chagas
Revista online | As chagas da Copa do Mundo
Álvaro José dos Santos Silva*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)
Corriam os anos de 1982/83/84. Embora a ditadura militar brasileira estivesse agonizando por falta de apoio popular, um clube de futebol resolveu dar uma ajuda ao esforço de fechar a alça daquele caixão. Jogadores unidos ao técnico e diretoria criaram o movimento intitulado Democracia Corinthiana. Mário Travaglini, o treinador, uniu-se a jogadores como Wladimir, Casagrande, Zenon e, sobretudo, Sócrates para criarem um movimento revolucionário e contagioso no Corinthians. Em 1985, quando a ditadura militar finalmente acabou, democracia era um termo consagrado.
No caso corintiano, foi muito simples: tudo o que devia ser feito no clube e envolvia o esporte profissional tinha que ser votado antes de aprovado. O voto do jogador mais famoso – no caso, Sócrates – tinha o mesmo peso que o do roupeiro. Com tanto tempo de ditadura pela frente, estávamos todos desacostumados com esse tipo de comportamento.
Durante muitos anos, o regime de exceção que infelicitou os brasileiros entre 1964 e 1985 deixou o terreno das discussões no Brasil. No lugar dele, com todos os seus méritos e defeitos, a democracia vicejou, inclusive e também no futebol. Sócrates passou. Nunca mais um jogador aprendeu a dar passes de calcanhar como ele, mas, no reino da bola, outros profissionais, talentos consagrados ou não, assumiram o protagonismo político. Um movimento que culmina agora em 2022 com a Copa do Mundo do Catar.
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Jamais um campeonato mundial de futebol teve tanto interesse no campo da política. Maior do que o de 1978, na Argentina, quando os ditadores de lá conseguiam ser mais raivosos e criminosos do que os daqui. No caso do Catar, o cardápio de opções de protesto é muito grande. Tão vasto que transcende o próprio país anfitrião da competição.
Esta Copa está nos remetendo à luta contra a negação de direitos às mulheres, pelo reconhecimento dos movimentos LBGTQIA+, contra regimes políticos totalitários e sem apoio popular, com fundamentalismo religioso ou não, contra a islamofobia, por uma bandeira libertária que une quase todos, inclusive com protestos silenciosos representados pela negativa de cantar o hino nacional ou entrar em campo com as mãos tapando a boca, calada.
No nosso caso, exportamos para lá um pedaço considerável do ódio que foi implantado em terras brasileiras desde meados de 2018, quando Jair Bolsonaro tomou posse como presidente da República na cauda de cometa do movimento antipetista surgido depois de diversos escândalos, verdadeiros ou não, do período de governos do PT. Gilberto Gil, que viajou para o Catar em companhia da sua esposa, Flora, teve a oportunidade de constatar isso ao ser agredido com palavras grosseiras por grupos bolsonaristas no dia do jogo Brasil 2 X 0 Sérvia. Claro que isso aconteceria! A Copa do Catar é muito cara e para lá viajou boa parte de quem pode pagar alto, a fina flor do apoio ao ainda presidente.
Não por outro motivo, em algumas faixas que se apresentam nos estádios, há algumas referências veladas ao bolsonarismo, que não pode ser escancarado numa competição como essa. “Movimento Verde Amarelo” é um deles e está presente nos jogos do Brasil. Outro é a participação quase subterrânea, mas denunciada, de forma clara, do filho do presidente e deputado federal Eduardo Bolsonaro, que estava presente no estádio quando o Brasil venceu a Suíça por 1 a 0 no desmontável 974. Ele não se furta a uma aproximação como essa de seu séquito, ainda que ao preço de deixar a ralé de plantão diante de quartéis o tempo todo, preferencialmente, debaixo das chuvas fortes que ainda castigam o Brasil.
Confira, a seguir, galeria:
Mas um elemento mais revelador de como essa Copa separa os dois brasis existentes hoje pode ser notado nos casos dos jogadores Neymar e Richarlison. O primeiro, declaradamente bolsonarista, foi para o Catar com a incumbência de ser o líder de um grupo que sonha com o título mundial de futebol. O segundo é um centroavante clássico, daqueles que o futebol tem aberto mão nos últimos tempos, em parte porque nos têm faltado talentos reais para assumir o protagonismo de gols nos times e seleções. Neymar se contundiu no primeiro jogo. Contusão mais ou menos séria. Nesse mesmo jogo, Richarlison, um capixaba da pequena Nova Venécia envolvido com causas sociais, marcou os dois gols da vitória brasileira, um deles belíssimo. Bastou isso para que as redes sociais fossem inundadas por memes que pediam para Tite colocar Neymar bem à frente… de um quartel.
O técnico, declaradamente contrário a Bolsonaro, ficou fora da querela. Ele sabe que Neymar, apesar de seus incontáveis defeitos, é peça importante para um sonho do hexacampeonato de uma seleção como a do Brasil. Afinal, política colocada de lado tem muito mais competência em campo do que o centroavante de quem não gosta nem um pouco. E deixa isso claro.
Mas a celeuma existe e parece não estar diminuindo com o passar dos dias. A atuação apagada de Richarlison contra a Suíça mostra que Neymar merece curar todas as suas chagas físicas em nome de uma seleção brasileira que ainda vai precisar dele por um bom tempo. Já as chagas morais, só mesmo ele será capaz de ser remédio para elas. Tomara que seja.
*Álvaro José dos Santos Silva, 72 anos, é jornalista profissional, ex-editor do jornal A Gazeta de Vitória, no qual atuou durante 27 anos. É ex-assessor de comunicação, escritor, membro da Academia Espírito-Santense de Letras (AEL) e do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (IHGES). Também foi membro do PCB, PPS e Cidadania. Formou-se em Comunicação Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com especialização pela Universidade Cândido Mendes.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de novembro de 2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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