Chile

Luiz Carlos Azedo: Estado de choque

“Guedes propõe solução simples para um problema complexo: mais um imposto. Como sabe que é isso, pode ser para criar um cavalo de batalha, justificar seu fracasso e deixar o cargo”

A ideologia de livre mercado do vienense Friedrich August Von Hayek, paradigma da política liberal conservadora do pós-guerra, foi historicamente associada às doutrinas de choque. Embora originárias das décadas de 1920/1930, suas ideias somente ganhariam força após a II Guerra Mundial. Esse caráter de “choque” foi resultado do envolvimento de Hayke com regime ditatoriais da América Latina, entre os quais a ditadura sanguinária do general Augusto Pinochet, no Chile. A doutrina de choque funciona como uma chantagem, porque as pessoas são persuadidas de que a única opção é aceitar o “mal menor” diante das crises, o que se traduz em soluções selvagens para a desregulamentação da economia e alienação patrimonial, assim como a naturalização do desemprego em massa e da chamada “destruição criativa”.

Obviamente, Hayke foi um crítico das teorias de John Maynard Keynes, o que dificultou muito sua vida no imediato pós-guerra, por causa do sucesso das políticas keynesianas nos Estados Unidos, depois da Grande Depressão de 1929, e na reconstrução da Europa Ocidental, com o Plano Marshall, no imediato pós-guerra. Entretanto, Hayke ganhou o prêmio Nobel de 1970 e conquistou corações e mentes dos dois principais líderes ocidentais da década seguinte, Ronald Reagan, presidente republicano dos Estados Unidos, e Margareth Thatcher, primeira-ministra conservadora do Reino Unido. Com isso, sua figura controversa deixou de ser associada aos ditadores latino-americanos e passou ser identificada com a bem-sucedida política “neoliberal” desses dois líderes.

Com o colapso da antiga União Soviética e do comunismo no Leste Europeu, o mundo ingressou num período de aparente unipolaridade, até a Rússia de Putin se reerguer como potência energética, a aliança franco-alemã se consolidar na Europa e a China, emergir como novo player da economia mundial, cujo eixo comercial se deslocou do Atlântico para o Pacífico. Simultaneamente, um filósofo norte-americano, John Rawls, que cresceu em Baltimore e havia servido no Pacífico — Nova Guiné, Filipinas e Japão —, durante a II Guerra Mundial, começou a ser muito discutido nos Estados Unidos, por causa de suas teses sobre a justiça, o direito dos povos e a equidade. Formado em Princeton, no começo dos anos 1950, estudou na Universidade de Oxford, no Reino Unido, onde conviveu com outro gigante do liberalismo, Isaiah Berlin.

Equidade
Justiça, equidade e desigualdades eram as principais preocupações de Rawls, que questionava a forma como os princípios de justiça se baseavam. Ele estava preocupado com a relação entre a política e as desigualdades, que ultrapassa os julgamentos morais individuais. Por essa razão, estabeleceu uma correlação entre os princípios da justiça e a forma como os sistemas educacional, sanitário, tributário e eleitoral funcionam. Crítico da guerra do Vietnã e simpático aos movimentos de direitos civis das minorias, concluiu que todos têm as mesmas demandas para as liberdades básicas e que as desigualdades sociais e econômicas deveriam ter um limite razoável, que fossem associados a cargos e posições acessíveis a qualquer um, de forma a que todos pudessem sobreviver com dignidade. Nesse aspecto, o Estado deveria ser garantidor da justiça com equidade. Suas palestras sobre o tema foram reunidas num livro por ele revisado em 2001: Justiça como equidade: uma reformulação (Martins Fontes), muito adotado nas escolas de direito no Brasil. Sua Teoria da Justiça era o livro de cabeceira do presidente Bill Clinton, do Partido Democrata.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, é um discípulo da Escola de Chicago, liderada por Milton Friedman, outro prêmio Nobel de Economia, de quem foi aluno e apadrinhado na ida para a equipe econômica do general Pinochet. A essência do seu pensamento se baseia na formação de preços, livre mercado e expectativas racionais dos agentes econômicos. Há um ano, o ministro anuncia uma reforma tributária, sem apresentá-la, enquanto o Congresso discute dois projetos, um no Senado, de autoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), e outro na Câmara, do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), com base em estudos do economista Bernard Appy.

Como já vimos, é preciso compatibilizar nosso liberalismo com a justiça social. O que a pandemia escancarou foi o sucateamento da saúde e da educação e a brutal violência e iniquidade social nas favelas, periferias e grotões do país. Entretanto, agora, Guedes anuncia uma proposta de reforma tributária cujo eixo é a criação de imposto com tributação automática de operações digitais, para arrecadar mais de R$ 100 bilhões. Na prática, é uma exumação da antiga CPMF, que foi criada originalmente para viabilizar recursos para a Saúde.

O problema de Guedes é o crescimento da dívida pública por causa da pandemia, que deve elevar o deficit fiscal de R$ 134 bilhões para, aproximadamente, R$ 700 bilhões, o que inviabiliza as políticas de transferência de renda e pode provocar o colapso financeiro do governo federal, se não houver uma reforma administrativa e nova reforma previdenciária no próximo ano. Guedes propõe uma solução simples para um problema complexo: mais um imposto. Política de choque. Como sabe que é isso mesmo, pode ser, também, para criar um cavalo de batalha, justificar seu fracasso e deixar o cargo.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-estado-de-choque/

Por que a manifestação no Chile? Alberto Aggio responde à Política Democrática online

Em artigo exclusivo publicado na nova edição da revista da FAP, professor da Unesp diz que os chilenos colocaram a raiva para fora

Cleomar Almeida, da Ascom/FAP

Os chilenos colocaram para fora toda a raiva frente ao mal-estar resultante do “modelo econômico”, que ordena o país desde os tempos da ditadura do Pinochet, durante as manifestações de outubro. A análise é do historiador, professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e diretor da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), Alberto Aggio. Em artigo publicado na nova edição da revista Política Democrática online, ele afirma que “o Chile explodiu”.

» Acesse aqui a 13ª edição da revista Política Democrática online

Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP, que produz e edita a publicação. A fundação é sediada em Brasília vinculada ao Cidadania. Em artigo de sua autoria, Aggio lembra que, por vários dias, milhares de pessoas saíram às ruas em marchas de protesto que invariavelmente se tornaram violentas. “Estavam no foco dos manifestantes o Metrô de Santiago, as empresas de energia, os bancos controladores das famosas AFPs, que ‘garantem’ a aposentadoria da maior parte dos trabalhadores chilenos, dentre outras”, afirma.

No artigo exclusivo produzido para a revista Política Democrática online, o professor da Unesp diz que, assim como no Brasil de 2013, a repressão fez com que os protestos se amplificassem até chegar à manifestação de 25 de outubro, que reuniu mais de 1,2 milhão de pessoas no centro de Santiago. “Foi um sinal eloquente de que a estratégia do governo havia naufragado. Piñera recuou, propôs algumas reformas paliativas, procedeu a mudanças parciais em seu gabinete e, por fim, suspendeu o ‘estado de emergência’”, acentua ele.

Na avaliação do diretor da FAP, a modernização do país é atestada em números. Segundo ele, é notável também a sofisticação e até o luxo das estações do Metrô de Santiago em bairros pobres integram o cenário de um país dividido. “Sinais materiais de modernização em contraposição às carências domesticas cotidianas, às expectativas de futuro dos jovens em situação de ameaça, com a recorrente elevação dos custos de educação, além do nível das pensões dos mais velhos frente ao que trabalharam e contribuíram durante toda a vida, tudo isso formou um ‘caldo de cultura’ de raiva diante da flagrante desigualdade e de medo da regressão ao status quo anterior, vivenciado nos anos de crise, quando se implantou o modelo”, analisa.

O Chile que explodiu, de acordo com o artigo publicado na revista Política Democrática online, nada mais expressa do que a reação a décadas de “estado de mal-estar social”. “Os termos em que se deu tal explosão, com sua violência costumeira, agora triplicada, confirma o paradoxo de uma democracia ainda sustentada numa ordem político-jurídica (a da Constituição de 1980) que carece de legitimidade”, avalia Aggio.

 

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Revista Política Democrática || Alberto Aggio: A história volta a pulsar no Chile

Chilenos colocaram para fora toda a raiva frente ao mal-estar resultante do “modelo econômico”, que ordena o país desde os tempos da ditadura do Pinochet, durante as manifestações de outubro

Em outubro, o Chile explodiu. Por vários dias, milhares de pessoas saíram às ruas em marchas de protesto que invariavelmente se tornaram violentas. Estavam no foco dos manifestantes o Metrô de Santiago, as empresas de energia, os bancos controladores das famosas AFPs, que “garantem” a aposentadoria da maior parte dos trabalhadores chilenos, dentre outras. O aumento das passagens do Metrô, a partir de determinado horário, foi o estopim da grande explosão. Mas, como no Brasil de 2013, os chilenos também gritaram “não é só pelos 30 centavos”. E, de fato, não era. Nesse “octubre violento y caliente”, os chilenos colocaram para fora toda a raiva frente ao mal-estar resultante do “modelo econômico”, que ordena o país desde os tempos da ditadura do Pinochet.

O governo de Sebastian Piñera reagiu às manifestações impondo “estado de emergência” e “toque de recolher”, além de convocar o Exército para enfrentar os manifestantes. Para Piñera, o Chile estava “em guerra contra inimigos poderosos”. O resultado de vários dias de confrontos entre forças militares e manifestantes foram mais de 20 mortos, milhares de feridos e centenas de detidos. Olhando o conjunto dos acontecimentos, sua magnitude, os atos violentos dos manifestantes, que chegaram a destruir 70% do Metrô de Santiago, e a violenta repressão, pode-se dizer que não havia ocorrido nada similar em tempos de democracia e que as causas dessa explosão são realmente mais profundas.

Como no Brasil de 2013, a repressão fez com que os protestos se amplificassem até chegar à manifestação de 25 de outubro, que reuniu mais de 1,2 milhão de pessoas no centro de Santiago. Foi um sinal eloquente de que a estratégia do governo havia naufragado. Piñera recuou, propôs algumas reformas paliativas, procedeu a mudanças parciais em seu gabinete e, por fim, suspendeu o “estado de emergência”.

Mesmo assim, a tensão não se dissipou por completo. O mal-estar dos chilenos parece que vai demorar a passar, e muitos falam de um “novo despertar” ou mesmo de uma “nova oportunidade”, para alterar a vida da sociedade em seu conjunto. Há efetivamente um sentimento de esperança no ar, esperança de mudança, e uma confiança difusa de que o que se passou nesses dias foi efetivamente histórico.

Analistas e boa parte da opinião pública doméstica e internacional se surpreenderam com os acontecimentos chilenos. Afinal, o Chile está longe de ser um país desorganizado economicamente, vive anos de crescimento significativo e de melhoria de diversos índices que qualificam sua vida social. O Chile está integrado à globalização, o que o torna um dos países mais cosmopolitas do continente. Enfim, números favoráveis não lhe faltam, inclusive no que toca à renda per capita da região, na qual se sobressai com grande distância diante de outros países. Mas então que pasó?

Tanta surpresa talvez venha da crença de que o Chile sempre foi visto nas ciências sociais e no jornalismo, por chilenos e estrangeiros, como um país “modelar”, por seu pioneirismo ou por sua especificidade frente a outros países do continente. Foi assim que, no passado, se falou da “grande democracia” chilena durante a maior parte do século XX, ao passo que os outros países latino-americanos viviam as desventuras do “populismo”.

Mais tarde foi possível ver que a democracia chilena não era tão inclusiva como se imaginava. O Chile aristocratizante sempre foi uma densa sombra sobre a democracia política que lhe dava fama. Foi apenas em 1958, depois de reformas eleitorais importantes, que o grau de participação aumentou. Entretanto, em pouco mais de 15 anos, o golpe militar de 1973 colocaria por terra aquela experiência de ampliação da democracia chilena. Ela ruiria diante de uma polarização irredutível que castigaria o país por outros longos 15 anos.

Contrapondo-se à imagem da “grande democracia”, foi surpreendente notar que a ditadura de Pinochet encontrou apoio significativo durante sua vigência. Surpreendeu porque a “refundação” da sociedade chilena, sustentada por um projeto econômico neoliberal, aparecia em combinação perfeita com a ditadura de Pinochet que, baseado em sua estrita autoridade, funcionou sem ordem constitucional até o plebiscito que daria ao país a Constituição de 1980, ainda vigente. Foi durante esse regime, quase dois anos depois do golpe, que começaram as privatizações da educação, da saúde e da previdência, acompanhadas por uma abertura integral da economia. O único setor que se manteve estatizado foi a exploração do cobre, principal riqueza do país. Nascia aí o “modelo chileno dos Chicago boys”, outra imagem modelar que iria perdurar no tempo, no país e fora dele.

Uma revisão desse período não tardou a ser feita. O período Pinochet não pode, em absoluto, ser visto como um momento tranquilo e feliz do país. Nele emergiram diversas crises sociais graves, em especial quando da implantação do novo modelo. Com ele vieram a quebra de empresas e o desemprego massivo. O que provocou imagens de desolação, com jovens “pateando piedras” pelas cidades mais importantes do país, algo imortalizado na canção da banda de rock Los Prisioneros, no início dos anos 80. Foi também o período do chamado “segundo exilio” chileno, um exilio econômico, já que o primeiro havia sido político, nos meses e anos que se seguiram ao golpe de 1973.

A manutenção da estatização do cobre manchava a natureza do modelo que tinha como centro o afastamento integral do Estado da vida econômica. A persistência da repressão política do regime comprometia, de alguma forma, sua fachada “liberal” perante o mundo. Para o sociólogo chileno Eugenio Tironi, o liberalismo realmente existente no Chile guardava a mesma relação de antagonismo com a liberdade que o socialismo estatizado da ex-URSS.

O fato é que o modelo neoliberal chileno deixava muitas zonas cinzentas e muitos silêncios para trás. A derrota de Pinochet no plebiscito de 1988 recolocaria as coisas em novos patamares. A partir da vitória da Concertación (uma coalizão de centro-esquerda) na primeira eleição presidencial pós-Pinochet, governos democratizadores se sucederiam por mais 20 anos.

Sem confrontar o modelo privatizador que havia sido implantado, a Concertación acabou por consagrar o modelo neoliberal. O êxito dos governos concertacionistas, com a integração do país à globalização, deu o suporte para uma nova etapa de sucesso relativo da economia, melhorias nos aspectos sociais, avanços na educação, na inovação e na competitividade do país. Contudo, o êxito econômico não alterou a sensação de que se vivia num “estado de mal-estar social”, com salários e pensões ao nível latino-americano e custos de bens e serviços ao nível dos europeus ou norte-americanos.

A notável modernização do país, atestada em números, como notável também é a sofisticação e até o luxo das estações do Metrô de Santiago em bairros pobres – quase todas destruídas, total ou parcialmente – compõem o cenário de um país dividido. Sinais materiais de modernização em contraposição às carências domesticas cotidianas, às expectativas de futuro dos jovens em situação de ameaça, com a recorrente elevação dos custos de educação, além do nível das pensões dos mais velhos frente ao que trabalharam e contribuíram durante toda a vida, tudo isso formou um “caldo de cultura” de raiva diante da flagrante desigualdade e de medo da regressão ao status quo anterior, vivenciado nos anos de crise, quando se implantou o modelo.

O Chile que explodiu nada mais expressa do que a reação a décadas de “estado de mal-estar social”. Os termos em que se deu tal explosão, com sua violência costumeira, agora triplicada, confirma o paradoxo de uma democracia ainda sustentada numa ordem político-jurídica (a da Constituição de 1980) que carece de legitimidade.

Os “modelos” que foram cultivados sobre o Chile em sua trajetória histórica estão agora todos em xeque, e, nas ruas, o povo declara que quer vê-los superados. Ao que parece, não haverá volta atrás, a história voltou a pulsar no Chile e está aberta!

 


Mario Vargas Llosa: O enigma chileno

Diferente das outras revoluções ao redor do mundo, no Chile, a falha está na falta de igualdade de oportunidades e mobilidade social

Em meio a esta catastrófica quinzena para a América Latina – derrota de Mauricio Macri e retorno do peronismo com Cristina Kirchner, na Argentina, fraude escandalosa nas eleições bolivianas que permitirá ao demagogo Evo Morales eternizar-se no poder e agitações revolucionárias dos indígenas no Equador – há um fato misterioso e surpreendente que me recuso a relacionar aos antes mencionados: a violenta explosão social no Chile contra o aumento das passagens de metrô, com saques e depredações, 20 mortos, milhares de presos e, por fim, manifestação de um milhão de pessoas nas ruas contra o governo de Sebastián Piñera.

Por que misterioso e surpreendente? Por uma razão muito objetiva: o Chile é o único país latino-americano que travou uma batalha eficaz contra o subdesenvolvimento e cresceu de maneira admirável nos últimos anos. Embora eu saiba que os relatórios internacionais não comovem ninguém, lembremos que a renda per capita chilena é de US$ 15 mil anuais (e o poder de compra é de US$ 23 mil, de acordo com organizações como o Banco Mundial).

O Chile acabou com a pobreza extrema, e em nenhuma outra nação latino-americana tantos setores populares passaram a fazer parte da classe média. O país desfruta de pleno emprego e de investimentos estrangeiros e o notável desenvolvimento de seu empresariado fez com que seu padrão de vida aumentasse rapidamente, deixando o restante do continente para trás.

No ano passado, viajei pelo interior chileno e fiquei impressionado ao ver o progresso que se manifestava por toda parte: os povoados esquecidos de 30 anos atrás são hoje cidades prósperas e modernas, com qualidade de vida muito alta, frente aos padrões do terceiro mundo.

É por isso que o Chile quase deixou de ser um país subdesenvolvido: está muito mais próximo do primeiro mundo que do terceiro. Isso não se deve à feroz ditadura do general Augusto Pinochet. Deve-se ao resultado do referendo de 31 anos atrás, com o qual o povo chileno pôs fim à ditadura (e no qual, aliás, Piñera fez campanha contra Pinochet), e ao consenso entre esquerda e direita em manter a política econômica que trouxe um progresso gigantesco para o país.

Em 29 anos de democracia, a direita governou apenas cinco e a esquerda – quer dizer, a Concertación – 24 anos. Não seria impróprio afirmar, portanto, que a esquerda contribuiu mais do que ninguém para essa política – de defesa da propriedade e das empresas privadas, de incentivo aos investimentos estrangeiros, de integração do país aos mercados mundiais e, é claro, de eleições livres e liberdade de expressão – que propiciou o extraordinário desenvolvimento do país. Um progresso de verdade, não apenas econômico, mas também político e social.

Como explicar o que aconteceu? Para tanto, precisamos dissociar os últimos acontecimentos chilenos da revolta camponesa equatoriana e dos distúrbios bolivianos ocasionados pela fraude eleitoral. A que comparar a explosão chilena, então? Ao movimento dos coletes amarelos na França e ao mal-estar generalizado na Europa, os quais denunciam que a globalização aumentou as diferenças entre pobres e ricos de maneira vertiginosa e exigem uma ação estatal para detê-la.
É uma mobilização de classe média, como a que agita grande parte da Europa e tem pouco ou nada a ver com as explosões latino-americanas daqueles que se sentem excluídos do sistema. No Chile, ninguém está excluído do sistema, embora a disparidade entre quem já tem e quem está começando a ter alguma coisa seja grande, é claro. Mas essa distância se reduziu bastante nos últimos anos.

Falhas
O que falhou, então? Creio que foi um aspecto fundamental do desenvolvimento democrático liberal: a igualdade de oportunidades, a mobilidade social. Estas últimas existem no Chile, mas não de maneira tão eficaz a ponto de reduzir a impaciência, perfeitamente compreensível, daqueles que se tornaram parte da classe média e aspiram progredir cada vez mais graças a seus esforços.

Ainda não existe uma educação pública de primeiro nível, nem uma saúde que consiga competir com a privada, nem aposentadorias que cresçam no ritmo dos padrões de vida. Não é um problema chileno, é algo que o Chile compartilha com os países mais avançados do mundo livre.

A sociedade aceita diferenças econômicas, diferentes níveis de vida, somente quando todos têm a sensação de que o sistema, justamente por ser aberto, permite que cada geração tenha um notável progresso individual e familiar, ou seja, que o sucesso – ou o fracasso – esteja no destino de todos. E que isso se deva ao esforço e à contribuição da sociedade como um todo, não ao privilégio de uma pequena minoria.

Esta é, provavelmente, a questão não resolvida do progresso chileno, como argumentou, em um ensaio muito inteligente, o colombiano Carlos Granés, de cujas opiniões compartilho, em grande medida.

Nesta crise, a obrigação do governo chileno não é, portanto, recuar em suas políticas econômicas, como pedem alguns loucos que querem que o Chile retroceda até se tornar uma segunda Venezuela, mas completá-las e fortalecê-las com reformas na educação pública, na saúde e nas aposentadorias, para dar à maior parte da população chilena – que nunca esteve melhor do que agora ao longo de toda a sua história – a sensação de que o desenvolvimento abrange também a igualdade de oportunidades, indispensável a um país que rejeitou o autoritarismo e escolheu a legalidade e a liberdade. A justiça deve estar no coração da democracia e todos devem sentir que a sociedade livre premia o esforço, e não as conexões e os apadrinhamentos.

O segundo homem da “revolução venezuelana”, o tenente Diosdado Cabello, teve a desfaçatez de dizer que todas as mobilizações e protestos latino-americanos se devem a um “terremoto chavista” que está abalando o continente. Parece não ter conhecimento do fato de que 4,5 milhões de venezuelanos fugiram de seu país para não morrer de fome, porque, na Venezuela socialista dos dias de hoje, só comem aqueles que estão no poder e seus companheiros, ou seja, aqueles que roubam, traficam e gozam dos privilégios típicos que as ditaduras da extrema esquerda (e, muitas vezes, da direita) concedem a seus súditos submissos.

Não é impossível que agitadores venezuelanos, enviados por Maduro, tenham turvado e agravado as reivindicações dos indígenas equatorianos e até ajudado Cristina Kirchner a retornar ao poder, meio oculta sob o guarda-chuva do presidente Fernández. Mas, no Chile, está claro que não. É de se imaginar que a cúpula venezuelana esteja comemorando com champanhe francês as dores de cabeça do governo de Piñera.

Mas é inconcebível que a Venezuela seja o motor da revolta, pois foram os garotos que queimaram 29 estações do metrô de Santiago e defenderam o socialismo no século 21. O paradoxo é que essas crianças nem pagam a passagem do metrô: a carteira de estudante os isenta desse trâmite. / Tradução de Renato Prelorentzou

*É prêmio Nobel de Literatura


O Globo: 'Maior marcha do Chile' reúne mais de um milhão de pessoas em Santiago por reformas sociais

SANTIAGO - Enormes multidões tomam as ruas de diversas cidades chilenas nesta sexta-feira, na manifestação que foi apelidada de “a maior marcha do Chile” , após sete dias de tensões provocadas por protestos que levaram o presidente Sebastián Piñera a decretar estado de emergência no último sábado, militarizando a segurança pública e impondo toque de recolher em várias cidades. Inicialmente motivados por um aumento da passagem do metrô de Santiago , os protestos foram engrossados por demandas mais amplas, incluindo reformas nos sistemas de aposentadoria, educação e saúde.

Na capital, o ato, que foi convocado pela internet com a hashtag #MarchaMasGrandedeChile e acontece sem uma liderança clara, já leva mais de um milhão de pessoas à Praça Itália, segundo cálculos da polícia. Os números são os maiores já registrados em uma manifestação no país. A região metropolitana de Santiago tem 6,3 milhões de habitantes, um terço da população chilena de 18 milhões.

A intendente da região de Santiago, Karla Rubilar, indicada pelo Executivo, mas que recentemente deixou a Renovação Nacional, partido de Piñera, disse em sua conta no Twitter: "O Chile vive hoje um dia histórico. A região metropolitana é protagonista de uma marcha pacífica de cerca de 1 milhão de pessoas que representam o sonho de um novo Chile, de maneira transversal e sem distinção. Mais diálogo e marchas pacíficas exige o nosso país". Ela acrescentou, em outra mensagem, que "o que funcionou há 30 anos já não funciona mais, temos que estar à altura".
Protestos pacíficos acontecem em dezenas de outras cidades, incluindo o balneário de Viña del Mar e Punta Arenas, última cidade da Patagônia chilena.

Os manifestantes caminham pelas ruas, cantando músicas da resistência à ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) e portando bandeiras e faixas. As palavras de ordem incluem "O Chile despertou!" e "O povo unido, jamais será vencido". A ausência de lideranças impede uma pauta totalmente definida, mas eles exigem melhores serviços públicos e reformas econômicas, além da apuração de abusos cometidos pela polícia e pelas Forças Armadas desde que o estado de emergência passou a vigorar.

— Provavelmente será a maior manifestação de todos os tempos. Pedimos justiça, honestidade, ética no governo, não é que desejemos socialismo, comunismo. Queremos menos empresas privadas, mais Estado. As propostas que ele [Piñera] fez vão arruinar o orçamento para subsidiar empresas privadas — disse à AFP Francisco Anguitar, 38 anos, desenvolvedor de programas de computadores, referindo-se à "agenda social" lançada pelo presidente.

Famílias inteiras, incluindo muitas crianças, estavam presentes nos protestos.

— Aqui no Chile, se você não tem dinheiro, não pode optar por nada de qualidade, saúde ou educação. Eu expliquei isso aos meus filhos e é por isso que viemos hoje — disse à Reuters Agustín Valenzuela, 44 anos, na marcha de Santiago. — Tudo aqui é privatizado, é um sistema que enriquece às custas de todos nós. Existem muitas injustiças, são baixas pensões, problemas de saúde, tudo é um negócio.

Na terça-feira, Piñera anunciou na TV aumentos para diferentes categorias de pensões, subsídios aos gastos com saúde e um aumento no imposto de renda de quem ganha mais do que o equivalente a R$ 44 mil. A agenda foi criticada por manifestantes e acadêmicos, que defendem uma reforma da Constituição herdada da ditadura, que passou para o setor privado a administração de boa parte dos serviços públicos, incluindo as aposentadorias. Em sua passagem pelo palácio presidencial de La Moneda, milhares de pessoas insultaram o presidente e os soldados que cercam a área.

— Nosso modelo, que não é exemplo pra ninguém, fracassou. É um modelo econômico muito neoliberal, com salários baixos para os trabalhadores, aposentadorias que não são dignas. Imagine que sete famílias controlam nossa pesca, são muitos abusos que as pessoas não querem suportar mais — disse ao GLOBO a deputada pelo Partido Socialista Maya Fernández Allende, neta de Salvador Allende, o presidente deposto no golpe de 1973.

Na noite desta sexta-feira, completam-se sete dias desde que os protestos, que começaram no início do mês contra o aumento de 30 pesos (R$ 0,17) no metrô, ganharam uma nova força, até se transformarem na maior mobilização popular no Chile desde o fim da ditadura. O governo de Piñera decretou estado de emergência na madrugada de sábado, dia 19, depois que estações de metrô foram incendiadas e prédios públicos, atacados.

A Junta de Defesa Nacional encarregada da segurança de Santiago decretou no começo da tarde desta sexta-feira o sétimo toque de recolher consecutivo à noite, mas determinou que ele começará uma hora mais tarde, a partir das 23h, até as 4h de sábado. As cidades de Valdivia, Tocopila e Mejillones anularam seus toques de recolher, apesar disso, tornando-se as três primeiras comunas chilenas a retirar a restrição de circulação.

Em Valparaíso, sede do Legislativo, protestos no começo da tarde deixaram dois policiais feridos e levaram Iván Flores, presidente da Câmara, a suspender todas as atividades marcadas no Congresso Nacional, em caráter, segundo ele, “preventivo”. Fontes do Congresso ouvidas pelo GLOBO disseram que Piñera deve anunciar uma reforma no ministério do fim de semana, mas que setores mais duros de sua aliança se opõem a reformas mais profundas do que as que já foram anunciadas.

Mais cedo, motoristas e caminhoneiros engarrafaram rodovias que ligam Santiago ao restante do país, para pedir uma redução nas elevadas taxas de pedágio, congestionando as vias na hora do rush.

Pesquisa de opinião
Uma pesquisa realizada pelo instuto Ipsos divulgada nesta sexta-feira apurou que 57% da população chilena entende que os protestos são o começo de uma mudança maior que acontecerá no Chile em médio prazo, e que 30% acreditam que o processo de mudanças já começou, enquanto só 10% acham que não haverá mudanças significativas no futuro do país.

Para 67% da população, os protestos acontecem porque “as pessoas se cansaram do custo de vida, das altas de preços, do nível dos salários, da qualidade da saúde, do tamanho das aposentadorias”. Em seguida, 16% entendem que a classe política não foi capaz de ouvir às demandas populares. Só 10% acham que os protestos foram uma oportunidade para a violência e o vandalismo. Ainda assim, 61% acharam o toque de recolher decretado por Piñera como justificado, enquanto 34% discordaram da medida. (Colaborou Janaína Figueiredo )


Roberto Simon: Chile é o teste para a região

Democracia chilena oferecerá respostas à desilusão da massa?

Apesar da Cordilheira dos Andes e dos níveis de renda mais elevados, o Chile não está isolado e os eventos dos últimos dias —da explosão das manifestações ao pacote de medidas proposto por Sebastián Piñera— tocam em vários desafios comuns a outros países da América Latina. Um ponto, porém, merece atenção especial: se nem a mais avançada democracia latino-americana conseguir dar conta das demandas criadas por uma nova classe média, cada vez mais desiludida, é difícil imaginar quem, na região, consiga.

Nos primeiros dias da crise, parecia que a corte de Maria Antonieta havia se instalado em Santiago. Na quinta-feira (17), o presidente Piñera apareceu no Financial Times dizendo que o Chile era um “oásis” numa América Latina em convulsão. 24 horas depois, em meio a confrontos no centro de Santiago, seu gabinete, no Palácio la Moneda, cheirava a gás lacrimogêneo e o sistema de transportes da capital havia sido paralisado.

Jornalistas estranharam a ausência de Piñera em uma entrevista coletiva sobre os distúrbios. Uma foto nas redes sociais revelou seu paradeiro: uma pizzaria gourmet, celebrando o aniversário da neta. Quando ficou claro que a suspensão da alta no preço do metrô seria insuficiente para desarmar os protestos, Piñera declarou que o Chile estava “em guerra”. O general a cargo do estado de emergência discordou: “sou um homem feliz, não estou em guerra contra ninguém”.

O entourage de Piñera também errava pelos jardins de Versalhes. Um de seus ministros sugeriu que, para evitar os preços mais altos do metrô na hora do rush, trabalhadores deveriam acordar mais cedo. Os manifestantes eram “uns alienígenas”, desabafou a primeira-dama em um áudio de WhatsApp, vazado à imprensa.

Na visão dos milhares nas ruas, Piñera —um dos homens mais ricos do país— e seu gabinete de gente bem vestida são a imagem perfeita de uma elite chilena que foi, de longe, a maior beneficiária do progresso das últimas décadas. Aos estudantes endividados, às famílias com renda estagnada ou aos aposentados desamparados, o Chile do 1% mais rico só existe no Instagram, junto com a crescente percepção de que eles nunca chegarão naquele país.

Na terça-feira, com a contagem de mortos em dois dígitos, Piñera iniciou uma guinada política. O presidente convidou todos os partidos ao La Moneda para discutir uma solução de consenso. No Twitter, disse que “acolhia com humildade” as demandas nas ruas, pediu desculpas e lançou uma “Nova Agenda Social”.

O pacote de medidas sociais custará cerca de R$ 5 bilhões, parcialmente financiados com um aumento de cinco pontos no imposto de renda dos mais ricos. O dinheiro subsidiará aposentadorias, gastos de saúde e contas de luz. Discretamente, o governo também sinaliza que suas propostas no Congresso —incluindo uma lei tributária generosa com acionistas e a reversão de parte dos direitos trabalhistas ampliados na era Michelle— são coisas do passado.

A incapacidade inicial do governo agravou a crise, ao custo de vidas. E a “agenda social” de Piñera oferece muito menos do que pede a oposição moderada (considerando que a centro-esquerda chilena, traduzida à realidade brasileira, seria considerada centro-direita). Mas a democracia chilena parece, finalmente, estar oferecendo respostas concretas às demandas da classe média insatisfeita.

É difícil imaginar uma reação política similar em outros cantos da região, incluindo no Brasil de hoje.

*Roberto Simon, é diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.


Sergio Fausto: Sobre a admiração dos Bolsonaros por Pinochet

O regime do general chileno foi não apenas uma ditadura, mas das mais brutais da região

Os presidentes da Câmara e do Senado chilenos, Ivan Flores e Jaime Quintana, recusaram convite para comparecer a jantar com Jair Bolsonaro organizado pelo presidente Sebastián Piñera. Incivilidade? De modo algum. Bolsonaro jamais poupou elogios ao ditador Augusto Pinochet. Razão de sobra para não comparecerem ao encontro.

Em sua recente visita a Santiago, o presidente brasileiro mostrou-se mais cauteloso, disse que não estava ali para discutir Pinochet, mas não perdeu a ocasião de uma vez mais pôr em dúvida que no Cone Sul (Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai e Paraguai) tenha havido uma série de regimes ditatoriais liderados por militares nas décadas de 1960 a 1980. Falsificação histórica comparável à de chamar democrática a Venezuela chavista.

O regime de Pinochet foi não apenas uma ditadura, mas uma das mais brutais da região. Por quase duas décadas manteve fechado o Congresso, banidos todos os partidos políticos, proscritos todos os sindicatos de oposição, controlado o Poder Judiciário e a imprensa. Pinochet presidiu o Chile sem jamais ser submetido ao teste das urnas. Quando teve de enfrentá-lo, no plebiscito de 1988, o povo chileno disse-lhe não e a ditadura viu-se obrigada a reconhecer que havia chegado ao fim.

Depois do retorno do Chile à democracia, duas comissões – uma presidida por um respeitado jurista e político de centro, Raúl Retting, e outra pelo então bispo auxiliar emérito da Arquidiocese de Santiago, Sergio Valech – deram números tão precisos quanto possível à sistemática violação de direitos humanos durante a ditadura pinochetista: cerca de 30 mil pessoas presas e submetidas a sevícias de toda sorte e 3 mil mortas ou desaparecidas em centenas de centros clandestinos de detenção e tortura.

A matança começou logo após o golpe de 11 de setembro de 1973, com a decretação do “estado de guerra” e a organização das chamadas caravanas de la muerte. Sob o comando do general Sergio Stark, destacamentos militares puseram em marcha a execução sumária de uma centena de líderes políticos e sindicais ligados ao governo deposto de Salvador Allende. Depoimentos feitos anos mais tardes por alguns dos participantes relatam fuzilamentos seguidos de esquartejamento, com requintes de crueldade, e desaparição dos corpos.

Milhares de pessoas foram feitas prisioneiras já nos primeiros dias. À falta de infraestrutura, improvisaram-se instalações como o Estádio Nacional. Ali mataram em 16 de setembro de 1973 Victor Jara, cantor popular, com 44 tiros, não sem antes lhe terem quebrado os dedos das mãos a coronhadas. Em 2008 a Suprema Corte de Justiça condenou o general Stark a seis anos de prisão. Já os responsáveis pela morte de Victor Jara receberam pena de 15 anos, em sentença da Corte de Apelações de Santiago, em 2018.

À selvageria inicial seguiu-se a organização de um aparato dedicado à supressão de toda e qualquer oposição à ditadura de Pinochet. Em 1974 criou-se a Dirección de Inteligencia Nacional (Dina), a polícia política do regime, contra o voto de um único integrante da Junta Militar. Chefe dos Carabineiros, a polícia nacional chilena, o general Germán Campos se opôs à institucionalização do terrorismo de Estado, o que lhe custou o cargo.

O longo braço da Dina ultrapassou as fronteiras do Chile. Em setembro de 1974 seus agentes fizeram explodir em Buenos Aires o carro dirigido pelo antecessor de Pinochet no comando do Exército, o general Carlos Pras. Em 21 de setembro de 1976, em plena capital dos EUA, agentes da polícia política mandaram pelos ares o veículo de Orlando Letelier, ex-embaixador chileno em Washington. Ao matá-los a Dina cumpria o desígnio de Pinochet de eliminar fisicamente figuras respeitadas no exterior que denunciavam a sistemática e brutal violação dos direitos humanos no Chile. Pelo assassinato de Pras e Letelier, além de outros inúmeros crimes, o general Manuel Contreras, chefe da Dina, recebeu sentenças de tribunais chilenos que, somadas, o condenaram a pena de reclusão superior a 500 anos.

Para o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, as violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura de Pinochet foram o preço a pagar para livrar o Chile do risco de virar Cuba. A seu ver, valeram a pena. A afirmação revela não só uma assustadora insensibilidade ao sofrimento humano, mas também um raciocínio falacioso. Se a violência do regime Pinochet se justificasse por esse suposto risco, por que teria perdurado quando todos os partidos e grupos de esquerda já estavam desarticulados, quando não destruídos? Por que teriam agentes da Dina, então renomeada Central Nacional de Informaciones, envenenado o ex-presidente Eduardo Frei Montalva, líder democrata-cristão que se opusera a Allende, em assassinato cometido em 1982, quase dez anos depois do golpe de 11 de setembro? Por que vários centros clandestinos de detenção e tortura só foram desativados quando o país retornou à democracia?

A verdade é que o terror estatal posto em funcionamento pela ditadura Pinochet visava a extirpar da memória e remover do horizonte da sociedade chilena quaisquer forças que pudessem pôr em xeque o modelo de país forjado a ferro e fogo pela ditadura, assegurando impunidade pelos crimes cometidos em seu nome. Não se travava só de implantar uma economia de mercado com direitos sociais mínimos, mas também uma ordem política autoritária com as Forçar Armadas à testa e a negação ou severa limitação dos direitos civis e políticos, além de uma cultura domesticada por um catolicismo ultraconservador e repressivo.

Ao se recusarem a comparecer ao jantar com Bolsonaro, os presidentes do Senado e da Câmara honraram as melhores tradições democráticas do Chile, um país que se libertou da ditadura pinochetista e elucidou a verdade de seus crimes, sem revanchismo, mas com coragem.

*Superintendente Executivo da Fundação FHC. Colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP


El País: A regra de sangue da Operação Condor, a aliança mortífera das ditaduras do Cone Sul

A Operação Condor, aliança entre Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia, permitiu a troca de informações e livre trânsito para perseguir, torturar e matar opositores da ditadura no continente

Era novembro de 1978, quando o casal uruguaio de ativistas Lilián Celiberti e Universindo Rodríguez Díaz e seus dois filhos, Camilo, 8 anos, e Francesca, 3 anos, foram sequestrados em Porto Alegre. A família fora raptada em uma operação conjunta entre militares brasileiros e uruguaios que perseguiam os opositores das ditaduras para torturá-los e matá-los. Mas acabou fracassada após ser descoberta por dois jornalistas. O sequestro dos uruguaios, como o caso ficou conhecido, tornou-se, anos mais tarde, o exemplo mais emblemático de como ocorreu, na prática, a Operação Condor.

Na época do sequestro, a Condor era uma aliança secreta formada entre os governos militares do Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai, Chile e Uruguai para perseguir os ativistas contra os regimes militares nesses países. Embora formalizada somente em 25 de novembro de 1975, em Santiago do Chile, essa conexão repressiva já existia desde o início daquela década no continente. O jornalista Luiz Cláudio Cunha, que juntamente com o fotógrafo J.B. Scalco, descobriu o sequestro da família, conta que o caso foi a primeira ação da Condor em território brasileiro. “Até então, não havia nenhuma informação sobre a Condor ter entrado no Brasil”, conta ele, que também é autor do livro Operação Condor: Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008). “O sequestro foi a única ação da operação flagrada enquanto acontecia”.

Cunha narra que chegou ao flagrante por meio de um telefonema anônimo que recebeu na redação da revista Veja em Porto Alegre, onde era diretor. “Era uma sexta-feira, 17 de novembro de 78, e eu recebi um telefonema de São Paulo, de uma pessoa que não se identificou, dizendo o nome de quatro pessoas e um endereço”, conta o jornalista. “Eu perguntei se eles estavam desaparecidos e me disseram “‘não, estão detenidos [detidos, em espanhol]”. Cunha afirma que chegou ao endereço e fora recebido por Lilián Celiberti, com quem começou a falar em espanhol, e logo duas pistolas apareceram apontadas para sua cabeça. “Me mandaram entrar, e como eu falei em espanhol, acharam que eu era do Uruguai”, afirma. Os militares buscavam por Hugo Cores, um dos principais ativistas uruguaios e alvo da Operação Condor. Ao se identificar como jornalista, e mostrar suas credenciais, Cunha acabou liberado pelos militares e logo se pôs a escrever tudo o que tinha visto.

Embora o jornalista tenha ido ao apartamento da família no dia 17 de novembro, já fazia uma semana que Lilián havia sido sequestrada. E como o caso acabou tornando-se público após a publicação da reportagem, Lílian e Universindo foram torturados e presos, mas não foram mortos. “A regra de sangue da Condor era identificar o inimigo, localizar, mandar o comando para pegar, sequestrar, torturar, extrair as informações, matar e desaparecer com o corpo”, diz Cunha. “No caso de Porto Alegre, como aparecem jornalistas no meio da operação tiveram que abortá-la e não puderam matar os sequestrados. Dali em diante, eles não puderam matar a Lílian e o Universindo, porque virou um escândalo internacional”.

Para que a Condor pudesse alcançar seus objetivos, um dos acordos era o de livre trânsito dos militares, que podiam atravessar as fronteiras sem mandado judicial ou ordem da Justiça, e com anuência dos países que faziam parte do pacto. Além disso, a operação contava com apoio e suporte dos Estados Unidos que, embora não tivessem participação direta nas ações, sabiam que elas existiam. “Os Estados Unidos também forneceram, através da CIA, um sistema de comunicação sofisticado que era utilizado entre todos os países chamado Condortel”, conta Cunha.

A revelação do sequestro e da ação de militares uruguaios em solo brasileiro feita por Cunha e Scalco não jogaram luz, porém, na Operação Condor naquele momento. “Nunca ninguém soube da existência da Condor, que foi uma organização que só apareceu a partir da liberação dos documentos da CIA durante o Governo Clinton nos Estados Unidos [1993-2001]”, explica Cunha. Os documentos liberados pelos Estados Unidos atestando a existência da Condor são mais uma peça que se soma à história das ditaduras tanto no Brasil, como em outros países da América do Sul. E esse quebra-cabeça contraria, obviamente, a tese proferida pelo presidente Jair Bolsonaro de que não houve ditadura no Brasil.

“A regra de sangue da Condor era identificar o inimigo, localizar, mandar o comando para pegar, sequestrar, torturar, extrair as informações, matar e desaparecer com o corpo”

O fim da Condor
A Operação Condor, cujo nome rememora a ave presente no brasão oficial do Chile, terminou no início dos anos 80, juntamente com o arrefecimento das ditaduras no continente. Antes disso, porém, deu um de seus suspiros finais no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Era março de 1980 quando os ativistas Horacio Domingo Campiglia e Monica Susana, do Movimento Peronista Montoneros, que mantinha resistência armada contra a ditadura militar argentina, aterrissaram no Rio para participar de uma convenção. Ao descerem do avião, já havia um corredor polonês de oficiais à espera dos do casal. “Quando eles desceram da escada do avião, perceberam que seriam presos e logo começaram a gritar seus nomes e de onde eram”, conta o jornalista Luiz Cunha.

O desfecho dessa ação realizada por militares argentinos em solo brasileiro é mais amargo do que o sequestro dos uruguaios: Monica e Horacio foram levados naquele mesmo dia para a Argentina onde foram torturados e mortos. Seus corpos nunca foram encontrados. “Na véspera, havia descido um avião no Galeão, modelo Hércules, com uma tropa armada, uniformizada, do exército argentino, que só poderia descer com autorização da aeronáutica”, diz Cunha. “Ou seja, aquela ação era no âmbito da operação repressiva da Condor”.

Foi a própria Argentina que, anos mais tarde, seria o primeiro país a condenar formalmente os chefes da Operação Condor. O longuíssimo julgamento com 105 vítimas e 18 réus teve início em 1999 com cinco casos e foi crescendo gradualmente, durando mais de uma década. Em 2016, um tribunal federal condenou por “associação ilícita no âmbito da Operação Condor” alguns dos principais acusados a penas entre 12 e 25 anos.

Aqui no Brasil, o Estado do Rio Grande do Sul reconheceu oficialmente, em 1991, o sequestro dos uruguaios e os indenizou. Um ano depois, o então presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle fez o mesmo. Lílián Celiberti ainda hoje é ativista política no Uruguai. Universindo Díaz faleceu de câncer em 2012, aos 60 anos.


Dorrit Harazim: O Chile errado de Bolsonaro

Um primeiro relatório concluiu que 2.296 pessoas haviam sido assassinadas ou ‘desaparecidas’ em mãos de agentes do regime militar no país

O presidente Jair Bolsonaro pisou em solo chileno esta semana ofendendo de uma só tacada a memória do país anfitrião, a história do Cone Sul e o julgamento universal de humanidade. Só não ofendeu também a própria biografia porque desatinos repetidos não contam.

“Essa questão da dita ditadura aqui do Cone Sul tem que ser lavada à luz da verdade... Tem gente que gosta dele [do ditador Augusto Pinochet], outros que não gostam”, declarou ao desembarcar em Santiago para participar da gênese de um novo bloco regional de perfil direitista, o Foro para o Progresso e Desenvolvimento da América Latina.

Era uma defesa aberta do comentário pornográfico feito pouco antes por seu ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni: “No período Pinochet”, sustentara Lorenzoni em entrevista à Rádio Gaúcha, “o Chile teve de dar um banho de sangue. Triste. Mas as bases macroeconômicas fixadas naquele governo...” Traduzindo: há banhos de sangue que vêm para o bem de reformas econômicas.

Por uma amarga coincidência de calendário, no dia da chegada dos brasileiros uma notícia aguardada há décadas agitava a vida nacional chilena: o julgamento de um crime particularmente horrendo da era Pinochet (1973-1990) — o “Caso Quemados” — chegava ao fim com a condenação de 11 militares a penas entre três e dez anos de prisão. Mesmo para o padrão de brutalidade do regime da época, a ação de uma patrulha militar sempre fora mal digerida, por simpatizantes de Pinochet. Ela ocorreu numa tarde de julho de 1986, quando dois jovens que participavam de um protesto foram surrados, encharcados com gasolina, queimados vivos e despejados na periferia. Por uma patrulha militar. Moradores que encontraram os corpos contorcidos conseguiram salvar Quintana, que tinha 18 anos e está desfigurada até hoje. Rojas, de 19 anos, não resistiu.

Triste, diria Onyx Lorenzoni. É preciso lavar os fatos à luz da verdade, contestaria Jair Bolsonaro.

Essa lavagem da história já foi feita. O democrata-cristão e veterano conservador Patricio Aylwin tinha 71 anos em 1990 quando assumiu como primeiro presidente da redemocratização chilena após 17 anos de regime militar. Ele foi uma espécie de Tancredo Neves, guardadas as características dos dois processos políticos. “Uma transição bem-sucedida não é possível sem a reconstituição da verdade”, sustentava até morrer, aos 92 anos.

Em 1991, ao receber o relatório de 1.350 páginas encomendado à Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação (Comissão Rettig), criada por ele para apurar denúncias de assassinatos, desaparecimentos e tortura, Aylwin foi à televisão em cadeia nacional. “O Estado e a sociedade como um todo são responsáveis pela ação ou pela omissão. Por isso, ouso assumir a responsabilidade pela nação inteira e, em seu nome, pedir perdão aos parentes das vítimas..”, disse ele, com voz embargada.

Aquele primeiro relatório elaborado por juristas e técnicos forenses ao longo de nove meses concluíra que 2.296 pessoas haviam sido assassinadas ou “desaparecidas” em mãos de agentes do regime militar. Em 2003, uma nova Comissão da Verdade sobre Prisão Política e Tortura (Comissão Valech), criada pelo ex-presidente Ricardo Lagos, listou 28.450 casos qualificados como vítimas oficiais de detenção ilegal, tortura, execução ou desaparecimento. E, oito anos atrás, o presidente Piñera, então em seu primeiro mandato, recebeu da mesma comissão um rol contendo 32 mil novas denúncias. Ou seja, não tem faltado luz à verdade.

O Chile tem, sem dúvida, muito a festejar — começando pelo Produto Interno Bruto que em 2018 acusou sua maior expansão dos últimos cinco anos. Mas convém não esquecer que Augusto Pinochet foi alvo de uma investigação também de suas finanças privadas. Ela durou nove anos. Segundo levantamento encomendado pela Corte Suprema do Chile, o ditador acumulara US$ 21 milhões ao morrer aos 91 anos. Apenas US$ 3 milhões desta fortuna podiam ser atribuídos a soldos. Ainda assim escapou de uma condenação por enriquecimento ilícito. Morreu em prisão domiciliar, condenado por violação de direitos humanos.

Não espanta, portanto, que os presidentes da Câmara e do Senado do Chile tenham se recusado a participar do almoço oferecido em homenagem a Bolsonaro por Sebastián Piñera. Eles conhecem a verdade. E respeitam a memória do país.


Clóvis Rossi: Chile, o que sobrou foi só o banho de sangue

Democracia, não a ditadura, deu estabilidade ao Chile

Onyx Lorenzoni, o chefe da Casa Civil de Jair Bolsonaro, festeja o fato de o ditador Augusto Pinochet ter lavado com sangue as ruas de Santiago (o que é verdade), mas ter promovido o sucesso econômico que perdura até hoje.

Sou obrigado a republicar aqui texto que saiu em dezembro para demonstrar, com estatísticas, que quem fez do Chile o que é foi a democracia, não a ditadura.

Antes, é sempre preciso deixar claro que, do meu ponto de vista, ditaduras são sempre nefastas, façam o que fizerem, tenham algum sucesso econômico ou sejam um miserável fracasso como é o caso da Venezuela.

Não vale, pois, dizer que Pinochet matou, torturou, exilou, fez desaparecer milhares de pessoas, mas arrumou a economia. Bobagem.

Aos números comparativos que importam:

1 - Crescimento econômico - De 1973, ano do golpe que entronizou Pinochet, a 1988, ano do plebiscito que vetou sua continuidade, o Chile teve um crescimento interessante, de 54,7%.

Mas, na democracia, a partir de 1990 e por um período equivalente, o crescimento foi mais do que o dobro (exatos 110%).

Consequência inevitável: a renda per capita chilena em 1990, na volta à democracia, era igual à do Brasil. Quinze anos, passou a ser 60% maior.

Logo, democracia, 1 x Pinochet, 0.

2 - Desemprego - Depois de um pico de 25% da população economicamente ativa, o desemprego na ditadura girou em torno de 18%, o triplo do que ocorria nos anos 1960.

O desemprego só voltou a patamares mais civilizados com a democracia. Terminou 2018 com 7,3%, menos da metade, portanto, dos trágicos índices do período Pinochet.

Logo, democracia, 2 x Pinochet, 0

3 - Pobreza e desigualdade - Nos anos finais da ditadura, a pobreza afetava quase a metade da população chilena. Com a democracia e o investimento público redirecionado para a área social, foi se reduzindo paulatinamente.

Em 2017, afetava 8,6% da população, um dos registros mais baixos da América Latina.

Já a desigualdade continua a ser uma chaga aberta na sociedade chilena, mas, de todo modo, se reduziu com a democracia. Quando medida pelo coeficiente de Gini (quanto mais perto de 1, maior a desigualdade), passou de 0,46 ao se instalar a ditadura, em 1973, para 0,57 quando a democracia chegou, em 1990.

Só em 2015, voltou aos níveis vigentes antes do golpe (estava então em 0,48).

Logo, democracia, 3 x Pinochet, 0.

4 - Política - Se a ditadura tivesse sido de fato o sucesso em que acreditam Lorenzoni e os Bolsonaros, Pinochet não teria perdido o plebiscito de 1988 sobre sua continuidade ou não. Tinha tudo na mão: absoluto controle dos meios de comunicação, partidos proscritos, opositores perseguidos, mortos, presos ou exilados.

Não obstante, 54,71% dos chilenos preferiram vetar o ditador. No ano seguinte, na eleição presidencial determinada pelo resultado do plebiscito, nova derrota do pinochetismo: ganhou o oposicionista Patricio Aylwin.

Mais: nas três eleições presidenciais seguintes, três novas vitórias dos oposicionistas, com Eduardo Frei (democrata cristão), Ricardo Lagos e Michelle Bachelet (socialistas).

Foi preciso esperar até 2010 para que assumisse um presidente conservador, no caso Sebastián Piñera. Com um detalhe relevante: ele votara pelo não à permanência de Pinochet no plebiscito de 1988.

Só neste quesito, portanto, dá democracia, 5 x Pinochet, 0.

5 - Por fim, reforma da Previdência chilena, a que dá água na boca dos economistas liberais de Bolsonaro. De fato, a reforma feita pela ditadura ajudou a sanear as contas públicas, mas em contrapartida, arruinou as contas privadas (dos aposentados).

O jornal paranaense Gazeta do Povo citou em dezembro estudo da Fundación Sol de 2015 que mostra que quase 91% da população recebia valores inferiores a 150 mil pesos mensais (equivalentes hoje a R$ 851) em um país em que o salário mínimo chegava então a 276 mil pesos (R$ 1.565).

É tão falho o modelo admirado pelos Bolsonaros que até um governo conservador como o de Piñera está propondo modificá-lo, por meio de projeto em tramitação no Congresso.

Posto de outra forma: a tentação da equipe de Bolsonaro é copiar um modelo que está sendo alterado por um motivo bem simples, apontado pela consultoria Eurasia, que não parece fazer parte de alguma conspiração do marxismo cultural: “Amplo consenso sobre a necessidade de incrementar as pensões baixas em meio ao descontentamento do público sugere que a reforma será aprovada” (relatório divulgado em 17 de dezembro).

O que o governo está propondo é criar o que chama de “pilar de solidariedade” para aumentar os fundos para os mais pobres e mudar o sistema de contribuições individuais gerenciadas por entidades privadas.

Os empregadores teriam que contribuir com uma nova taxa (de 4% do salário de seus funcionários), além dos 10% já pagos atualmente. O custo da reforma, calcula a Eurasia, ficará em cerca de US$ 3,5 bilhões (R$ 13,5 bilhões).

Tudo somado, o que ficou foi só o banho de sangue.

*Clóvis Rossi é repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.


O Globo: Atritos acontecem porque alguns não querem largar velha política, diz Bolsonaro

No Chile, presidente não cita diretamente Rodrigo Maia, que o criticou neste sábado, mas fala de desentendimento e defende reforma da Previdência

Janaína Figueiredo

SANTIAGO — Em café da manhã com representantes da Sociedade de Fomento Fabril (Sofofa) do Chile, com a polêmica envolvendo o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), dominando a agenda política local , o presidente Jair Bolsonaro (PSL) assegurou que "os atritos que acontecem no momento, mesmo estando calado fora do Brasil, acontecem na política lá dentro porque alguns, não são todos, não querem largar a velha política".

Bolsonaro tentou transmitir otimismo aos empresários chilenos e em momento algum mencionou especificamente seu conflito com Maia:

— Acredito no Brasil e temos chance, sim, de sair dessa situação que nos encontramos com as reformas e a primeira delas, a mais importante, é essa da Previdência.

Em Brasília, nas últimas horas Maia fez duras críticas a Bolsonaro e questionou sua “falta de compromisso” com a reforma da Previdência. Questionado sobre a declaração de Bolsonaro comparando o episódio a um namoro , Maia reafirmou ter convicção da necessidade da reforma e que Bolsonaro precisa parar de falar contra a reforma.

— Não preciso namorar, conversar, tomar café, eu tenho convicção da matéria. O presidente nunca teve. Que bom que esteja construída essa convicção. Agora, ele precisa ter convicção, precisa parar de falar que ele é contra a reforma da Previdência, isso atrapalha, gera insegurança — disse o presidente da Câmara neste sábado.

Em Santiago, o presidente apostou por um discurso conciliador, mas voltou a atacar o que chama de “velha política”.

— Nós temos que dar certo. Não é um plano meu, é um plano do Brasil. Não temos outra alternativa a não ser fazermos essas reformas... Venho aqui com uma mensagem de fé, esperança, do coração. Podemos sair dessa situação — assegurou Bolsonaro.

Entusiasmado com o passeio que realizou na última sexta-feira no shopping Alto Las Condes, numa região nobre da capital chilena, o presidente mostrou-se de bom humor e fez até uma brincadeira:

— Será que não posso me naturalizar para me candidatar a presidente.

Ao explicar a delicada situação econômica brasileira, Bolsonaro comentou que a dívida do governo federal é de R$ 4 trilhões e que o governo gasta anualmente meio trilhão de reais com juros e encargos da dívida.

— Dada essa situação que nos encontramos é que acreditamos que o Parlamento vai aprovar as reformas. Obviamente com algumas alterações — ampliou o presidente.

Bolsonaro contou aos empresários que “a equipe econômica trabalha numa forma de desburocratizar a economia, desregulamentar muita coisa, tenho dito que na questão trabalhista devemos beirar a informalidade. Nossa mão de obra é uma das mais caras do mundo”.


Le Monde Diplomatique: Brasil, novo laboratório da extrema direita

O modelo neoliberal colocado em prática no Chile após o golpe militar de 1973 nos dá um panorama do que pode ocorrer no Brasil em um futuro governo de Jair Bolsonaro. E isso não é casual

Por Joana Salém e Rejane Hoelever

Ainda impactados pelos resultados eleitorais no Brasil, muitos se perguntam como a avalanche de votos na candidatura de Jair Bolsonaro e do general Hamilton Mourão (PSL) ocorreu e o que exatamente pode acontecer em um governo de extrema direita no país. Ainda estamos longe de ter as respostas, mas as conexões entre seu principal guru econômico, o empresário Paulo Guedes, e a ditadura de Augusto Pinochet no Chile (1973-1990) nos trazem pistas valiosas sobre o modelo subjacente à sua plataforma.

Paulo Roberto Nunes Guedes, de 69 anos, era até há pouco quase desconhecido do público. Embora fosse colunista da revista Época e do Globoe fundador do Instituto Millenium, sua trajetória perfilada pela repórter Malu Gaspar mostrou que Guedes se manteve por décadas isolado do mainstream: rechaçou todos os planos econômicos e ministros da Fazenda que ocuparam a Esplanada nos últimos 35 anos, de José Sarney a Dilma Rousseff.1 Lendo alguns de seus artigos, fica claro o porquê. O economista demonstra aversão ao pacto social expresso na Constituição de 1988, que se interpõe como um obstáculo ao seu projeto político. Para ele, o Brasil sofre de uma “maldição dirigista”, que obstrui o “irreversível processo evolucionário […] rumo à Grande Sociedade Aberta” [sic].2

No Dia dos Trabalhadores de 2017, Guedes escreveu: “a direita hegemônica governou por duas décadas, e a esquerda hegemônica por três, ambas com um modelo econômico dirigista, desastroso”.3 Em sua mente, os trinta anos de democracia brasileira, com Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma, fazem parte da mesma “hegemonia de esquerda”. Diante de tal tábula rasa, não é difícil depreender suas preferências políticas. Se o sistema de direitos sociais garantidos na Constituição de 1988 chegou até o presente, pelo menos no papel, Guedes faz parte do grupo que pretende exterminá-lo, surfando na onda autoritária de Bolsonaro. Isso significa radicalizar a destruição do pacto democrático. Mas como?

De Chicago para o Chile

Guedes doutorou-se em Economia na Universidade de Chicago em 1978, um centro da corrente austro-americana do neoliberalismo, onde figuras como Milton Friedman já eram proeminentes.4 Como lembra o próprio Friedman no livro Liberdade de escolha, eram tempos em que seus “apóstolos” estavam “pregando no deserto”. Forjada em Chicago, a visão econômica extremista de Guedes não encontrou representatividade suficiente no Brasil até agora. Mas o contrário ocorreu no Chile. Primeiro laboratório da “doutrina do choque”, como Naomi Klein5 designou o processo resultante da aliança Friedman-Pinochet, lá os correligionários de Guedes encontraram pares perfeitos para seu plano econômico após 11 de setembro de 1973: o militarismo e o fascismo chilenos prometiam ao mesmo tempo repressão e “inovação”.

Vem da ditadura de Pinochet a inspiração das recentes propostas de Guedes para previdência e educação, alicerçadas na ideia de um “Estado subsidiário”. Antitética em muitos aspectos à Constituição brasileira de 1988, a Constituição chilena de 1980 foi imposta pela ditadura e preservada até hoje. Ao contrário do Estado garantidor de direitos, o Estado subsidiário chileno é desresponsabilizado de promover bem-estar e convertido em fiador da expansão dos mercados, o que ocorre por meio de transferências volumosas de recursos públicos ao setor privado e de um perverso endividamento popular.

Em Chicago, Paulo Guedes doutorou-se com uma tese de 63 páginas datilografadas.6 Seu trabalho, segundo apurou a Folha de S.Paulo, “nunca foi publicado nem teve repercussão no Brasil”,7 o que teria gerado em Guedes um ressentimento com colegas mais destacados. Essa amargura tornou-se pública recentemente, quando ele chamou sua ex-aluna, a economista Elena Landau, de “medíocre”,8 alegando que havia sido reprovada em seu curso de mestrado na PUC-Rio. Elena Landau, nove anos mais jovem que Guedes, foi uma das mais importantes economistas das privatizações de FHC, quando coordenou a venda da Eletrobras nos anos 1990, pela Comissão Nacional de Desestatização. Com o histórico escolar em mãos, Landau desmentiu o antigo desafeto: “Paulo é que era um péssimo professor. Faltava às aulas, não corrigia exercícios”.9

Também desperta suspeitas a forma como o professor Paulo Guedes ingressou na Universidade do Chile, no início dos anos 1980, auge da ditadura, após uma larga onda repressiva que varreu intelectuais críticos. Como mostra Federico Fullgraf,10 as universidades foram vistas pela ditadura chilena como um dos principais “teatros de guerra”, um território a ser retomado do “inimigo marxista”. No lugar dos opositores, foram colocados professores alinhados com o pensamento único que se impôs manu militari no ambiente acadêmico chileno. Desde a década de 1950, Milton Friedman e seus consortes atraíram economistas chilenos para Chicago, buscando reinseri-los em postos acadêmicos nas principais universidades do país. Contudo, foi apenas com Pinochet que a experiência política dos Chicago Boys se consolidou. E Guedes se integrou a esse fluxo.

Junto com ele, o colega e empresário chileno de origem árabe Jorge Constantino Demetrio Selume Zaror, de 67 anos. Ao voltar de Chicago, onde conheceu Guedes, Selume também integrou a cátedra de Economia da Universidade do Chile, mas em poucos anos tornou-se diretor de Orçamento da ditadura Pinochet e dirigiu operações de privatização de empresas estatais, como a Chilectra e a Entel. Simultaneamente, construiu um império financeiro que incluía bancos e propriedades. Entre elas, a fazenda Rupanco, de 47 mil hectares, que havia sido entregue aos trabalhadores pela reforma agrária durante o governo de Salvador Allende, mas em 1979 foi apropriada pelos militares e transferida para a companhia El Cabildo S.A., que mais tarde passou para as mãos do clã de Jorge Selume.11 Segundo Fullgraf, “Selume é uma espécie de porta-voz oficioso do núcleo duro empresarial pinochetista”.12

Foi assim, ocupando o lugar de professores arbitrariamente expulsos de seus cargos pela ditadura, que Guedes abandonou seus empregos parciais na PUC-Rio, no IMPA e na FGV-Rio, recebendo, segundo ele próprio, um “irrecusável” salário de US$ 10 mil. Perguntado sobre seus vínculos com a ditadura chilena, entretanto, tergiversa: fala sobre suas supostas qualidades acadêmicas para ser contratado e menciona um episódio no qual sua sala teria sido inspecionada pela polícia política de Pinochet.13

Aposentadoria privatizada e choque de pobreza

Nos anos em que Guedes viveu no Chile, José Piñera, o mais poderoso Chicago Boy e irmão do atual presidente, Sebastián Piñera, colocava em prática a privatização completa da previdência, decretada pelo ditador Pinochet em 13 de novembro de 1980. Nesse sistema, formado hoje por um oligopólio de seis fundos privados de pensão (AFP), os assalariados são obrigados a entregar 10% do salário para especulação capitalista, sem contribuição patronal. Atualmente, após trinta anos de contribuição, 90% dos chilenos recebem aposentadorias que valem metade do salário mínimo do país, cerca de 154 mil pesos (R$ 821).14 Sintomaticamente, a privatização da previdência excluiu os militares.

Impulsionado por um discurso pró-capitalização que pautou as fracassadas tentativas de reforma da previdência de Michel Temer em 2017, o sistema AFP chileno representa o confisco da aposentadoria de mais de 10 milhões de trabalhadores. Hoje, cinco das seis AFPs existentes administram nada menos que 69,6% do PIB do país e 94,6% das contribuições previdenciárias, tendo acumulado em 2017 lucros de US$ 1,5 milhão por dia, segundo calculou a Fundación Sol.15

O sistema de arrecadação é individualista, não solidário, pois cada trabalhador depende exclusivamente de si mesmo para “incrementar” o valor de sua pensão. Para piorar, os pensionistas ficam suscetíveis à volatilidade do mercado, aprisionados a uma modelagem matemática blindada pelas próprias AFPs. Nos últimos anos, a crise da aposentadoria tem levado a dramáticos números de suicídio de idosos no Chile: quase mil em apenas cinco anos. Desde 2016, a indignação popular contra a previdência privada no Chile ganhou as ruas em gigantescas manifestações, com o movimento #No+AFP.

No Brasil, o projeto que aprofundaria a deterioração da previdência pública foi rechaçado pela população em 2017. Mas a resistência popular foi apenas um dos fatores que obstruiu sua aprovação no governo Temer, que se viu emaranhado com as custosas dinâmicas de chantagens de um sistema partidário corrupto. Não é demais lembrar que o próprio Paulo Guedes é investigado na Operação Greenfield da Polícia Federal, sob suspeita de gestão fraudulenta de sete fundos de pensão, que lhe teria rendido R$ 6 bilhões entre 2009 e 2013. Há indícios de lavagem de dinheiro com uso da empresa HSM Educacional S.A., por meio da qual o anunciado futuro ministro recebeu quantias milionárias por “palestras”.16

A cruzada privatista de Paulo Guedes encontra, de um lado, a resistência das ruas e, do outro, uma máquina emperrada da governabilidade, na qual todos querem participar do butim. Por isso, saudosista de Pinochet, a ele convém que seu “choque de capitalismo”17 se imponha com militarismo. E em benefício próprio.

Clãs neopinochetistas e big data

Em Santiago, o Instituto Millenium possui um irmão ideológico com muito mais influência sobre a política do seu país: o Instituto Libertad y Desarrollo (LyD), um aparelho privado, de caráter empresarial, fundado em 1990 no luxuoso bairro de Las Condes. Organizado por empresários e ministros do alto escalão da ditadura Pinochet, entre eles Hernán Buchi, Carlos F. Cáceres, Cristián Larroulet e Luis Larrain Arroyo, o instituto é reconhecido por sua habilidade de realizar portas giratórias, isto é, quando executivos de grandes corporações entram no governo e consolidam, por dentro do Estado, suas posições no mercado.18

Desse aparelho saíram dez quadros de alta relevância no atual governo de Sebastián Piñera, que recentemente declarou: “no [aspecto] econômico Bolsonaro aponta na direção certa”.19 Não é apenas a família Piñera que vê a onda bolsonarista com bons olhos. Seu concorrente de extrema direita nas eleições chilenas de 2017, José Antonio Kast, é quem mais tem investido na aliança. O empresário de origem alemã obteve 523.213 votos, alcançando o quarto lugar na última corrida presidencial. No dia 18 de outubro, Kast veio ao Rio de Janeiro para encontrar-se com Bolsonaro. Em sua conta do Facebook, publicou uma foto sorridente ao lado do capitão: “Hoje nos reunimos com Jair Messias Bolsonaro e lhe desejamos o maior êxito na eleição. Presenteamo-lo com a camisa do Chile, para que sigamos fortalecendo a relação entre ambos países e juntos construirmos uma aliança que derrote definitivamente a esquerda na América Latina”.20

Além da admiração por Pinochet, Kast e Bolsonaro compartilham uma política de clãs.21 O senador Felipe Kast, sobrinho de José Antonio Kast, concorreu às prévias dentro da coligação na qual triunfou Piñera e foi seu ministro do Planejamento no governo anterior. Na campanha das prévias, Felipe Kast contou com a colaboração especial de Jorge Selume, filho homônimo do empresário que estudou com Guedes, um psicólogo de 37 anos, recentemente nomeado secretário das Comunicações do governo de Piñera. No portfólio de Selume, o filho, há um diploma da Universidade Andrés Bello (que pertence à multinacional Laureate, dirigida por seu pai) e anos de trabalho para a Cambridge Analytica. Não menos importante é o fato de que o psicólogo Selume é dono da Artool, a maior empresa chilena de big data.

Se há indícios de que a campanha de Bolsonaro no Brasil pode ter sido agraciada – como foi a de Donald Trump nos Estados Unidos – com o roubo de milhões de dados pessoais de cidadãos nas redes sociais, entre elas o WhatsApp, e a difusão de fake news em escalas totalmente inéditas, a extrema direita chilena detém todas as ferramentas para reproduzir os mesmos métodos.

Portas giratórias da educação privada

O estreito círculo da extrema direita brasileira e chilena se fecha com o empresário Jorge Selume. Como dissemos, ele foi colega de Paulo Guedes em Chicago nos anos 1970. Nos anos 1980, construiu um império econômico graças à maior operação financeira realizada no Chile até então. Junto a Las Diez Mesquitas, um consórcio de empresários árabes, comprou o Banco Osorno e o vendeu ao Santander em 1985 por US$ 495 milhões.22 Na mesma época, ocupava a Diretoria de Orçamento do regime Pinochet.

Hoje fica cada vez mais claro que educação e cultura são fronteiras prioritárias para a expansão dos negócios neopinochetistas. O psicólogo Jorge Selume, por meio da Artool, criou uma poderosa máquina de comunicação e marketing político. Com ela, em 2016 alavancou a eleição de 46 prefeitos do partido Renovación Nacional com uso de técnicas da Cambridge Analytica. Além disso, entre os principais clientes da Artool estão o Banco de Chile e o Banco Santander, que juntos reúnem pelo menos metade da população com conta bancária no país.23

Enquanto isso, Jorge Selume, o pai, há algum tempo investe no ramo da educação e tornou-se um dos mais influentes executivos da multinacional Laureate, sob suspeitas de fraudes no sistema de acreditação da educação privada.24 No Brasil, a Laureate tem priorizado o ensino a distância. Não por coincidência, Guedes defende um “choque de inclusão digital no ensino básico”, Bolsonaro fala em ensino a distância para crianças e o nome de Stavros Xanthopoylos, diretor de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Educação a Distância, foi cotado para o Ministério da Educação de um futuro governo de extrema direita. Caso a pasta ainda exista.25

 O que nos aguarda?

Em sua primeira entrevista à imprensa internacional após a publicização de sua conexão com Bolsonaro, em novembro de 2017, Guedes afirmou: “Os últimos trinta anos foram um desastre – corrompemos a democracia e estagnamos a economia […]. Deveríamos ter feito o que os Chicago Boys defendiam”.

Questionado por associar-se a um conhecido defensor da ditadura militar brasileira, em meio a um evento organizado pelo banco Crédit Suisse em São Paulo, Paulo Guedes classificou esse tipo de pergunta como um “patrulhamento” e, ao mencionar suas longas conversas com Bolsonaro, repetiu um de seus bordões favoritos: “Quer saber se a ordem está conversando com o progresso?”.26

Não é muito difícil decifrar a mensagem por trás dessas linhas. A primeira vez que a América Latina viu uma união orgânica entre militares e Chicago Boys em um governo foi em 1973 no Chile, um capítulo da história mundial escrito com baldes de sangue. Aos brasileiros resta saber que situação essa perigosa associação ainda pode engendrar.

 

*Joana Salém faz doutorado em História Econômica na USP; Rejane Hoeleveré professora de Ciências Sociais da FGV Rio e faz doutorado em História na UFF.