Chico Buarque
Chico Buarque revisita 'Anos de Chumbo' em livro de contos
Foi o escritor Rubem Fonseca (1925-2020) quem apresentou o editor Luiz Schwarcz a Chico Buarque.
André Bernardo / Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
O fundador da Companhia das Letras sonhava publicar uma antologia com suas letras. Diante da negativa do compositor, Fonseca protestou: "Como não? Vai dizer que (a canção) Pedro Pedreiro não é poesia, p...?".
Schwarcz não desistiu. "Se você não quiser publicar comigo, estou me oferecendo para ser goleiro do seu time", brincou em carta. "Então, vem para cá", respondeu Chico, dono do Polytheama, um time de futebol que reúne amigos e convidados.
"A Marieta (Severo, então mulher de Chico) me comprou um computador". Entre uma pelada e outra, os dois começaram a amadurecer a ideia de um livro em prosa. No documentário Chico: Artista Brasileiro (2015), de Miguel Faria Jr, o cantor admite que se arriscou na literatura durante uma "crise" como compositor. "Durante um ano, não conseguia fazer porcaria nenhuma", confessa.
Estorvo foi escrito no Leblon, bairro da Zona Sul do Rio onde Chico mora, e concluído no Marais, em Paris, onde tem apartamento. Por um momento, pensou em usar pseudônimo - como fez na época da ditadura militar quando gravou três canções, Acorda, Amor e Jorge Maravilha (1974) e Milagre Brasileiro (1975), como Julinho da Adelaide. Mas desistiu da ideia ao desconfiar que, se o livro fizesse sucesso, morreria de raiva por ninguém saber que era dele. "Não ia conseguir segurar", cai na risada.
Com o original de Estorvo em mãos, Schwarcz resolveu arriscar. Antes de distribuir provas do romance para jornalistas, resolveu enviá-las para dez ou doze críticos, como José Paulo Paes (1926-1998) e Leyla Perrone-Moisés.
"Estorvo era um livro forte e original", recorda Perrone-Moisés, doutora em Língua e Literatura Francesa e professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
"Seus méritos como romancista são vários: perfeito domínio da língua (o que qualquer escritor devia ter, mas nem sempre tem), concisão, vocabulário, senso agudo de observação, imaginação narrativa e originalidade".
Publicado no dia 2 de agosto de 1991, Estorvo esgotou a tiragem inicial de 30 mil exemplares em apenas dois dias. Ao todo, segundo estimativas extraoficiais, vendeu 173 mil exemplares. Conquistou o Jabuti de melhor romance e ganhou versão para o cinema escrita e dirigida por Ruy Guerra. Nesta sexta-feira (22/10), a obra é relançada pela Companhia das Letras, com novo projeto gráfico e edição de capa dura.
"Profundamente pessimista, Estorvo era profético. Chico retratou uma sociedade em dissolução, vítima da alienação, da corrupção e da violência criminosa", continua Perrone-Moisés. "Na ocasião, (o crítico) Roberto Schwarz observou que o romance era uma metáfora do Brasil daquele momento, e que a trama dava a sensação de que 'o futuro pode dar mais errado ainda'. Trinta anos depois, o Brasil está, de fato, ainda pior. Estamos, como o personagem do romance, numa desesperada fuga para não se sabe onde".
'Esta canção não é mais que uma canção...'
Nesta sexta-feira (22/10), chega às livrarias, também, Anos de Chumbo e Outros Contos.
São, ao todo, oito narrativas curtas: Meu Tio, sobre uma jovem prostituída pelos pais; O Passaporte, um artista sabotado que resolve se vingar; Os Primos de Campos, uma família às voltas com a violência policial; Cida, uma mulher em situação de rua; Copacabana, um passeio nostálgico pelas ruas do bairro; Para Clarice Lispector, Com Candura, um jovem poeta e sua idolatria por uma escritora famosa; O Sítio, um casal que decide viajar na pandemia; e Anos de Chumbo, um lar em pé de guerra na ditadura.
"Gostaria de não distinguir o Chico poeta do Chico prosador. Todas as suas obras - de forma mais evidente suas canções - revelam uma incrível sensibilidade para a sonoridade da língua", destaca Marisa Lajolo, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e professora de Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Até agora, Chico Buarque tinha escrito (e publicado) um único conto, Ulisses, no suplemento literário do jornal Estado de S. Paulo, em 1966. Na edição de 30 de julho, o aspirante a escritor dividiu a página 3 com pesos-pesados da literatura brasileira, como o poeta Augusto de Campos e o crítico literário Otto Maria Carpeaux (1900-1978).
Em Ulisses, o herói grego da epopeia de Homero é transformado em caixeiro viajante.
"Ulisses quer abrir as janelas, as janelas não deixam. O rosto de Penélope também estava emperrado. - Penélope, cadê seu sorriso? Suas saudades, seus braços, seus amores, cadê? Mas qual, você não larga esse tricô. Ora, mulher, seu Ulisses chegou e pronto! Cadê meu jantar, cadê meu jornal, cadê?", dizia um trecho do conto.
"O mais difícil para mim quando vou escrever, seja literatura ou música, é começar", confidenciou Chico ao jornalista e escritor Humberto Werneck em Tantas Palavras (2017). "E, para escrever contos, vou ter que começar várias vezes...".
Naquele mesmo ano, no dia 1º de maio de 1966, Chico lançou seu primeiro álbum, Chico Buarque de Hollanda, com 12 das suas 528 músicas. Dessas 12, A Banda e A Rita estão entre as 10 mais tocadas nos últimos dez anos.
Segundo o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), sua música mais executada é Iolanda (1984), versão do artista para uma canção do compositor cubano Pablo Milanés, e a mais regravada, Gente Humilde (1970), letra de Chico e Vinícius de Moraes (1913-1980) e música de Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto (1915-1955).
Os bastidores da criação
Chico já enveredou por outros gêneros, como a novela Fazenda Modelo (1974), livremente inspirada em A Revolução dos Bichos (1945), de George Orwell (1903-1950).
"Enquanto Orwell satiriza uma ditadura de esquerda, Chico satiriza uma de direita", observa Rinaldo de Fernandes, doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, autor de livros sobre a obra de Chico e organizador do livro Chico Buarque - O Romancista (2011). "Em Fazenda Modelo, já temos um escritor de talento, com pleno domínio da técnica narrativa e da construção dos personagens".
Depois de Fazenda Modelo, vieram o livro infantil Chapeuzinho Amarelo (1979), dedicado à Luísa, sua caçula, então com dois anos, e o poema A Bordo do Rui Barbosa (1981), ilustrado pelo artista plástico Vallandro Keating, um colega da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU). Só peças teatrais, foram quatro: Roda Viva (1967); Calabar (1973), com Ruy Guerra; Gota D'Água (1975), com Paulo Pontes (1940-1976); e Ópera do Malandro (1978).
Por ocasião de Fazenda Modelo, Chico descobriu um apaixonante mundo novo: o da literatura.
Às voltas com sua "novela pecuária", parou de compor, ficava recluso em casa e só atendia ao telefone quando era chamado para jogar bola. De lá para cá, aperfeiçoou seu método de trabalho. Costuma pensar no que está escrevendo desde o momento em que acorda até a hora em que vai dormir. À noite, deixa um bloquinho ao lado da cama.
"Às vezes, vêm ideias na vigília, ou quando desperto", explica para a jornalista e biógrafa Regina Zappa no livro Para Seguir Minha Jornada (2011). Quando sofre algum bloqueio, sai para caminhar no Leblon ou joga paciência no computador. "Uma hora jogando até ter uma ideia".
Gosta de escrever todos os dias, nem que seja uma linha ou parágrafo, e de reler "mil vezes" o que escreveu. Tem mais. Quando escreve, não lê. Tampouco ouve música ou toca violão.
Um escritor em construção
Em 30 anos de produção literária, Chico lançou mais cinco romances: Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite Derramado (2009), O Irmão Alemão (2014) e Essa Gente (2019). Juntos, já foram traduzidos para "mais de 20 idiomas", segundo a editora, que não divulga o total de exemplares vendidos.
Certa vez, participou de uma tarde de autógrafos em Oslo, na Noruega. No meio da coletiva de imprensa, um dos repórteres perguntou: "É verdade que você também canta em seu país?". Gaiato, Chico respondeu: "Por acaso, também canto".
O segundo romance, Benjamim, chegou às livrarias em 7 de dezembro de 1995. Chico chegou a suspender a turnê do álbum Paratodos (1993) para se dedicar em tempo integral ao livro. Para Benjamim não soar como continuação de Estorvo, fugiu da primeira pessoa, deu nome aos personagens, mudou o tempo verbal.
Quando chegou ao último capítulo, mostrou o material para Rubem Fonseca. O amigo implicou com o sobrenome de Alyandro, Escarlate. "Muito alegórico", disse. Chico não se convenceu. E pediu uma explicação melhor. "Para dizer a verdade, esse sobrenome é uma merda!", disparou Fonseca. Convencido, Chico mudou para Aliandro Sgaratti.
Benjamim teve recepção menos calorosa que Estorvo - o crítico Wilson Martins (1921-2010) chegou a chamar a literatura de Chico de "amadorística" em resenha no jornal O Globo. Mesmo assim, vendeu 84 mil exemplares. A exemplo de seu antecessor, também foi adaptado para o cinema. No longa de Monique Gardemberg, Danton Mello e Paulo José (1937-2021) se revezaram no papel de Benjamim Zambraia.
Budapeste, seu terceiro romance, foi lançado em 10 de setembro de 2003. A princípio, José Costa, o protagonista, seria arquiteto e não escritor. Com 285 mil exemplares vendidos em 30 países, ganhou o Jabuti de melhor livro e virou longa nas mãos de Walter Carvalho.
"Considero como o maior mérito de Chico Buarque sua coragem e versatilidade em trabalhar em múltiplos campos artísticos", afirma Tânia Mattos Perez, doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do livro Chico Buarque - A Alegoria e o Duplo na Ficção (2017), que tem em Budapeste seu romance preferido de Chico. "Trata-se de um livro engenhoso, original e poético".
Três vezes Jabuti
Em 25 de março de 2009, Chico Buarque lançou seu quarto romance, Leite Derramado. Se a tiragem inicial de Estorvo era de 30 mil exemplares, a de Leite Derramado saltou para 70 mil. E, pela terceira vez, ganhou o mais tradicional prêmio da literatura brasileira, concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL).
Na categoria romance, Leite Derramado tirou o segundo lugar - o primeiro foi para Se Eu Fechar Os Olhos Agora, do jornalista Edney Silvestre. Em compensação, arrebatou o prêmio de livro do ano de ficção e, de quebra, embolsou R$ 30 mil. "Pelo visto, e o Jabuti não me deixa mentir, tenho me aventurado na literatura com sucesso", declarou, na cerimônia de premiação.
Quem não gostou nada do resultado foi o editor Sérgio Machado (1948-2016). Responsável pela publicação de Se Eu Fechar Os Olhos Agora, ele anunciou que o Grupo Editorial Record, do qual era presidente, passaria a boicotar o Jabuti. "Tomamos a decisão de não mais compactuar com a comédia de erros", avisou em carta. No ano seguinte, a CBL mudou o regulamento: só os primeiros colocados de cada categoria disputariam o prêmio de livro do ano.
"Chico Buarque já declarou que a ideia de escrever Leite Derramado surgiu quando escutou, na voz de Mônica Salmaso, O Velho Francisco (1987)", observa Ana Maria Clark Peres, doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora do livro Chico Buarque: Recortes e Passagens (2017). "E mais: Eulálio, o protagonista, tem o mesmo nome do 'tataravô baiano' de Paratodos (1993). O romance, por sua vez, nos remete a Barafunda (2010), na qual o eu lírico embaralha lembranças: 'Gravei na memória / Mas perdi a senha'".
Homenagem ao meio-irmão
O quinto romance, O Irmão Alemão, chegou às livrarias em 7 de novembro de 2014. Antes, Chico não sabia que seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1909-1982), tinha tido um filho alemão. Foi em 1930, quando ele, então repórter de O Jornal, trabalhou como correspondente em Berlim. Sérgio se casou com Maria Amélia, mãe de Chico Buarque e seus irmãos, em 1936.
Quem revelou o segredo foi o poeta Manuel Bandeira (1886-1968), em 1967. Durante visita a sua casa no Rio, Bandeira deixou escapar: "Ah, o Sérgio... Aquele filho alemão!". Chico, então com 22 anos, arregalou os olhos: "Filho alemão?". Vinícius indagou: "Você não sabia?". Não, não sabia.
O tal "filho alemão" a que Bandeira se referia era Sérgio Ernst (1930-1981). Abandonado pela mãe, Anne Margerithe Ernst, foi adotado pelo casal Arthur e Pauline Günther. Já adulto, tornou-se jornalista, cantor e apresentador de TV na antiga Alemanha Oriental.
Sérgio Günther morreu em 1981, de câncer no pulmão. Chico começou a escrever O Irmão Alemão em setembro de 2012, mas teve que interromper em março de 2013. "Não consigo mais escrever sem saber o que, de fato, ocorreu com meu irmão", confidenciou a Schwarcz. Sua ida a Berlim foi registrada por Miguel Faria Jr. no documentário Chico: Artista Brasileiro (2015).
"Pela força, tanto biográfica quanto ficcional, de dar vida a um personagem quase 'fantasma' até 2012, ano em que foi confirmada sua existência, meu romance favorito é O Irmão Alemão", elege Sylvia Cyntrão, doutora em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB) e organizadora de Chico Buarque - Sinal Aberto! (2015).
Chico Buarque jantava em Paris quando soube, em maio de 2019, que tinha ganhado, por unanimidade, o Prêmio Camões, o mais prestigiado da língua portuguesa. "Fiquei muito feliz e honrado de seguir os passos de Raduan Nassar", declarou, em comunicado oficial.
Cinco meses depois, o presidente Jair Bolsonaro fez mistério sobre assinar o diploma. "Tenho prazo? Então, 31 de dezembro de 2026, eu assino", avisou, fazendo alusão a um segundo mandato, já que o atual termina em 31 de dezembro de 2022. O gracejo não ficou sem resposta. "A não assinatura do Bolsonaro é, para mim, um segundo prêmio Camões", rebateu o cantor, em seu perfil no Instagram.
Seu mais recente romance é Essa Gente, de 2019. Foi o que levou menos tempo para escrever: 11 meses. Esboçou as primeiras linhas em novembro de 2018 e colocou o ponto final em setembro de 2019. Publicado em 9 de novembro de 2019, mereceu elogios do escritor indiano Salman Rushdie. "A imaginação literária de Chico Buarque é bela e peculiar", afirmou o autor de Versos Satânicos (1989). "Ler sua ficção é sempre um prazer".
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58974978
Cacá Diegues: Aquilo que somos como país
Chico Buarque de Hollanda é um desses gênios, o mais importante e completo de sua geração
Na vida de uma nação, há certas circunstâncias do passado das quais é impossível fugir. Ao longo de nossa história, estamos sempre tentando escapar daquilo que somos, da natureza de nosso começo e de nossa formação, da cultura que nos deu origem e que nos permite respirar por nossa própria conta, sem vergonha e sem censura. Mas, de vez em quando, aparece um gênio entre nós que nos obriga a lembrar de tudo isso. Aí recolhemos o facho, encabulados de nosso empenho para negar-nos a nós mesmos.
Chico Buarque de Hollanda é um desses gênios, o mais importante e completo de sua geração. Um criador que nos ensina a sermos nós mesmos, a nos reconhecermos e nos regozijarmos com o que somos. Sobretudo a termos consciência de nossos erros, entre os quais o mais grave sempre foi o da desigualdade, esse castigo que a democracia formal costuma esconder.
Conheci Chico em 1966, por meio de Nara Leão. Ela chegava de São Paulo trazendo canções de um jovem compositor que acabara de conhecer. Nara decidira cantar uma delas num festival próximo, mas ainda não a sabia de cor. Ela tirou da bolsa um papel amassado, com versos que ainda não decorara: “Estava à toa na vida/ O meu amor me chamou/ Pra ver a banda passar/ Cantando coisas de amor”. Era a primeira vez que a ouvia cantar “A banda”, que se tornaria um hino adotado por toda a população do país, independente de idade ou sexo, independente de opção política.
Poucos dias depois, encontrei o compositor num restaurante boêmio de Copacabana e fiquei sabendo que o jovem paulista era carioca, filho de um de nossos ídolos nas atividades culturais da PUC, Sérgio Buarque de Holanda. O autor de “Raízes do Brasil” deve estar no céu, comemorando adoidado o Prêmio Camões que seu filho acaba de ganhar. É a sua cara.
O Prêmio Camões é destinado, todo ano, a um escritor de língua portuguesa que tenha se destacado no uso dela. Nada mais justo que tenha sido dado, em 2019, a Chico Buarque. Não só pelas canções que escreveu e nos fez cantar descobrindo o Brasil, mas também pelas peças e romances que perturbaram nossa convicção de que sabíamos tudo sobre o país e seu povo. Sua obra, por trás de eventuais lágrimas e sorrisos francos, tem sempre alguma coisa a mais para nos fazer conhecer, mais e melhor, a nós mesmos. Esse prêmio já foi dado a muitos de nossos mestres, como João Cabral de Melo Neto (o primeiro a recebê-lo), Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, Ferreira Gullar, Alberto da Costa e Silva, Raduan Nassar, entre outras e outros. Com toda a justiça, toda a honra e toda a glória, Chico Buarque agora se junta a eles.
Com gosto por tudo que é popular no Brasil, como na banda de “A banda”, Chico se espalhou pelos temas que melhor nos representam, como o carnaval, o futebol, o circo, o morro, a malandragem, a dor de corno, os dissabores políticos. E o amor, claro. Além do próprio Brasil, que ele nem sempre identificou em sua obra, mas que está presente nela, como no “Sabiá” e mesmo, surpreendentemente, em “Joanna Francesa”. Por falar em cinema, pelo menos nos filmes que fiz, ele nunca nos entregou com antecedência uma canção prontinha, preferindo escrevê-la no estúdio, antes da gravação. Foi assim com quase todos os números de “Quando o carnaval chegar” e com “Bye Bye Brasil”, cuja letra criou depois de ver apenas uma vez o copião do filme, numa velha moviola.
Chico é um exemplo de integridade. Não importa se você não concorda com as posições políticas dele. Se é discriminado ou odiado pelos que não estão de acordo com suas preferências, nunca o vi praticar qualquer ato de rejeição a uma pessoa porque ela não é lulista ou coisa que o valha. Se Chico se aborrecer com alguém, não há de ser por isso. Mas por outro motivo, como um gesto canalha praticado pela vítima de sua rejeição. É pública a história da noite em que jantávamos com amigos no Leblon e, quando deixamos o restaurante, ele foi xingado em voz alta e agredido moralmente por uns rapazes do outro lado da rua. Pois Chico atravessou a rua para discutir amavelmente com seus agressores, que calaram inibidos e talvez envergonhados.
E aqui peço licença a nosso herói para criticar um ídolo seu, o ex-presidente Lula. Não é verdade que só agora, por causa do Prêmio Camões, Chico finalmente apareceu na telinha da TV Globo, “pela primeira vez”. Que eu me lembre, Chico já esteve antes no próprio “Jornal Nacional”, no “Fantástico”, num tributo a Marielle Franco e em outros programas da Globo, inclusive uma série histórica de shows semanais, em dupla com Caetano Veloso, criada por Daniel Filho. Um líder popular responsável não deve iludir seus admiradores com informações falsas ou com má informação. Não é agindo irracionalmente, sobre quem não concordamos, que vamos tornar mais racional a polarizada disputa política no Brasil.
Voltando ao que interessa, quem ganhou o Prêmio Camões deste ano foi o Brasil e todos os brasileiros que, como Chico Buarque, sonham com um país mais igual, mais livre e mais justo, onde seja possível viver em paz.
Chico Buarque: “Com esses ministros, é preferível que Cultura não tenha ministério”
Artistas e intelectuais comentam a aterrissagem de Bolsonaro em Brasília. Temor maior é corte no Sistema S
Por Beatriz Jucá, do El País
"Com esses ministros, é preferível que Cultura não tenha ministério”. A frase dita pelo cantor Chico Buarque ao EL PAÍS ilustra o mal-estar que aflige boa parte da classe artística sobre os rumos do setor no Governo Bolsonaro. As políticas culturais, que ano após ano não chegam perto de 1% do orçamento geral, são uma incógnita até mesmo para os artistas e produtores brasileiros, que têm opiniões divergentes sobre os efeitos da perda de um ministério exclusivo para o assunto. De um lado, há reações bem menos enérgicas contra a extinção da pasta que as de 2016, quando o então presidente Temer recuou da proposta pela pressão de agentes culturais. De outro, o temor de que os cortes pretendidos pela equipe econômica de Paulo Guedes no Sistema S e o enxugamento nos bancos públicos inviabilizem ações que preenchem lacunas deixadas pelo poder público na produção e no acesso à cultura brasileira.
O cantor Chico Buarque, que nunca escondeu sua afinidade com o Partido dos Trabalhadores (PT), é um dos mais contundentes ao comentar a aterrissagem do novo presidente em Brasília. “Só posso dizer o seguinte: em vista da qualidade dos ministros deste Governo, acho que é preferível que a cultura não tenha ministério”, disse ao EL PAÍS. Nem todos concordam que as mudanças promovidas pela extrema direita causarão riscos à cultura brasileira. O presidente da Ancine (órgão público que regula e promove o cinema), Christian de Castro, afirma que o setor não sofrerá nenhum impacto, que a produção é sólida e está amparada por uma legislação que existe há 20 anos. No entanto, enfatiza que a liberdade criativa é necessária para fazer filmes e vendê-los. “Sempre que há censura, perdemos dinheiro”, diz. O cinema brasileiro movimentou mais de 2,7 bilhões de reais em 2017.
Alguns anúncios feitos pela equipe do presidente, no entanto, já vinham causando preocupação a agentes culturais antes mesmo do início desta gestão. Ainda no período de transição, o ministro de Economia, Paulo Guedes, defendeu que é preciso "meter a faca" no Sistema S e cortar verbas públicas que sustentam nove entidades privadas responsáveis por promover educação e cultura no país. Entre elas, está o Sesc, que tem uma das maiores redes de promoção de atividades artísticas no Brasil. A entidade promove ações em distintas linguagens culturais em todos os estados brasileiros, que estabelecem uma agenda conforme a realidade regional, mas é também responsável por grandes ações nacionais. Entre elas, o maior circuito nacional de artes cênicas, Palco Giratório.
Sem especificar de quanto será o corte no Sistema S, Guedes argumentou que há um suposto desvio de finalidade com o investimento em "patrocínios" e não só em capacitação profissional. As declarações motivaram uma resposta do diretor estadual do Sesc de São Paulo, Danilo Miranda, em vídeo publicado nas redes sociais. Nele, alega que o Sistema S tem um caráter sociocultural, com ações voltadas para vários campos.
O diretor estadual do Sesc de São Paulo em exercício, Luiz Galina, diz que a possibilidade de cortes é preocupante, mas que até agora o Governo não fez nenhum movimento formal para efetivá-los. "Se houver redução dos recursos, não há outras entidades que possam cumprir o papel que o Sesc tem hoje. A nossa preocupação é democratizar o acesso, fazer com que pessoas de menor renda possam usufruir dessas atividades, que muitas vezes são gratuitas", defende. Também há preocupação de que os cortes de gastos pretendidos pelos novos presidentes do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal afetem as ações dos centros cultuais mantidos por estas instituições, que em algumas cidades brasileiras são responsáveis por grande parte da agenda cultural disponibilizada para a população.
Lei Rouanet
No centro do furacão das políticas culturais sob Bolsonaro, ainda está a chamada Lei Rouanet, uma controvertida normativa que oferece isenções fiscais às empresas em troca do pagamento de projetos culturais. Aprovada pelo presidente Fernando Collor de Mello em 1991, foi constantemente criticada, mas é o principal meio de financiamento cultural no Brasil. Grande parte dos teatros e museus depende dela. Graças à esta lei, cinco projetos são concretizados por dia desde que entrou em vigor.
A principal crítica é que, embora o Governo deva aprovar os projetos a serem financiados, são os empresários que escolhem o que apoiar. Bolsonaro costuma insistir que essa regra foi usada pelo PT de Lula para “comprar apoio” de artistas famosos. “Vamos eliminar o Ministério da Cultura e teremos apenas um secretário para tratar do assunto. Hoje, o Ministério da Cultura é apenas um centro de negociações da Lei Rouanet”, proclamou Bolsonaro na campanha. Apesar das críticas do presidente, dados do extinto Ministério da Cultura indicam que a Lei Rouanet representa apenas 0,3% das isenções fiscais brasileiras, mas tem um impacto importante na economia: para cada real investido, é gerado 1,59 real.
A atriz Fernanda Montenegro está convencida de que o desaparecimento do ministério prejudicará a produção teatral em particular. E está irritada, tanto que fez uma declaração no Domingão do Faustão: “Eles nos tratam como se fôssemos fora da lei”, disse em um dos programas de domingo de maior audiência da televisão brasileira. “Não somos ladrões da Lei Rouanet. Que procurem os verdadeiros corruptos deste país!”. A atriz sustenta que o presidente “acusou de maneira violenta” o pessoal do teatro porque a criticada lei é sua principal fonte de financiamento.
O cantor Gilberto Gil, que foi ministro da Cultura em um dos Governos Lula, lamenta o fechamento do ministério, porque acredita que o Brasil “teria mais condições de responder às demandas da cultura”, mas pondera que a política cultural sob Bolsonaro ainda é uma incógnita. “Vamos ver como a política cultural chegará ao Governo, qual será o grau de prestígio”, disse em entrevista à Folha de S.Paulo. Apesar de suas críticas e discursos, o presidente anunciou que manterá a polêmica Lei Rouanet, mas submetida a auditorias.