CHACINA
Carandiru: 30 anos da maior chacina numa prisão brasileira
Edison Veiga | DW Brasil
Oficialmente, foram 3,5 mil tiros disparados em cerca de 20 minutos. Era uma sexta-feira, 16h20 do dia 2 de outubro de 1992, quando 341 policiais da Tropa de Choque da Polícia Militar do Estado de São Paulo foram enviados para conter uma rebelião no Pavilhão 9 da Casa de Detenção, no Complexo do Carandiru. Entraram com cães, bombas e armas pesadas.
O saldo da operação, 111 mortos, todos detentos, fez com que o episódio entrasse para a história com o nome de Massacre do Carandiru. Evidências posteriores confirmaram que presos foram fuzilados com armas como fuzis AR-15 e submetralhadoras HK e Beretta. Não raras vezes, aquele dia é lembrado como o ápice da falência do sistema prisional brasileiro.
Três décadas depois, a chacina protagoniza uma guerra de narrativas, tem consequências tanto na reorganização do sistema prisional como na atividade criminosa e está presente no imaginário coletivo por meio de livros, filmes e músicas.
Mais violenta ação policial em penitenciária brasileira
O verbete dedicado ao tema na Wikipedia, por exemplo, foi alvo recente de vandalismo virtual. No último dia 26 de setembro, a descrição do evento na enciclopédia colaborativa estava editada como "A Limpeza do Carandiru foi uma entrega de 111 alvarás celestiais que ocorreu no Brasil". O texto foi corrigido no mesmo dia.
Em 1997, o grupo Racionais MC's gravou o rap Diário de Um Detento, contando sobre o massacre. Em Haiti, de 1993, Caetano Veloso fala sobre "ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina: 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres".
Considerado a mais violenta ação policial dentro de uma penitenciária brasileira, o massacre ocorreu após uma rebelião dos presos, em que colchões foram incendiados e celas depredadas. Depois da repercussão da chacina e muita pressão de ativistas de direitos humanos, houve uma revisão da política prisional, sobretudo no estado de São Paulo.
"Quando o novo governador assumiu [Mario Covas, em 1995], sua gestão iniciou projetos de reforma do sistema penitenciário. Foram então construídos mais presídios com menos quantidade de vagas, um limite de 800 pessoas por unidade", explica o jornalista, economista e cientista político Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e autor de, entre outros, A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil.
O Carandiru tinha 7 mil presos. Com a nova política, São Paulo passou a ter unidades prisionais espalhadas por todo o estado. O número de presídios saltou de pouco mais de 30 para os atuais 179. "Também houve uma terceirização gradual da gestão interna dos presídios", acrescenta Paes Manso.
PCC, uma das consequências
Na outra ponta da história, os criminosos também passaram a se unir mais, seja por receio de novos massacres, seja por sede de vingar o sistema. A proliferação de estabelecimentos prisionais, se diminui o tamanho dos grupos, ao mesmo tempo favorece a criação de mais lideranças, fortalecidas frente a suas comunidades pequenas.
"Em 1993 foi criada a facção paulista, o PCC [Primeiro Comando da Capital], justamente com um discurso oficial de proteção dos presos, 'aqueles que o Estado quer exterminar, massacrar'", pontua o pesquisador. "No discurso estava presente a ideia de que, 'para que eles não nos matem, vamos fortalecer o crime e bater de frente contra nosso inimigo maior: o sistema'."
Paes Manso vê no fenômeno o surgimento de "um novo modelo de profissionalização do crime". E o sucesso do PCC, que em poucos anos se tornaria a maior facção criminosa do país, seria a prova de que essa união de criminosos conseguiu o que almejava. Uma organização que funciona ao mesmo tempo como um sindicato e uma cooperativa do crime.
"O PCC não é o resultado direto do massacre do Carandiru, mas usou o massacre para elaborar seu discurso, seu estatuto", contextualiza ele.
Repercussão na formação da PM
Ex-secretário nacional de Segurança Pública, o coronel reformado da Polícia Militar (PM) de São Paulo e consultor de segurança José Vicente da Silva Filho discorda dessa ideia. "Não se pode dizer que o massacre resultou em maior união dos presos. Qualquer estabelecimento prisional do mundo acaba, inevitavelmente, propiciando um processo de socialização e de agrupamento, de autoproteção ou para disputar alguns privilégios dentro do sistema. Facções sempre existiram", comenta ele, que atua como professor na Polícia Militar e é conselheiro da USP e da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro.
Silva Filho analisa que uma importante consequência do episódio foi um maior investimento na formação dos quadros, sobretudo de gestão, da PM paulista. "A polícia foi alvo de críticas tão intensas, severas e contínuas [depois do ocorrido], não só sobre aquela tropa… [As críticas eram quanto ao] seu despreparo, violência, descontrole, diziam a academia e diversos órgãos, que isso acabou impactando nos policiais, que acabaram se inibindo e passando a operar com mais cautela", defende ele.
O coronel argumenta que, alguns anos mais tarde, isso influenciou no investimento em melhor formação da gestão das tropas. "Foi um grande impulso, intensificou-se a preparação dos policiais, com revisão da estrutura, dos valores, da formação. Hoje a PM instituiu um mestrado e um doutorado para seus quadros", comenta. "Melhorou substancialmente a capacitação da alta gestão em um organismo complexo como é a PM."
Disparos com intenção de matar
O massacre provocou a queda do então secretário de segurança pública de São Paulo, Pedro Franco de Campos, apontado como o responsável pela ordem de invasão do presídio — ele foi substituído por Michel Temer no cargo. O então governador Luiz Antônio Fleury Filho reconheceu, na ocasião, que a ação policial havia sido criminosa.
A repercussão internacional fez com que o Brasil fosse denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização de Estados Americanos (OEA).
O coronel Ubiratan Guimarães (1943-2006), que comandou a operação, foi a julgamento em 2001, depois de um processo de 8 anos e mais de 20 mil páginas. A perícia deixou evidente que 75% dos presos mortos estavam dentro das celas, e os tiros haviam sido disparados de fora para dentro, evidenciando que os disparos haviam sido feitos fora de situação de confronto e com intenção de matar.
Guimarães acabou condenado a 632 anos de prisão, mas teve o direito de recorrer em liberdade. Ele foi eleito deputado estadual em 2002 (com o número 14.111, evidenciando os 111 presos executados) e, em 2006, teve sua sentença anulada e foi absolvido pela Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo. O coronel foi assassinado em setembro de 2006, encontrado morto em seu apartamento com um tiro no abdômen.
Muitos condenados, mas ninguém preso
Outros policiais envolvidos também foram a julgamento, em grupos distintos. Em 2013, 23 militares foram condenados a 156 anos de prisão. Depois, 25 outros policiais receberam a sentença de 624 anos. No ano seguinte, 10 outros oficiais acabaram condenados: nove a 96 anos, e um a 104 anos de detenção. Em seguida, na última etapa, 15 policiais foram sentenciados com 48 anos de prisão.
Todos puderam recorrer em liberdade. "Percebeu-se a dificuldade de individualizar a participação [de cada um no episódio]. Os crimes vão acabar prescrevendo", analisa o coronel Silva Filho. "Fato é que, até hoje, ninguém foi preso ainda", lembra Paes Manso.
Estudioso de fenômenos de violência urbana, o jornalista diz que o Carandiru deixa um lição: a de que não está no sistema prisional a solução para conter a criminalidade. "Em determinado momento, cidades superpovoadas acreditaram que prisões iriam resolver o problema, que quanto mais pessoas presas menos riscos a gente ia ter de andar na rua. Mas isso começou a se mostrar uma solução furada, que cria outros problemas", aponta Paes Manso.
"Temos 900 mil presos [no país] e a sensação de insegurança continua grande, com conflitos e a cena criminal muito forte. E o Brasil continua insistindo nesse modelo, dobrando a dose do remédio que está sendo nosso veneno", acrescenta.
Para ele, é preciso agir de "forma mais estratégica" e "com inteligência" para reduzir a criminalidade, e não adotar uma postura de "guerra contra o crime". "Mas não se consegue evitar essa dinâmica", afirma.
Ana Flauzina: Chacina do Jacarezinho impõe que STF dê uma resposta
No último dia 05 de maio, o presidente Jair Bolsonaro declarou no Palácio do Planalto que poderia editar um decreto contra as medidas restritivas impostas por governadores e prefeitos como forma de controle da pandemia. De forma taxativa, disse que a medida não poderia ser “contestada por nenhum tribunal”. À tarde, se encontrou com um de seus aliados políticos, o governador do Rio de Janeiro Cláudio Costa (PSC), no palácio das laranjeiras em reunião a portas fechadas.
No dia seguinte, um banho de sangue inundou a favela do Jacarezinho. Com a justificativa de cumprir mandados de prisão contra 21 suspeitos de envolvimento com tráfico de drogas, a operação se transformou em um massacre após um dos policiais envolvidos na ação ser assassinado. Dos 27 homens mortos pelas forças policiais, apenas 4 eram alvos iniciais da operação. Relatos de testemunhas indicam que o alegado confronto que integra a narrativa policial não se verificou em todos os casos, com pessoas implorando para serem presas e sendo executadas a sangue frio.
Conectar esses dois eventos me parece fundamental para compreendermos o cenário político atual. De um lado, temos um pronunciamento presidencial que dá um recado claro ao Supremo Tribunal Federal, seguindo com a lógica de desgaste institucional que a todo tempo flerta com imposição de um governo militar. De outro, uma cena aterradora de desrespeito a parâmetros constitucionais básicos, em uma ação deflagrada à despeito da decisão do Supremo na ADPF 635, que impõe restrições à realização de operações policiais nas comunidades do Estado do Rio de Janeiro durante o período da pandemia.
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Há claramente uma linha de continuidade entre o pronunciamento e o massacre realizado no curral eleitoral do presidente por agências policiais que contam com muitos de seus adeptos. Fica claro que o recado abstrato que paira no ar clamando por ditadura no plano federal, vai sendo experimentado e publicitado com o aprofundamento do genocídio negro na capital fluminense. Se há ainda dificuldade de se impor uma agenda totalitária em nível nacional, essa toma cada vez mais fôlego em propagandas letais de caráter racista como as que ocorreram no Jacarezinho. O recado dado no pronunciamento se materializa indiscutivelmente na operação policial: quem controla e governa os destinos do povo são as armas, não as togas. O que é sussurrado indiretamente por Bolsonaro é concretizado de forma aberta pelo racismo, com o Supremo sendo exposto por sua incapacidade de conter a barbárie.
A verdade é que a atuação desse governo miliciano, para usar a palavra que qualifica tanto suas práticas quanto os indivíduos que ocupam seus principais cargos institucionais, está assentada em um amplo laboratório de produção de violências. Violências essas produzidas pela adesão histórica das forças institucionais, incluindo o Judiciário, no fortalecimento do apetite genocida contra a população negra: dando base para a formação das milícias, sustentando o discurso social do ódio, garantindo a naturalização do ataque à vida e à liberdade das pessoas negras como um dado quotidiano.
A questão que agora parece se impor é que as consequências perversas do racismo começam a também atentar contra os parâmetros democráticos que protegem as elites. Há muito se denuncia o fato de que o racismo é uma estrutura de poder que foi fabricada e é cultivada para controlar e trucidar pessoas negras. Até aí não há novidades. O que parece escapar à compreensão é que para se conduzir ações genocidas, há uma energia que transforma as instituições em agências de letalidade e restrições de direito. Ao fim e ao cabo, trata-se da construção de um aparato público, em associação a forças privadas, autorizadas a ameaçar, torturar, silenciar, e, claro, matar pessoas, sem maiores consequências entre nós. É esse ethos do racismo, que atropela padrões éticos básicos, direitos e vidas que começa a querer extrapolar para fora das periferias e dar o tom da atuação pública de forma mais ampla nas ameaças presidenciais dirigidas ao Supremo.
Diante disso, só se pode constatar que se opor a esse Governo e suas posturas despóticas é, antes de tudo, se opor ao racismo. Há um pacto de solidariedade entre as elites de todos os espectros políticos que sustenta o massacre das pessoas negras como um dado para a manutenção das desigualdades no Brasil. O problema é que o racismo é um cachorro raivoso que gera instituições e práticas perversas. Logo, se os efeitos mais cruéis dessas dinâmicas são sempre sentidos por negros e negras, em tempos de democracia, ditadura oficiosa ou oficial, fato é que as lógicas de tortura, da censura da e morte, tão comuns no dia a dia das periferias brasileiras, tendem a ser também usadas seletivamente contra grupos políticos em momentos de ruptura institucional.
Por isso, no atual contexto político, enfrentar o genocídio negro é uma demanda que passa tanto pela defesa da vida e dignidade das pessoas negras quanto pela preservação do pacto constitucional que salvaguarda a segurança e os privilégios dos setores de elite que se opõe ao governo de Jair Bolsonaro. Isso porque as ameaças do bolsonarismo estão se concretizando, se enraizando e avançando todos os dias para cercear fundamentalmente os direitos dos que habitam as periferias negras nesse país.
Assim, a resposta ao massacre do Jacarezinho, a maior chacina policial da história do Brasil, pauta o poder Judiciário e, consequentemente a democracia, em duas frentes. A primeira, já muito conhecida, é a que questiona se, uma vez mais, a justiça vai atuar de forma conivente e anistiar os responsáveis pelas execuções. A segunda, é a que mede a força do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, diante do claro desacato do bolsonarismo frente às suas determinações.
Conforme já declarou Eduardo Bolsonaro, “bastam um soldado e um cabo para fechar o STF”. Ao que tudo indica, o tempo de se verificar a validade dessa afirmação chegou e a forma com que se vai lidar com o caso de Jacarezinho é um termômetro preciso da força ou do completo descrédito do Supremo e da democracia no Brasil.
Ana Flauzina é doutora em Direito e professora da Universidade Federal. Dirigiu o documentário ‘Além do Espelho’, que estabelece uma ponte entre os movimentos negros nos EUA e no Brasil.
Fonte:
El País
Dorrit Harazim: Fica para 2022
Era para ser um texto leve sobre o Dia das Mães — uma oportunidade rara neste espaço de saudar com delicadeza um domingo especial. Um domingo sem referências a desassossego, pandemia ou Bolsonaro. Era para ser um texto leve, também, em homenagem à radiação afetiva e contagiante de Paulo Gustavo, que deixou órfão um Brasil inteiro. Seu humor, humanidade, talento e coerência com a vida mereciam essa tentativa de leveza.
Mas não deu. Fica para outra vez.
A fuzilaria policial desencadeada quinta-feira na Favela do Jacarezinho, no Rio, nos faz retroceder com crueza ao cotidiano nacional. O horizonte ficou vermelho. Desta vez foram 28 os mortos (inclusive um policial civil) em operação planejada para eliminar alvos, não fazer prisioneiros. Assim, de uma só tacada, a série estatística sobre lei e ordem no estado, que já era estarrecedora, deu novo salto. Segundo levantamento do Instituto de Segurança Pública (ISP), 20.957 pessoas morreram em confronto com a polícia do Rio entre janeiro de 1998 e março de 2021. Descascando melhor a frieza dessa matança, O GLOBO deu uma recalculada para mais perto: ao longo dos últimos 23 anos, a polícia do Rio matou, em média, uma pessoa a cada 10 horas.
Impossível chamar a isto de sociedade, nem de civilização ou exercício da lei.
Foi tudo tão abissalmente errado na execução da invasão ao Jacarezinho que nem sequer é necessário elencar, neste espaço, a cascata inteira de desvios. O importante é frisar que, à exceção de um ou outro detalhe, foi tudo planejado para terminar como terminou. A operação foi idealizada para ser espetaculosa, ao estilo tous azimuts da ocupação militar do Complexo do Alemão em 2010 — apenas sem apoio popular nem da mídia, como houve à época. Desta vez, os delegados encarregados de justificar a ação explicitaram um ato de fé. Ou, como apontou o advogado e filósofo Silvio de Almeida, um ato de afirmação de poder pela Polícia Civil — poder este que não se submete a nenhuma lei e que desconhece a Constituição. “Foi um recado, uma mensagem em forma de espetáculo, assinado com o sangue no chão e nas paredes das casas”, escreveu ele.
Nem todo o sabão do mundo será capaz de erradicar as manchas da violência de Estado impregnadas no Jacarezinho. Impossível esquecer o testemunho desamparado do pai de uma menina de 9 anos que teve, primeiro, o quarto invadido por um suspeito em fuga, já ferido; em seguida, pai e filha viram a policia irromper na casa à procura do invasor. A execução parece ter sido a frio, antes de os moradores conseguirem sair dali, rumo a um trauma indelével. “O maior desespero e a maior tristeza para um pai é não ter ideia de como fazer para salvar um filho. Não sei nem por onde começar”, disse ele. Referia-se ao futuro da filha. Vale para o futuro do Brasil negro, pardo, pobre e trabalhador.
Imagens de qualquer chacina, seja ela no Iraque, nos Estados Unidos ou no Rio de Janeiro, embolam qualquer estômago minimamente humano. Por vezes, olhando para além de paredes, pisos e camas tingidas de sangue, ou para além de mobiliários contorcidos pela violência, é possível entrever pedaços de um cotidiano destruído. Lana de Holanda, em seu perfil nas redes sociais, apontou para o esmero na decoração de uma sala ensanguentada — as plantas que adornavam prateleiras continuavam verdejantes. E um livro de Felipe Neto sem manchas permanecia numa bancada. Outro internauta notou o controle remoto da Sky em cima da mesma bancada, imaginando que aquela sala devia ser um local de alegria, de família assistindo a futebol, série ou filme.
Para o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, o caso é simples e segue a lógica da pena de morte seletiva que vigora no Brasil: “Era tudo bandido”. (Das 27 vítimas consideradas suspeitas, pelo menos 25 tinham passagem pela polícia, o que costuma ser suficiente para serem eliminados.) Felizmente, o entendimento do ministro do Supremo Edson Fachin foi outro, levando-o a solicitar à Procuradoria-Geral da República que investigue a ação num prazo de cinco dias. Segundo ele, haveria indícios que poderiam configurar ter ocorrido uma “execução sumária” no Jacarezinho.
Como falar de Dia das Mães num país onde a polícia e a milícia atiçadas pelo seu líder formam uma mesma tropa de combate à esperança? Não dá. Fica para 2022.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/fica-para-2022.html
Bernardo Mello Franco: A polícia não mata sozinha
Uma operação com blindados e helicópteros aterrorizou o Jacarezinho e deixou 28 mortos no maior massacre da história do Rio. Na manhã seguinte, a Polícia Civil só havia identificado a vítima que usava farda. Sem conhecer as outras 27, o vice-presidente Hamilton Mourão sentenciou: “Tudo bandido”.
O general está afinado com a tropa no poder. O governador Cláudio Castro, aliado do Planalto, classificou a matança como fruto de um “detalhado trabalho de inteligência”. O vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente, fez piada com o relato de uma viúva. Há poucos dias, seu pai ergueu um cartaz com a inscrição “CPF cancelado”. O capitão é um velho defensor de milícias e grupos de extermínio.
“A polícia não mata sozinha. Esse tipo de discurso legitima a barbárie e a violência policial”, afirma o advogado Joel Luiz Costa, coordenador do Instituto de Defesa da População Negra. Criado no Jacarezinho, ele voltou à favela horas depois do banho de sangue. Percorreu as vielas, ouviu testemunhas e saiu convencido de que ocorreu uma chacina.
Em 2018, o Rio elegeu um governador que se fantasiava de soldado do Bope e mandava a PM atirar “na cabecinha”. Seu substituto é mais discreto, mas quer provar que também tem DNA bolsonarista. Ao exaltar a inteligência da polícia, Castro ofende a inteligência alheia. A operação deveria cumprir 21 mandados de prisão, mas só cumpriu três. Além de produzir uma carnificina na favela, feriu dois passageiros dentro de um vagão de metrô.
Representantes da OAB e da Defensoria Pública apontam outros abusos. Os policiais modificaram cenas e removeram os corpos sem perícia. Depois levaram mais de 24 horas para entregá-los ao IML. Testemunhas relataram execuções sumárias e uso desproporcional da força. Apesar de tudo, a polícia se sentiu autorizada a comemorar a operação.
Na quinta, uma entrevista sobre o caso virou comício bolsonarista. O subsecretário Rodrigo Oliveira reclamou do “ativismo judicial” e disse que os defensores dos direitos humanos têm “sangue do policial nas mãos”. O delegado Felipe Curi julgou e condenou os 27 mortos pelos colegas. “Não tem nenhum suspeito aqui. A gente tem criminoso, homicida e traficante”, afirmou.
O chefe do setor que deveria investigar o massacre já se convenceu de que não há o que apurar. “Não houve execução. Houve sim uma necessidade real de um revide a uma injusta agressão”, disse o diretor do Departamento de Homicídios, delegado Roberto Cardoso. As declarações mostram o caso não pode ficar nas mãos da Polícia Civil.
Além de ignorar regras e protocolos, a matança pisoteou a decisão do Supremo Tribunal Federal que proíbe operações em favelas durante a pandemia, salvo em casos excepcionais. Numa clara provocação, a polícia batizou a ação no Jacarezinho de “Exceptis”. Os responsáveis pela barbárie também não fariam isso sozinhos. Eles sabem que têm cobertura para desafiar o Judiciário e as leis.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/policia-nao-mata-sozinha.html
Oscar Vilhena Vieira: A exceção como regra
Ao nomear como “Exceptis” a operação que invadiu a comunidade de Jacarezinho, na capital fluminense, na última quita feira (6), o governo já deixava claro que a lei não condicionaria a ação dos seus agentes, antecipando o que se converteu numa das maiores chacinas no do Estado do Rio de Janeiro nas últimas décadas.
O fato é que o ideal civilizatório de que todas as pessoas e, em especial, os agentes públicos (civis e militares) devem pautar as suas condutas pela legalidade jamais se consolidou no Brasil. Certamente, os dois regimes de exceção, fundados na ruptura da ordem constitucional, exercidos por meio do arbítrio e coroados pela impunidade daqueles que cometeram crimes contra a humanidade, não contribuíram para fortalecer, em nossa acidentada história republicana, a noção básica de império da lei.
A incompletude do estado de direito no Brasil transcende, porém, os regimes propriamente autoritários. A profunda e persistente desigualdade, o racismo estrutural e a forte hierarquização social têm se demonstrado obstáculos intransponíveis para que todas as pessoas sejam reconhecidas como sujeitos de direitos e, portanto, tratadas como igual respeito e consideração.
O que a imagem de corpos sempre pretos ensanguentados a cada nova chacina reforça é a realidade bruta de que a lei, nessas plagas, não é para todos. Que no Jacarezinho e nas demais periferias sociais brasileiras vigora um permanente estado de exceção. Que a “ordem” é determinada pelo arbítrio das milícias, do tráfego e, quando necessário, pelo arbítrio dos agentes do Estado.
Mais de três décadas de democracia não foram suficientes para pôr fim a um regime de exceção permanente que se impõe à grande parte da população. A perda de mais de 1 milhão de vidas, vitimadas por homicídios neste período, e a crueldade das experiências de comunidades dilaceradas pela violência, não foram suficientes para que governos democráticos levassem a cabo um plano de reformas das instituições de aplicação da lei, voltado a expandir o Estado de direito para todos os brasileiros.
Os poucos líderes que se propuseram modernizar as policias e o sistema de segurança e aplicação da lei criminal sucumbiram à resistência de interesses corporativos ilegítimos e políticos irresponsáveis, quando não coniventes ou mesmo beneficiários da deterioração do sistema de justiça criminal. O medo do crime abriu um amplo mercado para milícias e poder para maus policiais. Também rende votos para aqueles que oferecem uma solução rápida, fácil, mas, no entanto, incapaz de reduzir a criminalidade.
As políticas do “bandido bom é bandido morto”, da “Rota na rua”, dos “direitos humanos para humanos direitos” e de “armar o cidadão de bem”, que prevaleceram no Brasil nas últimas décadas, com amplo apoio da direita —como fez questão de deixar claro o general Mourão, ao legitimar a operação “Exceptis”— redundaram num retumbante fracasso. Com raras exceções, a constrangedora omissão de liberais e incompetência da esquerda também contribuíram para o fiasco na segurança pública.
A eleição de Bolsonaro e aliados armados, paradoxalmente, premiou justamente aqueles que mais têm contribuído para que a população se encontre refém da criminalidade e da violência de Estado.
A operação “Exceptis” não apenas afronta o Supremo Tribunal Federal, que impediu a realização de operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia, mas também deixa clara a indisposição de determinados setores do Estado brasileiro de se submeter ao império da lei.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2021/05/a-excecao-como-regra.shtml