Chile
A maior onda de protestos em Cuba nos últimos 30 anos
O governo de Cuba enfrenta os maiores protestos populares em 30 anos. O presidente Miguel Díaz-Canel alega que a crise é consequência do embargo econômico promovido pelos Estados Unidos. A falta de vacinas contra a Covid e a escassez de comida e remédios tornam a situação ainda mais complicada na Ilha caribenha.
Para analisar a situação do país e as conquistas históricas da revolução cubana, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira conversa com Gilvan Cavalcanti de Melo, editor do blog Democracia Política e novo Reformismo. Nascido em 5 de dezembro de 1935, em Limoeiro, Pernambuco, Gilvan foi dirigente estudantil na década de 1950 e estudou no Instituto Superior de Ciências Sociais, em Moscou. Com o golpe militar de 1964, esteve preso, em Recife, e ficou exilado por anos no Chile e em Cuba.
Ouça o podcast!
As conquistas da revolução – principalmente nas áreas de educação e saúde – e o papel dos partidos e movimentos mais à esquerda do mundo em relação à Cuba estão entre temas do programa. O episódio conta com áudios do Jornal Nacional, da TV Globo, canção Patria y Vida, DW Español e do canal Band Jornalismo, no Youtube.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.
DW Brasil: Esquerda e independentes dominam Constituinte do Chile
Direita, que governa o país e concorreu com chapa única, sai como a grande perdedora da eleição para representantes que redigirão a nova Constituição e deve ter pouca influência no processo
A esquerda e chapas independentes, formadas por cidadãos que não são ligados a partidos políticos, devem garantir a maioria dos 155 assentos na Assembleia Constituinte, que irá redigir uma nova Carta Magna para substituir a atual, em vigor desde a ditadura de Augusto Pinochet.
Com mais de 96,2% dos votos apurados até a madrugada desta segunda-feira (17/05), os atuais resultados mostram que as duas listas que aglutinam os candidatos da esquerda devem ficar com 52 assentos, seguida pelos candidatos independentes, que alcançaram, juntos, 48 cadeiras. Já a lista unificada da direita obteve 38. Há ainda 17 assentos reservados a representantes de povos indígenas.
Analistas disseram que os partidos políticos tradicionais foram os grandes derrotados da eleição. Ao contrário do que as pesquisas previam e com um sistema de contagem proporcional que privilegia as grandes siglas políticas, os independentes alcançaram um resultado inédito.
Os independentes são sobretudo pessoas ligadas a diversas áreas sociais, como educação, justiça social, meio ambiente e feminismo. São figuras de fora da política que buscam canalizar as exigências dos cidadãos na crise social de 2019, e seu surgimento é visto por muitos especialistas como o início de um novo modelo de política cidadã e a certidão de óbito dos desacreditados partidos tradicionais. Muitos deles deverão se unir à esquerda para aprovar as leis da nova Constituição.
Essa foi a primeira vez que candidatos independentes puderam concorrer em eleições no Chile ao lado de partidos tradicionais. A votação da Constituinte também foi alvo inédito no país: em 200 anos de independência, o Chile teve três Cartas Magnas (1833, 1925 e 1980), mas nenhuma foi redigida por uma convenção de pessoas eleitas pelo voto popular.
“O desempenho das chapas independentes em termos de votos e cadeiras é uma grande surpresa, embora a maior surpresa seja o colapso absoluto da direita que, apesar de passar por uma chapa única, não chegaria nem a um terço das cadeiras”, disse à agência de notícias Efe Julieta Suárez-Cao, cientista política da Pontifícia Universidade Católica do Chile.
Derrota da direita
A direita, que se apresentava na chapa única “Chile Vamos” formada pelos partidos governistas, foi a grande perdedora nesta eleição ao conquistar menos de um terço das cadeiras, percentual necessário para influenciar o conteúdo da nova Carta Magna e vetar artigos.
“Nestas eleições, os cidadãos enviaram uma mensagem clara e forte ao governo e também a todas as forças políticas tradicionais: não estamos sintonizados adequadamente com as demandas e desejos dos cidadãos e estamos sendo desafiados por novas expressões e lideranças”, afirmou o presidente do Chile, Sebastián Piñera, na reta final da contagem dos votos.
Apesar de possivelmente ditarem o tom da nova Carta Magna, os independentes precisarão fazer acordos para passar suas propostas, que necessitam de dois terços dos votos para serem aprovadas. Como a maioria delas está alinhada a posições progressistas, especialistas acreditam que haverá uma união entre o bloco e a esquerda, o que poderá promover mudanças profundas no país.
A assembleia constituinte será ainda composta por igual número de homens e mulheres. Isso é algo inédito no mundo e, em poucos meses, fará do Chile o primeiro país a ter um texto fundamental escrito com paridade de gênero.
A participação eleitoral no pleito que decidiu a composição da constituinte, no entanto, ficou bem abaixo dos quase 80% alcançados no plesbicito em outubro de 2020, que decidiu a substituição da atual Constituição. Apenas cerca de 37% dos 14,9 milhões de eleitores chilenos foram às urnas no final de semana.
A nova Constituição
A constituinte foi convocada pelo Congresso chileno para esfriar os protestos que tomaram as ruas do Chile por quase um ano no final de 2019.
A assembleia constituinte, a primeira paritária do mundo e composta exclusivamente por membros eleitos, terá nove meses para redigir a nova Carta Magna, a primeira a nascer de um processo plenamente democrático e participativo em toda a história do país.
O prazo para a conclusão da nova Constituição é prorrogável apenas uma vez por mais três meses, e em 2022 deve ser aprovada ou rejeitada em referendo com voto obrigatório.
A Constituinte será o processo político mais importante em 31 anos da democracia chilena e abre um novo capítulo na história do país, que terá a oportunidade de estabelecer também as bases de um novo modelo socioeconômico.
O processo de elaboração da nova Constituição será concluído com um plebiscito para aprovar o texto que substituirá a atual Constituição, herdada do regime Pinochet (1973-1990) e criticada por parte da sociedade chilena por sua origem ditatorial e por privatizar alguns serviços básicos como água e aposentadorias.
Fonte:
DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/esquerda-e-independentes-dominam-constituinte-do-chile/a-57553680
Alberto Aggio: A teoria pura da revolução
“O dever de todo revolucionário é fazer a revolução”. Essa máxima tautológica, atribuída a Ernesto Che Guevara, tornou-se a senha para diversas gerações de militantes políticos que fizeram parte do que muitos chamam de “revolucionarismo” latino-americano. Nas palavras do historiador chileno Alfredo Riquelme, uma manifestação da “imaginação revolucionária” que incendiou as inúmeras correntes e grupos que emergiram nos “longos anos sessenta”[1], que se iniciam com a Revolução Cubana de 1959 e se prolongam até a derrubada de Salvador Allende no Chile em 1973.
Che Guevara e Fidel Castro
Também identificado como “ultraesquerda”, o revolucionarismo se antagonizou dura e permanentemente com todas as correntes de esquerda ou de centro-esquerda (ainda que tal terminologia não existisse na época) que buscavam patrocinar ou apoiar reformas que modernizassem ou tornassem menos desiguais as sociedades latino-americanas. Tais grupos assumiram a luta armada como ação política ou como perspectiva estratégica de seus programas revolucionários. Instalaram no seio da esquerda latino-americana uma “muralha chinesa” entre reforma e revolução, caracterizando os partidos políticos que não seguissem suas orientações como “tradicionais” ou simplesmente “reformistas”, mesmo que as reformas fossem projetadas dentro de uma perspectiva de “revolução processual” voltadas para o socialismo. Esse vigor antagonista era expressão de uma atitude reativa à esquerda latino-americana, especialmente aquela que se pautava pelo marxismo originário da Revolução bolchevique, ou seja, os Partidos Comunistas orientados por Moscou e que buscavam se atualizar em função das variações táticas de lá emanadas e “traduzidas” para seus países.
Apesar dessa busca incessante de apartação da esquerda prévia a ele, o revolucionarismo não conseguiu se desvencilhar dos pressupostos de orientação geral que marcaram historicamente o comunismo no século XX. Como anotou José Rodriguez Elisondo[2], era nítido o apelo à fórmula da “classe contra classe”, que se acoplava a outras noções, tais como, (1) o caráter do Estado burguês como simples aparelho de dominação de classe; (2) a validade da “ditadura do proletariado” e a fusão entre partido e Estado; (3) o caráter de “destacamento avançado” do partido revolucionário, composto por revolucionários profissionais; e, por fim, (4) a militância como “forma de vida” e a “vigilância revolucionária” como conduta permanente. Evidentemente, são pressupostos seletivamente assumidos. Não à toa deixa de aqui comparecer o Lenin crítico ao vanguardismo e à pequena-burguesia radicalizada.
Mas há no revolucionarismo uma espécie de sincretismo de ênfases e orientações que formam um mosaico, assumido caso a caso, no qual se prega a luta contra o “cerco capitalista” e a denúncia do “reformismo burguês” como “ala moderada do fascismo”; recusa-se o etapismo, afirmando o caráter internacional da revolução socialista; defende-se a tese de Mao Tse-Tung de que o centro da revolução mundial havia se deslocado para Terceiro Mundo ao mesmo tempo em que se critica o “aburguesamento” da então União Soviética e sua política de “coexistência pacífica”; por fim, last but not least, sob a influência da chamada “nova esquerda” da década de 1960 (H. Marcuse e Wright Mills) adota-se o ódio à “sociedade de consumo” e se sugere que os intelectuais passem a compor uma “nova formação revolucionária” que tivesse como base a aliança entre intelectuais, estudantes e setores marginalizados, em geral.
É mais do que evidente que o revolucionarismo latino-americano se expandiu a partir de uma leitura mitológica da Revolução Cubana. Dela emerge um “modelo” de revolução concebido como único para o continente. Nele estão algumas fórmulas que se tornaram verdades insofismáveis, a começar pela visão geral de que a revolução foi impulsionada por “um punhado de homens decididos e audaciosos” que abriram passagem para o “povo” se constituir na força motriz da revolução. Esse “punhado de homens” se constituiu na direção política da revolução, substituindo o partido operário-socialista, e, acima deles, emerge a figura carismática do líder revolucionário. Contestando fortemente os pilares do comunismo soviético, a pedra de toque dessa leitura se fixava na ênfase de que a base guerrilheira e logística da revolução é camponesa e não uma organização partidária operária e popular. Soldando essas formulações, cria-se o axioma de que a revolução cubana nasce do “atraso”, mas assume seu caráter anti-imperialista e se coloca a tarefa da construção do socialismo. É, portanto, uma revolução que realiza o chamado “salto” do capitalismo, superando a tese da necessidade de uma etapa “democrático-burguesa”. Por tudo isso, o socialismo cubano seria uma “criação heroica”, única e desafiadora para o mundo intelectual vinculado ao marxismo anterior a ela.
As derivações da leitura mitológica da revolução cubana para as teses gerais que fundamentaram o revolucionarismo latino-americano podem ser sintetizadas, de acordo com José Rodriguez Elizondo, em seis pontos: 1. a revolução latino-americana é continental; 2. seu caráter é socialista pois o desenvolvimento capitalista no continente é obstaculizado pela dependência que cancela a possibilidade de a burguesia nacional liderar uma revolução democrático-burguesa; 3. a forma e o método é o da luta armada, concebida como “uma forma superior de luta”; 4. em função da defasagem do proletariado latino-americano em relação aos países mais avançados, a pequena-burguesia assume o papel dirigente da revolução; 5. a revolução pede alianças entre frentes e polos revolucionários – e não alianças entre classes – para confrontar tanto o inimigo estratégico, o imperialismo, quanto o inimigo tático, a burguesia local; 6. os partidos comunistas latino-americanos não são instrumentos revolucionários válidos porque se burocratizaram, são etapistas, privilegiam as diferenças entre os países latino-americanos ao invés da sua homogeneidade, negam o caráter socialista da revolução, adotam condutas pacifistas e se submetem a frentes políticas amplas[3].
A partir desta visão formou-se no continente o que se pode chamar de uma “militância da revolução cubana” que teve muita influência por toda a década de 1960. Entretanto, depois de um primeiro momento de acumulação de forças, o “partido da revolução cubana” se enfraqueceu, golpeado pelo impacto da morte de Che Guevara, na Bolívia, em outubro de 1967, a derrota da revolta de maio de 1968, em Paris, e, por fim, a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, em agosto do mesmo ano. Estes acontecimentos exacerbaram os sentimentos anticomunistas da ultra-esquerda latino-americana. No tocante ao Che, pela suposta “traição” do PC boliviano. Em relação ao maio parisiense, pela generalização da avaliação de que “os comunistas têm medo da revolução”. E, quanto a Checoslováquia, passou a pesar a qualificação da URSS como uma potência imperialista, que encobria este caráter com a retórica revolucionária.
Quando Fidel Castro visitou Salvador Allende no Chile, no final de 1971, permanecendo no país por 24 dias[4], o cenário mundial era bastante diferente daquele no qual a revolução trinfou em Cuba. A revolução era, por certo, uma retórica compartilhada, mas a obsessão do revolucionarismo havia se deslocado para o tema do socialismo. Por esse entendimento, é explicável que Fidel tenha admitido, em parte e apenas publicamente, a “insólita” existência de uma via chilena ao socialismo como uma “via política ao socialismo” (Allende), embora discordasse inteiramente dela. Aliás, naquele momento, Cuba já havia alterado sua orientação, aliando-se incondicionalmente a URSS e julgava que o fundamental era manter o poder conquistado, arrefecendo a ênfase anterior de promover outras revoluções a todo custo. De fato, anos mais tarde, numa entrevista a Newsweek, em 09 de janeiro de1984, Fidel esclareceria que a estratégia guerrilheira na América Latina era uma das muitas variáveis de defesa do regime revolucionário cubano, ao contrário do que se havia afirmado na década de 1960 de que a revolução na América Latina “caia de madura”. Nas palavras de Fidel: “Nem ao menos oculto o fato de que, quando um grupo de países latino-americanos, sob a direção e inspiração de Washington, não apenas buscou isolar Cuba politicamente, mas a bloqueou e patrocinou ações contrarrevolucionárias (…) nós respondemos, num ato de legítima defesa, ajudando a todos aqueles que queriam combater contra esses governos”[5].
Os pressupostos da teoria pura da revolução acabaram se cristalizando e diversas gerações os assumiram e os vivenciaram sem espírito crítico. Mesmo admitindo que, com o tempo eles sofreram ajustes, alterações ou mesmo supressões, é importante estabelecer uma avaliação rigorosa a respeito das orientações que sustentavam o chamado “processo revolucionário latino-americano” que aquela “teoria” supunha. Isso é ainda mais importante porque ela ainda influencia significativas parcelas da esquerda latino-americana além de inúmeros intelectuais que trabalham em diversos campos do conhecimento na área de Humanidades.
Expressando claramente o caldo de cultura de abstracionismo existente na época, o mito da revolução vitoriosa acabou por sustentar a construção de um modelo que, ao ser tomado como “universal”, se voltou contra a História. Cultuou-se um modelo alternativista que via a política a como jogo de soma zero, evitando funcionar dentro de um sistema político que obrigava os atores a partilharem um consenso mínimo; produziu-se um modelo de antipolítica, essencialmente. Essas posições tinham correspondência com uma postura confrontacionista no plano internacional, que compreendia a América Latina como vanguarda do Terceiro Mundo e tratava como inevitável o confronto com os EUA. Che Guevara qualificava os EUA como a “mais bárbara nação do mundo”, o “grande inimigo do gênero humano”. Isso contrastava, por exemplo, com a postura do Vietnam que preferiu atuar dentro dos EUA, explorando as suas divisões internas. No plano nacional, como não poderia ser diferente, o modelo supôs a existência de dicotomias excludentes: o Estado é o aparelho de coerção que precisa ser tomado; o Exército é a versão concentrada do Estado como expressão da violência contra as classes dominadas; o Direito sublima as relações de força e institucionaliza a exploração das maiorias; as classes sociais são a representação de explorados e exploradores; os partidos políticos fazem apenas o jogo das classes dominantes e estão destinados a desaparecer.
Não há como eludir o resultado de que toda essa formulação só poderia redundar numa nova ditadura de classe, flagrantemente autoritária. A democracia e a liberdade se tornam, aqui, categorias subjetivamente instrumentais: a democracia dos exploradores não é, em nenhum aspecto, a dos explorados e as liberdades de alguns são derivadas das carências de outros, sem uma área intermediária. Em síntese, democracia e liberdade devem ser revolucionárias e isto significa que devem servir para garantir a implantação de uma nova ditadura. É inexplicável como poderá nascer daí uma sociedade nova, um “homem novo”.
Assim, mais que interpretar ou revolucionar o mundo, a teoria pura da revolução serve para afastar da reflexão a complexidade da realidade. Ela é simplesmente “falsa consciência”, pura ideologia. Sua imaginação funciona para eludir um jogo intelectual de tipo circular, exercitado nos seguintes termos: a impaciência revolucionária se justifica pelo “atraso histórico”, levando à busca de um atalho revolucionário que permita, por sua vez, recuperar o tempo perdido … que justifica, uma vez mais, a impaciência revolucionária.
Mirando historicamente, o resultado não é outro senão o fracasso: não se implantou uma “nova sociedade”, nem em termos revolucionários, nem em termos reformadores. Nesse sentido, perdeu tanto a reforma como a revolução. Nenhum dos teatros de operação da região serviu como suporte para levantar e sustentar uma “segunda Cuba”. Tampouco para consolidar aquelas transformações estruturais que alguns governos reformadores vinham colocando em prática.
Ao contrário da imagem europeia que qualifica a década de sessenta como uma “década prodigiosa”, na América Latina ela foi, antes de tudo, “uma década perdida”, especialmente para aquela esquerda que aderiu à teoria pura da revolução. Foi preciso atravessarmos o século e o milênio para vermos emergir, em traços ainda bastante rudimentares, uma esquerda ainda sem nome próprio, que ainda coqueteia como aqueles paradigmas e claudica em se conformar como um ator distinto do que foi no passado e do que é na atualidade.
[1] RIQUELME S. Alfredo, “La vía chilena al socialismo y las paradojas de la imaginación revolucionaria”. In Araucaria. Revista ibero-americana de Filosofia, Política y Humanidades, año 17, n. 34, segundo semestre de 2015, p. 203-230.
[2] RODRIGUEZ ELIZONDO, J. Crisis y renovación de las izquierdas – de la revolución cubana a Chiapas, pasando por “el caso chileno”. Santiago: Andres Bello, 1995, pp.131-167. A expressão que dá título e que inspira diversas passagens desse artigo é de José Rodriguez Elizondo.
[3] RODRIGUEZ ELIZONDO, J., 1995.
[4] AGGIO, A. “Uma insólita viagem: Fidel Castro no Chile de Allende” In AGGIO, A. “Um lugar no mundo – estudos de história política latino-americana. Brasília: Fundacão Astrojildo Pereira, 2ª. Edição, 2019, p. 121-136.
[5] RODRÍGUEZ ELIZONDO, J. “El invierno del Messías”. La Tercera. Santiago, 28 de octubre de 2001. p. 9 (Cuaderno Reportajes intitulado El invitado que saboteo a Allende).
Fonte:
Blog Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/a-teoria-pura-da-revolucao/
(Artigo publicado simultaneamente em Estado da Arte, 08 de maio de 2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/teoria-pura-revolucao-aggio-hd/)
João Gabriel de Lima: As cores da ‘Concertación’ brasileira
Que o manifesto propicie uma conversa madura entre liberais, social-democratas e desenvolvimentistas
“Chile, la alegria ya viene.” Quem assistiu ao filme No, que concorreu ao Oscar de 2013, não esquece o refrão. Ele foi mote de uma campanha histórica. Em 1988, um plebiscito decidiria se o ditador Augusto Pinochet deveria, ou não, continuar em sua cadeira até 1997. A população torpedeou o autocrata com um rotundo “No!”. Foi um raro – e belo – momento em que uma democracia derrubou uma ditadura pelo voto.
O que se seguiu foi igualmente histórico. Socialistas e democratas-cristãos, adversários de décadas, se uniram com o intuito de consolidar a democracia, juntando partidos de esquerda e de direita. O arranjo, conhecido como “Concertación”, durou mais de 20 anos, como lembra o cientista político argentino Andrés Malamud, especialista em América Latina e personagem do minipodcast da semana. O logotipo do movimento era um arco-íris.
É inevitável pensar na “Concertación” ao ler o Manifesto pela Consciência Democrática, assinado por seis presidenciáveis. Há apelo à convergência e defesa intransigente dos regimes de liberdade. A união de todos, no entanto, não é óbvia. Entre os signatários há tendências políticas de amálgama difícil.
João Doria, Eduardo Leite, João Amoêdo e Luiz Henrique Mandetta integram a centro-direita. Em alguma medida, os quatro estiveram com Jair Bolsonaro ou se beneficiaram dos votos de seu eleitorado em 2018. O rompimento implícito no manifesto mostra que o campo “azul” quer se reconstruir bem longe do presidente. Um dos quatro nomes acima poderá representar a tendência liberal em 2022.
Ciro Gomes não pertence ao mesmo clube. Seu programa de governo – que já foi até publicado em livro – é de matriz desenvolvimentista. Ele vai disputar a centro-esquerda com Lula, a quem pediu nesta semana que desse um “passo atrás”. É difícil imaginar Lula cedendo a cabeça de chapa a Ciro, mas o fato mostra que ambos disputam o campo “vermelho”. Ciro evocou o caso argentino, em que Cristina Kirchner, em 2019, topou ser vice de Alberto Fernández, de modo a unificar as diversas alas do peronismo – outro episódio lembrado por Malamud no minipodcast.
Luciano Huck ainda não decidiu se será candidato. Em entrevista recente ao Estadão, um de seus mentores, o ex-governador capixaba Paulo Hartung, situou o apresentador na centro-esquerda. Para ele, Huck partiria em busca do eleitor social-democrata. Um eleitor que gostava do PSDB progressista de Fernando Henrique nos anos 1990 e aprovou o Lula da “Carta ao Povo Brasileiro” – com os ortodoxos Palocci, Meirelles e Marcos Lisboa na equipe econômica. Seria o candidato “lilás”.
O governo Bolsonaro fracassou em diversas áreas-chave, entre elas a gestão da pandemia – o que levou, inclusive, à determinação de abertura de uma CPI anteontem, com assinaturas de senadores do PSDB ao PT. É natural que enfrente não apenas uma, mas várias oposições, da centro-direita à centro-esquerda.
Se é difícil que as cores de nossa democracia se juntem no tal arco-íris, que o manifesto ao menos sele, como sugere o jornalista Pedro Venceslau no Estadão, um “pacto de não agressão”. Que propicie uma conversa madura entre liberais, social-democratas e desenvolvimentistas – os três grupos que há 30 anos disputam corações e mentes em nosso debate, e que hoje se opõem a Bolsonaro. Num cenário otimista, em 2022 o Brasil começará a emergir dos escombros. Cabe às oposições trazer propostas concretas para reconstruir um país devastado.
Alberto Aggio: A experiência chilena, 50 anos depois
Há 50 anos o Chile vivia uma experiência política extraordinária. Foi o período em que Salvador Allende governou o país, depois de ter vencido as eleições em 1970 e, quase três anos depois, ser deposto por um golpe militar, em 11 de setembro de 1973.[1] Tão logo se começa a rememorar o período vêm à mente as imagens que correram o mundo ao registrarem o assalto ao Palácio La Moneda, em Santiago. Cenas chocantes especialmente em se tratando de um país que cultivava, interna e externamente, a imagem de estabilidade política e solidez institucional.
O que ocorreu para que se chegasse a tal ponto? Até hoje, 50 anos depois, essa pergunta é feita e há muitas respostas para ela, tanto quanto as incógnitas que permanecem submersas. Diversos aspectos são apresentados como fatores explicativos. Dentre eles, o fato de que Allende tornou-se Presidente mas seu apoio eleitoral era minoritário, uma vez que havia sido eleito com apenas 36% dos votos e sua posse aprovada, em segunda instância, pelo Congresso; que as forças políticas da época se dividiam em três — os liberais e nacionalistas, a democracia-cristã e o eixo socialista-comunista —, com projetos de sociedade distintos, o que dificultou a convivência e o equilíbrio do sistema político ao extremarem suas posições; que as reformas implementadas por Allende, aprofundando a reforma agrária, estatizando bancos e empresas, evidenciaram-se excessivamente maximalista e o caminho adotado para realizá-las, por meio do Executivo, acabaram abrindo espaço para a contestação e a ingovernabilidade; que o apoio dos EUA à oposição e, por fim, ao golpe de Estado, não deixam dúvidas a respeito da transcendência do que se passou no Chile, um dos palcos da confrontação acionada pela “guerra fria”.
Os três anos nos quais Allende governou o Chile são identificados como a experiência chilena, que mesmo depois do golpe militar continuou a provocar uma sensação paradoxal, constituindo-se numa referência positiva e negativa em razão do fracasso da chamada via chilena ao socialismo, que acalentava a ideia de que seria possível a construção do socialismo mediante a manutenção e o aprofundamento da democracia. Tratava-se de uma proposição inédita, de repercussão universal.
Por muito tempo fez-se uma discussão reducionista da via chilena ao socialismo. Para alguns era mais uma ilusão reformista; para outros, ensaiava-se uma perspectiva nova de construção do socialismo. Entre os protagonistas, as avaliações posteriores tenderam a reproduzir a divisão que habitava a esquerda chilena do período Allende.[2] Imerso nesse antagonismo anacrônico, onde inutilmente se busca uma “saída” para o governo Allende, o passado permanece envolto numa bruma que não se dissipa.
VIA CHILENA E VIA DEMOCRÁTICA AO SOCIALISMO
Em diversas oportunidades Allende usou a expressão via democrática para qualificar melhor a opção que a esquerda deveria seguir no Chile. Esta expressão, para Allende, enfatizava a forma de luta e o comportamento político que a esquerda deveria adotar no exercício do poder. Foi neste sentido que suas referências à via democrática acabaram por selar uma identificação entre processo (experiência chilena) e projeto (via chilena ao socialismo) que, juntos, passaram a ser vistos como uma experiência prática de aplicação daquilo que nas perspectivas teóricas da esquerda ocidental se chamava — ainda que de uma maneira um pouco difusa — de via democrática ao socialismo.
No entanto, a história não corrobora esta identificação. Mesmo que Allende jamais tenha se afastado dos procedimentos democráticos, a experiência chilena apenas pode ser compreendida como uma tentativa de realização prática dos pressupostos da via chilena, uma vez que o projeto que a embasava nem sempre fora compreendido no interior da UP como uma via democrática ao socialismo. A identificação entre via democrática e via chilena ao socialismo não se configurou como uma linha política clara e hegemônica nem no governo nem entre os partidos que o apoiavam. Tratava-se de uma estratégia bastante inovadora para os dois principais partidos da esquerda chilena, o PC e o PS. Para ambos, a superação do Estado burguês no processo revolucionário chileno se concluiria com o estabelecimento da ditadura do proletariado, única situação em que se poderia pensar a implantação do socialismo. Para o PC, era necessário chegar ao momento da ruptura mantendo a institucionalidade; para o PS, era preciso resolver a questão do poder e formar um Estado paralelo fundado no “poder popular”. Em suma, para os dois partidos, a particularidade chilena confirmaria, mais uma vez, as leis universais da revolução.
Está claro, portanto, que aquela esquerda concebia a via chilena apenas como um elemento de retórica, um slogan, um artifício de unidade e mobilização. A via chilena constituiu-se apenas numa “anunciação” e não numa aplicação da via democrática para o socialismo. A cultura política convencional que governava a cabeça da esquerda chilena — mas não apenas dela — não permitiu que se pensasse na ideia de que a democracia era ou poderia ser “a via” do socialismo. Isto somente iria começar a ser formulado em outro contexto e em função das lições que foram extraídas do golpe de 1973.[3]
Esse caráter anunciador do projeto da via chilena, mais intencional do que dirigente de uma grande política, perdeu poder de atração e eficácia no decorrer do governo, diluindo-se na imperiosa necessidade de manter unida a coalizão de esquerda como forma de sustentação política. Do ponto de vista prático, o que ocorreu foi que a via chilena ao socialismo de Allende acabou por reduzir-se a um conjunto de operações táticas frente à economia e ao aparelho de Estado. Mesmo Allende supunha que o processo se encaminharia para uma situação de ruptura na qual se poderia transformar o Estado vigente em Estado antagônico ao capitalismo. A via socialista deveria ser capaz, nestas circunstâncias, de articular simultaneamente criação socialista e resolução do problema do poder como processos construtivos de desarticulação da dominação capitalista. Aqui ressoam ecos fortes do “socialismo de esquerda europeu” que, à época, criticando o comunismo soviético e a socialdemocracia, procurava encontrar uma alternativa que vinculasse reforma e revolução. Mas o resultado foi outro: fraturada, a UP não executou nem desenvolveu a via chilena ao socialismo e o que nela se anunciava como uma possibilidade de caminho democrático ao socialismo.
A experiência chilena de Allende e da UP evidencia que foi impossível seguir adiante sem a construção de consensos e de instituições que dessem suporte às transformações estruturais colocadas em curso. Seu fracasso deixa explícito que aquela era uma revolução que se tornou impossível por conta da cultura política convencional que marcava a esquerda da época diante do caminho escolhido: transitar ao socialismo por meio da democracia.
DE UM CHILE A OUTROS: IMAGENS DA EXPERIÊNCIA CHILENA
Toda metáfora quer dar corpo concreto a uma impressão difícil de exprimir. Sua forte produtividade heurística, a despeito das imprecisões, cumpre um papel de síntese, procurando assegurar, por meio de um custo muito pequeno, o máximo rendimento comunicativo. Em relação à experiência chilena, alguns analistas se mantiveram prisioneiros à imagem da tragédia como síntese daquele processo, predeterminado ao fracasso. A história aqui é vista como uma aproximação a um fim inexorável, o que impossibilita que se investigue as estratégias, cálculos e erros, bem como o grau de responsabilidade dos atores envolvidos, dimensões sem as quais não se explicariam os três anos de governo, suas razões, suas dificuldades e seus limites.
O cientista social Tomás Moulian buscou outra angulação. Para ele, o período da UP expressou simultaneamente “festa e drama”, foi “excitante e efervescente” bem como “doloroso e traumatizante”.[4] Havia uma dimensão positiva, de festa popular — uma dimensão erótica —, mas também uma face negativa, marcada pela imposição do regime ditatorial que sucedeu ao golpe de Estado. “Festa e drama” eram duas caras de uma mesma moeda. A festa assumia “a forma de uma catarse vingativa, adotava o caráter de uma vingança por anos de sofrimento, silêncio e impotência”; “não era alegre, tinha a gravidade dos ritos, onde o povo se assume como juiz”; “expressão de uma pulsão escatológica” em que se acreditava ter chegado o “momento do acerto de contas”, momento definidor em que o povo capturava o futuro para si, imagem condensada na ideia de “revolução triunfante”. O drama, por sua vez, materializou-se na “encarniçada batalha política”, na emergência de uma “situação de crise catastrófica gerada e produzida (no seu sentido forte) pelas decisões adotadas, em diferentes conjunturas do processo, pelos atores em conflito”. Nessa leitura, a crise de 1973 é ainda vista como derrota da UP, evitando-se aludir ao fracasso de um governo conduzido pela esquerda.
Quase 10 anos depois, Moulian retoma o turbilhão de imagens para recontar a história da UP, agora no contexto do “transformismo” pós-ditatorial[5]. No novo contexto, o período Allende representa um Chile romântico, o avesso do Chile da Concertación[6], onde predomina a negociação, o pragmatismo político, o consumismo, etc. O romantismo da UP assumiria um “pathos trágico”, típico da adolescência. Seu desfecho, um “doloroso aborto”, imagem que sugere a explosão de violência que se impôs depois de 1973.
Para Moulian, o Chile “transformista” dos tempos da Concertación, evidenciando outra cristalização identitária, equivoca-se ao criar o mito da transição modelar da mesma forma que se equivocou ao mistificar o “Chile democrático” anterior à catástrofe de 1973. “Verniz e aparência”, diz o nosso autor: “a estabilidade da democracia chilena até a década de sessenta sustentou-se mais em razão de suas imperfeições do que de suas perfeições”. A estabilidade chilena, como “nossas ilusões”, continua, não se baseava “no enraizamento da democracia na cultura, nos valores incorporados com força quase atávica”[7].
O Chile do final da segunda década do século XXI já é inteiramente outro. O período da Concertación se foi com a alternância de poder com a direita democrática. Mas, o Estado de “mal-estar social”, marcado por extensas desigualdades e a manutenção da Constituição de 1980, herdada do período Pinochet, acabaram por gerar o que ficou conhecido como o “estallido” de outubro de 2019, quando multidões desceram às ruas de forma tão imponente quanto surpreendente. Essa explosão social forçou o acordo político que iria dar sustentação à realização de um Plebiscito quase um ano depois no qual se aprovou os termos de realização da eleição e funcionamento de uma Assembleia Constituinte, responsável pela elaboração de uma nova Constituição.
Afirmar que há uma identidade entre essa “irrupção de massas” e a vitória de Allende em 1970 alimenta equívocos. A eleição de Allende em 1970 não tem nada semelhante ao outubro de 2019. A catarse dos cânticos da UP nas ruas de Santiago, em outubro de 2019, pode iludir a quem pensa em fazer a História voltar atrás. No prefácio a um livro coletivo sobre os 50 anos da UP[8] Tomás Moulian chama a atenção para a impossibilidade de se repetir aquele processo. Também cantada nas ruas em 2019, “El baile de los que sobran”, do álbum Pateando piedras (1986), da extinta banda, Los Prisioneros, talvez sinalize mais realisticamente o que se pensa ultrapassar e o que se ambiciona alcançar.
Hoje o Chile de Allende e da UP está bastante distante do universo político que anima os jovens que saem às ruas e pedem mudanças estruturais para o País. Se há alguma atualidade daquele Chile nos dias de hoje ela não está na expectativa de se retomar os pressupostos do projeto de construção do socialismo por meio da democracia, mas na compreensão dos dilemas políticos que, hoje, vivenciamos e que assumem dimensões universais. A experiência chilena deve ser vista, portanto, como um ponto de inflexão na necessidade de superação da cultura política da revolução, sem a qual não haverá possibilidade de redirecionamento das políticas da esquerda para o enfrentamento dos problemas e impasses da democracia, entendida como a projeção civilizacional do nosso tempo, capaz de garantir transformações históricas sem a perda das liberdades e das individualidades. O fracasso da experiência chilena demonstra que o tempo da revolução é incompatível com o tempo da política. Enquanto o primeiro é marcado pela urgência da tomada do poder, o segundo reconhece que as transformações históricas devem ocorrer a partir de consensos pactuados politicamente no interior de uma moldura democrática.
Notas:
[1] Allende foi candidato pela Unidade Popular (UP), uma coalizão de esquerda que tinha como eixo os Partidos Comunista (PC) e Socialista (PS), mais os Radicais, o partido Socialdemocrata, a Ação Popular Independente e o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU); o golpe militar foi liderado pelo general Augusto Pinochet que imporia uma ditadura por 17 anos.
[2] AGGIO, A. Democracia e socialismo: a experiência chilena. Curitiba: Appris, 3ª. Ed. 2021.
[3] O início do reconhecimento dessa perspectiva se dá nos três artigos de Enrico Berlinguer, líder do Partido Comunista Italiano (PCI), publicados em 28 de setembro e 5 e 12 de outubro de 1973 em Rinascita, que dão corpo ao chamado “compromesso storico” entre o PCI e a DC. Ver Vacca, G. L`Italia contesa – comunisti e democristiani nel lungo dopoguerra (1943-1978). Venezia: Marsilio, 2018, p. 266 (há uma tradução brasileira no prelo pela Editora da Unicamp).
[4] MOULIAN, T. “La Unidad Popular: fiesta, drama y derrota”. In GAZMURI, J., Chile en el umbral de los noventa. Santiago: Planeta, p. 27-41, 1988.
[5] MOULIAN, T. Chile Actual, anatomía de un mito. Santiago: LOM/Arcis, 1997.
[6] A Concertación de los partidos por la democracia nasce no plebiscito de 1988 como Concertación por el No. Foi formada por diversas forças oposicionistas, menos o PC. Em 1990 vence as eleições presidenciais com Patricio Aylwin. Vários Presidentes eleitos pela Concertación governaram o Chile sucessivamente até 2010.
[7] MOULIAN, T., 1997, p. 166.
[8] HENRY, R. A., SALÉM V., J. y CANIBILO R., V. (comps.) La vía chilena al socialismo 50 años después, Tomo II. Buenos Aires: CLACSO, 2020. http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20201201032252/La-via-chilena-al-socialismo-Tomo-II.pdf
(Publicado simultaneamente em Estado da Arte, 02.04.2021: https://estadodaarte.estadao.com.br/chile-allende-aggio-horizontes/)
João Gabriel de Lima: Dois presidentes na guerra contra o vírus
O Chile pode ser a inspiração para a reviravolta que o Brasil precisa dar
Em março de 2018, Sebastián Piñera tomou posse como presidente do Chile. Sete meses depois, do outro lado da cordilheira, Jair Bolsonaro venceu o segundo turno no Brasil. Ambos derrotaram as esquerdas em seus países. Piñera triunfou num ambiente um pouco menos polarizado – como brinca o economista Samuel Pessoa, o debate político chileno, na comparação com o brasileiro, lembra uma mesa acadêmica opondo a Universidade de Chicago ao MIT.
No meio do mandato, Piñera enfrentou insatisfação e protestos. Sua popularidade caiu a 6% em janeiro de 2020. Veio a pandemia, e Piñera mostrou senso de urgência. Em maio de 2020, determinou que seu subsecretário de Relações Internacionais, Rodrigo Yañez, se dedicasse exclusivamente à compra de vacinas. O Chile usou a seu favor o fato de ser uma das economias mais abertas do mundo, participante de mais de 30 tratados internacionais. Piñera supervisionou pessoalmente as negociações.
Enquanto o Chile brigava por vacinas, o Brasil as esnobava. De acordo com o presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, o governo federal recusou, ao longo de 2020, quatro ofertas de lotes da Coronavac. Em dezembro, Bolsonaro desdenhou do imunizante da Pfizer que, segundo ele, poderia transformar seres humanos em jacarés. No mesmo mês, o Chile recebeu o primeiro lote de vacinas, destinadas aos profissionais de saúde. Da Pfizer.
Hoje o Chile é exemplo na América Latina. Na quarta-feira 17 de março, 36,7% da população estava vacinada, ante 5,6% no Brasil. O Chile deve atingir um índice confortável de imunização até o fim de junho. Ao longo desta semana, o Brasil cruzou, na média móvel, o umbral das 2 mil mortes diárias – sem nesga de luz ao fim do túnel.
Ao negociar com vários laboratórios, o Chile driblou a escassez de imunizantes no mercado – problema que assombra o Brasil. “Só em maio deveremos ter maior disponibilidade de vacinas”, diz a epidemiologista Silvia Martins, da Universidade Columbia, personagem do minipodcast da semana.
Com a boa gestão da pandemia, Piñera recuperou parte da popularidade – está em 24% e em ascensão. Nesta semana, a rejeição a Bolsonaro chegou a 54%, a maior até agora. 43% dos brasileiros culpam o presidente pela proliferação da covid-19. Como observou o Estadão em editorial, os eleitores decidiram responsabilizar Bolsonaro, e não os governadores, pela tragédia humanitária.
Os impactos econômicos já se fazem sentir. A instabilidade do Brasil assusta os investidores, e o Banco Central acaba de elevar os juros para evitar a disparada da inflação. No Chile, houve o tombo regulamentar de 2020. O mercado, no entanto, revisou para cima as projeções para 2021 diante do sucesso da vacinação, como mostrou o colunista Fábio Alves no Estadão – mesmo com o número ainda alto de casos no país, que estuda um novo lockdown.
Em conversa com apoiadores na quinta-feira, 18, o presidente Bolsonaro perguntou: “Qual país do mundo está tratando bem a questão da covid? Aponte um”. Fica a dica. O Chile pode ser a inspiração para a reviravolta que o Brasil precisa dar. Segundo o jornal El País, Peru, Colômbia, Uruguai, Paraguai e México destacaram especialistas para estudar o caso chileno.
De acordo com o STF, todos os entes federativos têm responsabilidades no combate à pandemia. A comparação com o Chile mostra que o presidente tem um papel fundamental. Lá, atuação proativa e senso de urgência fizeram toda a diferença.
Sérgio Augusto: Como Pinochet influencia a extrema-direita contemporânea
Gangues pró-Trump usam símbolos do ex-ditador chileno e se inspiram em grupos paramilitares como o Patria y Liberdad, bancado pela CIA e surgido no Chile logo após a eleição de Salvador Allende
A cobra fumou. Tem muito tempo: 76 anos. Era uma jararaca e simbolizava a FEB (Força Expedicionária Brasileira), que, surpreendendo a descrença geral, fumou—ou seja, finalmente foi para a Itália lutar contra Mussolini e Hitler. Uma cobra do bem.
As lendas amazônicas e a poesia de Raul Bopp nos legaram a Cobra Norato, a serpente emplumada de maias e astecas inspiraram D. H. Lawrence, mas não esperem boa coisa do ofídio batizado pelos gringos de “Hoppean snake” (ou a cobra de Hoppe). Hoppe, não Hopper (Edward), que nunca foi de pintar animais invertebrados.
Cascavel enroscada, com um quepe militar na cabeça, a cobra hoppeana virou uma espécie de suástica dos baderneiros de extrema direita americanos, onipresentes nos ralis trumpistas e ativíssimos naquela invasão do Congresso americano, incitando o desacato e o terror.
Os serviços de segurança, mesmo sob Trump, já estavam em seu rastro; com Biden na presidência, a vigilância deverá redobrar, tantas já foram as ameaças dos neofascistas de sabotar instalações elétricas, o sistema de telecomunicações, os serviços de saúde e outras variedades de terrorismo detectadas nas últimas semanas.
Os criadores dessa víbora inspiraram-se na que adorna a “bandeira de Gadsden”, pavilhão projetado há 246 anos pelo político e soldado Christopher Gadsden, por inspiração de Benjamin Franklin, para simbolizar as colônias americanas que se rebelaram contra os colonizadores ingleses e alimentar-lhes a patriótica beligerância. A inscrição que a acompanha (“Não pise em mim”) era uma advertência: pacífica, ela só atacava se fosse atacada. Outra cobra do bem, no caso, a serviço da Revolução Americana.
Sua filha bastarda, a peçonha de Hoppe, nem o Butantã talvez a aceitasse em seu ofidiário.
O quepe que ela ostenta na cabeça é o do general Augusto Pinochet, sanguinário e corrupto ditador do Chile de 1973 a 1990, que, por não ter tido sucessores, encarnou solito a tirania que implantou sobre o cadáver de Allende. O helicóptero que também ilustra os estandartes e as camisetas da malta paramilitar machista vidrada em Trump (Boogaloo Boys, Proud Boys, Three Percenters e Oath Keepers) é uma réplica dos que transportavam presos políticos para despejá-los, vivos, nas águas do oceano, um dos highlights do programa de extermínio do regime pinochetista.
A aparentemente bizarra fixação de organizações políticas neofascistas americanas por Pinochet e a fetichização de sua parafernália repressivo-militar intrigaram o jornalista Christopher Chatham, que sobre elas produziu uma informativa reportagem para o Intercept, na semana passada. Chatham descobriu parentescos entre as gangues trumpistas e o grupo paramilitar Patria y Liberdad, bancado pela CIA e surgido no Chile logo após a eleição de Allende.
A chave do fetiche está no nome da cobra. Hoppe é uma homenagem ao alemão de origem Hans-Hermann Hoppe, que dá aulas de economia na Universidade de Nevada, em Las Vegas, e amealhou seguidores como doutrinador da “economia libertária” de matriz austríaca, estufa do anarcocapitalismo, cujo objetivo supremo é a eliminação do Estado e a proteção à soberania do indivíduo e do “livre mercado”.
Bagrinho e idólatra de Ludwig von Mises, que formou com Friedrich von Hayek a dupla dinâmica do libertarismo econômico, Hoppe tem livros traduzidos no Brasil pelo think tank Mises Brasil. O mais conhecido, “Democracia, o Deus que Falhou”, copiou o título (“The God That Failed”) de uma histórica coletânea de ensaios sobre a desilusão com o comunismo de seis notáveis intelectuais (André Gide, Arthur Koestler, Louis Fischer, Ignazio Silone, Stephen Spender e Richard Wright) publicada em 1949 e entre nós traduzida nove anos depois.
Para Hoppe, comunismo e democracia são farinhas do mesmo saco, que ele rejeita com o vigor de um fanático apologista do mais puro darwinismo social. O fim justifica os meios, o sufrágio universal é uma opressiva intervenção estatista, é preciso desmantelar os programas de bem-estar social, privatizando em massa as empresas públicas e desregulando as corporações—a tais ideias peçonhentas outras foram agregadas, como, por exemplo, a remoção física de indesejáveis (comunistas, homossexuais etc) para manter a ordem numa sociedade libertária autêntica.
OK, mas por que o Chile, por que Pinochet?
Chatham lembra que Hayek foi, junto com Milton Friedman, um dos embaixadores do neoliberalismo no Chile de Pinochet, ao qual Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, também prestou serviço. Hayek ficou amigo do soba andino, visitou Santiago, mas não teve nada a ver, pessoalmente, com o enriquecimento ilícito do ditador, embora as fraudes cometidas pelo general possam ter sido amplamente facilitadas pelo afrouxamento regulatório aviado por Hayek e conselheiros ideologicamente identificados com os anarcocapitalistas de Viena e Chicago.
A ditadura de Pinochet deixou um saldo de 3000 mortos e mais de mil desaparecidos. Pinochet conseguiu driblar tanto a Justiça, que acabou morrendo antes de ser exemplarmente julgado e punido por crimes bem maiores que sua roubalheira, como foram vários de seus cúmplices no reinado de terror instaurado no Chile em setembro de 1973. Lá, os Ustras que aqui são idolatrados por Bolsonaro, Mourão e, implicitamente, pelo autoritário general Eduardo Villas Boas, tiveram de prestar contas com a Justiça. No Chile, a cobra do bem já fumou.
BBC Brasil: Ditadura brasileira usou Itamaraty para apoiar repressão de Pinochet no Chile, diz autor de livro sobre golpe chileno
Sete anos de pesquisa em milhares de documentos oficiais e dezenas de entrevistas no Brasil, Chile e Estados Unidos desafiam uma série de noções históricas — à direita e à esquerda — sobre como o regime militar brasileiro se envolveu no golpe de Estado que retirou do governo chileno o socialista Salvador Allende e colocou em seu lugar uma junta militar comandada por Augusto Pinochet
Mariana Sanches, BBC News Brasil em Washington
Em O Brasil Contra a Democracia, lançado no país em 8/2 pela Companhia das Letras, o jornalista Roberto Simon revela o papel consistente do Brasil no desfecho de 11 de setembro de 1973, no Palácio de La Moneda, sede do poder federal chileno. Naquele dia, quando Allende apontou o fuzil AK-47, presente de Fidel Castro, contra o próprio queixo, o tiro abateu a democracia mais longeva da região naquele momento.
Mas as ações brasileiras começariam muitos anos antes do tiro, logo após a vitória nas urnas do socialista, em 1970, quando coube ao Itamaraty mapear os militares chilenos que poderiam levar a cabo uma ruptura democrática. O Brasil apoiou os conspiradores, isolou o Chile de Allende internacionalmente, propalou a ideia nunca comprovada de que havia no país campos de guerrilheiros, e, depois do golpe, ajudou na construção do aparato de repressão de Pinochet.
Ao agir dessa forma, de acordo com Simon, o regime anti-comunista do Brasil perseguia seus próprios interesses. Para o Conselho de Segurança Nacional, o Chile de Allende era a "nova cabeça de ponte do comunismo internacional", potencialmente muito mais perigosa ao Brasil do que Cuba, por sua proximidade geográfica e pelo grande número de exilados brasileiros no país.
E nesse intento, um dos órgãos da burocracia brasileira teve especial importância: o Itamaraty. Simon desmonta a noção de que durante o regime ditatorial brasileiro, os diplomatas se encastelaram em assuntos de interesse permanente do país, distantes das atrocidades do governo corrente. Ao contrário, nas páginas de O Brasil Contra a Democracia o Itamaraty se revela peça fundamental da repressão do Estado brasileiro.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista à BBC News Brasil.
BBC News Brasil - De que maneira a ditadura militar brasileira atuou para destruir a democracia e consolidar um regime autoritário no Chile?
Roberto Simon - De várias formas. O Brasil apoiou atores que estavam conspirando contra a democracia no Chile, atuou para isolar diplomaticamente o Chile e identificar militares que poderiam se aventurar num golpe de Estado contra Allende. Apoiou grupos de extrema direita, como o neofascista Patria y Libertad e, no momento do golpe, o Brasil deu enorme apoio. Foi o primeiro país a reconhecer a junta militar liderada por Augusto Pinochet e ajudou na montagem do aparato de repressão do governo Pinochet. O país garantiu apoio político, diplomático e econômico ao governo Pinochet.
E ao mesmo tempo em que tomava ações diretas, o Brasil também desempenhava um papel de modelo para o Chile: o golpe de 1964 contra João Goulart era visto pelos algozes do governo Allende como um exemplo. Na visão dos que derrubaram o governo Allende, o Brasil tinha, com sucesso, derrotado um governo de esquerda populista para criar um regime autoritário que promovia um crescimento ordenado. Nos anos 1970, o Brasil era o país que mais crescia no mundo percentualmente e os chilenos olhavam aquilo como uma grande lição. A ideia de você ter um regime anti-comunista que colocasse ordem no país e que eliminasse o risco de uma revolução socialista era algo que eles buscavam.
BBC News Brasil - E do lado do Brasil, qual era o interesse do governo brasileiro em ter Pinochet no poder?
Simon - Quando Allende é eleito, em 1970, o Brasil toma um grande susto. O Brasil acreditava que o candidato de direita, (o conservador Jorge) Alessandri ganharia. É importante dizer que Allende era um revolucionário de fato, não era como a centro-esquerda europeia da época, não era um reformista. Ele tinha uma proposta de acabar com o capitalismo no Chile e impor uma economia socialista, mas o faria não por meio de uma revolução armada, mas pelas urnas, o caminho eleitoral que os chilenos chamavam de uma "revolução a empanadas e vinho tinto", em vez de fuzis e paredões.
Os documentos brasileiros da época começam a se referir ao Chile como a "nova cabeça de ponte do comunismo internacional." Parte da imprensa brasileira daquela época chama o país de "Nova Cuba na América Latina", só que muito mais preocupante para o Brasil porque o país não estava no Caribe, mas estava aqui do lado na América do Sul. E é bom lembrar que naquele momento do golpe havia milhares de exilados brasileiros vivendo em Santiago.
Então, dentro desse contexto a da Doutrina de Segurança Nacional da ditadura, o Chile desponta como a maior ameaça regional ao Brasil. E é aí que os militares brasileiros se debruçam sobre várias maneiras de lidar com essa ameaça. Não só os militares como também o Itamaraty.
BBC News Brasil - O regime de Pinochet é considerado um dos mais violentos do mundo, enquanto que a ditadura brasileira é citada por alguns como supostamente (e comparativamente) mais branda na repressão. De que maneira as descobertas do livro desafiam essas noções ao entrelaçar a história dos dois regimes?
Simon - O aparato de repressão no Chile foi construído com enorme apoio do Brasil. Vários agentes da Dina, a polícia secreta do Pinochet, receberam treinamento do SNI (Serviço Nacional de Informações, o órgão de espionagem brasileiro) no Brasil. Um dos líderes da inteligência chilena no final dos anos 1970 era adido militar no Brasil, em 1974 — e mais tarde foi condenado pela Justiça chilena (por crimes da ditadura).
Então, é difícil separar onde começa a repressão brasileira e termina a repressão chilena até porque após o golpe os dois países começaram a compartilhar informações sobre exilados. O Brasil queria muito saber sobre o destino de exilados brasileiros que viviam no Chile, e isso ia desde pessoas que haviam sido banidas do Brasil, trocadas por diplomatas sequestrados no Brasil, guerrilheiros etc, até intelectuais de esquerda, professores, que não tinham nenhum vínculo com a luta armada mas a ditadura decidiu cassá-los e tentar rastreá-los.
O Brasil enviou agentes ao Estádio Nacional, o principal estádio do Chile que se converteu num grande campo de prisioneiros no imediato pós-golpe (estimados 40 mil prisioneiros passaram por lá). O Chile não tinha a capacidade de prender tanta gente, então eles usaram o estádio e foi um dos grandes antros da tortura e das mais bárbaras violações de direitos humanos no Chile. E o Brasil enviou uma missão de agentes da repressão para o estádio para ajudar no interrogatório de brasileiros.
Aí há duas narrativas: eu entrevistei um capitão da Força Aérea Brasileira que esteve dentro do Estádio Nacional e admite que viu cenas de violência muito fortes, mas disse que os brasileiros não torturaram. Mas ao falar com alguns dos cerca de 50 brasileiros que ficaram presos por várias semanas ou meses no Estádio Nacional, eles dizem que foram torturados por agentes da repressão do Brasil. E chilenos presos também dizem ter sofrido tortura de agentes brasileiros.
É um momento que, por exemplo, a palavra "pau de arara" entra nesse vernáculo da repressão chilena, uma palavra completamente vinda do português brasileiro, do nada ela aparece no Chile. Então você vê todas essas conexões acontecendo muito rapidamente no imediato pós-golpe.
BBC News Brasil - Qual foi o papel do Brasil na organização da Operação Condor?
Simon - De acordo os documentos da inteligência americana, o Brasil primeiro tenta controlar a Operação Condor e depois meio que pula fora preferindo uma colaboração bilateral entre agências de repressão que havia sido a colaboração que a ditadura sempre preferiu e sempre operou. A ditadura (brasileira) colaborou com os uruguaios, nos anos 1960, quando parte da cúpula do governo Jango foi para Montevidéu. Havia colaborado e já vinha colaborando com Argentina muito antes do golpe na Argentina, incluindo um sequestro de brasileiros em Buenos Aires, e era esse tipo de colaboração, um a um, que o governo militar realmente queria em vez de um grande consórcio regional na luta contra a oposição.
O Brasil se via como um país muito mais importante que o Chile, como uma potência regional e não estava disposto a seguir ordens ou a liderança do Pinochet, sem algum controle direto (das ações). Em um dado momento da Operação Condor, os chilenos e os argentinos, no pós-golpe na Argentina, decidem lançar uma missão para assassinar opositores sul-americanos na Europa, e o Brasil se opõe a isso, de acordo com os documentos da inteligência americana.
O Brasil não queria esse tipo de coisa, isso já no governo Geisel. Então, está claro que o Brasil espionava seus opositores na Europa e usava agentes de repressão dentro do Itamaraty para mapeá-los, mas assassinar brasileiros exilados na Europa era um rubicão que a ditadura não cruzaria.
O Brasil era um protagonista (na Operação Condor) porque era do ponto de vista geopolítico o país mais importante da região. Era um protagonista importante, mas não compartilhava os objetivos máximos que os argentinos os chilenos e os uruguaios tinham. E em março de 1974, seis meses depois do golpe no Chile, começa o governo Geisel no Brasil, com a proposta de iniciar uma lenta, gradual e segura transição rumo a um governo civil e de levar os os militares de volta à caserna, partir para essa fase de descompressão política. Então, na verdade, o Brasil estava numa trajetória quase oposta à Argentina e ao Chile nesses meados dos anos 1970.
BBC News Brasil - Um grande número de brasileiros se exilou no Chile em um dado período. Existe alguma evidência de que o Chile sob Salvador Allende tivesse se convertido em campo de treinamento para guerrilheiros socialistas, inclusive brasileiros?
Simon - Santiago se tornou a capital do exílio brasileiro no final dos anos 1960, antes mesmo da vitória do Allende, em 1970. E muitos brasileiros entraram na vida política chilena, se a gente parar para pensar no establishment da nova república brasileira, há Fernando Henrique Cardoso, Marco Aurélio Garcia, José Serra, César Maia Paulo Renato Souza. Todos eles estiveram no Chile e ocuparam postos no PT, PSDB, PMDB, DEM, todos esses partidos tinham figuras que passaram pelo Chile.
Mas em relação à luta armada, o Chile nunca foi um lugar de luta armada. A revolução chilena era uma revolução, usando a linguagem da extrema esquerda da época, pra ser feita por meio do Estado burguês. Eles elegeriam uma grande coalizão de esquerda, de socialistas, comunistas e outros marxistas e, uma vez no poder, eles converteriam o Estado na grande máquina revolucionária.
Mas, de acordo com o que dizia Allende, isso seria feito respeitando as regras do jogo democrático. De fato, Allende nunca rompeu com isso, nunca tentou censurar a imprensa, nunca tentou fazer esse tipo de coisa de subverter a ordem democrática. E o que é principal, e os documentos da CIA dizem isso explicitamente, Allende entendia que era fundamental ter boas relações (com países) e conter essa campanha internacional contra o Chile para conseguir fazer as transformações internas.
Então, por exemplo, ele começou a controlar o número de asilos diplomáticos, asilos territoriais, que o Chile concedia a esquerdistas brasileiros. Se tivesse uma pessoa que tivesse cometido um crime de sangue ou que houvesse suspeita que fosse um infiltrado, não poderia ir para o Chile. Então, as aulas de guerrilha continuaram a ser em Cuba, alguns foram para a China, outros para a Coreia do Norte, mas não há absolutamente nenhuma evidência de que havia campos de guerrilheiros no Chile, que o Chile tivesse cursos de guerrilha.
BBC News Brasil - O presidente Jair Bolsonaro já disse a ex-presidente chilena Michelle Bachelet que se o regime de Pinochet não tivesse matado gente como o pai dela (um militar morto na repressão), o Chile hoje seria uma Cuba. Faz sentido?
Simon - Essa apropriação histórica do Chile estava fora do horizonte quando o livro começou a ser escrito em 2013. Era impensável que um presidente do Brasil ou grandes figuras da política brasileira idolatrassem Pinochet ou falassem que a tortura não era um problema ou mesmo que o ministro da Economia se declarasse um Chicago boy (em referência ao grupo de economistas da Universidade de Chicago que adotaram medidas liberais na economia chilena durante a ditadura). Esse tipo de coisa era impensável, basta lembrar onde estávamos em 2013 (governo Dilma Rousseff, vítima de tortura da ditadura brasileira, com o desenvolvimentista Guido Mantega no controle da economia).
E também tem grandes contradições aí porque hoje se sabe que Pinochet tinha fortunas escondidas em offshores internacionais, uma investigação do Senado americano revelou. Ele era um grande corrupto. Sabemos que a polícia secreta dele estava envolvida diretamente com o narcotráfico, além das maiores barbáries e violações de direitos humanos. Foi o Pinochet que ordenou um atentado terrorista no centro de Washington. O governo (americano de Ronald) Reagan tinha péssimas relações com Pinochet.
Então, há uma mitologia do Chile importada ao Brasil e é completamente distorcida e descolada da realidade.
E também há hoje no Brasil outros aspectos que se conectam com o passado. O modo como o Ministério das Relações Exteriores naquela época reagia à campanha internacional de denunciar a tortura no país, que tem alguns traços semelhantes, guardadas as proporções, com o que a gente está vendo agora com a campanha internacional pela defesa do meio ambiente no Brasil, como o Brasil rapidamente pode se tornar um pária internacional.
E muito como a ditadura naquele momento, parece que o atual governo brasileiro entende que se trata de uma batalha de propaganda. Que bastava responder naquela época à Anistia Internacional, e agora ao GreenPeace. Ou mandar os embaixadores escreverem cartas para o (jornal francês) Le Monde, para o (diário americano) The New York Times, como também fazem hoje. Ou ainda a noção de que vai combater isso agora mostrando o verdadeiro exemplo de cidadãos brasileiros, algo muito parecido com a retórica da ditadura de que as denúncias de tortura eram coisa de brasileiros que odiavam seu próprio país.
A lição que a gente vê dos anos 1970 é que a ditadura nunca conseguiu baixar essa pressão internacional só com propaganda. Isso só parou quando, de fato, o governo parou de torturar seus opositores, já no final dos anos 1970, começo dos anos 1980. E do mesmo modo, a pressão internacional em relação ao meio ambiente no Brasil só vai parar quando o Brasil tiver uma política séria para o meio ambiente.
Então, eu vejo que há uma linha de continuidade nas mentes conspiratórias de governos brasileiros em achar que a representação do fato pode ser mais importante do que o fato em si.
BBC News Brasil - Seu livro mostra que o Itamaraty tinha atuação consistente no aparato de repressão e que não se tratava de um ato isolado de um ou outro diplomata mais simpático à ditadura. Isso desafia a imagem que se tinha de um Itamaraty técnico, não?
Simon - Geralmente, a história oficialista trata esse episódio no Chile como algo de figuras isoladas: o embaixador anticomunista, algumas pessoas da linha-dura do regime militar que por lá se aventuraram. E o livro mostra que na verdade foi o oposto. Havia uma política de Estado para o Chile, que envolvia instituições, agências especializadas dentro do Itamaraty, como o Centro de Informações do Exterior, o Ciex, e a Divisão Segurança Institucional do Itamaraty, a DSI. Aliás, todos os órgãos do governo brasileiro tinham uma DSI, sempre chefiadas por militares, e a do Itamaraty era a única comandada por um civil.
E essas entidades tinham por objetivo espionar brasileiros no exterior, conter campanhas de denúncias dos direitos humanos e, em última análise, se você olhar o que aconteceu com os brasileiros presos no Estádio Nacional, vários deles sob tortura, as decisões de não solicitar salvo conduto a essas pessoas, de não facilitar qualquer tipo de proteção consular, foram tomadas dentro do gabinete do ministro das Relações Exteriores. E todas as informações dessas agências de espionagem do Itamaraty alimentavam o SNI e as agências de inteligência das Forças Armadas. Então, o Itamaraty era parte essencial da repressão a brasileiros fora das fronteiras nacionais. E era essa a cadeia de comando, que ia do Palácio Planalto, Itamaraty, SNI e descia até os porões do regime, onde o Chile era visto como a grande fronteira na luta contra a subversão brasileira.
Houve diplomatas que se rebelaram contra isso, alguns chegaram a transportar listas de torturadores brasileiros em malas diplomáticas, mas o livro mostra que eles foram a exceção que confirma a regra desse colaboracionismo total da instituição. A noção de que o Itamaraty de alguma forma se descolou da ditadura para se ater aos interesses permanentes do Estado brasileiro é um mito, que serviu para proteger o Itamaraty. E é um mito que deve ser desfeito para o bem da política externa brasileira e da democracia. É preciso entender como dinâmicas internas têm um impacto decisivo na relação do Brasil com o mundo.
BBC News Brasil - E isso também desbanca uma outra noção muito presente nas esquerdas brasileira e latino-americanas de que a ditadura brasileira seria um mero ferramental para os americanos exercerem seus interesses na região?
Simon - Na verdade, o Brasil se via como um dos grandes, ou talvez, o principal ator nesse jogo da Guerra Fria regional. Por isso, acabou intervindo em vários países do seu entorno.
O golpe contra Allende foi uma derrota fragorosa da esquerda chilena e da esquerda latino-americana. Naquele imediato pós-golpe, pessoas de esquerda tentaram encontrar explicações. Tem um texto do (autor colombiano) Gabriel García Márquez que diz que os Estados Unidos não precisavam mandar mais seus marines (à América Latina) porque tinha o Brasil para agir por eles. E a imprensa cubana naquela época falava de um eixo Brasília-Washington contra a esquerda latino-americana. Então começa a se criar aquela caricatura de gorilas do Brasil marionetes do Tio Sam.
E é uma visão empobrecedora porque ela afasta essa discussão sobre as motivações geopolíticas, econômicas e diplomáticas que levaram a ditadura brasileira a atuar no Chile. E revendo toda a documentação, uma das minhas conclusões é que de fato houve uma troca significativa de informações entre o Brasil e os EUA no sentido de se opor a Allende e eventualmente apoiar um golpe no Chile.
Há uma reunião importante, em 1971, entre os presidentes Médici e Nixon na qual Médici explicitamente fala ao colega americano que o Brasil estava em contato com militares chilenos e que Allende cairia. Mas depois de revisar milhares de documentos de três países diretamente envolvidos nessa história, eu não achei absolutamente nenhuma evidência de que houve alguma operação conjunta brasileira e americana para derrubar Allende. Havia uma vontade de trabalhar junto e de alinhar visões, mas não houve uma operação da CIA e do SNI para derrubá-lo. Claro que você tem um alinhamento dos dois regimes anticomunistas, o governo Nixon tinha uma enorme simpatia pelo governo Médici. O próprio Nixon dizia para os brasileiros que "somos os maiores aliados que o Brasil já teve na Casa Branca" e também dizia que "o Brasil é o nosso maior investimento na América Latina". Mas no nível operacional, de agentes dos dois países, no Chile, não há nenhuma evidência de que houve uma colaboração direta.
No Chile, uso da bandeira Mapuche pouco tem a ver com batalha contra capitalismo
Em artigo publicado na Política Democrática Online de novembro, Hernan Chaimovich explica cita ‘peso simbólico’ de bandeira de povo indígena em manifestações
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“O consistente uso da bandeira Mapuche como símbolo nas manifestações pouco tem a ver com a batalha contra o capitalismo agressivo que, sustentado pela Constituição de 1980, afeta a grande maioria da população chilena”. A análise é do professor do do Instituto de Química da USP (Universidade de São Paulo) Hernan Chaimovich, brasileiro, nascido no Chile, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de novembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.
Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de novembro!
Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP. No artigo, Chaimovich explica que a bandeira do povo indígena Mapuche foi um símbolo que fortaleceu ainda mais o registro da convulsão social que tomou o Chile desde o ano passado e já resulta na aprovação de processo constituinte neste mês.
De acordo com o professor da USP, a bandeira do povo Mapuche, chamada de Wenüfoye (canelo del cielo), é um dos símbolos mais usados pelos manifestantes no Chile. Ele lembra que os protestos de parte significativa da sociedade chilena tiveram início em outubro de 2019.
“Do peso simbólico, consta o reconhecimento da existência do povo Mapuche, que, apesar de perseguido, conseguiu resistir ao aparato estatal que, desde a conquista espanhola no século XVI, tentou persistentemente eliminá-lo, ou assimilá-lo. Wenüfoye é, pois, um símbolo de rebeldia, um grito que não aceita a institucionalidade existente, um estandarte de luta”, analisa.
No artigo publicado na Política Democrática Online de novembro, Chaimovich também lembra que, nos primeiros anos depois da independência em 1810, os republicanos chilenos se voltaram para o passado heroico dos Mapuches, chamados de “índios chilenos”. O objetivo, segundo o autor, era demonstrar simbolicamente que eles seriam a semente de um povo valente amante da liberdade, justamente o povo chileno.
“Esta visão durou pouco na República independente, pois o poder, formado por criollos (a denominação dos estratos dominantes na época), compreendia somente a burguesia mercantil, mineradora ou terratenente”, afirma, para acrescentar: “Este conjunto dominante visava construir e expandir um estado-nação cujas fronteiras deviam se estender até o sul do Chile, território ao sul do rio Biobío, terra dos Mapuches”.
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El País: Sentença histórica contra o centro de tortura de mulheres na ditadura de Pinochet
Um juiz do Chile considera que os abuso sexuais cometidos por agentes da polícia secreta constituíram “uma forma específica de violência contra a mulher”
Pablo Cadiz, El País
Beatriz Bataszew ficou aterrorizada quando soube o que estava acontecendo no porão de Venda Sexy. Horas antes, em 12 de setembro de 1974, ela havia sido detida por agentes da Direção Nacional de Inteligência (DINA), a polícia secreta da ditadura de Augusto Pinochet, que a transferiram para aquele centro clandestino instalado em uma casa de dois andares de um setor de classe média da comuna de Macul, em Santiago do Chile.
A origem do nome Venda Sexy está registrada no primeiro Relatório da Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura ―mais conhecido como relatório Valech. Lá ficou estabelecido que era parte do jargão dos agentes da DINA e estava relacionado ao seu método preferido de tortura: abuso sexual, principalmente de mulheres, que durante sua passagem pela casa ficavam nuas e vendadas.
Para Beatriz Bataszew, estudante de engenharia florestal e militante do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), sua passagem pelos porões da casa foi de cinco dias, nua, vendada, sem contato com o exterior e submetida a vários interrogatórios nos quais foi torturada, agredida e abusada sexualmente. O lugar também era conhecido como a discoteca: um toca-discos ficava ligado a todo volume para ocultar o horror.
O que aconteceu em Venda Sexy, afirma Beatriz, estava completamente fora do que ela e outros militantes de movimentos de esquerda imaginavam sobre a repressão, em meio aos anos mais duros da ditadura. Um dos primeiros avisos do que ela iria viver chegou ao escutar a história de Marta Neira, de quem perderiam todo o rastro e iria engrossar a lista dos mais de 1.210 presos desaparecidos pelo regime: “Ela voltou do porão e relatou desesperada, desconcertada, que havia sido violentada pelo cachorro. Isso foi terrível para nós que ainda não tínhamos passado por aquela experiência, porque quando ela contava eu pensava que isso iria acontecer comigo, e de fato aconteceu”.
Os estupros eram perpetrados pelos próprios agentes da DINA e em especial por uma mulher: Ingrid Olderock, descendente de alemães, com ideias ligadas ao nazismo, que se tornou conhecida na polícia secreta por meio de seu cachorro Volodia, da raça pastor alemão e treinado para cometer os abusos. “Não foi só violência sexual, foi violência política sexual, que tinha como objetivo nos domesticar, nos disciplinar e particularmente nos punir, porque éramos mulheres que lutávamos decididamente contra a ditadura”, diz Beatriz Bataszew, lembrando o que viveu há quase meio século.
O caso dela faz parte de uma decisão inédita da Justiça chilena que incorporou uma perspectiva de gênero ao condenar os ex-agentes da DINA Raúl Iturriaga Neumann, Manuel Rivas e Hugo Hernández a 15 anos de prisão como autores de sequestros e uso de tortura com violência sexual contra Beatriz e cinco outras mulheres: Cristina Godoy, Laura Ramsay, Beatriz Bataszew, Sara de Witt, Alejandra Holzapfel e Clivia Sotomayor; além de quatro homens que foram vítimas de sequestro e tortura entre 1974 e 1975, dentro de Venda Sexy.
A particularidade da decisão do juiz Mario Carroza reside no fato de que os abusos cometidos durante os interrogatórios foram considerados “uma forma específica de violência contra a mulher”, em consonância com padrões internacionais. “No estudo do ocorrido no referido recinto clandestino de detenção, os agentes não se limitaram apenas a sequestrar homens e mulheres, com o propósito de trancafiá-los e deles extrair informações, sob tortura, que no caso das mulheres, por sua natureza e gravidade, tiveram um impacto sobre elas que marcou sua vida futura”, explica Carroza ao EL PAÍS.
Para o juiz, o que as mulheres vivenciaram no interior daquela casa “foram circunstâncias desumanizadas, degradantes e abusivas”, e que deveriam ser entendidas como uma figura penal diferente e que “tornasse evidentes essas circunstâncias”. Com as sentenças de prisão dos ex-agentes, Carroza condenou o Estado do Chile a pagar uma indenização de 80 milhões de pesos chilenos (cerca de 560.000 reais), por danos morais, a cada uma das demandantes. A sentença é inapelável.
Para Beatriz Bataszew, a sentença “tem um valor importante, mas tem limitações, entre as principais o fato de que não ser considerado o elemento político daquela violência. Isso significa que são julgados os que cometeram os atos, mas não quem orquestrou esse instrumento de terrorismo de Estado. Ou seja, não se julga a autoridade política”. “Há um progresso no sentido de que se avança na verdade, mas não consideramos que seja justiça um ato executado quase meio século depois. Se a justiça não é oportuna, não é justiça”, diz.
Já para a advogada Camila Maturana Kesten, da Corporação Humanas, organização feminista que presta apoio jurídico a vítimas de violações aos direitos humanos, “é da maior importância que o Judiciário chileno reconheça e destaque a particularidade da repressão exercida por agentes do Estado em Venda Sexy, assinalando que, além de infligir grave sofrimento físico e psicológico às pessoas sequestradas, foi cometida violência sexual sistemática e maciça, em particular contra mulheres”.
El País: Richard Nixon: “Se houver uma forma de desbancar Allende, é melhor fazer isso”
Cinquenta anos depois da chegada do socialista à presidência do Chile, o Arquivo de Segurança Nacional dos EUA divulga documentos inéditos que revelam as estratégias de Washington para desestabilizá-lo
Rócio Montes, do EL País
- Gravidez por estupro e tortura revelam como a era Pinochet fez das mulheres troféus de guerra
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Cinquenta anos depois da chegada de Salvador Allende ao poder no Chile, em 3 de novembro de 1970, o Arquivo de Segurança dos EUA divulgou documentos que derrubam a versão oficial sobre o papel desempenhado pela Administração de Richard Nixon (1969-1974) contra o Governo do socialista chileno. Durante décadas, os Estados Unidos afirmaram que intervieram no país sul-americano não com a intenção de desestabilizar a Unidade Popular de Allende, e sim de apoiar os partidos de oposição como vistas a uma eleição que seria realizada em 1976. Em suma, para “preservar” a democracia e suas instituições. O próprio Henry Kissinger, então assessor de Segurança Nacional dos EUA, declarou que seu país não sabia do golpe de Estado de 1973 ―que acabou com os mil dias da via chilena para o socialismo e levou o presidente à morte― e não tinha relação com aqueles que o impulsionaram na frente interna. Os documentos liberados agora pelo organismo, porém, evidenciam uma estratégia agressiva de hostilidade e pressão.
“Esses documentos registram o objetivo deliberado das autoridades americanas de minar a capacidade de Allende para governar e de derrubá-lo para que não pudesse estabelecer um modelo bem-sucedido e atraente de mudança estrutural que outros países poderiam seguir”, explica Peter Kornbluh, analista sênior encarregado do Chile no Arquivo de Segurança Nacional, uma ONG com sede em Washington que analisa os documentos desclassificados pelos Estados Unidos depois da detenção de Augusto Pinochet em Londres em 1998. “É uma história de um país pioneiro ―um poderoso império― que queria controlar os países, suas instituições e as vidas de seus cidadãos, mas não em nome da democracia, e sim de uma ditadura militar e sua repressão. No nosso mundo atual, em plena crise, devemos estar atentos a essa história trágica”, diz.
Kornbluh se refere a um dos principais temores do Governo de Nixon e, principalmente, de Kissinger: que o caminho do socialismo à chilena ―alcançado pela via democrática― expandisse sua influência não só na América Latina, mas também em outras regiões do planeta. “Acredito firmemente que esta linha é importante no que diz respeito a seu efeito nas pessoas do mundo”, disse Nixon a Kissinger em uma conversa telefônica em novembro de 1970, segundo os papéis divulgados pela primeira vez pelo Arquivo de Segurança Nacional. “Se [Allende] puder demonstrar que pode estabelecer uma política marxista antiamericana, outros farão o mesmo”, afirmou o presidente americano. Kissinger concordou: “Terá efeito inclusive na Europa. Não só na América Latina”.
Os documentos mostram que o assessor de Segurança Nacional influiu decisivamente na política que o Governo americano adotou em relação ao Chile, que incluiu uma tentativa frustrada de golpe de Estado para impedir que Allende assumisse a presidência que ele havia conquistado democraticamente. Estava marcada para 5 de novembro de 1970, na Casa Branca, uma reunião formal do Conselho de Segurança Nacional para discutir a política para o Chile. Mas Kissinger manobrou para adiar a reunião por 24 horas e, com isso, conseguir se reunir a sós com o presidente para que este desistisse de tomar decisões brandas em relação ao Governo de Allende, empossado dias antes. “É essencial que você deixe muito clara a sua posição sobre esse assunto”, disse Kissinger a Nixon. O assessor tinha motivos para se preocupar: nem todos os funcionários americanos estavam de acordo com uma estratégia hostil.
O Departamento de Estado temia que houvesse um escândalo internacional se os esforços para derrubar Allende ficassem em evidência e, por isso, defendeu uma política prudente de coexistência. Foi a chamada estratégia modus vivendi: apoiar os partidos da oposição chilena― os de centro e de direita― para ajudá-los nas eleições de 1976. O Escritório de Assuntos Interamericanos, entretanto, alertou que se Washington violasse seu “respeito pelo resultado das eleições democráticas”, reduziria sua credibilidade mundial, “aumentando o nacionalismo” contra os Estados Unidos. “Isso será utilizado pelo Governo de Allende para consolidar sua posição junto ao povo chileno e ganhar influência no resto do hemisfério”, assinalou o escritório em um documento.
Chile e o temor de uma “Cuba em 1972”
Kissinger fez gestões de alto nível para conseguir se reunir a sós com Nixon antes do encontro do Conselho de Segurança Nacional. De acordo com um memorando em que um funcionário do Gabinete do presidente justifica o adiamento da reunião, Kissinger advertiu: “O Chile pode acabar sendo o pior fracasso de nossa Administração: ‘nossa Cuba’ em 1972”.
A reunião, registrada em 5 de novembro de 1970, entre Nixon e seu assessor de Segurança Nacional foi realizada no Salão Oval. Durante uma hora, Kissinger apresentou um estudo completo para que a abordagem agressiva de longo prazo em relação ao Governo socialista saísse vitoriosa. “Sua decisão sobre o que fazer a respeito pode ser a decisão mais histórica e difícil sobre relações exteriores que você terá de tomar este ano”, disse Kissinger, dramaticamente, a Nixon. “O que acontecer no Chile durante os próximos 6 a 12 meses terá ramificações que irão muito além das relações entre Estados Unidos e Chile.”
Kissinger se referia à influência mundial da via chilena para o socialismo: “O exemplo de um bem-sucedido Governo marxista eleito no Chile certamente teria um impacto em ―e até mesmo um valor como precedente para― outras partes do mundo, principalmente na Itália. A propagação imitativa de fenômenos similares em outros lugares, por sua vez, afetaria significativamente o equilíbrio mundial e nossa própria posição nele”, analisou.
O assessor procurava, por todos os meios, convencer Nixon a pressionar a burocracia da política externa a adotar uma posição de mudança de regime, em vez de preferir a estratégia modus vivendi, segundo um documento desclassificado pelo Arquivo de Segurança Nacional e publicado pela primeira vez no livro de Kornbluh intitulado The Pinochet File, lançado em 2013, 40 anos depois do golpe de Estado.
“Podemos derrubá-lo”
A reunião do Conselho de Segurança Nacional foi finalmente realizada em 6 de novembro de 1970. Nem todos os participantes sabiam que Nixon tinha ordenado que a CIA impulsionasse secretamente um golpe de Estado preventivo para evitar que Allende assumisse a presidência do Chile, o que não havia dado certo. No encontro, havia um acordo importante: a eleição democrática de Allende e sua agenda socialista para uma mudança substancial ameaçavam os interesses dos Estados Unidos. Mas, como Kissinger temia, não havia consenso sobre o caminho a seguir. O secretário de Estado, William Rogers, manifestou sua oposição à hostilidade e à agressão aberta contra o Governo de Allende: “Podemos derrubá-lo, talvez, sem ser contraproducentes”. O secretário de Defesa, Melvin Laird, sustentou: “Temos de fazer tudo que pudermos para prejudicá-lo e derrubá-lo”.
O diretor da CIA, Richard Helms, apresentou um documento informativo no qual explicou como Allende conquistou a presidência em uma eleição apertada, traçou o provável rumo de suas políticas econômicas e de relações externas e fez uma análise de sua equipe de ministros. O presidente chileno escolheu “um gabinete militante de linha dura” que “reflete a determinação dos socialistas de afirmar sua política mais radical desde o início”, assinalou Helms, que também se dedicou a fazer anotações.
“Se houver uma forma de desbancar Allende, é melhor fazer isso”, indicou Nixon no encontro, segundo o manuscrito de Helms, que faz parte dos documentos desclassificados pelos Estados Unidos e publicados agora pela primeira vez. O presidente havia decidido: seria adotado um programa de agressão hostil, mas de baixo perfil, para desestabilizar a capacidade de Allende de governar. “Nossa principal preocupação no Chile é a possibilidade de que [Allende] possa se consolidar e a imagem projetada ao mundo seja seu sucesso”, disse Nixon ao dar instruções à sua equipe de Segurança Nacional. “Seremos muito frios e muito corretos, mas fazendo coisas que serão uma verdadeira mensagem para Allende e outros.
Em 9 de novembro, Kissinger distribuiu um memorando secreto com a decisão adotada no conselho, intitulado Política para o Chile. “O presidente decidiu que a posição pública dos Estados Unidos será correta, mas fria, para evitar dar ao Governo de Allende uma base sobre a qual reunir apoio nacional e internacional para a consolidação do regime”, resumiu o assessor de Segurança Nacional. “Mas os Estados Unidos procurarão maximizar as pressões sobre o Governo de Allende para evitar sua consolidação e limitar sua capacidade de implementar políticas contrárias aos interesses dos Estados Unidos e do hemisfério”, acrescentou.
O documento desclassificado pelos Estados Unidos detalha os métodos: autoridades americanas colaborariam com outros Governos da região ―principalmente do Brasil e da Argentina― para coordenar esforços contra Allende; seriam bloqueados, silenciosamente, os empréstimos dos bancos multilaterais para o Chile, e cancelados os créditos e empréstimos para exportações dos Estados Unidos para o país sul-americano; empresas americanas seriam recrutadas para abandonar o Chile; e seria manipulado o valor, nos mercados internacionais, do principal produto de exportação do Chile, o cobre, para afetar ainda mais a economia chilena. Além disso, a CIA foi autorizada a preparar planos de ação relacionados à futura implementação dessa estratégia.
Naquela ocasião, Nixon e seu assessor também mantiveram uma conversa telefônica na qual comentaram o discurso de posse de Allende. “Helms [diretor da CIA] tem de chegar a essas pessoas”, disse o presidente. Kissinger respondeu: “Deixamos isso claro”. A transcrição do diálogo foi divulgada pela primeira vez pelo Arquivo de Segurança Nacional.
Os novos documentos publicados lançam por terra as tergiversações que, durante décadas, autoridades dos Estados Unidos tentaram construir para que os EUA se esquivassem de sua responsabilidade pela quebra da democracia do Chile e pelos 17 anos de ditadura militar, que deixaram milhares de vítimas. Em setembro de 1974, o The New York Times revelou as operações encobertas da CIA para derrubar Allende. O Congresso americano abriu uma investigação sobre o assunto, o escândalo internacional resultou nas primeiras audiências públicas sobre as operações da CIA e foi publicado o estudo Covert Action in Chile 1963-1973 (“ação encoberta no Chile 1963-1973”), escrito por uma comissão especial do Senado, presidida pelo senador Frank Church (a comissão Church). Mas o Executivo americano reteve parte da documentação e os senadores que investigaram o caso não tiveram acesso ao registro completo sobre as deliberações e decisões da Casa Branca nos dias anteriores e posteriores à posse de Allende, que o Arquivo de Segurança Nacional revela agora, 50 anos depois dos fatos.
As palavras do poder
“Embora soubéssemos bastante sobre as maquinações do Governo de Nixon para impedir ou desestabilizar o Governo de Allende, é extremamente importante contar com estes documentos, incluindo notas manuscritas e transcrições de conversas telefônicas”, opina o historiador chileno-americano Iván Jaksic. “É surpreendente ver como aquilo que antes parecia ser especulação era mais do que verdadeiro. A crueldade da linguagem e as medidas propostas para pressionar o Governo de Allende e mandar sinais inequívocos a outros países são francamente arrepiantes”, acrescenta o ganhador do Prêmio Nacional de História de 2020. “São as palavras do poder e, com estes documentos, não resta dúvida de que por trás de cada palavra existiram medidas concretas que tiveram um impacto direto na agonia que viveu nosso país nesses anos.”
Jaksic conheceu o relatório da comissão Church assim que chegou aos Estados Unidos, em 1976: “Foi realmente devastador”, lembra o autor de livros como La Lucha por la Democracia en Chile (“a luta pela democracia no Chile”). “Mas a história não para por aí, pois nem mesmo essa comissão teve acesso a todos os documentos. As evidências que surgiram desde então e que continuam aparecendo são fundamentais para comunicar como foi urdida uma política em relação ao nosso país e à América Latina”, reflete.
O historiador, que mora em Santiago desde 2006, considera “notável” que se envolva a Europa na política para o Chile: “É evidente que, para o Governo dos EUA, o Chile era importante principalmente como um exemplo que não deveria se espalhar, ou seja, um marxismo que chega ao poder por vias democráticas”.
Segundo Ascanio Cavallo, jornalista e um dos autores de La Historia Oculta del Régimen Militar (“a história oculta do regime militar”), “não há ninguém no Chile que duvide da vontade do Governo de Nixon de que Allende não terminasse seu mandato”. “Mas tanto o próprio Nixon como Kissinger ―que em suas memórias faz uma referência muito breve ao Chile― sempre negaram um papel ativo dos Estados Unidos depois que Allende assumiu a presidência, diferentemente do que indicam estes documentos, que revelam que a Administração americana discutia como conseguir sua derrubada.”
RPD || Hernan Chaimovich: A Bandeira Mapuche e as manifestações no Chile
Bandeira do povo indígena Mapuche foi um símbolo que fortaleceu ainda mais o registro da convulsão social que tomou o Chile desde o ano passado e já resulta na aprovação de processo constituinte em novembro de 2020
Uma parte da população que ainda se interessa, no Brasil da pandemia e do Bolsonaro, pelo que sucede em volta de nosso país, está sendo pouco esclarecida pelo fenômeno social ímpar em curso no Chile. Não é que a situação do Chile seja fácil de entender, embora os meios de comunicação teimem em simplificar, daí se equivocarem. Como exemplo, menciono o fato de que o consistente uso da bandeira Mapuche como símbolo nas manifestações pouco tem a ver com a batalha contra o capitalismo agressivo que, sustentado pela Constituição de 1980, afeta a grande maioria da população chilena.
Em uma das manifestações mais populosas que, de certa forma, mostraram o peso do comoção social chilena no ano passado, mais de um milhão de cidadãos clamando por mudanças profundas no sistema institucional, em uma praça central de Santiago. A foto abaixo mostra que, além das bandeiras chilenas, outra flâmula se destaca.[1]
Trata-se da bandeira do povo Mapuche, chamada de Wenüfoye (canelo del cielo), um dos símbolos mais usados pelos manifestantes no Chile. Com início em outubro de 2019, os protestos de parte significativa da sociedade chilena já resultam na aprovação, por ampla maioria, de processo constituinte em novembro de 2020.
Antes de analisar como e por que este símbolo passa a ser protagonista em um movimento social muito mais amplo, é necessário descrever sinteticamente sua origem e significado. No peso simbólico desta flâmula, consta o reconhecimento da existência do povo Mapuche, que, apesar de perseguido, conseguiu resistir ao aparato estatal que, desde a conquista espanhola no século XVI, tentou persistentemente eliminá-lo, ou assimilá-lo. Wenüfoye é, pois, um símbolo de rebeldia, um grito que não aceita a institucionalidade existente, um estandarte de luta.
O guerreiro-poeta espanhol do século XVI Alonzo de Ercilla y Zúñiga (1533 – 1594), depois de viajar ao Chile, onde participou na guerra contra os indígenas araucanos (denominados hoje Mapuches), escreveu um poema épico, chamado La Araucana.[2] Nele, o autor rompe com uma tradição dos conquistadores ao enaltecer a coragem e a capacidade militar dos adversários. Ercilla confere aos Mapuches a dignidade e a humanidade que os conquistadores, e a religião que os acompanhava, lhes negavam. [3] Segundo Ercilla, o conceito de liberdade, e não a pátria, seria para os Mapuches um bem supremo, e a afronta a sua liberdade e sentido de justiça os levaria à guerra contra os espanhóis. Os conquistadores espanhóis nunca conseguiram dominar o território Mapuche, e, em um fato inédito, assinam o tratado de paz “El Pacto de Quilin” em 1641. Nesse tratado, os espanhóis reconhecem a independência Mapuche e o rio Biobío como fronteira natural entre ambos os povos. Apesar deste tratado, e durante toda a colônia, os embates entre espanhóis e Mapuches são frequentes, e nunca os indígenas abandonam sua luta.
Nos primeiros anos depois da independência em 1810, os republicanos chilenos se voltam para o passado heroico dos Mapuches, chamados de “índios chilenos”, para demonstrar simbolicamente que eles seriam a semente de um povo valente amante da liberdade, justamente o povo chileno.
Esta visão durou pouco na República independente, pois o poder, formado por criollos (a denominação dos estratos dominantes na época) compreendia somente a burguesia mercantil, mineradora ou terratenente. Este conjunto dominante visava construir e expandir um estado-nação cujas fronteiras deviam se estender até o sul do Chile, território ao sul do rio Biobío, terra dos Mapuches. Muito cedo esta imagem do “índio valiente” desaparece do imaginário nacional para considerar o Mapuche um povo bárbaro, miserável, que se podia pilhar. Esta visão, de uma ou de outra forma, persiste até hoje, especialmente porque a resistência contra as consequências das políticas do liberalismo selvagem na região deu origem ao movimento Mapuche revolucionário, nas décadas pós-Pinochet.
Wenüfoye, símbolo complexo que representa os Mapuches como povo, nasce em outubro de 1992. A própria denominação Mapuche já pressupõe algo a respeito da relação com o território, pois “mapu” se traduz como gente, e “che”, como terra. Grupos representantes da diversidade de territórios ocupados pelos Mapuches no sul do continente americano (lafkenche, nagche, wenteche, nagche do Chile e inclusive puel mapu da Argentina) se reuniram e incorporaram nesta bandeira as propostas provenientes das distintas etnias Mapuches.
A bandeira é altamente simbólica, e o artista Jorge Weke, indígena que participou na reunião de criação de Wenüfoye, em entrevista dada em 2003, assim os descreve:
«El color negro y blanco representan el equilibrio o la dualidad entre el día y la noche, la lluvia y el sol, lo tangible y lo intangible, etc. El azul representa la pureza del universo; el verde nuestra mapu, el Wallmapuche o territorio de asentamiento de nuestra nación. Y el rojo la fuerza, el poder, la sangre derramada por nuestros ancestros. Al medio el kultrung y todos sus significados ya conocidos y en el extremo inferior y superior la representación de los kon«.
Em outras fontes, se percebe que “Cultrún (kultrung ou kultrug), o tambor Mapuche; em sua superfície plana, que representa a superfície da Terra, o desenho circular da cosmovisão Mapuche é traçado: os quatro pontos cardeais e entre eles o sol, a lua e as estrelas; símbolo do conhecimento do mundo. Guemil (ngümin), cruz escalonada ou estrela - semelhante à "cruz andina" ou chacana - ou losango com borda em ziguezague: representa a arte da manufatura, da ciência e do conhecimento; escrevendo prompt de comando.[4] "
O que a sociedade chilena vê hoje na Wenüfoye? Talvez mais democracia e resistência. Mas, também, um símbolo de libertação, de autorreconhecimento, de acreditar na unidade na diversidade, de respeitar e valorizar as contribuições que cada segmento pode aportar na construção de uma sociedade mais justa. É palpável que um novo contrato social é efetivamente necessário. Da mesma forma, é notável que a sociedade dita "de baixo" é mais multicultural do que a classe dominante, ou "de cima". É por isso que Wenüfoye se tornou o principal emblema do gérmen de uma nova sociedade que nasceu, e da luta pela democratização da cena política do país.
*Hernan Chaimovich é brasileiro, nascido no Chile, Professor Emérito do Instituto de Química da Universidade de São Paulo.
[1] Foto de Suzana Hidalgo tomada na manifestação da Praça Baquedano, Santiago, Chile (Plaza Dignidad) em 27/10/2019.
[2] Disponível na Biblioteca Digital Hispánica [http://bdh.bne.es].
[3] Leandro José Nunes (2010) Uma análise da Obra “La Araucana e a sua Crítica ao Colonialismo”, Tese de Doutorado da Universidade Federal de Uberlândia.
[4] Esta Nota se inspira em artigo do Fernando Paraican https://www.ciperchile.cl/2019/11/04/la-bandera-mapuche-y-la-batalla-por-los-simbolos.