China

Vera Magalhães: O mundo de Bolsonaro

Eleito pauta declarações sobre política externa e comércio exterior pela ideologia

Para vencer uma eleição contra o PT diante do desgaste do partido, provocado por muitos anos de recessão e um escândalo de corrupção vasto, a divisão de tudo segundo conceitos rudimentares de esquerda e direita se mostrou eficiente.

Ao pintar o Brasil indistintamente de verde oliva e vermelho, Jair Bolsonaro e seus apoiadores conseguiram arregimentar um exército fanático e acrítico nas ruas e nas redes sociais.

Todos os principais temas, da política à economia, passando por educação, cultura, saúde e segurança pública foram submetidos a esta clivagem, que deverá pautar nos próximos quatro anos as discussões no Congresso, as intervenções do Supremo Tribunal Federal no debate público – vide o aperitivo dado nesta semana com o debate sobre liberdade de expressão nas universidades – e, principalmente, a gritaria no ambiente público já ensurdecedor.

Mas será que essa simplificação grosseira serve para amparar a política externa brasileira, sua inserção diplomática no mundo e, sobretudo, sua atuação comercial? Dificilmente. Porque o Brasil não é os EUA e Bolsonaro terá de descobrir que não é Donald Trump.

A primeira invertida internacional veio quando a Sidra da festa da vitória ainda estava sendo servida. Em editorial, o China Daily, espécie de porta-voz do governo de Pequim, ironizou Bolsonaro ao chamá-lo de “Trump tropical” e adverte: se indispor com a China pode servir a algum propósito político específico, mas criaria graves problemas econômicos para o Brasil.

O editorial diz esperar que Bolsonaro olhe de maneira “racional e objetiva” para as relações comerciais entre os dois países e lembra algo básico: as duas economias são complementares, não competidoras.

Em 2017, a China se tornou o principal destino das exportações brasileiras: US$ 47 bilhões em vendas, de produtos que vão de soja a minério de ferro. Criar ruídos com um parceiro deste tamanho é um péssimo começo em termos de política comercial.

Anúncios de medidas na área diplomática sofrem dos mesmos males de seguir a cantilena ideológica diante de realidades complexas. Imitar a decisão de Trump de mudar a embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém pode trazer que tipo de benefício para o Brasil? Bolsonaro ignora que a maioria dos países não adotou essa visão, que o Brasil tem parceiros comerciais importantes no mundo árabe e que existe uma comunidade palestina e árabe relevante no Brasil.

Numa das primeiras entrevistas que concedeu, o futuro czar da economia brasileira, Paulo Guedes, deu um piti com uma repórter argentina que quis saber algo trivial: qual será a política do novo governo para o Mercosul. Disse (berrou) que não será prioridade. Ok.

Então, qual será a diretriz para o bloco? Esvaziá-lo? O Brasil apostará mais em negociações bilaterais? Vai forçar a retirada da Venezuela? Declarações soltas, em tom exasperado e sem detalhamento só servem para criar uma névoa na relação com esses parceiros antes mesmo da largada do governo.

Essa bagunça se deve muito ao fato de que não se sabe quem são os conselheiros do presidente eleito para relações internacionais. Que ala do Itamaraty será “empoderada” no novo governo, qual será a matriz de pensamento a pautar a atuação da diplomacia brasileira? Que pasta vai cuidar do comércio exterior, que, sob Dilma e Temer, mudou de mãos algumas vezes?

Todas essas são perguntas de fundo que não são passíveis de respostas na base do “vamos colocar os comunistas no seu lugar”. Porque não estamos mais na Guerra Fria, a realidade mundial é mais intrincada que isso e bravata fora de casa pode custar caro ao Brasil, que é menos valentão no mapa do que parece crer Bolsonaro.


El País: A advertência da China e o desconcerto da Argentina ante os sinais de Bolsonaro

Futuro presidente deve visitar primeiro o Chile, e não Argentina, como de praxe, e quer relação especial com EUA e Israel. Duro editorial do jornal estatal chinês 'China Daily' adverte eleito dos riscos econômicos de querer ser um "Trump tropical"

Jair Bolsonaro reservou um momento de seu curto discurso da vitória no domingo para prometer libertar o "Brasil e o Itamaraty das relações internacionais com viés ideológico a que foram submetidos nos últimos anos". Era mais uma arenga com os Governos do PT, cujo antagonismo lhe ajudou a chegar à Presidência. Se analisados os primeiros sinais da diplomacia do futuro governo, no entanto, a guinada se projeta mais profunda e, em alguns aspectos, inédita, a ponto de desconcertar a Argentina, país estratégico para Brasília no pós-ditadura, e provocar advertência da China, principal parceiro comercial do Brasil.

Nas primeiras horas como presidente eleito, Bolsonaro celebrou um trunfo: um imediato telefonema de boas-vindas de Donald Trump. O presidente dos EUA ainda escreveria horas depois um tuíte efusivo descrevendo como "excelente" a conversa com Bolsonaro. Era tudo que desejava o futuro mandatário de extrema direita, cuja meta é explorar, apesar das grandes diferenças, a ideia de que é um "Trump tropical" e construir uma relação preferencial com os norte-americanos como não havia desde os anos 60. Como essas sinalizações vão evoluir, ainda não se sabe, mas parece ser o prenúncio da volta da diplomacia com marca presidencial animada pela afinidade com outros líderes populistas no poder.

Ao movimento se seguiu um da China. Além das felicitações protocolares, Pequim enviou um duro recado ao futuro Governo brasileiro, com o peso de quem manteve um intercâmbio comercial da ordem de 75 bilhões de dólares no ano passado com o país (20 bilhões de superávit brasileiro) e é a origem de vultuosos de investimentos. O jornal estatal China Daily, espécie de braço de relações públicas controlado pelo Partido Comunista chinês, dedicou um editorial a Bolsonaro chamado "Não há razão para que o 'Trump Tropical' revolucione (disrupt) as relações com a China". O texto afirma que Bolsonaro foi "menos que amigável" na campanha – o brasileiro já defendeu que a China não compra no Brasil, mas “o Brasil”.  Os chineses cobram que, como presidente, Bolsonaro aplique uma avaliação "objetiva e racional" das relações porque, do contrário, "o custo pode ser árduo para a economia brasileira". O Global Times, outra publicação chinesa considerada porta-voz informal, chamou distanciamento de Bolsonaro de "inconcebível".

Não foi o primeiro ruído com o Governo chinês. “Pequim vê a ascensão de Bolsonaro com muita preocupação. Ninguém na equipe do futuro Governo tinha consciência do custo político que poderia ter a visita que o presidente eleito fez a Taiwan em março”, diz Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e colunista do EL PAÍS. À época, Pequim reagiu com "indignação" porque considera a ilha taiwanesa uma parte rebelde do território chinês.

Stuenkel aposta que, nos bastidores, os chineses convencerão à futura gestão brasileira a agir de forma pragmática. Já um diplomata brasileiro, que preferiu não de identificar, avalia que há diferenças internas da equipe bolsonarista que vão se refletir na política externa: de um lado, há o receituário liberal do Paulo Guedes, que será o superministro de economia, e, de outro, a postura mais soberanista que o próprio Bolsonaro costumava defender. "As relações com a China darão a senha para compreendermos qual dessas visões prevalecerá", diz o funcionário.

Argentina e a crise na Venezuela
Como em quase tudo relacionado aos planos de Bolsonaro, em política externa os detalhes também são poucos, e as idas e vindas, muitas. No final da campanha, o presidente eleito elogiou a China, por exemplo. Bolsonaro também conversou com os parceiros de Mercosul: o presidente da Argentina, Mauricio Macri, e com Mário Abdo Benítez, presidente do Paraguai, ambos com visões de economia afins à de Paulo Guedes. Entretanto, logo após a vitória, Guedes foi rude com uma jornalista argentina, afirmando que o bloco sul-americano "não era prioridade" e que tinha "viés ideológico". Além disso, integrantes da equipe de Bolsonaro afirmam que sua primeira viagem ao exterior será ao Chile de Sebastián Piñera, e não à Argentina, como de praxe na diplomacia brasileira.

Tudo foi lido como um alerta para o conservador Macri – que tinha simpatia por Fernando Haddad, com quem manteve uma relação cordial quando o candidato derrotado do PT era prefeito de São Paulo e Macri de Buenos Aires. O relacionamento com o Brasil, primeiro destino de suas exportações argentinas, é fundamental para o país. A Argentina vendeu 58 bilhões de dólares ao mercado brasileiro, o equivalente a 20% do total exportado para o mundo. Por isso, Buenos Aires tomou cautelosamente as declarações bolsonaristas, esperando que os fatos deem uma dimensão real às ameaças. A incerteza é o que mais preocupa o governo argentino, especialmente porque o Mercosul está em arrastadas negociações com a União Europeia para um acordo de livre comércio. Macri foi o condutor dessas conversas, ainda que, na avaliação da diplomacia brasileira, aconteça o que acontecer com o Governo Bolsonaro, é o lado europeu que trava a negociação por causa do protecionismo no agronegócio. O chanceler argentino, Jorge Faurie, pediu que esperem para avaliar o que dizem os ministros de Bolsonaro "fora da campanha". E ele concordou com Guedes na avaliação de que a integração regional "deveria se afastar de processos que têm um alto contexto ideológico".

Além do comércio, no lado latino-americano, todas as expectativas estão colocadas no papel que Bolsonaro terá na crise e na deriva autoritária da Venezuela. Durante a campanha —como em tantas outras—, o país vizinho se transformou em munição para atacar seu rival, Fernando Haddad. Bolsonaro, da mesma forma que milhões de seus seguidores, criticou a proximidade que o Partido dos Trabalhadores (PT) teve com o regime chavista, mesmo que o apoio dado por Lula em sua época a Hugo Chávez seja bem diferente do que teve Maduro em anos posteriores. É evidente que Bolsonaro cortará qualquer tipo de relação com o chavismo e se alinhará a outros Governos, como o da Colômbia do conservador Iván Duque. Mas precisará assumir a crise migratória dos venezuelanos que procuram refúgio no Brasil, com uma fronteira cada vez mais quente.

Acordo de Paris e Israel
No plano global, Bolsonaro sinaliza que quer seguir os passos de Trump, e no movimento ganha o reforço do ex-assessor da campanha do presidente norte-americano Steve Bannon. Oferecendo-se como ideólogo a ligar nomes de uma onda populista de global de direita, Bannon, que se reuniu com um dos filhos de Bolsonaro há alguns meses, declarou sua simpatia pelo político brasileiro. O problema é que ser "Trump tropical" pode ter custos altos para um emergente como o Brasil. Bolsonaro chegou a ameaçar retirar o país do Acordo de Mudança Climática de Paris —algo que depois condicionou— e do Conselho dos Diretos Humanos da ONU. Se concretizado, isso poderia provocar reações, sobretudo na Europa.

Oliver Stuenkel, assim como outros analistas, dão como certo que Bolsonaro mudará a Jerusalém a embaixada do Brasil em Israel, alinhado a Trump e para cumprir uma promessa eleitoral que contentaria grande parte dos líderes evangélicos que o apoiaram e à comunicada judaica direitista, também crucial em sua campanha. Isso marcaria um antes e um depois na história da diplomacia brasileira, que até durante a ditadura manteve suas diretivas em relação ao conflito na região. Há inquietação com o passo, especialmente entre grandes produtores brasileiros de carne e frango que vendem parte expressiva da produção para o mundo árabe e temem uma retaliação.

Nesta quarta, começa formalmente a transição de Governo, e as bolsas de aposta para o nome do próximo chanceler estão abertas. A dúvida é se será nomeado alguém da carreira ou outra liderança. Entre os nomes que circulam está o da embaixadora Maria Nazareth Azevedo, que está atualmente em Genebra.


El País: China abre a carteira para seduzir elites da América Latina

Gigante asiático injeta capital em meios de comunicação em crise e atrai políticos, intelectuais e jornalistas

Por Juan Pablo Cardenal, do El País

Sobre um alicerce de investimentos, empréstimos e projetos de infraestrutura consolidado nos últimos 15 anos, a China exerce agora na América Latina uma política destinada a ganhar influência política e reforçar sua presença na região. A estratégia é nova, porque mira âmbitos menos convencionais que o econômico, onde, pelos incentivos que oferece, a China parte quase sempre com vantagem. O rastro da nova política já é perfeitamente visível, pois Pequim está se vinculando ativamente com o mundo acadêmico, os meios de comunicação, o mundo da cultura e a classe política em boa parte dos países do continente.

Com essa estratégia, Pequim pretende corrigir percepções negativas derivadas de sua meteórica ascensão global

O modelo se centra, por um lado, na cooperação transversal entre universidades, think tanks, meios de comunicação, partidos políticos e instituições diversas em ambos os lados do Pacífico; e, por outro, na promoção da cultura chinesa e nos programas de intercâmbio com influentes figuras latino-americanas, uma variante diplomática que Pequim considera inofensiva, mas que seus críticos veem como uma perversa captação das elites locais com o objetivo de conquistar sua boa vontade e afeto. Embora a persuasão e o estreitamento dos laços institucionais sejam uma prática habitual entre os países, a versão chinesa do que o acadêmico norte-americano Joseph Nye chamou de soft power (“poder suave”) gera suspeitas contínuas.

No âmbito jornalístico, a China fechou nos últimos dois anos acordos de colaboração e coprodução com diversos grupos de comunicação públicos e privados da região, tanto audiovisuais como escritos. Entre outros, a agência Xinhua selou parcerias na Argentina com vários grupos de comunicação próximos ao kirchnerismo, enquanto o gigante televisivo China Global Television Network (CGTN) fez o mesmo com o Grupo América, a segunda maior corporação argentina do setor. A CGTN mantém uma aliança semelhante na Venezuela com a Telesur e no Peru com a IRTP, a emissora estatal de rádio e televisão.

Pequim enquadra esses acordos na retórica oficial do “conhecimento mútuo”, para o qual mobiliza recursos para financiar projetos jornalísticos conjuntos e promover o intercâmbio de conteúdos. Essa interpretação contrasta com aqueles que advertem sobre seu objetivo oculto: produzir conteúdos jornalísticos e audiovisuais gratuitos para os meios de comunicação latino-americanos que mostrem uma imagem de amabilidade do regime chinês - ainda que seja uma imagem distorcida. E não apenas isso: também servem para tentar neutralizar a imprensa crítica com o chamariz do ganho econômico. Num contexto de crise nos veículos de comunicação, o capital chinês é a chave mestra para sua penetração midiática, como se viu na cúpula de meios da China e da América Latina realizada em Santiago no fim de 2016.

Organizada e financiada por Pequim, teve a presença de uma centena de representantes latino-americanos previamente selecionados. “Foi um mercado persa em que os chineses ofereceram de tudo porque, afinal, o que querem é colocar seus conteúdos na América Latina”, confessa um participante que deu seu depoimento na condição de anonimato. Com essa estratégia, Pequim pretende corrigir, segundo ele, percepções negativas derivadas da meteórica ascensão global da China. E também neutralizar o que os líderes chineses acreditam ser um discurso hegemônico de valores impulsionado pela imprensa ocidental que visa promover os interesses do Ocidente e projetar uma imagem negativa da China.

Os conteúdos da Xinhua e de outros meios de comunicação oficiais para públicos de língua espanhola se apoiam em uma narrativa muito mais sutil do que a dos veículos russos como RT ou Sputnik, cuja aberta beligerância contra o Ocidente, incluindo notícias falsas, é bem conhecida. Embora na informação chinesa sejam frequentemente detectados ecos de um Ocidente malvado que colonizou, provocou guerras e impõe valores, uma arenga com trânsito indiscutível na América Latina, em geral se concentra em purgar o regime comunista e apresentar a China como um país benigno e responsável. Paradoxalmente, a China irrompe na imprensa de países democráticos enquanto seu setor midiático permanece fechado a sete chaves para estrangeiros.

Pessoas influentes das sociedades latino-americanas são convidadas de forma recorrente para visitar a China em viagens que duram semanas

À disseminação dessa imagem amável também se juntam certas elites, tanto na América Latina quanto no resto do mundo. Esses aliados e simpatizantes do PCCh são a versão contemporânea daqueles que Lenin chamou idiotas úteis na era soviética. “Ajudam a difundir uma narrativa limpa que normaliza uma ditadura como a do PCCh, que tem grandes violações dos direitos humanos [por trás], e a transforma em um gigante econômico pacífico que oferece inúmeras oportunidades para seus amigos”, diz Martin Hála, sinólogo e fundador do Sinopsis.cz, um portal checo que analisa questões relacionadas com a China. A compra de lealdades de novos adeptos da causa chinesa é visível agora no Panamá e na República Dominicana, os dois últimos países da região a romper relações com Taiwan e que, portanto, vivem uma lua de mel com Pequim.

O próprio presidente chinês anunciou em sua última visita a Lima que seu país dará “oportunidades de formação para 10.000 latino-americanos” até 2020. Por meio de vários programas, pessoas influentes das sociedades latino-americanas são convidadas de forma recorrente a visitar a China em viagens que duram semanas. São estadias com todas as despesas pagas para jornalistas, políticos, funcionários, acadêmicos e diplomatas, entre outros, e os programas geralmente incluem visitas a instituições e encontros com altos funcionários do Estado, membros do PCCh e diretores de empresas, bem como banquetes e escapadas turísticas. O objetivo de Pequim é atrair essas figuras proeminentes para sua causa. Torná-las embaixadoras da China.

Isso não é exclusividade da América Latina. No mês passado, a Bloomberg revelou que vários políticos europeus, incluindo os ex-primeiros-ministros David Cameron, Romano Prodi e Dominique de Villepin, entre outros, estão na folha de pagamento de Pequim. Da mesma forma, membros de partidos políticos de todo o espectro ideológico são periodicamente cortejados pela China. Na Argentina, um membro do PRO, partido do presidente Mauricio Macri, revelou a este jornal em Buenos Aires que 15 representantes de sua formação voltaram “hipnotizados” de uma viagem de alto luxo de 14 dias pela China com todas as despesas pagas: “Agora somos todos chineses”, exclamaram – em particular – no retorno.

Que a China enxergue valor nesses convites seletivos fica claro no anúncio de Xi Jinping, no início deste ano, em um discurso em Pequim para mais de 300 representantes políticos estrangeiros, quando disse que o PCCh convidará 15.000 políticos de todo o mundo nos próximos cinco anos. São encontros que têm o propósito de expor os convidados estrangeiros a uma propaganda perfeitamente destilada. Não só os programas são cuidadosamente pensados, mas questões sensíveis para o regime nunca são abordadas, seja a democratização da China, a situação dos advogados e os direitos humanos ou a repressão no Tibete e em Xinjiang, entre outros. A evidência de que a estratégia funciona é que muitos desses novos admiradores da China acabam elogiando-a publicamente em suas respectivas tribunas.

No âmbito jornalístico, a China fechou acordos de colaboração e coprodução com vários grupos de mídia públicos e privados

Para essa imagem edulcorada do gigante asiático contribui decisivamente, sem dúvida, a alarmante falta de conhecimento sobre a China que existe na América Latina, o que inclui as elites. Isso se traduz em uma quase total ausência de crítica, seja em relação à natureza autoritária de Pequim, aos excessos por trás dos investimentos chineses na região, às condições de seus empréstimos ou à assimetria nas relações comerciais com muitos dos seus parceiros latino-americanos. Para esse clima contribuem, sem dúvida, a ausência de disputas territoriais e históricas entre ambos, a admiração que desperta o desenvolvimento chinês das últimas quatro décadas e a percepção de que a China é uma fonte de oportunidades que outros não podem oferecer.

Além do PCCh, outras organizações e entidades chinesas mais periféricas na estrutura do Partido-Estado participam ativamente desse tipo de diplomacia interpessoal. Às vezes isso cria a falsa percepção em seus homólogos latino-americanos de que estabelecem relações com a sociedade civil chinesa, sem realmente entender que o Instituto Confúcio, os think tanks de relações internacionais, as associações confucionistas, as delegações de amizade, as universidades ou as associações de estudantes são parte integrante dos esforços do Estado e do PCCh para exercer influência nas sociedades receptoras. “A interferência da China no exterior é baseada nos mesmos princípios que a propaganda doméstica do PCCh: censura, coação e manipulação”, adverte Martin Hála.

Somente os estudiosos que seguem a China têm um conhecimento abrangente, mas muitos deles enfrentam o dilema de não poderem ser abertamente críticos em relação a Pequim sem arriscar seu futuro profissional, pois as autoridades negam vistos e, portanto, o acesso à China, aos mais críticos. “Existem assuntos sobre os quais nunca falamos por causa do medo de ferir os sentimentos dos chineses. Na verdade, há uma total ausência de pensamento crítico sobre a China”, diz um estudioso argentino. Esse déficit de conhecimento se junta ao fato de que, muitas vezes, as instituições oficiais chinesas são as únicas fontes de recursos e informações. Isso lhes permite monopolizar o discurso enquanto as narrativas alternativas são amplamente silenciadas. O controle ideológico e a censura praticados na China vazam para além de suas fronteiras.

“Considerando o peso que a China tem na América Latina, o risco de não ter informações suficientes é grande. Deve haver um debate crítico”, diz Isolda Morillo, escritora e tradutora de mandarim com 15 anos de experiência como jornalista em Pequim. Há exemplos disso na história, adverte: “Nos anos sessenta e setenta, os intelectuais franceses apoiaram a Revolução Cultural porque não tinham conhecimento dos abusos e da tragédia humana existente. Isso teve muito a ver com o fato de que foram fontes oficiais chinesas que transmitiram essas ideias”. Esse monopólio também é exercido pelo Estado chinês no âmbito da cultura chinesa, pois praticamente tudo o que é exportado tem o selo oficial.

Foi certamente o caso da centena de atividades do Ano de Intercâmbio Cultural entre a China e a América Latina, organizado em 2016 dentro do fórum China-CELAC, a organização que agrupa os países da América com exceção de Estados Unidos e Canadá. Intelectuais e artistas independentes ou críticos são oficialmente ignorados e têm muito poucas possibilidades de ter visibilidade no exterior. Assim, o Instituto Confúcio financiou a participação de escritores afins – como Ah Yi, Xi Chuan e Ge Fei – em conhecidos festivais literários na Colômbia, Argentina e Costa Rica, enquanto oferece sem nenhum custo traduções de suas obras às editoras latino-americanas. O fato de autores críticos – como Liao Yiwu e Tsering Woeser – nunca serem convidados deixa a impressão de que não há vozes alternativas à oficial.

A evidência de que a estratégia funciona é que muitos desses novos admiradores da China acabam elogiando-a publicamente

O discurso e os valores autoritários da China de Xi Jinping que, gota a gota, vão penetrando na América Latina e em outros lugares são denunciados com afinco em círculos acadêmicos. Recentemente, os institutos Mercator Institute for China Studies e Global Public Policy Institute, com sede em Berlim, alertaram sobre o avanço autoritário da China na Europa. E no ano passado, a fundação Nacional Endowment for Democracy, de Washington, publicou um relatório sobre a influência negativa da China na América Latina e na Europa Central, diagnóstico que é visto como a ponta do iceberg de um fenômeno global. Nele, cunha o termo “poder incisivo” para se referir às conotações nocivas da influência externa de Pequim.

Martin Hála, do Sinopsis, concorda que o soft power praticado pelas democracias não é comparável à influência e aos valores que emanam do regime autoritário chinês: “O soft power dos Estados Unidos se baseia na atração e usa instrumentos como Hollywood, o rock and roll ou a mídia, que funcionam de acordo com princípios de pluralidade de opinião e com liberdade de expressão”, aponta.

O exemplo da Austrália, onde a China conseguiu – de acordo com um relatório confidencial do Governo – se infiltrar na última década nos meios de comunicação, no mundo dos negócios, nas universidades, na comunidade chinesa no exterior e até mesmo nos Governos locais, é um aviso aos navegantes para regiões mais vulneráveis, como a América Latina. A fulminante reação da Austrália em junho foi aprovar leis para evitar interferências e espionagem de Governos estrangeiros, uma legislação que aponta diretamente para a China e que causou tensões diplomáticas entre os dois países.

“O problema na Austrália começou porque as pessoas não prestaram a devida atenção. Em cinco anos, a situação na América Latina poderia ser igualmente preocupante, com a desvantagem de que a América Latina tem um problema com a corrupção”, o que poderia acelerar e piorar as coisas, explicou a este jornal uma fonte próxima do Governo do primeiro-ministro Malcolm Turnbull.


El País: EUA redobram pressão sobre a China com novas tarifas em 6.000 produtos

Donald Trump ordenou a ativação do processo para fixar novas tarifas de 10% sobre mais mercadorias, cujo valor de importação ronda os 200 bilhões de dólares

A batalha comercial entre os Estados Unidos e a China entrou numa zona de cifras graúdas, que vão além da gesticulação —por si só perigosa para a confiança dos investidores— e começam a apontar para uma guerra comercial em grande escala. Donald Trump ordenou nesta terça-feira ao Escritório do Representante de Comércio Exterior dos EUA que ative o processo para fixar novas tarifas de 10% sobre mais de 6.000 produtos chineses, cujo valor de importação ronda os 200 bilhões de dólares (763,3 bilhões de reais) por ano. É a resposta à represália de Pequim da sexta-feira passada, ao adotar novas alíquotas para produtos norte-americanos num valor de 34 bilhões de dólares, horas depois de Washington fazer o mesmo.

A escalada tarifária entre as duas maiores potências econômicas do mundo vem seguindo a mesma sequência desta semana. A Administração Trump ameaça com tarifas, e o regime chinês faz o mesmo, com as idênticas tarifas e o mesmo volume econômico afetado. Depois de negociações infrutíferas, os EUA ativam as tarifas e ameaçam impor outras se a China responder. E a China responde, então os EUA lançam uma nova rodada de tarifas alfandegárias. Assim ad infinitum, ou melhor, até superar os 500 bilhões de dólares, que é a quantidade total de exportações que serão afetadas pelas taxas se todas as ameaças sobre a mesa forem cumpridas. A cifra é vertiginosa: o intercâmbio de produtos entre ambos os países beirou os 600 bilhões de dólares em 2016 (com 115,6 bilhões exportados para a China, e 347 bilhões para os EUA).

Pequim considera que a nova lista é “totalmente inaceitável” e prometeu responder “com as contramedidas necessárias” se estas tarifas afinal entrarem em vigor. “Com esta atitude, os Estados Unidos ferem a China, o mundo e a si mesmos”, disse o Ministério de Comércio em um comunicado, informa Xavier Fontdeglòria. Será impossível para o país asiático devolver um golpe da mesma intensidade, simplesmente porque suas importações procedentes dos EUA não alcançam os 200 bilhões de dólares. É provável, segundo especialistas, que Pequim abra a torneira das medidas não tarifárias: ao ter um controle considerável sobre a economia, as autoridades podem facilmente dificultar a atividade das empresas norte-americanas em território chinês, ou mesmo promover um boicote encoberto ao país, deixando de comprar seus produtos ou restringindo o turismo chinês nos EUA, por exemplo.

A lista adicional de bens aos quais o Escritório do Representante de Comércio Exterior dos EUA propõe aplicar a tarifa, divulgada na noite de terça-feira, ocupa 205 páginas e inclui uma grande variedade de produtos (do carvão ao tabaco, passando por produtos químicos e pneus). O embaixador Robert Lighthizer argumentou em nota que a reação de Pequim “não tem base legal nem justificativa”, e que a tarifa de 10% que ele propõe para os novos produtos é uma “resposta apropriada” a políticas industriais “nocivas” por parte da China. Washington mira desta vez nos produtos que se beneficiam da nova política industrial para 2025, o grande plano econômico de Pequim.

A lista será submetida a uma fase de consultas entre os dias 20 e 23 de agosto, e uma decisão deve ser tomada no dia 25. No caso da última rodada de tarifas, a que foi ativada na sexta-feira passada, a fase de consultas reduziu o impacto de 50 bilhões para 34 bilhões de dólares, enquanto os restantes 16 bilhões continuam em estudo. A aplicação das tarifas anunciadas nesta terça-feira deve demorar, e, enquanto isso, a Administração de Trump e o regime de Xi Jinping podem tratar de aproximar suas posições. Até agora, isso não foi possível: os EUA criticam o enorme déficit comercial com relação à China (na ordem de 400 bilhões de dólares) e acusam o regime de competir de forma desleal e de criar um marco regulatório de associação com investidores locais que favorece o roubo de propriedade intelectual dos investidores norte-americanos.

“Há muitos anos a China recorre a práticas abusivas que vão em detrimento da nossa economia, nossos trabalhadores e nossas empresas”, reitera Lighthizer em seu comunicado, qualificando a conduta chinesa de “ameaça existencial”. “Durante mais de um ano pedimos pacientemente à China que ponha fim a estas práticas injustas, que abra seus mercados e que se comprometa com uma concorrência real”, argumenta. “Fomos muito claros em relação às mudanças que eles deveriam fazer. Mas em vez de resolver uma preocupação legítima reprimiram nossos produtos.”


IHU: A ascensão da China, a disputa pela Eurásia e a Armadilha de Tucídides, por José Eustáquio Diniz Alves

Depois de ter se transformado na “fábrica do mundo” e de seu PIB ter superado o dos EUA, a China também se tornou o “banco do mundo” e “estimula o crescimento de todo o continente asiático” por meio da iniciativa “Um cinturão, uma rota” (One Belt One Road, ou OBOR), resume José Eustáquio Diniz Alves à IHU On-Line, ao comentar a ascensão econômica e política da China. Essa iniciativa, esclarece, “visa construir redes de comércio e infraestrutura conectando a Ásia com a Europa e a África ao longo dos antigos caminhos comerciais da Rota da Seda, objetivando o compartilhamento do desenvolvimento e da prosperidade”. Um exemplo dessa proposta, diz, é a inauguração da recente linha ferroviária que liga Londres à estação de Yiwi, no sul de Xangai. “Trata-se de uma interligação de Pequim e Xangai com o mundo”, pontua.

Na entrevista a seguir, Alves explica a relação da China com o BRICS, especialmente com a Rússia e a Índia, que formam, juntamente com os chineses, o “triângulo estratégico” que quer dominar a Eurásia. “A Eurásia é a faixa contínua de terra mais extensa do mundo. Ela é berço das mais antigas e importantes civilizações do passado. Sua extensão territorial é de 54,8 milhões de km² (mais de seis vezes o tamanho do Brasil) e possui cerca de dois terços da população e do PIB mundial. Quem controlar a Eurásia, controlará o mundo. Mas as alianças já passaram por muitas reviravoltas”, frisa.

De acordo com José Eustáquio Diniz Alves, “a ascensão da China e dos países aliados do Oriente pode significar o fim do modelo econômico e político do liberalismo democrático burguês e o fim da ordem internacional fundada a partir da reunião de Bretton Woods, em 1944”. Em seu lugar, passará a vigorar o “Consenso de Beijing”, que aposta na “promoção das economias em que a propriedade estatal continua tendo um peso dominante, na promoção de câmbio competitivo, com mudanças graduais para evitar choques e controle cambial para escapar da especulação predatória, em políticas de promoção das exportações com proteção da indústria local e dos setores estratégicos do país, em reformas de mercado, mas com controle das instituições políticas e culturais, e na centralização das decisões políticas e das estratégias de projeção nacional”. Essa possível mudança, adverte, que levará à “ascensão da Ásia e à emergência do processo de Orientalização do mundo, sob liderança chinesa, pode não ocorrer de maneira pacífica diante do declínio relativo dos EUA e do Ocidente. Infelizmente, a Armadilha de Tucídides é como uma espada de Dâmocles suspensa sobre a ordem internacional e a possibilidade de paz mundial”.

José Eustáquio | Foto: Unicamp

José Eustáquio Diniz Alves é doutor em Demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – Ence/IBGE.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é o significado do encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un, em Singapura, na semana passada?

José Eustáquio Diniz Alves - O encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un, em Singapura, na ilha de Sentosa (que significa paz e tranquilidade em língua malaia) foi um importante passo para evitar um conflito nuclear iminente, depois de meses de agressões verbais, de insultos pessoais e de disputa sobre o poderio mútuo de destruição. Kim havia revelado ter em sua mesa um botão com o qual poderia iniciar uma guerra nuclear. E Trump contra-atacou pelo Twitter dizendo ter "um botão nuclear maior, mais poderoso do que o deles, e que funciona". A possibilidade de um conflito bélico era real, mesmo porque não houve um tratado de paz após o fim da guerra entre as Coreias, em 1953. A chamada zona desmilitarizada entre as Coreias, no paralelo 38, é na verdade uma das áreas mais militarizadas do mundo. Mesmo sob segredo militar, dizem que a Coreia do Sul tem um “Sistema de Arma Autônomo” (AWS, na sigla em inglês), comandado por Inteligência Artificial, capaz de responder às ameaças recebidas de artilharia e mísseis, sem a supervisão humana.

Portanto, o mundo respira aliviado com a possibilidade de uma desnuclearização da península coreana. O estranho é que o presidente dos EUA não tenha tocado na questão dos direitos humanos e nem exigido compromissos de mudanças de um regime reconhecidamente enclausurado e ditatorial. O placar foi Kim Jong 1 x 0 Trump.

IHU On-Line - Qual foi o papel dos EUA e de Trump em particular no acordo de paz entre as duas Coreias e, de outro lado, qual é o papel do chamado RIC (Rússia, China e Índia) nesse processo?

José Eustáquio Diniz Alves - A posição histórica dos EUA sempre foi por uma "desnuclearização completa, verificável e irreversível” da Coreia do Norte. Mas o acordo assinado foi pela “desnuclearização da península coreana”. Sem qualquer contrapartida, Trump ainda concordou em encerrar os “jogos de guerra” (exercícios militares conjuntos que os EUA realizam com a Coreia do Sul). Esta atitude surpreendeu o Japão e a Coreia do Sul, aliados dos EUA e das forças ocidentais, deixando embaraçado até mesmo o Pentágono. Evidentemente, a menor presença americana no leste asiático agrada fundamentalmente à China, em primeiro lugar, e à Rússia, em segundo lugar.

G7

Nos dias imediatamente anteriores ao encontro histórico de Singapura, houve duas Cúpulas emblemáticas. Nos dia 8 e 9 de junho, o G7 (grupo formado pelas grandes economia capitalistas — Estados Unidos, Canadá, França, Reino Unido, Alemanha, Japão e Itália) se reuniu em Charlevoix, no Canadá, onde o destaque foi o aumento da tensão entre os EUA e os outros seis membros, que estão insatisfeitos com a saída dos EUA da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento - TTIP, do Acordo de Paris(do clima), do Acordo nuclear com o Irã, além das críticas à Otan e das medidas para o enfraquecimento do NAFTA - Acordo de Livre Comércio da América do NorteTrump chegou atrasado e saiu mais cedo do encontro, não assinou o comunicado conjunto da Cúpula de Charlevoix e ainda acusou o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, de ser fraco e desonesto. A política de Trump, do “America first”, parece estar rompendo com a aliança ocidental e com a ordem internacional global pós-Segunda Guerra.

Cúpula de Qingdao

Enquanto os líderes da ordem liberal-burguesa se desentendiam no Canadá, os países asiáticos se encontravam na 18ª cúpula da Organização de Cooperação de Xangai - OCX, ocorrida nos dias 9 e 10 de junho, na cidade litorânea chinesa de Qingdao. Foi a primeira reunião de cúpula da OCX depois que a Índia e o Paquistão foram aceitos como membros plenos em junho do ano passado. Assim, os oito membros plenos da OCX são ChinaRússiaCazaquistãoQuirguistãoTadjiquistãoUzbequistãoÍndiaPaquistão. A OCX também tem quatro estados observadores e seis parceiros de diálogo. Os oito países membros respondem por mais de 60% do território eurasiático, quase metade da população global e cerca de 30% do PIB mundial (em poder de paridade de compra – ppp, na sigla em inglês). O PIB conjunto dos países da OCX é maior do que o PIB total do G7.

cúpula de Qingdao foi a primeira a contar com os líderes do triângulo estratégico (RIC) e ainda teve a presença do presidente do Irã, Hassan Rohani. O presidente Xi Jinpingresumiu tudo dizendo: “A cúpula de Qingdaoé um novo ponto de partida para nós. Juntos, vamos içar a vela do Espírito de Xangai, quebrar ondas e iniciar uma nova viagem para nossa organização”. Ficou subentendido que é a viagem rumo à ascensão do século asiático e rumo à hegemonia chinesa global. Uma península coreana desnuclearizada e com menor presença americana só fortalece RússiaÍndia e China, que são potências nucleares da Eurásia e aliados no âmbito da OCX.

IHU On-Line - Em artigo recente o senhor afirma que está se formando uma aliança entre Rússia, China e Índia (RIC), que fazem parte do BRICS, enquanto Brasil e África do Sul ficam de fora. Quais são os fatores que favorecem essa aliança, por que ela está sendo feita neste momento e qual dos três países tem mais poder de barganha nessa aliança?

José Eustáquio Diniz Alves - O termo BRIC foi inventado pelo economista Jim O'Neill, do banco de investimento Goldman Sachs, em 2001, com o objetivo de indicar aos investidores globais as oportunidades de lucro nos grandes países “emergentes” do mundo: BrasilRússiaÍndiaChina. Posteriormente foi incluída a África do Sul(South África) e o termo BRIC se transformou em BRICS. Desde 2009, os líderes do grupo se encontram em cúpulas anuais. Porém, Brasil e África do Sul (o começo e o fim do acrônimo) sempre foram países menores em termos políticos, econômicos e militares e ficaram ainda menores depois da crise econômica e do imbróglio político que afastou seus líderes mais tarimbados, os ex-presidentes Lula e Jacob Zuma.

Fortalecimento do RIC

Mas os fatos que vieram fortalecer o grupo RIC ocorreram pela conjunção de três fatores recentes. O primeiro aconteceu durante o 18º Congresso do Partido Comunista Chinês, em novembro de 2012, com a escolha de Xi Jinping para o cargo de presidente da China, que, em seguida, lançou a iniciativa “Um Cinturão, Uma Rota” (One Belt One Road, ou OBOR), que é um gigantesco projeto de infraestrutura, com investimentos de mais de US$ 1 trilhão, para unir, por terra e pelo mar, toda a Eurásia (incluindo partes da África).

Um cinturão, uma rota (Fonte: BrasilNaval.com)

O segundo fato foi a expulsão da Rússia do G8 — devido à anexação da região autônoma da Crimeia que aumentou as tensões entre os russos e a Ucrânia, e afastou o país da Europa e da aliança ocidental, forçando Vladimir Putin a buscar aliados no Oriente.

O terceiro fato foi a eleição, em maio de 2014, de Narendra Modi, do Partido Bharatiya Janata (BJP), para primeiro-ministro da Índia, com uma plataforma que combina o nacionalismo hindu com os sonhos de desenvolvimento da Índia. Diante das medidas protecionistas de Donald Trump e do enfraquecimento da aliança ocidental, Modi, que já tinha uma boa relação com a Rússia, passou a se aproximar da China e teve uma reunião informal com Xi Jinping na cidade histórica de Wuhan, nos dias 27 e 28 de abril de 2018, onde os dois líderes acertaram os passos para os eventos ocorridos nos meses seguintes e para uma aliança de longo prazo.

Evidentemente, o país líder é a China devido ao seu tamanho econômico, demográfico, territorial e à capacidade de influência política. Em 2017, segundo dados do FMI, o Produto Interno Bruto - PIB chinês foi de US$ 23,2 bilhões (em ppp), volume muito superior aos US$ 9,5 bilhões da Índia, US$ 4 trilhões da Rússia, US$ 3,2 trilhões do Brasil e dos US$ 765 milhões da África do Sul. Além da dimensão da economia, a China tem mais de US$ 3 trilhões em reservas internacionais, mega superávit na balança comercial e altas taxas de poupança, o que possibilita às empresas chinesas realizar grandes investimentos nacionais e globais.

IHU On-Line - De outro lado, por que Brasil e África do Sul ficam de fora dessa aliança? Como o RIC vê o Brasil e a África do Sul?

José Eustáquio Diniz Alves - O Brasil e a África do Sul são cabeças de ponte para o grupo RIC, especialmente a China, atuar na América Latina e na ÁfricaRússiaÍndia e China são protagonistas, enquanto Brasil e África do Sul são coadjuvantes. Claro que são cinco nações soberanas, mas a relação da China com o Brasil e a África do Sul está mais para aquela do tipo que se costumava chamar centro-periferia, ou melhor, do “Império do Meio” para países periféricos dependentes. A China exporta mercadorias industrializadas e capital para ter domínio da relação bilateral e acesso aos bens primários e commodities.

IHU On-Line - Há disputas entre os países do RIC sobre o controle da Eurásia?

José Eustáquio Diniz Alves - A Eurásia é a faixa contínua de terra mais extensa do mundo. Ela é berço das mais antigas e importantes civilizações do passado. Sua extensão territorial é de 54,8 milhões de km² (mais de seis vezes o tamanho do Brasil) e possui cerca de dois terços da população e do PIB mundial. Quem controlar a Eurásia, controlará o mundo. Mas as alianças já passaram por muitas reviravoltas.

China já esteve próxima da União Soviética - URSS, depois se afastou e se aproximou dos EUA, a partir da visita de Richard Nixon a Pequim, em 1972. Mais recentemente, China e Rússia se aproximaram bastante e a relação de Vladimir Putin com Xi Jinping é de grande coesão. A Índia sempre teve boa relação com a Rússia e grandes dificuldades com a China, especialmente devido às alianças e rivalidades com o Paquistão (envolvendo a disputa pela Caxemira). Mas depois dos diversos encontros entre PutinXi e Modi e após a 18ª cúpula da OCX parece que o triângulo estratégico (RIC) vai caminhar mais lado a lado, buscando tornar viável a unidade de ação no território da Eurásia.

Mapa da Eurásia (Foto: ecrimes.us)

IHU On-Line - Como os países do território eurasiático veem a hegemonia do RIC? Que tipos de disputas surgem na região por conta dessa hegemonia?

José Eustáquio Diniz Alves - Existem muitas rivalidades e disputas fronteiriças, culturais e étnicas, sendo que a ação das forças armadas de Mianmar contra os muçulmanos rohingya, na região noroeste do país, é um dos eventos mais dramáticos. O avanço militar chinês no Mar da China causa grandes atritos com os vizinhos do leste asiático (além de ameaçar a presença americana na região). Mas uma aliança do grupo RIC com o Irã e a Turquia é meio caminho andado para unificar os interesses e a logística da maior parte do território asiático da Eurásia. Neste sentido, a iniciativa “Um Cinturão, Uma Rota” (One Belt One Road, ou OBOR) joga um papel importante na interligação econômica da região.

IHU On-Line - De outro lado, como a Europa se posiciona diante do RIC e da Eurásia?

José Eustáquio Diniz Alves - A presença da China na Europa oriental é cada vez mais forte e a Rússia continua com laços fortes (especialmente no campo da energia) com esta região. Mas claro que a Europa ocidental vê o avanço da China e da Rússiacom grande preocupação e até um certo medo, pois existe todo um antigo imaginário aterrorizante sobre os bárbaros orientais pouco democráticos e com outra cultura (outros hábitos, outras religiões etc.). A alternativa da Europa ocidental seria fortalecer os laços com os EUA, o Canadá e o Japão, mas parece que Donald Trump não está ajudando muito no fortalecimento do G7 e a Europa ocidental vai ter que repensar o seu lugar no mundo ou aderir à onda oriental.

IHU On-Line - Quais têm sido as estratégias da China para garantir a sua hegemonia e fazer com que outros países dependam dela?

José Eustáquio Diniz Alves - Primeiro a China montou uma máquina azeitada de produção de bens de consumo de massa a preços baratos que invadiu todas as fronteiras e ocupou as prateleiras do planeta, tornando-se a fábrica do mundo. Em segundo lugar, com o dinheiro que acumulou no comércio internacional, fortaleceu suas instituições financeiras e passou a ser exportadora de capital, tornando-se, também, banco do mundo. Boa parte da rolagem da dívida americana depende do dinheiro de Pequim.

Venezuela está totalmente “no bolso” dos chineses.

Na Europa, o frágil grupo PIGS (Portugal, Itália, Grécia e Espanha) depende cada vez mais dos investimentos chineses. Em terceiro lugar, a China pretende ser líder global da 4ª Revolução Industrial. Ela já está na liderança da produção de energia renovável e da transição da indústria automobilística do motor a combustão interna para os carros elétricos, também lidera no uso de smartphone para as compras e pretende ser a líder isolada da Inteligência Artificial até 2025. Tem o supercomputador mais rápido do mundo e o maior centro de pesquisa de computação quântica. Seu projetado sistema de navegação por satélite competirá com o GPS dos EUA até 2020. No ano passado, a China ultrapassou os EUA e ocupou o primeiro lugar na produção mundial de artigos científicos.

IHU On-Line - Em que consiste a política chinesa chamada de “Um cinturão, uma rota”?

José Eustáquio Diniz Alves - A Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota (One Belt One Road, ou OBOR) visa construir redes de comércio e infraestrutura conectando a Ásia com a Europa e a África ao longo dos antigos caminhos comerciais da Rota da Seda, objetivando o compartilhamento do desenvolvimento e da prosperidade. As estatísticas mostraram que os bancos chineses já participaram de mais de 2.600 projetos e inclui investimentos em uma ampla variedade de áreas, desde energia limpa até manufatura, tecnologia da informação e comunicações, transportes, portos e aeroportos, projetos hidráulicos, assim como desenvolvimento urbano e moradia, entre outras.

Oleoduto de Kyaukpyu (Fonte: Shwe Gas Movement)

Por exemplo, o oleoduto de Kyaukpyu, em Myanmar, no valor de US$ 1,5 bilhão, vai permitir que os suprimentos de petróleo do Oriente Médio e da África cheguem à Chinamais rapidamente. O porto de Gwadar e o corredor ferroviário, no Paquistão, permitirão ligar o oeste da China, através de uma ferrovia de 3 mil km e de um porto de águas profundas, ao Mar da Arábia. As conexões ferroviárias na região Ásia-Pacífico envolvem a ligação da região sudoeste de Yunnan a vários países da região, por meio de três rotas planejadas: uma central, que atravessa o Laos, a Tailândia e a Malásia para chegar a Singapura, uma rota ocidental que atravessa Myanmar e uma rota oriental que atravessa o Vietnã e Camboja. Existem projetos ferroviários no QuêniaEtiópia e Senegal. Foi inaugurada, recentemente, uma linha ferroviária ligando Londres à estação de Yiwu, cidade ao sul de Xangai. Ou seja, trata-se de uma interligação de Pequim e Xangai com o mundo.

Ferrovia que liga China a Londres (Foto: BBC Brasil)

IHU On-Line - Qual é a relação e a influência da China na Coreia do Norte?

José Eustáquio Diniz Alves - A influência é total. A Coreia do Norte só existe por conta do apoio da China e da URSS, que na guerra de 1950-53, garantiu a permanência no poder de Kim Il-Sung, avô de Kim Jong-un. Em 2016, o comércio da Coreia do Norte com o mundo totalizou cerca de US$ 6 bilhões, sendo US$ 5,5 bilhões (91,5%) com a China, US$ 140 milhões com a Índia e US$ 76 milhões com a Rússia. Os três maiores parceiros da Coreia do Norte são os países do grupo RIC.

 

Mas a influência da China é incomensurável e antes do encontro da ilha de Sentosa em SingapuraKim Jong-un se encontrou duas vezes com Xi Jinping, em território chinês. Outro exemplo, o voo de Kim para Singapura aconteceu em um avião do governo chinês e foi escoltado por caças chineses. Por fim, no dia 19 de junho, uma semana após a reunião de Singapura, Kim Jong-un viajou para Pequim para se encontrar com Xi Jinping e, provavelmente, comemorar os resultados do enfraquecimento dos EUAna península coreana. O incrível é que neste mesmo dia em que os dois “ditadores” orientais se encontravam na Praça da Paz Celestial, no lado ocidental, o “democrático” presidente dos EUA reforçou sua política de tolerância zero na migração ilegal (colocando crianças em “jaulas”) e anunciou a saída dos EUA do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

IHU On-Line - Quais são os sinais que demonstram uma mudança na hegemonia no mundo, com o declínio dos EUA e do Ocidente e ascensão da China e do Oriente?

José Eustáquio Diniz Alves - Durante toda a década de 1980, a economia dos EUArepresentava mais de 20% da economia mundial e a economia da China representava menos de 5%, segundo dados do FMI (em ppp). Nas décadas seguintes o quadro se inverteu. Em 2014, o PIB da China, representando 16,6% do PIB global, ultrapassou o PIB dos EUA, que ficou com 15,8% do PIB global. Em 2017, a China já levava uma vantagem de 18,3% sobre 15,3% dos EUA. Para 2022, as estimativas do FMI indicam que o PIB da China subirá para 20,4% do PIB global, enquanto o PIB dos EUA cairá para 14,1%. A China já ultrapassou os EUA em tamanho do PIB e agora estimula o crescimento de todo o continente asiático.

hegemonia da China também ocorreu no comércio mundial. No final dos anos 1970 a participação das exportações chinesas estava abaixo de 1% do total mundial, contra 12% dos EUA, segundo dados da Organização Mundial do Comércio. No início dos anos 1990, as exportações chinesas subiram para 2% do total mundial e as exportações americanas permaneceram nos 12%. Mas o quadro mudou rapidamente nos anos seguintes. Em 2007, pela primeira vez, as exportações chinesas ultrapassaram as exportações americanas. Em 2017, as exportações da China somaram US$ 2,26 trilhões (representando 13% do total global) e as exportações dos EUA foram de US$ 1,55 trilhão (representando 9% do total global). Em 2017, o saldo comercial da China com o resto do mundo foi de US$ 421 bilhões e o déficit comercial dos EUA foi de US$ 863 bilhões.

Vantagem chinesa

No confronto direto entre as duas maiores economias do mundo, a vantagem chinesa é impressionante. Os dados do “U.S. Census Bureau” mostram que o déficit comercial dos EUA com a China cresceu enormemente nos últimos 25 anos, pois era de US$ 23 bilhões no começo do governo Clinton, em 1993, passou para US$ 268 bilhões no fim do governo Bush, em 2008, e não parou de subir no governo Obama, chegando a US$ 367 bilhões em 2015, caindo um pouco para US$ 347 bilhões em 2016.

No governo Donald Trump, a despeito de toda a retórica protecionista, o déficit comercial com a China bateu todos os recordes históricos e atingiu US$ 375 bilhões em 2017. O ano de 2018 começou com outro recorde chinês, que teve um superávit de US$ 119 bilhões nos primeiros quatro meses do ano, o maior saldo positivo de todos os tempos, para o primeiro quadrimestre do ano.

economia americana funciona na base dos déficits gêmeos (fiscal e comercial) e do aumento da dívida. O último relatório do Escritório de Orçamento do Congresso(CBO) mostra que a dívida pública americana vai aumentar em US$ 12,4 trilhões entre 2019 e 2028, devendo alcançar quase 100% do PIB, no final da próxima década.

PIB conjunto do grupo RIC (Rússia, Índia e China), em 2017, foi de US$ 36,6 trilhões e o PIB conjunto do G7 (EUA, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Canadá) foi de US$ 38,8 trilhões. Para 2020, o PIB do grupo RIC deve chegar a US$ 46,8 trilhões, contra US$ 43,9 trilhões do G7, segundo dados do FMI (em ppp). Ou seja, os três países ditos emergentes devem ultrapassar os sete países capitalistas mais avançados ainda na atual década.

IHU On-Line - Que tipos de reconfigurações tendem a ocorrer no mundo caso a ascensão da China e do Oriente vigore?

José Eustáquio Diniz Alves - A ascensão da China e dos países aliados do Oriente pode significar o fim do modelo econômico e político do liberalismo democrático burguês e o fim da ordem internacional fundada a partir da reunião de Bretton Woods, em 1944. O empresário Klaus Schwab, criador do Fórum Econômico Mundial, em evento realizado em São Paulo no mês de março de 2018, disse que vê para breve um mundo em que a China assumirá a liderança econômica global. Muito tempo atrás, o secretário de Estado dos EUA, John Hay, em 1900, já previa que haveria uma mudança geopolítica estratégica no mundo. Ele disse: "O Mediterrâneo é o oceano do passado. O Atlântico é o oceano do presente e o Pacífico o oceano do futuro”. Indubitavelmente, os Estados Unidos e a Europa estão em declínio relativo no contexto da economia global. Enquanto o governo Trump tenta construir um muro, separando fisicamente o México e a América Latina dos EUA, a Grã-Bretanha implementa o Brexit e as forças da direita isolacionista crescem na Europa, a China, sob a liderança de Xi Jinping, implementa uma integração internacional por meio de uma globalização à moda chinesa.

Ocidente x Oriente

modelo de Pequim não é exceção na Ásia, pois os Tigres Asiáticos (Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e Hong Kong) já tiveram sucesso neste tipo de estratégia de desenvolvimento. Atualmente, países como TailândiaMalásiaIndonésia e Vietnãtambém emulam a China e se beneficiam dos investimentos regionais em infraestrutura. Desta forma, a despeito das especificidades, fica cada vez mais clara a diferenciação entre os modelos econômico e político do Oeste e do Leste. No primeiro caso, o Ocidente pode ser definido pela somatória da economia de mercado e da democracia representativa, enquanto o Oriente é mais caracterizado pela presença estatal no mercado e pelo autoritarismo na política. O sucesso de Singapura, de Lee Kuan Yew (1923-2015), tem servido de inspiração para os outros países asiáticos. A China, por exemplo, governada por um partido único, costuma ser definida pelos oximoros “socialismo de mercado” ou “capitalismo de Estado” e não tem se comprometido com os valores da democracia, próprios dos países liberais.

IHU On-Line – Na sua avaliação a mudança geopolítica significará uma mudança na globalização: sairá de cena uma globalização neoliberal do Consenso de Washington e entrará em cena uma globalização liderada pela China e o Consenso de Beijing. Quais são as diferenças entre esses dois tipos de globalização e o que preconizam o Consenso de Washington e o de Beijing, e qual é a diferença distintiva entre ambos?

José Eustáquio Diniz Alves - A queda do Muro de Berlim (1989), a reunificação da Alemanha (1990) e a dissolução da União Soviética (1991) marcaram o fim de 40 anos de Guerra Fria. Teve início um período dehegemonia unipolar dos EUA e dos valores econômicos e políticos do Ocidente. Para o cientista político Francis Fukuyama, estes acontecimentos marcaram a vitória do capitalismo liberal sobre os regimes de forte intervenção estatal. Utilizando uma linha teórica desenvolvida por Hegel (1770-1831), Fukuyama escreveu o artigo “O fim da história" (1989), onde defendeu a ideia de que o capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento do progresso civilizatório. Na concepção de Fukuyama, não se trata do fim da história em termos cronológicos, mas sim da derrocada do “socialismo real” e da vitória da democracia liberal, que com todas as suas imperfeições, passou a ser a solução final e mais avançada de governo da história da humanidade.

Aproveitando a conjuntura favorável da ideologia do neoliberalismo, algumas instituições sediadas em Washington (FMI, Banco Mundial, Departamento do Tesouro dos Estados Unidos etc.), buscando aprofundar a influência do capitalismo liberal, apresentaram, em dezembro de 1989, uma lista de dez pontos com recomendações de política econômica para os diversos países do mundo. A elaboração do receituário, conhecido como “Consenso de Washington” ficou a cargo do economista John Williamson e pode ser sumarizada no decálogo seguinte:

1. Disciplina fiscal e baixo déficit público;

2. Focalização dos gastos públicos em educação, saúde e infraestrutura;

3. Reforma tributária;

4. Liberalização financeira;

5. Taxa de câmbio competitiva;

6. Liberalização do comércio exterior;

7. Eliminação de restrições ao capital externo;

8. Privatização e venda de empresas estatais;

9. Desregulação das relações trabalhistas;

10. Defesa da propriedade intelectual. Sem dúvida, a globalização neoliberal, estimulada pelo Consenso de Washington, foi claramente hegemônica no mundo entre 1989 e 2008 (quando houve a quebra do banco Lehman Brothers e a grande recessão internacional de 2009).

Mas como mostram os dados já apresentados, os países do grupo RIC tiveram um melhor desempenho econômico na retomada da crise e devem ultrapassar o G7, em tamanho do PIB, até 2020. O sucesso, especialmente da China, foi adotar um outro caminho diferente do Consenso de Washington, que o economista Joshua Ramodefiniu como “The Beijing Consensus”, em 2004.

O “Consenso de Beijing” reúne as seguintes características:

1. Promoção das economias em que a propriedade estatal continua tendo um peso dominante;

2. Promoção de câmbio competitivo, com mudanças graduais para evitar choques e controle cambial para escapar da especulação predatória;

3. Políticas de promoção das exportações (“Export-led growth”) com proteção da indústria local e dos setores estratégicos do país;

4. Reformas de mercado, mas com controle das instituições políticas e culturais;

5. Centralização das decisões políticas e das estratégias de projeção nacional.

Desta forma, o Consenso de Beijing tem sido referência não só para a China, mas também para a Rússia, a Turquia, o Cazaquistão, as Filipinas etc.

Índia, de Narendra Modi, embora seja considerada a maior democracia do mundo, também flerta com vários aspectos do modelo de Beijing.

IHU On-Line - O que mudaria na globalização com a ascensão do Consenso de Beijing? O que o mundo ganha ou perde com essa mudança?

José Eustáquio Diniz Alves - A ascensão da China, desde as reformas de Deng Xiaoping, no final da década de 1970, viabilizou a retirada de 1 bilhão de chineses da situação de extrema pobreza. Os outros países da região buscam repetir o sucesso chinês nesta área e para isto contam com o avanço do comércio internacional. Todavia, com a saída da Parceria Transpacífico, a adoção de medidas protecionistas e a utilização de tarifas, o governo Trump tem irritado os países asiáticos e tem perdido espaço na sua esfera de influência.

Em contrapartida, a China trabalha agressivamente para preencher o vácuo. A iniciativa “Um Cinturão, Uma rota” (One Belt One Road, ou OBOR)— que é considerada a maior façanha de infraestrutura da história da humanidade — pretende ser um instrumento para acelerar o crescimento econômico da Eurásia, gerando milhões de empregos, o que possibilitaria o aumento da classe média asiática. A China busca interligar a Eurásia de uma forma nunca vista e com oportunidade de negócios que deslumbra as diversas nações. Os cerca de 5 bilhões de habitantes da região sairiam ganhando economicamente.

Impacto ecológico do modelo chinês

Contudo, o impacto ecológico será enorme e, com toda certeza, o meio ambiente sairá perdendo. O Presidente Xi Jinping tem feito um discurso tentando minimizar os efeitos ambientalmente negativos da iniciativa “Um Cinturão, Uma rota” (One Belt One Road, ou OBOR) e, em várias ocasiões, tem repetido: “devemos buscar a nova visão do desenvolvimento verde e um modo de vida e trabalho que seja verde, de baixo carbono, circular e sustentável. Devem ser feitos esforços para fortalecer a cooperação em proteção ecológica e ambiental e construir um ecossistema sólido, de modo a atingir as metas estabelecidas pela Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável”.

Mas os críticos consideram que as melhores práticas ambientais não serão adotadas, devido à falta de transparência e ao baixo compromisso democrático dos desenvolvedores dos projetos. Na China é comum se adotar o conceito “poluir primeiro, controlar depois”. O maior risco de uma iniciativa tão grandiosa é a proliferação de tecnologias sujas e destrutivas, como carvão, grandes hidrelétricas, desmatamento florestal, uso de recursos hídricos escassos, fragmentação das paisagens naturais, perda de biodiversidade etc. Devem aumentar os conflitos socioambientais.

IHU On-Line - Acerca da ascensão do Oriente, o senhor já disse que existem oportunidades e riscos nesse processo. Poderia nos dar alguns exemplos tanto das oportunidades quanto dos riscos?

José Eustáquio Diniz Alves - Existem oportunidades advindas do processo de desenvolvimento e da melhoria das condições de vida dos cerca de 5 bilhões de habitantes da Eurásia e existem os riscos ecológicos e socioambientais.

Conflito bélico

Mas as maiores ameaças surgem da possibilidade de um conflito bélico entre as superpotências. O escritor e professor da Universidade de Harvard, Graham T. Allison, no livro, “Destined for War: Can America and China Escape Thucydides’s Trap?”, aponta para a possibilidade de uma guerra entre os EUA e a China. O motivo é a “Armadilha de Tucídides”, que se refere a um padrão de estresse estrutural que resulta do movimento provocado pelo choque entre um poder ascendente e o poder hegemônico descendente. Para o professor, esse fenômeno é tão antigo quanto a própria história. Ele explica que na Guerra do Peloponeso (que devastou a Grécia antiga entre os anos de 431 e 404 a.C.) foi a ascensão de Atenas e o medo que isso incutiu em Esparta que tornou a guerra inevitável. Nos últimos séculos, essas condições de mudanças de hegemonia ocorreram dezesseis vezes, sendo que, em doze delas, estourou uma guerra. Para o autor, as condições atuais estão dadas para gerar um conflito bélico entre os EUA e a China.

Embora, o encontro entre Donald TrumpKim Jong-un em Singapura tenha contribuído para aliviar as tensões nucleares, os EUA continuam uma potência militardominante no mundo e tiveram despesa militar de U$ 611 bilhões em 2016, enquanto a China é o país que apresenta as maiores taxas de aumento nos investimentos bélicos, internos e externos, tendo contabilizado despesas militares de US$ 215 bilhões em 2016. Em terceiro lugar vem a Rússia com despesas de US$ 69 bilhões, segundo o Stockholm International Peace Research Institute. Estes três países foram responsáveis por 53% do gasto militar mundial. Se houvesse desarmamento, o mundo seria outro caso estes recursos fossem usados para a guerra contra a pobreza e pela regeneração ecológica, ao invés de aumentar os arsenais de destruição em massa de vidas humanas e não humanas.

Portanto, a ascensão da Ásia e a emergência do processo de Orientalização do mundo, sob liderança chinesa, pode não ocorrer de maneira pacífica diante do declínio relativo dos EUA e do Ocidente. Infelizmente, a Armadilha de Tucídides é como uma espada de Dâmocles suspensa sobre a ordem internacional e a possibilidade de paz mundial.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

José Eustáquio Diniz Alves - Apenas dizer que Francis Fukuyama estava errado, pois a ordem democrática liberal e de mercado parece não ser a forma de organização político-econômica mais evoluída e superior do mundo, nem representa o fim da história. A hegemonia ocidental que foi construída a partir da 1ª Revolução Industrial e Energética, há 250 anos, está cedendo espaço para uma hegemonia oriental menos liberal, menos democrática e menos apoiada no mercado.

Surpreendentemente, este processo está sendo acelerado pelas atitudes do atual presidente dos EUA, que passou a maior parte de seu período de ano e meio no poder rasgando acordos multilaterais, desestabilizando as organizações internacionais, impondo penalidades comerciais a aliados, fraquejando diante de antigos inimigos ditatoriais, ameaçando o relacionamento com a China construído desde os tempos do presidente Nixon e perturbando a ordem diplomática global construída, com muito esforço, sobre os escombros da Segunda Guerra. Para completar, a democracia liberal está em retrocesso em todo o mundo atualmente e ganham força líderes autocráticos com Vladimir Putin e Xi Jinping, enquantoDonald Trump aumenta os gastos militares dos EUA.

Existe alguma esperança de que a mudança de hegemonia entre o Ocidente e o Oriente possa ocorrer de forma mais ou menos pacífica, embora não seja improvável ocorrer a Armadilha de Tucídides, num contexto de conflito nuclear entre a potência emergente e a potência descendente. Se a governança global não for capaz de apresentar soluções para o complexo quadro das relações internacionais e a deterioração das condições sociais e ambientais, pode ser que, de fato, ocorra o fim da história, em sua forma trágica, juntamente com o fim da civilização humana.


Marcos Troyjo: Karl Marx em Pequim?

Reverência dos chineses a filósofo contraria seguimento de princípios na economia e no regime

No último sábado, 5 de maio, ao lado da foice e do martelo na parede de fundo do Grande Salão do Povo em Pequim, fulgurava o rosto de Karl Marx numa sessão especial do Parlamento Chinês em homenagem aos 200 anos de nascimento do filósofo alemão.

Naquela semana, também foi desvelada, em Trier, cidade natal do autor de “O Capital” na Alemanha, uma escultura em bronze de 4,4 metros de Marx. Detalhe: a estátua foi um presente do governo chinês.

Essa reverência dos chineses à figura de Marx é intrigante. Será que entendem ser a adoção de princípios formulados e prescritos por Marx o segredo para a arremetida chinesa à atual condição de superpotência econômica global? Haveria na produção conceitual de Marx a chave do segredo do sucesso não apenas da China, mas de outras economias em desenvolvimento?

A resposta mais correta é um absoluto não. E isso começa pelo próprio acervo de diagnósticos característicos da interpretação marxista. Como é de notório conhecimento, em sua interpretação da dinâmica capitalista, Marx previa que uma revolução proletária se daria primeiramente nos países de Industrialização avançada. Nelas, teriam desaparecido por completo resquícios da sociedade feudal ou de períodos em que a atividade laboral ainda estivesse vinculada a modos de produção mais artesanais.

Ora, a China de 1949, ano da Revolução Maoísta, é uma polifônica confusão entre o legado de uma estrutura feudal arquitetada ainda em suporte ao regime das dinastias imperiais e uma ética fortemente delineada pela influência onipresente do confucionismo.

A realidade chinesa jamais se conformaria como caso típico de sociedade madura a uma revolução socialista como vislumbrada pelo “materialismo científico”. No limite, seria uma impostura defender que na China imediatamente pré-Mao antagonizavam-se uma burguesia funcional e ciosa de seus interesse e um imenso contingente de trabalhadores organizados a pegar em armas de modo a catalisar a revolução.

Aliás, ainda que se possam encontrar paralelos entre a formação do Partido Comunista Chinês e as receitas conceituais marxistas de ditadura do proletariado, não há nada da experiência concreta chinesa de 1949 a 1978 que credite o período como de avanço econômico e social.

Numa palavra, nos trinta anos de autocracia chinesa que se seguiram à conquista do poder pelo grupo de Mao, a China não estava indo a lugar algum. Seus esquemas de planejamento e coletivismo, na agricultura e na indústria, são de um fracasso retumbante.

Sua orientação de política externa e comercial, numa confusa mistura de autarquia como método e autossuficiência como objetivo, apenas insularizaram ainda mais a China. E a aventura da Revolução Cultural, com seus múltiplos crimes, é de um assombro monstruoso.

Interessante notar que é apenas quando a China se afasta de muitas das posologias marxistas no fim dos anos setenta —com uma política de abertura para o mundo, reconhecimento da propriedade privada e do direto de enriquecer, e ampliação de práticas econômicas concorrenciais— que o país consegue alçar os primeiros voos de sua vertiginosa arremetida. Para tanto, contribui também uma série de estratégias que nada guardam de relação com postulados marxistas.

Muito do êxito chinês nessas últimas quatro décadas não se conseguiu com o distanciamento do núcleo das economias capitalistas centrais. Bem ao contrário, foi com o incremento do acesso chinês a esses mercados, mediante a outorga que EUA e Europa ofereceram a exportações chinesas como oriundas de nação mais favorecida, que o país logrou alcançar o presente ranking de maior nação comerciante do planeta. Além disso, por anos a fio os chineses mantiveram artificialmente achatados os salários —como fatia do PIB— de modo a acrescentar ainda mais atratividade a suas exportações.

Ainda, ao contrário que sugeria Marx, a China coibiu —e continua a coibir— a associação independente de trabalhadores por meio de sindicatos. E o sistema de gestão do Partido Comunista nada tem que ver com uma expressão “administrativa” da representação dos trabalhadores. Trata-se muito mais de estrutura assemelhada à burocracia meritocrática e funcional do mandarinato das dinastias imperiais.

O perfil contemporâneo da China é ainda mais distante de preceitos marxistas. Xi Jinping é hoje o principal defensor da globalização econômica. A China é um país com imensas diferenças sociais, que conta com o maior número de indivíduos milionários e, levando em conta as mulheres super-ricas, é a nação com mais bilionárias.

China ostentação
Quanto à presença do Estado na economia, que Marx também desejava crescente, vale salientar que hoje o contingente chinês de população economicamente ativa empregado no setor público é metade daquele que observamos na —supostamente capitalista— França.

E a carga tributária na China representa apenas 18% do PIB, essencialmente a metade do que pagamos num país —nominalmente— de livre mercado como o Brasil. Ademais, a quase totalidade das universidades na China é governamental, mas praticamente inexiste o ensino gratuito. Todos têm que pagar.

Nada ilustra tão bem como a China se distanciou das ideias marxistas do que uma adaptação de frase encontrada no “Manifesto do Partido Comunista”. Ao comentar o desencadeamento vigoroso das forças produtivas do capitalismo, Marx indicava que “as mercadorias baratas são a artilharia pesada com que se derruba todas as Muralhas Chinesas”.

Na verdade, nestas últimas quatro décadas, foram as mercadorias baratas chinesas que abalaram as estruturas dos mercados ocidentais e produziram uma das mais estonteantes ascensões da história econômica mundial.

* Marcos Troyjo é diplomata, economista e cientista social, é diretor do BRICLab da Universidade Columbia


Míriam Leitão: Inimigo meu

Sempre haverá tensão entre Estados Unidos e China, mas o que está acontecendo é conjuntural e determinado pelo pensamento limitado do presidente Trump. Não é a reedição da Guerra Fria, porque, ao contrário da relação EUA-URSS, as duas potências agora são interdependentes. Ontem a China avisou que não aceitará duas exigências do governo Trump e isso elevou o temor de uma guerra comercial.

Mesmo sendo temporário e conjuntural, preocupa, porque um conflito comercial entre as duas maiores potências reduz o crescimento mundial e não favorece ninguém. Pode ajudar pontualmente o Brasil pela elevação dos preços de algumas commodities ou da demanda por algum produto, mas a tensão entre China e Estados Unidos não estimula a economia global.

O jornal “The New York Times” trouxe ontem a informação de que os chineses pretendem endurecer em dois pontos impostos pelo presidente Donald Trump: a obrigatoriedade de cortar US$ 100 bilhões no déficit comercial entre os dois países, e a redução dos estímulos da política industrial chinesa em favor de novas tecnologias como inteligência artificial, semi-condutores, carros elétricos e aviões. Depois de um seminário de três dias entre autoridades chinesas e consultores, a decisão foi de não aceitar as duas imposições.

Dizer “não” antes de começar uma negociação — a reunião bilateral será esta semana — é um ato de esperteza. Mas de qualquer maneira reduzir o comércio nessa proporção e ainda interromper um projeto local é mesmo difícil.

De acordo com dados do governo americano, nos dois primeiros meses de 2018, o déficit comercial com a China chegou a US$ 65,2 bi, ou 14,5% a mais que no mesmo período de 2017. O ano passado havia fechado com um rombo de US$ 375,2 bi. O que Trump propõe é uma redução mandatória por parte da China desse déficit em US$ 100 bi. Isso o levaria de volta aos níveis de 2010, quando os americanos venderam US$ 91,9 bi e compraram US$ 364,9 bi da China. Em 2017, a corrente de comércio estava em outro patamar. Mais integrados ao parceiro asiático, os EUA exportaram US$ 130,3 bi e importaram US$ 505,5 bi da China.

A visão de Trump é de déficit como prejuízo do país, como se fosse uma empresa. Na verdade o comércio tem inúmeros lados, e a importação de produtos chineses tem toda uma rede de interesses dentro da economia americana. A mais óbvia delas é a inflação baixa mesmo em período de retomada do crescimento.

Os maiores volumes das exportações americanas vêm exatamente de produtos de maior valor agregado e alta tecnologia. OS EUA embarcaram US$ 16,2 bi em aviões e equipamentos aéreos para o parceiro asiático em 2017. A exportação de veículos de passageiros somou US$ 10,5 bi. Fabricantes americanos venderam US$ 6 bi em semicondutores para a China, mais US$ 5,4 bi em máquinas industriais. Entre as commodities, os destaques foram os US$ 12,3 bi em soja e os US$ 4,4 bi em petróleo.

Da China, os EUA compraram US$ 70,3 bi em celulares e outros bens residenciais em 2017. No topo da lista das importações também aparecem os US$ 45,5 bi em computadores e os US$ 31,6 bi em acessórios para computadores. Outros US$ 33,4 bi foram gastos em equipamentos de tecnologia, mais US$ 26,7 bi em brinquedos e produtos esportivos e US$ 24,1 bi em vestuário. Os produtos de aço e ferro são pouco relevantes na lista, somaram US$ 4,9 bi.

O governo chinês argumenta que o desequilíbrio nas contas entre os dois países é provocado pela diferença da taxa de poupança. Os chineses poupam dois quintos da sua renda e os Estados Unidos são uma sociedade consumista. O governo americano diz que o déficit é provocado por práticas desleais de comércio. Provavelmente, os dois têm razão. Os americanos não poupam, e a China subsidia suas exportações, os bancos estatais fornecem empréstimos baratos para as empresas, o custo de mão de obra é baixo. Mas Trump está estimulando ainda mais o consumo, e o consumidor americano se aproveita dos subsídios chineses quando compra produtos com preço baixo. É difícil separar as duas economias porque elas já se misturaram demais ao longo dos anos de intenso comércio bilateral e investimentos chineses nos Estados Unidos.


Arnaldo Jardim: Jogo bruto no comércio internacional

O Brasil tem uma pequena participação no comércio internacional, bem abaixo de sua dimensão como país em desenvolvimento.

Padecemos pela falta de agressividade da diplomacia brasileira nas organizações internacionais (OMC e outras), de sequelas da visão “nacionalista” que nos levou ao isolamento, e de ação empresarial mais articulada que busque estabelecer relações de médio e longo prazo.

Alias, mais do que isto, carecemos de um Projeto Nacional que contemple uma visão de como deve ser nossa inserção internacional, que defina por exemplo quais serão os setores em que, tendo vantagens competitivas e comparativas, possamos ter um protagonismo mundial e daí definirmos uma inserção no comércio mundial.

De qualquer forma, a exportação brasileira ganhou uma janela de grande oportunidade quando China e Estados Unidos travam uma acirrada guerra comercial, que inclui listas de produtos que serão tarifados, declarações acaloradas e desvalorização cambial chinesa como arma.

Trump anunciou em 22 de março que seu governo iria impor tarifas, que somariam US$ 50 bilhões, sobre produtos chineses. A intenção é punir a China que “se apropriou incorretamente de propriedade intelectual norte-americana” – o que o governo chinês nega.

Trump na realidade busca reverter o colossal déficit comercial dos Estados Unidos com a China, de US$ 375,2 bilhões em 2017, e assim aciona suas medidas protecionistas. Em resposta, o país asiático elevou, em até 25%, as tarifas sobre 128 produtos norte-americanos, que vão desde a carne suína congelada e vinho a certas frutas e nozes.

Tomara que as duas maiores potências mundiais se entendam e garantam o equilíbrio econômico mundial. Mas enquanto este entendimento não chega, é hora de mostrarmos nossa capacidade competitiva e ampliar nossas exportações, nossa participação no comércio internacional.

O Brasil pode ampliar a exportação de comodities, de produtos como algodão, milho e soja. No caso da soja vendida para a China, a demanda deve ser ainda maior com a quebra de safra de outro importante fornecedor do grão, a Argentina, os preços assim estão mais compensadores.

A soja é o principal produto da nossa pauta de exportação, este ano devemos exportar US$ 28,8 bilhões de dólares, ante US$ 25,7 bilhões no ano passado. Os chineses compraram cerca de 54 milhões de toneladas de soja brasileira de um total de 68 milhões que o Brasil exportou em 2017. A China é o principal destino das exportações de soja do Brasil, quase 80%.

Ao todo, os chineses compraram mais de 95,5 milhões de toneladas de todas as origens em 2017. É um número que o Brasil não tem como suprir por completo, mas poderá ter uma participação ainda maior.

A produção de soja do Brasil em 2018 deve atingir um recorde de 117,4 milhões de toneladas, permitindo ao País embarcar neste ano o maior volume da commodity em toda a história. A nova previsão supera tanto as 114,7 milhões consideradas em março quanto as quase 114 milhões do ano passado, como mostram dados da Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (Abiove).

Com o aumento da safra, os embarques foram estimados em 70,4 milhões de toneladas, superando a previsão anterior (68 milhões) e o recorde do ano passado, de 68,15 milhões. É o reflexo da janela que se abriu com a Argentina sendo menos agressiva, e os preços melhores, com o fortalecimento do mercado de prêmio da soja brasileira sobre a cotação de Chicago.

No caso do milho, também houve reajustes positivos tanto para a primeira safra, já em colheita e que também tem apresentado rendimentos satisfatórios, quanto para a segunda safra, cujo plantio foi concluído recentemente e deve alcançar 11,54 milhões de hectares, acima dos 11,39 milhões de março e perto dos 12,1 milhões de 2016/17.

Em um momento comercialmente tão oportuno, é preciso que o Brasil se fortaleça como o grande fornecedor de alimentos, fibras e energia que é.

* Arnaldo Jardim é deputado federal pelo PPS-SP


Monica De Bolle: A arte da guerra

É hora de o Brasil explorar setor a setor quais podem vir a perder ou a ganhar com o "guerra" entre China e EUA
“Pareça fraco quando está forte, e forte quando está fraco”, recomenda Sun Tzu. Trump esbraveja e tuíta, seu exército de Brancaleone comandado por Peter Navarro, o assessor da presidência para assuntos comerciais, ameaça e esperneia. Enquanto isso, a China, com alguma discrição, anuncia singela retaliação às sobretaxas para o aço e para o alumínio. Os 128 produtos da lista divulgada nesta semana pelo governo chinês equivalem a modestos US$ 3 bilhões em valor exportado da China para os EUA, a maior parte corresponde à venda de produtos agrícolas. Carne suína, macadâmias, gengibre, amêndoas, frutas secas, por aí vai. Cada um desses produtos, a carne suína inclusive, terá aumento das alíquotas tarifárias com impacto relativamente mensurado sobre a inflação na China. Contudo, foram escolhidos a dedo pelos chineses pois podem provocar estragos nada desprezíveis em regiões que votaram maciçamente em Trump.
Sobretaxas na carne suína afetam produtores de Iowa; no gengibre, produtores em distritos específicos de Wisconsin; nas amêndoas e nas frutas secas, produtores de regiões da Califórnia onde Trump ganhou de Hillary em 2016. Por enquanto, a China decidiu não tocar na soja, ou nos aviões da Boeing, dois dos principais produtos que compra dos Estados Unidos. Em 2017, a China comprou mais soja do Brasil do que dos EUA – cerca de 51 milhões de toneladas de produtores brasileiros contra 33 milhões de toneladas de produtores norte-americanos. Brasil e Estados Unidos são os maiores produtores mundiais de soja, a China o principal país consumidor do produto, que lá é usado para preparar óleo de cozinha e ração para animais. A soja brasileira vem ganhando espaço no mercado chinês desde 2012 devido ao maior conteúdo de proteína do que a soja americana. A soja brasileira salvou o PIB em 2017.
Nos EUA, a soja é produzida em Iowa, Nebraska, Indiana, Ohio, Estados onde Trump bateu a candidata democrata com facilidade. Partes e componentes das aeronaves da Boeing são produzidos praticamente em todos os Estados americanos. Em janeiro desse ano, quando Trump anunciou tarifas salgadas sobre painéis solares – a China é o país que mais vende painéis para os EUA – o governo chinês ameaçou sobretaxar a soja e os aviões da Boeing. Por enquanto, ficou só na ameaça. Contudo, logo após o anúncio das sobretaxas no aço e no alumínio, a cruzada trumpista contra a China não parou. O Departamento de Comércio anunciou que irá propor sobretaxas para diversos produtos chineses no valor de US$ 60 bilhões como resultado das investigações recém-concluídas a respeito de práticas comerciais desfavoráveis promovidas pela China. Tais investigações estão previstas da seção 301 do Trade Act de 1974. A lista de produtos, recém-divulgada, inclui armas de fogo, carrinhos de golfe, e aço.
Evidentemente, a China não deve resistir à tentação de lançar a munição mais pesada – a soja e os aviões da Boeing – nessa próxima batalha. “Se conhece o inimigo e a si mesmo, não é necessário temer o resultado de cem batalhas.” Claramente, a China conhece bem tanto a si mesma, quanto os instintos e pontos fracos de trumpland em ano de eleições legislativas para lá de complicadas.
Como poderia o Brasil ser afetado pela estratégia olho por olho que ora parece se delinear entre as duas principais economias do mundo, e os dois principais parceiros comerciais do País? De um lado, a incerteza associada ao aumento das tensões entre a China e os EUA começa a estremecer mercados e a tensionar os cenários mais otimistas que caracterizavam as perspectivas para a economia mundial até recentemente. Qualquer descarrilamento da economia mundial repercutiria negativamente sobre a insípida recuperação brasileira. Por outro lado, há produtos como a soja que poderiam se beneficiar enormemente caso a guerra comercial se intensifique nas próximas semanas. Embora o Brasil tenha de manter certa neutralidade suíça em relação à China e aos EUA para o seu próprio bem, sobretudo enquanto negocia isenções permanentes para as sobretaxas de aço, é hora de seguir as recomendações de Sun Tzu: “Aquele que é prudente e espreita um inimigo que não o é será vitorioso”.
Ou seja, é hora de o Brasil explorar setor a setor quais podem vir a perder ou a ganhar com o fogo cruzado, além de traçar a estratégia para o maior engajamento global com outros possíveis parceiros comerciais. O momento é oportuno para abrir a economia. Não vamos desperdiçá-lo.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

Samuel Pessôa: Excesso de liberalismo econômico está por trás do crescimento da China

Quem tem Estado mínimo, o Brasil ou a China? Aqui, a carga tributária é de 32% do PIB, e lá, de 21%

Laura Carvalho, minha colega que ocupa este espaço às quintas, abordou em sua coluna da semana passada o relatório da OCDE(Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) divulgado em 28 de fevereiro em Brasília.

Como apontou Laura: "O relatório da OCDE recomenda, além de abrir mais a economia para a concorrência estrangeira e reformar a Previdência, tornar o Banco Central independente, pôr fim à política industrial, desvincular os benefícios sociais do salário mínimo e reduzir o papel do BNDES, entre outras medidas. O conjunto de reformas estruturais propostas, acredita, seria capaz de elevar o crescimento do PIB brasileiro em 1,4 ponto percentual ao longo dos próximos 15 anos".

Segundo Laura, o relatório repisa temas de receitas antigas que não funcionaram. Poucos países se deram bem. Laura escreve que "a exceção são os países que conseguiram acelerar muito suas taxas de crescimento por não terem cumprido a cartilha, entre os quais a China é o maior exemplo".

Para Laura, o crescimento espetacular da China deve-se ao fato de não ter cumprido a cartilha da liberalização dos mercados.

Quem será que tem Estado mínimo? O Brasil ou a China? A carga tributária no Brasil é de 32% do PIB, e na China é de 21%. O gasto com saúde, educação, aposentadoria do setor privado e assistência social no Brasil é de 20% do PIB e na China é de 8,5% do PIB. Será que a China gasta tão menos do que o Brasil porque há poucos idosos por lá? Não é o caso. A população com 65 anos ou mais na China é de 8,5% da população total, ante 7% para o Brasil.

Será que nosso gasto em educação é elevado em razão de termos mais crianças? De fato, a população com 15 anos ou menos no Brasil é de 25%, ante 18% na China. Como a China gasta 3,7% do PIB com educação, para mantermos a mesma proporção, teríamos de gastar 5,1%. Nosso gasto é superior a 6% do PIB.

O mercado de trabalho chinês, até 2007, antes da edição de uma nova lei trabalhista, era algo mais próximo da Inglaterra de Charles Dickens do que de qualquer coisa remotamente aparentada ao que se encontra nas economias modernas.

São comuns ainda na China os casos de pais que migram para outras cidades ou províncias e, em razão do sistema de passaporte interno, perdem o direito de pôr os filhos nas escolas públicas. Ou deixam os filhos aos cuidados dos avós na cidade de origem ou são obrigados a pagar escolas particulares de pior qualidade.

Evidentemente esse gasto social diminuto e essas condições que há até pouco tempo lembravam a primeira Revolução Industrial explicam a elevadíssima taxa de poupança familiar: algo próximo de 50% da renda do domicílio. Aproximadamente 45% da poupança gigante chinesa, de uns 45% do PIB, é familiar!

Assim entende-se os motivos de os juros serem baixos e de a capacidade de investir no setor produtivo, com ênfase na indústria, e de acumular infraestrutura —metrô e saneamento nas grandes cidades e uma respeitável rede de trens de elevada velocidade— ser tão elevada.

Provavelmente Laura acha que o crescimento da China é fruto do câmbio e do juro. Talvez também da conta de capital fechada.

No entanto os números são claríssimos. O crescimento da China deve-se a ser um caso de excesso de liberalismo econômico (não político, evidentemente).

Gostar da China é comum entre nossos economistas heterodoxos. Eles sofrem da síndrome do adolescente. Desejam algumas características, mas não outras. Não notam que são faces de uma mesma moeda.

* Samuel Pessôa é formado em física e doutor em economia. É pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.

 


El País: China aprova reforma constitucional que perpetua Xi no poder

Apenas dois dos quase 3.000 delegados votaram contra, e três se abstiveram

Xi foi o primeiro dos quase 3.000 delegados a depositar seu voto, num envelope-padrão de cor salmão, dentro de uma grande urna vermelha com o brasão nacional. Uma intensa ovação ecoou na sala quando o presidente, secretário-geral do Partido Comunista e chefe da Comissão Militar Central se levantou de seu assento para votar.

Há duas semanas, quando foi anunciada a decisão do Comitê Central do Partido de eliminar os limites para o número de mandatos presidenciais, registraram-se insólitos protestos nas redes sociais chinesas, antes que a censura se encarregasse de eliminá-los.

A reforma, que extingue o limite de dois mandatos de cinco anos para o chefe de Estado, põe fim à era de lideranças coletivas iniciada por Deng Xiaoping em 1982 com o objetivo de evitar os excessos da era de Mao Tsé-tung. Xi, de 64 anos, teria de deixar o cargo ao final do seu segundo mandato, em 2023, como já fizeram seus antecessores imediatos, Jiang Zemin e Hu Jintao.

O Governo chinês justifica a medida argumentando que a chefia do Estado é parte de uma tríade de cargos responsáveis pela gestão do país, sendo que para os outros dois – a presidência do Comitê Militar Central e a Secretaria Geral do PCC – não há limite de mandatos. O objetivo, portanto, seria harmonizar as regras de permanência nessas três funções, geralmente exercidas pela mesma pessoa.

Os defensores da reforma também alegam que Xi precisa de mais tempo para implementar seus projetos de reformas econômicas e tornar realidade sua visão de um “Sonho Chinês”, que transformaria o país em uma grande potência até meados deste século. Outros, porém, se mostram céticos e apontam para o perigo de que um líder perpétuo, sem um sistema de controle real sobre seu poder, possa cometer erros que prejudiquem toda a nação.

“Esta reforma deveria nos levar a uma China moderna, a uma sociedade onde impere o Estado de direito. Do contrário, seria andar para trás”, afirma o professor e comentarista Hu Xindou. “Muitos respaldam que ele fique no poder durante um longo período. Mas entre os intelectuais há gente que pode ter ideias diferentes, e muitos se opõem a isso”, acrescenta.

Desde sua chegada ao poder, em 2012, Xi vem ampliando gradualmente seu controle sobre o país, amparando-se numa intensa campanha de combate à corrupção que já afastou quase 1,5 milhão de funcionários públicos dos seus cargos. Ele também intensificou as restrições sobre a sociedade civil e a Internet. Advogados de direitos humanos e ativistas foram condenados a duras penas de prisão.

A reforma inclui também uma série de cláusulas que reforçam o papel dirigente do Partido Comunista no país. Uma delas prevê que esse papel é o traço principal do “socialismo com características chinesas”. Outra inscreve na Constituição o “Pensamento de Xi Jinping para uma Nova Era”. Uma terceira abre o caminho para a criação de uma nova Comissão Nacional de Supervisão, que aumenta a vigilância sobre os funcionários públicos chineses e que, dentro da hierarquia de poder, estará acima do Ministério Público e dos tribunais.

 


El País: É assim que a China quer dominar o mundo

O presidente chinês, Xi Jinping, deseja que Pequim ocupe o vácuo geopolítico deixado pelos EUA. Seus investimentos em diplomacia, armamentos e inteligência artificial são prova disso

Por MACARENA VIDAL LIY, El País

“Esconder a força e aguardar o momento.” Deng Xiaoping, o grande protagonista da abertura econômica chinesa, recomendava manter a China em segundo plano no cenário global, enquanto o país lutava para sair da pobreza e deixar para trás o marasmo de 10 anos de Revolução Cultural. Mas essa etapa ficou no passado. Na “nova era” proclamada pelo presidente Xi Jinping, o gigante asiático está decidido a ocupar o papel de protagonista da arena global, que, aos seus olhos, a história lhe deve. Através de Xi, o líder mais poderoso do país em décadas e que continuará no poder além dos 10 anos inicialmente previstos, a nação quer moldar a ordem mundial para se consolidar como referente e criar oportunidades estratégicas para si e suas empresas, além de legitimar seu sistema de governo. E já não hesita em divulgar esses planos.

“Nunca o mundo teve tanto interesse na China, nem precisou tanto dela”, declarava solenemente no mês passado o Jornal do Povo, o mais oficial das publicações oficiais de Pequim. E o atual momento – em que os Estados Unidospresididos por Donald Trump abrem mão de seu papel de líder global, a Europa está presa em suas próprias divisões e o mundo ainda arrasta as consequências da crise financeira de 2008 – apresenta uma “oportunidade histórica” que, segundo o comentário, “abre-nos um enorme espaço estratégico para manter a paz e o desenvolvimento e ganhar vantagem”. A assinatura como “Manifesto” indicava que o texto representava a opinião dos mais altos dirigentes do Partido.

Essa ambição não é nova: a catástrofe que significou o Grande Salto Adiante(1958-1962) foi provocada, no fim das contas, pela vontade de Mão Tsé-Tung de transformar a China numa potência industrial em tempo recorde. A novidade, de fato, é que isso seja agora proclamado – e cada vez mais alto. Em seu discurso no XIX Congresso Nacional do Partido Comunista, em outubro, quando renovou seu mandato por outros cinco anos, Xi anunciou a meta de transformar o país “num líder global em termos de fortaleza nacional e a influência internacional” até 2050. A data não é casual: até lá, a China já terá esgotado seu dividendo demográfico (hoje a estrutura etária de sua mão de obra, ainda relativamente jovem, é benéfica para o crescimento econômico do país).

Aos olhos de Pequim, a China nunca teve esse objetivo tão ao seu alcance. A diferença não é pautada apenas pelas circunstâncias geopolíticas ou por seu auge econômico, mas também por sua situação interna. Nunca, desde os tempos de Mao, um líder chinês havia contado com tanto poder, nem tinha se sentido tão seguro no cargo.

Xi não deixa de acumular postos e títulos, oficiais e extraoficiais. Secretário-geral do Partido, presidente da Comissão Militar Central, chefe de Estado, “núcleo” do Partido e agora lingxiu, o líder, um tratamento que só havia sido concedido a Mão e ao seu sucessor imediato, Hua Guofeng. Universidades do país inteiro abrem centros de estudo dedicados ao seu pensamento; as ruas de qualquer cidade estão cheias de cartazes pedindo que a população aplique suas ideias. De uma forma marcante, não vista em décadas, a lealdade ao Partido, e em consequência a Xi, é a condição essencial para se ter sucesso em qualquer atividade que tenha a ver com o onipotente Estado.

Xi se apresentou como o grande defensor da luta contra as mudanças climáticas, a globalização e os tratados de livre comércio

A consolidação do poder de Xi vai ser coroada na sessão anual da Assembleia Nacional Popular, o Legislativo chinês, que será inaugurada na próxima semana no Grande Palácio do Povo de Pequim. Os deputados aprovarão, entre outras coisas, a eliminação do limite temporário de dois mandatos que a Constituição impõe ao presidente, abrindo caminho para que o mandatário continue à frente do país por tempo indefinido.

A China multiplicou sua expansão internacional já durante o primeiro mandato de Xi. Seu Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura completará três anos concedendo empréstimos equivalentes a mais de 13,4 bilhões de reais. Sua nova Rota da Seda – um plano para construir uma rede de infraestrutura ao redor do mundo – acaba de incorporar oficialmente a América Latina, mira o Ártico e se dispõe e realizar sua segunda reunião internacional em 2019. Seus investimentos em diplomacia têm sido vastos. Em 2017, o país destinou a essa área o equivalente a 25,5 bilhões de reais, um aumento de 60% em relação a 2013. Já os EUA propuseram cortar 30% das despesas com o serviço exterior.

Enquanto Washington abandona seus compromissos internacionais, a China está disposta a preencher esse vazio. Xi Jinping se apresentou como o grande defensor da globalização, da luta contra a mudança climática, dos tratados de comércio internacionais. Pequim já mantém acordos de livre comércio com 21 países – um a mais que Washington – e, segundo suas autoridades, negocia ou planeja incluir outros 10.

Os investimentos do Governo e das empresas da China e no exterior são um dos principais pilares dessa estratégia. Na América Latina, o país já concedeu mais créditos que o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Ano passado, investiu o equivalente a 390 bilhões de reais em 6.236 empresas de 174 países, segundo seu Ministério do Comércio. Como parte do plano de se tornar um país líder em tecnologia e fazer com que esse setor seja uma das principais fontes de seu PIB, a China comprou empresas fundamentais em áreas estratégicas, como a líder alemã em robótica Kuka e a fabricante de chips britânica Imagination. Já é um referente em inteligência artificial.

Mas sua presença no exterior não se limita ao terreno diplomático e comercial. Ser uma potência global requer não apenas ter acesso aos recursos e conexões com o resto do mundo, mas também defendê-los e se defender. E a China, com o equivalente a 490 bilhões de reais, é o segundo país com maior gasto militar, atrás dos EUA, e moderniza rapidamente seu Exército. Já conta com sua primeira base militar no exterior, em Djibuti, e, segundo o Afeganistão, estuda construir uma segunda base num canto remoto desse país.

Mas se a China hoje inspira mais simpatia que os EUA em diversos países – incluindo aliados tradicionais de Washington, como México e Holanda, segundo informou o Pew Research Center em 2017 –, seu auge também gera desconfiança. O Eurasia Group descreveu a influência chinesa em meio a um vazio de liderança global como o primeiro risco geopolítico para este ano. “[A China] está fixando padrões internacionais com a menor resistência já vista”, afirma a consultoria. “O único valor político que a China exporta é o princípio de não ingerência nos assuntos internos de outros países. Isso é atrativo para os Governos, acostumados às exigências ocidentais de reformas políticas e econômicas em troca de ajuda financeira.” Menção especial, entre outras coisas, merece o investimento chinês em inteligência artificial. “[Esse investimento] procede do Estado, que se alinha com as instituições e companhias mais poderosas do país e trabalha para garantir que a população se comporte como o Estado deseja. É uma força estabilizadora para o Governo autoritário e capitalista do Estado chinês. Outros Governos acharão esse modelo sedutor.”

Xi Jinping, em 24 de outubro, no XIX Congresso do Partido Comunista.
  

Outras vozes também demonstram alarme. O primeiro-ministro australiano, Malcom Turnbull, denunciou em dezembro a influência da China nos assuntos políticos de seu país, mediante lobbies e doações, e apresentou um projeto de lei que busca frear isso. O diretor do FBI, a polícia federal dos EUA, Christopher Wray, também advertiu que Pequim pode ter infiltrado agentes até mesmo nas universidades. Um relatório do think tank alemão MERICS e do Global Public Policy Institute alerta para a crescente penetração da influência política da China na Europa, especialmente nos países do Leste. E um grupo de acadêmicos conseguiu, graças aos protestos do ano passado, que a editora Cambridge University Press restabelecesse artigos censurados por não coincidirem com a visão do governo chinês em assuntos como Tiananmen e Tibete.

A crescente assertividade de Pequim pode beirar a arrogância ou o desdém pelas normas internacionais. No mar do Sul da China, onde suas reivindicações de soberania enfrentam as de outras cinco nações, o país tem construído ilhas artificiais em áreas em disputa, apesar dos protestos dos Estados vizinhos e dos EUA. Recentemente, a imprensa recriminou a Suécia por suas pressões pela libertação de Gui Minhai, o livreiro sueco detido no mês passado quando viajava a Pequim escoltado por dois diplomatas.

Além dos alarmes, começam a soar também – de modo ainda muito incipiente – propostas para contra-atacar essa pujança ou os aspectos menos benevolentes dela. O presidente francês, Emmanuel Macron, pediu a unidade dos 27 parceiros da União Europeia para não perderem terreno para a China. A Casa Branca começou a impor tarifas a alguns produtos para frear o que considera concorrência desleal da China no intercâmbio comercial. Japão, Índia, Austrália e EUA estudam apresentar um plano internacional alternativo ao da Rota da Seda.

Claro que nem sequer o todo-poderoso Xi pode considerar tudo como garantido, e a China da nova era padece de fraquezas importantes. No momento, o apoio popular ao presidente e sua gestão parece sólido. Mas mantê-lo, em uma sociedade de fortes desigualdades sociais, pode ser uma tarefa complicada. As jovens classes médias, nascidas e criadas depois da Revolução Cultural e de Mao, não conheceram o sofrimento de seus progenitores e demandam um bem-estar econômico que dão como certo, assim como padrões de vida semelhantes aos do Ocidente.

Isto inclui a poluição, um dos grandes males da China. Depois de medidas como um plano de urgência para o inverno, padrões de emissões para veículos e fechamento de fábricas com elevados níveis de poluição, este ano a qualidade do ar em Pequim melhorou notavelmente. Mas organizações como o Greenpeaceenfatizam que essa melhora se deu, em parte, ao custo de transferir a poluição para regiões mais pobres e menos visíveis.

Garantir padrões de vida cada vez melhores – a China se comprometeu a acabar até 2020 com a pobreza rural, que em 2015 afetava 55 milhões de pessoas – obriga também a uma reforma econômica. Ao chegar ao poder, há cinco anos, Xi prometeu deixar que o mercado seguisse seu ritmo. É uma aspiração que se mostrou complicada. Em 2015, a revista Caixin indicava que, entre as 113 áreas suscetíveis de reforma, somente 23 avançavam a bom ritmo, os progressos eram lentos em 84 e nada se conseguira em 16.

O que está por fazer é o mais difícil: as empresas de propriedade estatal, gigantescas e ineficientes, mas básicas no sistema socioeconômico chinês atual; o excesso de crédito e de capacidade de produção; a completa liberalização do yuan. Reformas necessárias, mas que vão requerer enorme habilidade para que não prejudiquem o índice de desemprego ou a estabilidade social, a grande prioridade do Governo.

Em prol dessa estabilidade social, a China de Xi Jinping pôs em prática ambiciosos programas de controle e vigilância dos cidadãos, ajudada pela inteligência artificial. O fluxo das informações e as redes sociais são ferreamente supervisionados. Todas as empresas, incluindo as multinacionais estrangeiras, precisam contar com uma unidade do Partido Comunista em sua estrutura. Os meios de comunicação estatais – os principais  – receberam instruções da boca do próprio presidente: “Vocês devem se nomear Partido”.

A tendência é a de redução da tolerância a qualquer manifestação cultural que não reforce o papel dominante do Partido Comunista nem se ponha a serviço de seus objetivos. E isso inclui o tratamento às minorias e a prática da religião, sobre a qual recentemente foram impostos novos regulamentos. As pessoas incômodas – sejam dissidentes políticos, advogados de direitos humanos ou ativistas de causas sociais– são presas e, às vezes, condenadas a longas penas de prisão. No ano passado, o Prêmio Nobel da Paz Liu Xiaobo morreu de câncer de fígado enquanto cumpria uma pena de 11 anos.

Mas o tempo corre, para Xi, para Pequim e para implementar as reformas. Um dos grandes obstáculos que o país enfrenta é precisamente seu rápido envelhecimento. A desastrosa política do filho único faz com que o dividendo demográfico esteja se esgotando. Apesar do fim da proibição em 2015, a natalidade não dá mostras de aumentar. Em 2020, 42 milhões de idosos não poderão cuidar de si mesmos e 29 milhões superarão os 80 anos. Um grande desafio para sistemas de previdência social e de saúde ainda muito frágeis.

Para 2050, quando o país espera ter se tornado uma grande potência, contará com 400 milhões de aposentados. Por essa época, terá completado seus ambiciosos planos de reforma militar e econômica; a prioridade será atender a esse grande segmento de população envelhecida. O prazo de “oportunidade estratégica” terá expirado.

A nova era de Xi tem, portanto, pressa. Hoje pode mobilizar a população em busca do sonho chinês; amanhã poderá ser tarde. Dentro de alguns anos, esta nova era pode ter ficado velha demais.