuperação verde.
Alguma coisa não funcionou na primeira noite. As pesquisas se equivocaram, e Biden não conquistou uma vitória esmagadora. Aconteceu o que todos anunciavam; Trump tumultuaria o processo e buscaria uma saída no tapetão. Ele, como todo mundo, sabia que a maioria dos democratas votou pelo correio e que esses votos demoraram a ser contados.
Independentemente do resultado, tudo isso me faz pensar no Brasil. Lá como aqui, a polarização domina o país. Lá como aqui, o populismo é muito mais resiliente do que pode parecer quando nos referimos apenas aos círculos intelectuais.
Antes de criticar as pesquisas que falharam, é importante registrar que algumas pessoas têm medo de revelar seu voto; outras o escamoteiam porque veem nos institutos de pesquisa um braço do sistema e de dominação, denunciado pelos populistas.
E, antes de criticar os democratas por terem esperado uma onda azul que não arrebentou na praia, é preciso estudar se existem alternativas para certas tendências humanas.
Como não se importar com os imigrantes ilegais, inclusive centenas de crianças separadas dos pais? Nem sempre os latinos legalizados são solidários com os ilegais. Nem sempre os negros se compadecem dos seus irmãos asfixiados até a morte pela polícia.
Na medida em que a vitória de Biden se anunciava de forma mais lenta que o esperado, Trump optou por entrar na Justiça e, de certa forma, tumultuar o processo. Isso preocupa não só pelos Estados Unidos. Trump é uma inspiração para Bolsonaro, que tem uma tendência a questionar resultado das eleições, até mesmo quando as vence.
Ha tantas lições a tirar deste momento que ele nos deixa uma tarefa para muito tempo. Mas é claro que o populismo de direita é enraizado na visão de mundo de seus seguidores, e não podemos subestimá-lo, mesmo diante da derrota eleitoral.
Aliás, a vitória nesse caso lembra-me a fala de um oficial no filme “A Guerra da Argélia”: “É muito difícil chegar ao governo, mas as dificuldades começam de verdade quando se chega lá”.
Biden é um homem com recursos oratórios modestos, mas realizou a tarefa de ser o candidato mais votado da história americana. O panorama que encontra diante de si é minado não só pela pandemia, crise econômica, mas também pelo legado do populismo. Desconfiança nas instituições, notícias falsas, teorias conspiratórias, divisão profunda na sociedade, tudo isso modela um caminho muito difícil de transpor.
Muito mais que a paciência e a unidade necessárias para derrotar o populismo de direita, será necessário construir pontes, apesar dos sabotadores que as explodem com frequência.
A primeira e grande ponte será com o próprio mundo, voltar ao esforço multilateral, reconhecer a importância do trabalho conjunto para enfrentar o grande desafio planetário. A volta ao Acordo de Paris e a reconstrução verde da economia americana seriam um grande começo.
Luiz Carlos Azedo: Entre a águia e o dragão
Candidato a marisco entre EUA e China, faltam ao governo Bolsonaro politica externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo
— Espera! — exclamou Ega. — Lá vem um “americano””, ainda o apanhamos.
— Ainda o apanhamos!
Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
— Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma…
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atribulando as pernas magras:
— Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder…
A lanterna vermelha do “americano”, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
— Ainda o apanhamos!
— Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o “americano”, os dois romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.
(Os Maias, Eça de Queiroz, 1888)
Essa alegoria do escritor português que tanto influenciou nossa literatura encerra um grande “afresco” literário sobre a atávica e parasitária elite lusitana e a situação de estagnação de Portugal no final do século XIX. Serve sob medida para a situação em que se encontram o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das não-Relações Exteriores, Ernesto Araujo, que agora correm atrás do prejuízo como a dupla Carlos Maia e João da Ega, por causa da vitória de Joe Biden, candidato do Partido Democrata nas eleições para a Presidência dos Estados Unidos. O presidente Donald Trump, um demagogo tresloucado que ocupou a Casa Branca por 4 anos e levou muitos a acreditarem no naufrágio da civilização ocidental, foi escolhido por ambos como aliado incondicional. Entretanto, mais uma vez, a democracia americana se recuperou de um desastre político e retomou o seu curso histórico.
No mundo globalizado — traumatizado por uma pandemia que já matou 1,4 milhão de pessoas, a recessão dela decorrente e o aprofundamento das desigualdades —, falta uma autoridade moral, portadora de valores universais capazes de influenciar a marcha da História, à qual a sociedade contemporânea possa recorrer. O Velho Mundo, com suas ideias iluministas e protagonista da história mundial do século XV ao XIX, hoje não é o candidato natural a essa posição. Somente os Estados Unidos podem exercer esse papel de liderança global nos fóruns internacionais, pela universalidade de seus fundamentos políticos, sua composição étnica e multiculturalismo, além do inegável poder que adquiriu no século passado, após vencer duas guerras mundiais e a “guerra fria”. Nenhum outro país reúne, simultaneamente, capacidade de produção industrial, força militar, pesquisa científica, conhecimento, tecnologia e influência política e cultural para isso.
Marisco
Misógino, homofóbico e chauvinista, Trump havia abdicado desse protagonismo, lançando os Estados Unidos na contramão da História. Mas é um erro supor que tudo começou com o republicano. Na verdade, o erro histórico dos Estados Unidos foi continuar a tratar os vencidos na “guerra fria” — a antiga União Soviética e os países do Leste europeu — como inimigos a serem humilhados, espoliados e isolados politicamente. É esse hegemonismo truculento que está na gênese do trumpismo, marcadamente após a Guerra do Iraque, com o seu intervencionismo para derrubar regimes e refundar nações, alterando abruptamente a geopolítica de regiões inteiras. O ponto de inflexão dessa política, porém, foram os fracassos nas tentativas de derrubar os governantes da Síria, Bashar al-Asha,d e da Venezuela, Nícolas Maduro, por subestimar o poder de intervenção militar da Rússia e a emergência da China como potência econômica e diplomática.
No seu livro Sobre a China, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado norte-americano, que no governo Richard Nixon negociou com êxito o restabelecimento das relações dos Estados Unidos com os chineses, chamou a atenção para o fato de que as duas guerras mundiais do século XX resultaram de uma disputa pelo controle do comercio mundial no Atlântico por uma potência continental, a Alemanha, e uma potência marítima, o Reino Unido. Agora, o eixo do comércio mundial se deslocou para o Pacífico e a disputa continua sendo entre uma potência continental e uma marítima: China e os Estados Unidos, respectivamente. É preciso evitar que essa guerra comercial não se transforme numa guerra quente, não se cansa de advertir Kissinger, o ex-diplomata hoje nonagenário.
O erro estratégico de Bolsonaro e seu não-chanceler, Ernesto Araujo, foi acreditar que isolamento diplomático em que o país mergulhou, por causa de uma agenda negacionista, reacionária e antiambientalista, seria compensado pela aliança imediatista, não com o Estado norte-americano, mas com o presidente Trump. Deu errado. A águia do Norte novamente alçou voo, em busca da liberdade, mas o dragão chinês, nosso principal parceiro comercial, espreita o processo em curso antes de estrugir labaredas de fogo. A China dispõe de recursos humanos e financeiros, capacidade industrial e tecnologia para sustentar essa disputa por longos anos. O maior desafio para a diplomacia brasileira é não virar marisco nessa disputa, que continuará com Biden, em outros termos. Bolsonaro colecionou agressões aos chineses, que pacientemente observam o curso de nossas relações com os Estados Unidos. Se forem toscamente discriminados, principalmente no caso do 5G, vão se reposicionar política e comercialmente, com um poder de retaliação muito grande. Se tem uma coisa que falta ao governo Bolsonaro é politica externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo.
Miguel Reale Júnior: Vacina obrigatória
Campanha contra a vacinação por motivos políticos pode ser crime de responsabilidade
O obscurantismo bolsonariano faz-nos retroceder no tempo mais de um século. Em 1900 a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, era conhecida como empesteada, vítima de febre amarela, peste bubônica e cólera. Oswaldo Cruz, diretor de saúde pública no governo Rodrigues Alves, enfrentou as duas primeiras a partir de 1902 e em 1904 deu início ao combate à varíola, cuja imunização poderia dar-se pela aplicação de vacina já conhecida havia décadas.
Depois de muita discussão, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei n.º 1.261, de outubro de 1904, que determinava a vacinação compulsória. Houve, então, já naquele tempo, tanto fake news, difundindo ser perniciosa a vacina, como exploração política de positivistas, seguidores de Augusto Comte, e florianistas, adeptos de Floriano Peixoto, que tomaram a questão da vacina como pretexto para tentar derrubar o presidente.
A contestação à obrigatoriedade, liderada por parlamentares, antes oficiais do Exército, ganhou cores gravíssimas, pois entre 10 e 20 de novembro as ruas foram ocupadas por revoltosos, com um saldo terrível de 30 mortos e mais de 900 presos, dos quais 450, por antecedentes criminais, foram enviados para o Acre. Muitos feridos.
Até Rui Barbosa se pôs contra a vacina, ponderando que, “assim como o Direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme”. A obrigatoriedade foi revogada. Em 1908 muitos morreram de cólera e a população acorreu, então, para tomar a vacina. Rui alterou sua posição e em 1917 homenageou Oswaldo Cruz, reconhecendo dever-se a ele a vitória sobre o flagelo e a diferença entre o “Brasil pesteado, que encontrou, e o Brasil desinfectado, que nos veio a legar”.
Em plena pandemia, antes do meio do mandato, Jair só pensa na reeleição. E por interesse político, como em 1904, lança suspeitas sobre a vacina e nega sua obrigatoriedade para contentar seguidores e atacar governadores, contrariando os valores básicos da Constituição e os termos da legislação específica por ele mesmo sancionada. E daí?
No campo legal, a Lei n.º 6.259/75 e o Decreto n.º 78.231/76 impõem a obrigatoriedade da vacina a todos os adultos, aos quais incumbe submeter à vacinação os menores sob sua guarda.
A prevenção da contaminação da covid-19 é, especificamente, disciplinada pela Lei n.º 13.979/20. No artigo 3.º da lei, dispõe-se: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (…) III - determinação compulsória de (…) d) vacinação”. Essa conduta pode ser adotada, segundo o parágrafo 7.º desse artigo 3.º, pelos gestores locais de saúde, ou seja, pelos governadores, desde que cientificamente recomendada a providência.
Na Constituição da República consagra-se o valor da solidariedade no artigo 3.º, segundo o qual é objetivo fundamental da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ser vacinado é ser solidário, pois não apenas se protege a si mesmo, mas todos da comunidade, visando a alcançar a imunização. A solidariedade, na expressão de Dworkin, vem a ser “considerar a vida dos outros como parte de suas próprias vidas” (Uma Questão de Direito, pág. 297), significando “a pessoa se abrir à outra, pensá-la, sofrer com”, no dizer de Arias Bustamante (Alternativa Ideológica: Comunitarismo, pág. 40), unidos todos por grande cordão umbilical.
Pela via da solidariedade social pode-se cimentar, orientar e construir concretamente nossa unidade como povo, surgindo em face desse objetivo da República o dever de solidariedade que a todos vincula (André Corrêa, Solidariedade e Responsabilidade, pág. 313).
Como transmissores, somos todos iguais perante o vírus. Ninguém, por nenhuma razão, pode colocar-se acima dos demais e negar-se a colaborar com a comunidade na precaução contra o malefício da infecção. Rejeitar a vacina, autorizada pela Anvisa, é atuar com desprezo pelo outro, em superioridade antissolidária.
Como elucida o Supremo Tribunal Federal (Oscar Vilhena, Direitos Fundamentais, pág. 388, reproduzindo votos de Celso de Mello), “a proteção à saúde representa um fator que associado a um imperativo de solidariedade social impõe-se ao Poder Público”, em qualquer plano da organização federativa, tomando medidas preventivas e curativas.
Em outro voto, Celso de Mello observa que a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida com base nos direitos sociais significa a renúncia a “reconhecê-los como verdadeiros direitos” (pág. 399), em arrepio ao princípio da solidariedade.
Assim, campanha contra futura vacinação, por motivação política, significa não reconhecer a precaução eficaz contra o vírus como um direito da comunidade, a ser explicado e exigido de todos pelo chefe da Nação. Tal conduta infringe o artigo 7.º da Lei n.º 1.079/50, ou seja, pode ser crime de responsabilidade consistente em violar o direito social à saúde, pois incita a impedir a imunização, objetivo solidário de todo o povo. Que flagelo!
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Hélio Schwartsman: Por uma pitada de cosmopolitismo
Esquerdas se ocuparam da pauta identitária e esqueceram o discurso universalista
Uma explicação recorrente para o populismo de direita no mundo rico é a globalização e a desigualdade. A transferência de postos de trabalho dos países desenvolvidos para os emergentes fez com que a classe trabalhadora do primeiro grupo de nações não se beneficiasse tanto dos ganhos econômicos das últimas décadas. Sentindo-se abandonado, esse contingente populacional, que antes se identificava com partidos mais à esquerda, passou a flertar com coisas como o brexit e Donald Trump, dando-lhes eventuais vitórias.
Não discordo dessa explicação, mas reluto em comprar seu corolário, isto é, a ideia de que a globalização é um processo concentrador, disruptivo e que deve ser combatida.
O deslocamento de postos de trabalho para emergentes, em particular para China e Índia, é responsável por tirar milhões de pessoas da miséria. O abismo entre países ricos e pobres, embora ainda profundo, se reduziu. Até a pandemia, em nenhum outro período da história a proporção de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza havia sido tão pequena.
A pergunta que se coloca é se devemos adotar a visão mais paroquialista, na qual a globalização é o vilão, ou a mais cosmopolita, na qual ela é um passo para a redução das desigualdades.
Não escondo minha simpatia pelo cosmopolitismo, mesmo sabendo que nossos cérebros estão mais calibrados para o localismo. Vou um pouco mais longe e arrisco dizer que o grande erro das esquerdas nos últimos anos foi ter sucumbido tanto às pautas identitárias, esquecendo o discurso universalista.
Não que isso alteraria os resultados econômicos, mas poderia afetar a psicologia. Trabalhadores brancos sem diploma superior que dão duro para viver provavelmente não se sentiriam tão abandonados se os partidos em que sempre cofiaram viessem com um discurso que defendesse os direitos de todos, em vez de dizer que eles são privilegiados por não serem mulheres nem negros.