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César Felício: Não vale o escrito

Da forma como pode ser feita, mudança corrói democracia

O acordado prevalece sobre o legislado. Esse é o espírito, tão em sintonia com os novos tempos, da argumentação que o Senado apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em defesa da reeleição para as presidências das Casas do Congresso. A Constituição, em seu artigo 57, parágrafo 4, é um tanto quanto explícita: o mandato dos presidentes do Senado e da Câmara é de dois anos, “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.

No parecer do secretário-geral da Mesa do Senado, esta norma não pode ser levada a ferro e fogo. A peça constata uma obviedade: circunstâncias políticas fizeram com que na Constituição de 1988 se mantivesse o princípio criado no regime militar de se impedir a reeleição indefinida dos presidentes das duas Casas, porque é disso que se trata. A partir dessa constatação, a de que o Congresso constituinte criou normas não porque Deus as esculpiu em uma pedra, mas por circunstâncias políticas, chega-se ao desfecho surpreendente: como as circunstâncias políticas são outras, o texto do parágrafo quarto do artigo 57 merece ser declarado caduco.

A reeleição, seja de quem for, presidente da República, da Câmara, do Senado, governador ou prefeito, já não é algo saudável para um dos pilares básicos da democracia, que é a competição política. Da forma como querem fazer, contudo, é pior. Muito pior. Corrói outros princípios.

A Constituição sempre é um produto de sua época, mas com regras que precisarão necessariamente valer para outros tempos. Por isso tanto é melhor quanto mais enxuta for, o que não é o caso da brasileira. O pecado da prolixidade em 1988 é remediado pela emenda constitucional, e o texto da Carta já foi modificado mais de cem vezes.

A ninguém havia ainda ocorrido argumentar no Judiciário que, como 32 anos se passaram, a regra estabelecida não vale mais. É o que prega o Senado. Se a tese emplacar, por que outros limites constitucionais precisarão ser obedecidos? Por que o presidente só pode se candidatar a reeleição uma vez? Por que os ministros do Supremo precisam se aposentar aos 75 anos? Tudo dependerá da existência ou não de justificativas do ponto de vista histórico ou político para que se diga se o escrito vale ou não.

Um dos argumentos dos defensores da tese é que já houve uma interpretação criativa do texto constitucional em 1999, quando Antonio Carlos Magalhães (1927-2006) se reelegeu na presidência do Senado.

Foi o primeiro a cruzar esta fronteira, mas tratava-se de uma legislatura diferente. Abrir a exceção para a mesma legislatura significa criar a possibilidade de se eternizar o comando.

O acordo que pode se forjar para que se acolha no Supremo a tese de reeleição dentro da mesma legislatura é uma possibilidade concreta, porque seria tentador para as cúpulas dos Três Poderes.

O Supremo hipertrofiaria ainda mais seu status, porque ganharia a faculdade de decretar que dispositivos constitucionais perdem a validade porque a banda agora toca diferente.

O presidente também teria ganhos potenciais. Presidentes da Câmara e do Senado que são eternos candidatos à reeleição podem ter menos interesse em se indispor com a base governista.

Quanto à cúpula do Legislativo, não há nem muito o que dizer. Um presidente da Câmara que pode se reeleger ganha um poder de fogo imenso frente a seus rivais. É um pouco fantasioso achar que Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia não concorreriam em situação de imenso favoritismo.

Talvez mais importante do que esses fatores seja o enfraquecimento mútuo do sistema de contrapesos. Legislativos, Executivo e Judiciário podem se tornar feudos, em jogo permanente de defesa e proteção mútua.

Falta alternativa
Um dos 18 pré-candidatos a prefeito de São Paulo, a ser oficializado no dia 5, o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) é acima de tudo realista e pragmático. “Essa eleição municipal para a oposição será um momento de acúmulo de forças”, diz. Silva concorre em São Paulo de olho em 2022, momento em que o PCdoB será submetido às novas regras de cláusula de barreira e as forças contra o presidente Jair Bolsonaro terão escolhas difíceis a fazer.

“Pelo andar da carruagem, Bolsonaro chega em 2022 competitivo. E essa competitividade tem a ver com a ausência de uma alternativa crível a ele ”, diz.

Para Silva, a oposição estará fadada a conversar em 2021 para fornecer ao país esta tal alternativa crível. “Uma temporada de diálogo vai se abrir para uma gestação, que precisa de uma abertura”, aposta.

“O bolsonarismo está ancorado na antipolítica. Uma nação precisa de uma estratégia e isso nós não temos na mesa”, afirma.

O pré-candidato pensa que o PT que sairá das urnas municipais não terá como fornecer uma saída para o problema. “Considero que o PT cumpriu sua missão. Eu aplaudo a trajetória do PT e penso que é necessário construir uma alternativa renovada. O PT pode participar, mas já teve a oportunidade de ser protagonista”.

Já em relação ao PDT, o tom é bem menos assertivo. “O PDT e o Ciro não tiveram as oportunidades que o PT teve de governar o país. Mas não é de bom tom que nessa fase sentemos à mesa para discutirmos nomes”.

Com respeito ao próprio partido, eternamente ameaçado pela cláusula de barreira, Silva pensa que será de interesse geral na Câmara estudar uma saída para o fim das coligações proporcionais e “redesenhar o sistema político do Brasil”.

Refazer o sistema político é criar brechas para permitir a coligação por outros meios, como por exemplo a federação partidária, no modelo uruguaio da Frente Ampla. A montagem de blocos unidos tanto na eleição como no exercício do mandato poderia se dar inclusive em torno de um nome independente, sem filiação partidária.

É algo que pode interessar as siglas fora do ambiente da esquerda. Partidos tradicionais, como o DEM, podem ter redução de bancada. Siglas vocacionadas para o Legislativo, como o PSD, estarão diante de um dilema. Do mesmo modo a mudança pode interessar aos novos amigos de Bolsonaro, como PP, Republicanos e PL, que teriam assim como embarcar na canoa da reeleição e receber dividendos na eleição de deputados e senadores.

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César Felício: Algo precisa ser feito

“Fake News” ameaçam destruir a vida em sociedade

Com todos os atropelos que traz à privacidade do cidadão, o projeto de lei aprovado pelo Senado esta semana e apelidado de “Lei das Fake News” poderá ser melhor para a democracia do que não fazer coisa alguma. A chance dele vingar, contudo, é muito pequena, quase nula, dada a forma como passou.

Os que criticam a proposta munidos de boa fé deveriam se sentir motivados a apresentarem uma alternativa política plausível ao parecer do senador Angelo Coronel. Pode ser que ainda o façam, já que há discussões na Câmara que devem levar a uma revisão profunda do projeto. A ver.

Não há pior situação do que a atual, em que o fenômeno das “fake news” corrompe o sistema democrático não apenas no plano institucional, enganando legiões na hora do voto, mas no universo de direitos: a convivência entre diferentes é minada e até questões que afetam a sobrevivência da espécie, como o combate à pandemia ou a preservação do meio ambiente, têm o debate desvirtuado.

O direito à privacidade e à liberdade de expressão não pode se sobrepor a regras que garantam a existência da vida em sociedade. É o paradoxo de Karl Popper: a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância.

O debate sobre o projeto produziu até o momento uma coalizão tão insólita quanto involuntária. Combatem a proposta tanto expoentes do libertarianismo digital quanto os ferrabrazes do bolsonarismo, muitos dos quais alvos do inquérito que cursa no Supremo Tribunal Federal.
Faltou ao Senado a percepção de que era preciso negociar mais o texto para se desmanchar esta frente. Transferir a responsabilidade de fazer esta negociação para a casa revisora - no caso em questão a Câmara - e levar a voto a proposta com tamanho grau de dissenso foi um erro, porque vai atrasar a tramitação no Legislativo já que, alterado, o texto terá que voltar para o exame dos senadores.

Os fomentadores de “fake news”, os que fazem da mentira um método de ação política, jogam nesta questão com o tempo. Enquanto o impasse permanecer, a liberdade de expressão e o direito à privacidade estarão resguardando um mundo paralelo que prega contra vacinas, diz que o desmatamento não aumentou, que não houve ditadura militar, que a Lava-Jato foi uma conspiração do governo americano, que há um plano da China para dominar o pensamento acadêmico brasileiro e por aí vai. E esses são os exemplos mais suaves, porque o que corre nas redes sociais é mais pesado: vai na pessoa física, visa destruir o oponente, desmoralizando-o.

Veterano no acompanhamento da cena política, o presidente do Conselho Científico do Ipespe, Antonio Lavareda, mostra-se alarmado. “O Brasil soube administrar bem a corrupção no sistema eleitoral. Com todos os problemas que acarretou a nova norma, a proibição de doação de empresas a candidatos conteve o problema. Agora o vírus que ameaça à política está nas redes sociais. É melhor pecar por excesso do que ceder a um principismo ingênuo.” Em resumo, “o risco que as fake news representam impõem o sacríficio de algumas liberdades. Não há direito absoluto”, comenta.

O debate a ser feito, portanto, é até que ponto deve-se abrir mão de determinados direitos (privacidade e liberdade de expressão) para a preservação social. Esta é a dimensão da decisão que a Câmara deve encaminhar.

A polarização política muito potencializada pelas redes já cobrou a fatura no filtro que o brasileiro busca ao se informar. A internet tornou-se a porta da entrada da informação, sem ter os mecanismos de autocontrole que existem em todas as plataformas tradicionais de mídia.

Segundo uma pesquisa comparada da Reuters em parceria com a Universidade de Oxford, com 2.058 entrevistas, feitas entre janeiro e fevereiro deste ano, nada menos que 43% dos pesquisados no país preferem ler notícias de fontes que compartilhem o seu ponto de vista. Nos Estados Unidos, onde a penetração da internet é maior e a polarização política é enorme, a proporção é de 30%. No Reino Unido, 13%.

Já os que preferem ler noticias imparciais no Brasil somam 51%, ante 65% na Itália e 80% na Alemanha. Entre 2013 e 2020, o percentual que se informa por meio do jornal impresso recuou de 50% para 23% e pela televisão caiu de 75% para 67%. Já os que consomem notícias por redes sociais subiram de 47% para 67%. Fica patente que o Brasil é uma terra fértil, em que se plantando tudo dá.

Eleição
A eleição deste ano tem tudo para entrar para a história política brasileira como uma completa anomalia, não apenas por ser a primeira a acontecer em novembro desde 1989. O palanque eletrônico se converterá no único possível. A campanha se desenrolará em clima de absoluto desinteresse, porque é incontroverso que a pandemia monopoliza a atenção. De quebra, passou a vigorar a regra que proíbe coligações eleitorais, o que estimula os partidos a lançarem chapa completa nos grandes centros.

Para Lavareda, a televisão volta a ter um papel central no processo político, mais do que exerceu em 2018, com a população confinada em suas casas. “Isso vai acontecer não apenas por causa do horário eleitoral, mas porque a TV ganhou credibilidade com a pandemia.”

Bolsonaro não terá partido, mas será impossível o bolsonarismo não estar presente na disputa. No cardápio das opções locais, haverá o candidato que vai procurar colar na imagem do presidente para captar a simpatia de seus irredutíveis apoiadores. E os seguidores do presidente estabelecerão suas afinidades eletivas.

Dificilmente, contudo, a nacionalização da eleição será uma marca este ano. A campanha em confinamento tolhe a oposição aos prefeitos. Se o administrador local conseguir driblar a penúria financeira, - algo que ficou mais fácil, com a negociação estabelecida no Congresso - as chances de superar os problemas causados pela catástrofe sanitária são grandes. Largam em grande vantagem.


César Felício: O caminho de Canossa

Nunca Bolsonaro pareceu tão perto da normalidade

“A cobra vai fumar”. Essa era a mensagem nas redes sociais de várias contas bolsonaristas na noite do dia 16. Durante a manhã e a tarde daquela terça-feira, deputados, empresários e militantes virtuais haviam sido alvo de operações de busca e apreensão, no âmbito dos inquéritos que correm no STF.

O neobolsonarista Roberto Jefferson quis se mostrar bem informado: “Nossas sondagens indicam que o presidente Bolsonaro está há muitas horas reunido com o Gabinete de Segurança Institucional. Assunto GLO. Artigo 142. Deus nos abençoe a espantar os urubus”, escreveu no Twitter.

À medida que avançaram as horas, pulularam imagens de onças bebendo água, fogo de artilharia sendo preparado e imagens de um reloginho marcando tic tac. Todos pintados para a guerra, de prontidão, esperando o toque do clarim para dispararem em louca cavalgada. A defesa do presidente - sentiam - era a defesa de si mesmos, porque o presidente não deixaria seus diligentes soldados ao relento. São uma equipe.

A quarta-feira 17 começou, portanto, com a sensação de que algo muito grave ia ser anunciado pelo presidente. Logo na porta do Alvorada, Bolsonaro pôs essas esperanças por terra. Falou que estava chegando a hora de botar as coisas no devido lugar, mas deixou claro: “Eu não vou ser o primeiro a chutar o pau da barraca”.

Foi uma maneira bastante clara, para quem quis entender, que o ocorrido na véspera, por iniciativa do Supremo contra seus apoiadores, não havia sido um chute no pau da barraca. Na sequência, o presidente foi dar posse a Fábio Faria no Ministério das Comunicações, em companhia de Rodrigo Maia e Dias Toffoli, um pouco antes de o Supremo decidir por 9 a 1 que o inquérito sobre as “fake news” é legal.

Como já escreveu algumas vezes no Twitter Carlos Bolsonaro, tirem suas próprias conclusões. A quinta-feira 18 foi o dia da demissão de Weintraub do Ministério da Educação e da prisão de Queiroz.
A partir daí, é interessante observar o trabalho dos bolsonaristas em administrar as expectativas da sua militância de base. Um bom termômetro são as postagens e respostas do deputado Helio Lopes no Twitter.

Lopes perde só para Eduardo Bolsonaro em intimidade com o presidente na Câmara dos Deputados. Mas é um bolsonarista que fala pouco para fora. Em público, não entra em caneladas com adversários, busca realçar a agenda positiva do seu ídolo e dialoga sem parar com a base.

“Ninguém disse que seria fácil”, escreveu no dia da queda de Weintraub. “A distância entre a largada e a chegada é grande”, comentou. “Desistir não é uma opção” e “é importante que tenhamos fé” foram comentários feitos no sábado. “Tudo vai melhorar, mas isso demanda tempo”, “a mudança não se dará do dia para a noite” e “não podemos perder a esperança” foram outras mensagens. É conversa de quem está cedendo, e cedendo muito.

Nunca Bolsonaro pareceu tão perto de se dobrar ao modelo de um presidente normal. Em 1077, o imperador Henrique IV foi ao castelo de Canossa para encontrar-se com o papa Gregorio VII e pedir a reversão da sua excomunhão. Ir a Canossa passou a ser um jargão na política para se referir a certos rituais de expiação que um governante precisa cumprir. Talvez seja o que ocorre agora.

Clima e pandemia
A pandemia impacta a equação climática no planeta, conforme atesta o engenheiro Carlos Nobre, o mais renomado cientista brasileiro que se dedica ao tema. Há, evidentemente, menos queima de combustíveis fósseis e emissão de poluentes. Nas primeiras semanas do isolamento, houve uma queda de até 50% da poluição urbana em algumas cidades. Nobre estima que em 2020 a queda global de gases que contribuem para o efeito estufa poderá chegar a 8%.

O Brasil, contudo, é um relativizador dos efeitos paradoxalmente benéficos da catástrofe mundial. Aqui, essa emissão tende a aumentar em 2020, pela ação do desmatamento na Amazônia. O país governado por Bolsonaro, com o auxílio luxuoso de um Ricardo Salles, se converterá portanto em uma grande exceção. “No Brasil, 70% das emissões são da atividade agropastoril e do desmatamento”, comenta.

A tendência começou em 2015, quando a crise econômica do governo Dilma afrouxou a fiscalização dos órgãos ambientais. Agravou-se em 2016 por uma seca mais intensa que o normal. Houve ligeiro refresco nos dois anos seguintes e em 2019 subiu com força. “A única variável relevante é a guinada política que o país teve”, diz Nobre.

Se graças ao Brasil a redução global de queima de gases influencia menos a questão climática, é perturbador quando se pensa no que pode acontecer no sentido inverso, ou seja: na forma como modificações no meio ambiente podem produzir pandemias.

Zoonoses tendem a aparecer em situações de desequilíbrio ecológico, em que espécies de animais antes distantes fazem migrações. Convivências inesperadas com microorganismos antes isolados passam a acontecer.

Nobre não é biólogo e não sabe explicar porque a Amazônia ainda não originou nenhuma epidemia com capacidade global de propagação, mas alerta que a perturbação do bioma pode gerar consequências imprevisíveis. A Amazônia possui a maior coleção de microorganismos do mundo e é uma incógnita como essa fauna irá se adaptar à mudança de suas condições de vida.

Nas regiões polares, submetidas ao degelo das calotas, o campo é vasto para se projetar cenários catastróficos, em função do acúmulo de desequilíbrios.

O cientista lembra que Hollywood produziu bom entretenimento no passado fantasiando as consequências catastróficas que existiriam caso dinossauros reaparecessem, por algum fator disruptivo na lei natural. O perigo, contudo, está nos vírus e bactérias de milhares de anos atrás.

Eles estão congelados em camadas de terreno de forma permanente, que devem descongelar se a temperatura se aquecer. São camadas conhecidas como “permafrost”. Animais de grande porte extintos há várias eras não reviverão, mas a volta da atividade de vírus e bactérias de outros tempos é bastante factível. E não há resposta sobre o que estes microorganismos poderão provocar voltando à atividade.


César Felício: O centrão italiano

Operação política de Bolsonaro agora lembra a de Mussolini

O soberbo livro “M- O filho do século”, uma biografia romanceada de Benito Mussolini que levou Antonio Scurati a ganhar, no ano passado, o Prêmio Strega, o principal da literatura italiana, tem sido muito usado para traçar analogias entre a ascensão do fascismo na Itália e o que pode estar acontecendo no próprio país de origem do livro, em outras nações e no Brasil, sem que estejamos percebendo claramente. A carapuça serve a várias cabeças.

A leitura impressiona quando se pensa no Brasil, sem que seja preciso forçar a barra em considerar o bolsonarismo como a versão cabocla e contemporânea do fascismo. Banalizar o que foi Mussolini é uma afronta às vítimas do horror da ditadura que arrasou a Itália entre 1922 e 1943.

Por mais que seja inegável o caráter populista e autoritário do bolsonarismo, ainda há um oceano a separá-lo de Mussolini em termos de brutalidade política. Aqui não se sodomiza deputados esquerdistas com cassetete e nem se executa sindicalistas a pauladas no meio da rua, em expedições punitivas pela madrugada. Detalhe: essas duas barbaridades, relatadas no livro, aconteceram antes da ascensão de Mussolini ao poder, em tempos em que o fascismo apenas ganhava forças.

Ressaltar as diferenças não significa outorgar ao bolsonarismo um ISO 9000 de aceitação da democracia. A extrema-direita não é uma força comprometida com a democracia nem no Brasil, nem em nenhum lugar do mundo, frise-se. Como a extrema-esquerda também não é. A ação de um bolsonarista ao retirar as cruzes que simbolizam as mortes por covid em um protesto nas areias de Copacabana são sugestivas neste sentido.

O que perturba é a semelhança entre a operação política dos dois. O ditador italiano e o presidente brasileiro chegaram ao poder dentro de uma vaga de descrédito das instâncias partidárias e das instituições, capitaneando movimentos populares tão apaixonados quanto inorgânicos. Bolsonaro, assim como Mussolini, não representa um sonho coletivo, mas o sonho de muitos, para usar uma expressão de Ricardo Sidicaro, um especialista na variante argentina de populismo autoritário, derivada de Peron.

Ao chegar ao poder, em poucos meses Mussolini se viu em uma vertente de isolamento político. O escândalo decorrente do seu próprio envolvimento no assassinato de um adversário político levou o fascismo a passar por um derretimento em 1924. Primeiro Mussolini perde o apoio dos grandes motores da mídia, os jornais “Corriere della Sera” e “La Stampa”.

Depois perde as ruas: as manifestações a seu favor tornam-se cada vez menores e cada vez mais radicalizadas. “O Partido Nacional Fascista está fechado em si mesmo como uma fortaleza sitiada”, escreve Scurati. Mussolini recorre ao refúgio do patriotismo, fazendo com que o fascismo se aproprie dos símbolos nacionais, como a bandeira tricolor e a lembrança dos mortos na Primeira Guerra Mundial, mas aí “o Parlamento, até então cúmplice, também começa a repudiar o fascismo”. Segundo Scurati, nos corredores da Câmara “fala-se de acordos entre os principais líderes liberais para minar a autoridade de Mussolini”.

Derrotas no Congresso começam a acontecer. “A cada novo voto, o governo perde apoio”. Antigos aliados principiam a pedir a renúncia do Duce. “A maioria desmorona, o poder de Mussolini mostra sinais de instabilidade”.

O fascismo parecia em queda livre, quando em 30 de novembro “todas as forças antifascistas se reúnem em Milão”, em uma manifestação que há muito tempo não se via.

Em editorial, o jornal “La Stampa” comentou: “ o governo tem uma única preocupação: não acabar. Um único medo: as sanções da Justiça. Uma sensação de incerteza e inquietude se difunde pelo país sem possibilidade de ser interrompida e nem remediada”.

É nesse instante que entra em cena a variante do “Centrão” na política italiana dos anos 20. Na época, se chamava “Pântano” o bloco de deputados que nem estavam na terra firme, nem na profundeza das águas.

Eram os 44 deputados da chamada direita moderada, “os que estão sempre no meio entre duas conflitantes formações de alucinados”.

Tudo o que o bloco queria, conforme descreveu Scurati, era encontrar uma forma de minar a autoridade do governo, de modo a forçar Mussolini a romper com seus radicais e adotá-los como base política.
Começam as negociações e Mussolini propõe uma reforma eleitoral, trocando o voto em lista pelo majoritário, algo que, em tese, poderia beneficiar os caciques do bloco.

“ A direita liberal, até ontem pronta a alijá-lo, se reaproxima atraída pela perspectiva de reeleição. Ameaçados pelo risco de não se reelegerem, os fascistas moderados, até ontem seduzidos pela corrente de oposição, correm para se realinhar. O pântano, assim, se fecha sobre o próprio lodo. A única coisa que importa para os políticos de carreira é a reeleição. Mesmo que o mundo desabasse, eles não levantariam um dedo para ajudar ninguém”, lamenta Scurati.

Sentindo-se fortalecido, em 3 de janeiro de 1925 Mussolini vai ao parlamento e paga pra ver. Ele pergunta: “o artigo 47 do Estatuto diz que a Câmara tem o direito de acusar os ministro do rei e de conduzi-los à Alta Corte. Pergunto se alguém nesta Câmara ou fora dela há quem queira se valer do artigo 47?”.

O silêncio é a resposta. Mussolini planta as mãos no quadril, estica o pescoço pra cima, projeta o queixo quadrado a seus interlocutores e se torna novamente o dono do jogo. Com a cooptação do Pântano, Mussolini estava blindado.

Aqui no Brasil, Bolsonaro vai exorcizando o fantasma do impeachment com a recriação do Ministério das Comunicações, a ser entregue para o deputado Fábio Faria, a possível ressurreição do Ministério da Segurança, que pode ir para o mesmo bloco, e o embarque no projeto de poder do líder do PP, Arthur Lira, mais forte nome para suceder Rodrigo Maia na presidência da Câmara.

A pandemia e a crise econômica desgastam Bolsonaro, que mesmo antes das desgraças de 2020 já não contava com mais do que um terço, na melhor das hipóteses para ele, de apoio no eleitorado. É a hora do Centrão fazer seu preço, como o Pântano fez na Itália. Na hora mais escura, não são os malucos da internet de hoje ou das camisas negras do passado que salvam o líder.

*César Felício é editor de Política


César Felício: Bolsonaro e o abismo

Pandemia contaminou imagem do presidente

Quase todas as pesquisas de opinião no Brasil, independentemente do instituto ou da metodologia utilizada, apontam a mesma tendência. O sentimento mais poderoso que existe no Brasil, com trajetória ascendente, não é o bolsonarismo, e muito menos o petismo. O presidente e seu antecessor contam com taxas de aprovação relativamente estáveis ao longo do último ano.

É o antibolsonarismo que se desenvolve, ainda sem auferir capital a ninguém na oposição ao atual governo. É uma onda por ora sem beneficiários. Existe, de forma cada vez mais nítida, uma demanda de opinião pública a ser atendida por quem se habilitar.

Talvez seja equivocado dizer que há espaço para o tal “centro”. Há uma brecha para se desenvolver uma candidatura que signifique o repúdio a Bolsonaro e a Lula simultaneamente, o que é diferente de estar no meio do espectro ideológico.

A pesquisa XP/Ipespe, por exemplo, que foi divulgada anteontem, mostra uma queda horizontal em relação ao presidente: o repúdio a Bolsonaro cresceu na segunda quinzena de abril em todos os segmentos, independentemente da faixa de renda, da religião, do sexo, da escolaridade, da região do país.

A rejeição avança conforme o coronavírus avança. O percentual de pessoas que conhece alguém afetado pela pandemia passou de 2% para 31% entre março e maio. O de quem teve impacto na situação financeira saltou de 26% para 56%. Há dois meses 21% se diziam com muito medo da pandemia. Agora são 43%.

Isso tudo mesmo levando em conta que 34% dos pesquisados já receberam o benefício de R$ 600 do governo e que 14% acreditam que ainda vão receber. Os programas para garantir a sobrevivências básica da população, ainda que garantam em determinados segmentos um salto importante de renda, como por exemplo entre os beneficiários do Bolsa Família, não estão por ora servindo de anteparo.

Os levantamentos por “tracking” da Idea Big Data mostram alguma nuance. A Idea Big Data realizou levantamentos quantitativos específicos fora dos grandes centros urbanos nortistas e nordestinos.
Bolsonaro teria perdido nas últimas semanas oito pontos percentuais de apoio no Sul e no Sudeste, mas a queda foi amortecida, ainda que suavemente, por um crescimento de 2 a 3 pontos percentuais no Norte e no Nordeste.

O saldo final é que Bolsonaro está deixando de ter o apoio de um terço da população e caminhando para ficar com um quarto, panorama que seria mais agudo sem o auxílio emergencial.

“A rejeição a Bolsonaro cresce mais onde o repúdio ao PT é grande, abrindo espaço para uma liderança que seja ao mesmo tempo antibolsonarista e antipetista”, diz o economista Mauricio Moura, que dirige o Idea. Para ele, no Sul e no Sudeste não é o avanço da pandemia que corroeu Bolsonaro. Foi a demissão dos seus ministros mais populares, sobretudo Sergio Moro, que estava na Justiça.

No Nordeste e no Norte, a recuperação bolsonarista aparece em alguns bolsões no interior, onde a ajuda dos R$ 600 pesa mais do que nas capitais. É um eleitor que está abandonando o petismo, outra notícia ruim para os aliados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Além de desastrosa, a frase de Lula sobre o lado bom do surgimento do coronavírus, da qual ele já se desculpou, é equivocada do ponto de vista político. Lula perde, e muito, com a pandemia.

O ligeiro crescimento bolsonarista sangra o petismo, mas não compensa, nem de longe, a perda de substância do presidente nos grandes centros. Pelo menos ainda.

E fica estabelecido para o presidente um dilema: para Bolsonaro trocar sua base de apoio, e passar a ser um candidato dos pobres e não das classes médias, como aconteceu com Lula em 2006, ele precisa ir muito além. “Em Codó, no interior do Maranhão, 8 em cada 10 entrevistados acreditam que o benefício de R$ 600 é permanente. Não sabem que é temporário”, comenta Moura.

A manutenção da política de Paulo Guedes é incompatível com uma estratégia de contenção da perda de popularidade bolsonarista. Fica estabelecido um dilema. Se o benefício for diminuído de R$ 600 para R$ 200, como sugeriu anteontem o ministro, o impacto disso na popularidade de Bolsonaro é óbvio demais para ser demonstrado.
Sem uma guinada populista clara na política econômica, o presidente terá muitas dificuldades no jogo sucessório em 2022, partindo da premissa de que não haverá uma interrupção das regras legais.

Mandando a austeridade econômica às favas, é desnecessário demonstrar como o mercado financeiro reagiria e seu declínio no Sul/Sudeste pode se acentuar. Bolsonaro tem duas opções, as duas ruins para seu projeto político.

Para sedimentar o Bolsonaro pai dos pobres, é preciso ir muito além.

“Ainda não está caracterizado um realinhamento do eleitorado semelhante ao que aconteceu em 2006”, quando Lula se reelegeu, opinou o cientista político André Singer, professor da USP e ex-secretário de Comunicação Social no governo petista. “Não dá para falar que com uma guinada na política econômica o realinhamento seria automático, mas sem essa mudança, ele não tem como se dar. É uma condição necessária, mas não suficiente”, disse.

Para o dono do Ipespe, Antonio Lavareda, o problema que Bolsonaro enfrenta é muito mais complexo. Não se trata apenas do fato de a percepção de sua política econômica ser ruim. “A pandemia reverteu a tendência de influência declinante da imprensa. Todo mundo está buscando informação muito mais do que antes. De modo que o impacto de um noticiário negativo em relação ao comportamento dele na pandemia tornou-se demolidor”, disse.

Segundo Lavareda, 58% da população reprova o comportamento de Bolsonaro na pandemia. E a pandemia cada vez mais é uma espécie de tema único na sociedade. A tendência é que a curva de desaprovação do governo se aproxime deste percentual. Ou seja: ainda há mais abismo para o presidente cair.


César Felício: O dilema do sofá-cama

No mundo ao contrário, presidente é um oposicionista

A epidemia provocada pelo novo coronavírus começou a mudar a vida de cada brasileiro há cerca de sessenta dias, quando houve o despertar global para o problema. Foi pouco antes dos meados de março que a Organização Mundial de Saúde, depois de alguma hesitação, decretou a existência de uma pandemia.

O contraste do Brasil com o panorama internacional é gritante. Ásia, Europa e mesmo os países da América do Sul fecharam ou estão na iminência de fechar um ciclo, preparando-se para a provável segunda onda de contaminação da doença. No Brasil, a roda claramente gira em falso. Não há preparação para nada.

A semeadura fraca que justifica colheita tão pobre era sugerida pela leitura de qualquer matutino cerca de dois meses atrás.

Uma grande polêmica no Brasil em 14 de março era sobre o resultado do exame para detectar a doença feito pelo presidente da República. O governador de São Paulo, João Doria, acusava Bolsonaro em entrevista de desrespeitar outros poderes. Epidemiologistas diziam que a única forma do Brasil conter o flagelo era por meio da paralisação das atividades. Faltava um dia para Bolsonaro participar de aglomerações em Brasília que pregavam a ditadura. O conflito entre ele e o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, começaria na semana seguinte.

A América Latina teve o bônus de ser uma das últimas regiões a receber a doença. Até 7 de abril, nenhum país da região havia registrado mais de 300 mortes, ao contrário do que ocorreu nas economias mais desenvolvidas. O Brasil entrou naquela semana com 200 casos e o primeiro óbito de covid-19 só seria confirmado no dia 17. Havia tempo para agir.

Na área econômica houve ação, depois de alguma tergiversação do ministro Paulo Guedes. Ele só tomara plena ciência da gravidade da crise poucos dias antes, em uma reunião no Congresso Nacional, quando o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, traçou um prognóstico sombrio sobre a velocidade do contágio no Brasil e o efeito devastador da doença na atividade produtiva.

O estímulo fiscal para a proteção da economia no Brasil ficou entre 5% e 6% do PIB, um dos patamares mais altos da região, inferior apenas aos do Chile e do Peru, segundo relatório do Banco Mundial. A criação do auxílio emergencial e de medidas de apoio ao empresariado começou ali a ganhar forma, em um ambiente político que claramente tinha e tem outras prioridades. O Congresso aprovou anteontem, por exemplo, com esmagadora maioria e o beneplácito do Palácio do Planalto, aumento salarial para os policiais do Distrito Federal.

Na área propriamente sanitária pouco se fez. A ação coube a cada governador, sem nenhuma concatenação federal. O saldo foi irregular. Em geral, o que houve no Brasil foi uma quarentena mitigada, algo que não foi carne e nem peixe, que interrompeu a normalidade econômica com baixo índice de isolamento social. Diminuiu o número de casos que haveria se nada tivesse sido feito, mas sem a força necessária para apontar uma estratégia de saída.

“Tivemos uma espécie de sofá-cama. Trata-se de um meio termo que é ruim como sofá e ruim como cama, tentando ser os dois ao mesmo tempo”, ironizou Roberto Kraenkel, um físico teórico da Unesp, que se tornou especialista em biologia matemática, com aplicação em epidemiologia.

O que Kraenkel quis dizer é que a descoordenação entre o presidente e os governadores explica a situação brasileira hoje. Uma medida extrema, como o “lockdown” em determinados centros, terá que ter amplitude geográfica restrita e duração curta, porque só poderia ser diferente com apoio e coordenação federal.

A liberação de todas as atividades, como se pandemia não existisse, o que parece ser o desejo de Bolsonaro, não tem guarida entre os governadores, na comunidade científica e na justiça, e não é por outra razão que o presidente se esforça para usar o empresariado como um exército seu, a ser mobilizado para pressionar pelo fim dos controles.

A reunião virtual de ontem entre o presidente e empresários não poderia ser mais ilustrativa disso. Bolsonaro chamou os empresários de “nossos patrões”, mas quem estava tentando dar ordens ali era ele.

A estratégia de saída do isolamento é uma discussão mundial, da qual o Brasil quer participar tendo feito muito menos do que os outros. No mundo ao avesso que existe no país, os governadores estão no centro do combate à pandemia, escorados pelo Supremo Tribunal Federal, e o presidente porta-se como um oposicionista, convocando protestos que beiram a desobediência civil. Quer se sair do descalabro econômico provocado por um isolamento meia-boca com o vírus ainda em circulação.

Caso a vontade de Bolsonaro seja atendida, Kraenkel estima que mortalidade em função da covid-19 chegue com facilidade ao patamar de centenas de milhares de mortes, possivelmente colocando o Brasil em primeiro lugar no ranking mundial de fatalidades. Difícil entender como uma situação dessas irá harmonizar com a retomada da economia, mas aparentemente há empresários que acreditam que a saúde pública é uma questão menor.

Caso Bolsonaro não seja atendido, temos no horizonte um período de isolamento social muito longo, muito mais longo do que poderia ter sido e do que será em outros países onde o presidente de turno não tenha se metido em guerras e operações políticas.

Kraenkel ressalva que se São Paulo, Rio de Janeiro e outros grandes centros tivessem feito “lockdown” em março seria possível ter agora uma estratégia de saída. Nada mais longe disso do que a realidade que se apresenta. Tanto em um caso como em outro, o de Bolsonaro desmontar a aliança entre governadores, Justiça e Congresso ou a de ser emparedado por essa aliança, o Brasil deve figurar como um exemplo internacional de país que fracassou ao enfrentar a pandemia.

Nos aguarda queda recorde do PIB, ou muitos mortos, ou uma combinação das duas coisas. Possivelmente já perdemos essa guerra.


César Felício: Linhas cruzadas

Crise com Moro perturba aproximação com Centrão

A crise entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sérgio Moro, pode ter a substituição do diretor da Polícia Federal como origem, mas suas razões de fundo se entrelaçam com o movimento presidencial em direção ao mundo tradicional da política brasileira. Não há uma relação de causa e efeito: há sim influência do primeiro fato no segundo.

A cena do poder se alimenta de símbolos, e é emblemático que Moro se dirija para uma porta quando Roberto Jefferson entrou por outra. Arthur Lira por uma terceira. Kassab por uma quarta. Marcos Pereira por uma quinta.

A trajetória de Moro à frente do Ministério da Justiça armou uma situação altamente indesejável no mundo político, que é a guerra em duas frentes. Popularidade alta garante uma certa blindagem, mas é insuficiente para romper um cerco. O ministro sempre antagonizou com o mundo político tradicional. As malfeitorias de amigos e antigos auxiliares da família Bolsonaro no Rio o fizeram colidir com os operadores políticos mais incondicionais do chefe.

Operadores políticos, é bom frisar, não os militantes fanáticos das redes sociais, que permanecem fechados com Moro. Quem se volta contra o ministro da Justiça são os que puxam os cordéis das campanhas orquestradas no WhatsApp, no Twitter, no Facebook. Um curioso caso de contradição entre base e pico desta pirâmide.

A forma como essa contenda se resolver - ainda não havia desfecho no momento em que essa coluna era escrita - será sugestiva do destino de Bolsonaro.

Com Moro fora, o presidente pode continuar a cimentar alguma coisa semelhante a uma base de governo no Congresso, o que é bom para aprovar medidas que facilitem a retomada pós-pandemia.

Em compensação, pode ganhar um adversário à direita na eleição presidencial de 2022. A permanência de Moro, se acompanhada da permanência do diretor da Polícia Federal, significará que o presidente é muito suscetível à reação da militância anti-establishment nas redes. O que pode azedar o ambiente para uma recomposição presidencial com o Congresso.

Esta é uma das apostas daqueles que se preocupam com o aumento do trânsito político de Bolsonaro. “A natureza do Bolsonaro é contra o Parlamento. Na primeira pressão que ele sofrer nas redes sociais ele reverte isso”, comentou o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), um oposicionista com excelente relação com o presidente da Câmara. E já há sinais neste sentido, já existe um sentimento de perplexidade entre bolsonaristas empedernidos com a aproximação entre Bolsonaro e o Centrão.

Orlando Silva admite que há uma força natural que impele os deputados dos partidos do Centrão a buscarem guarida no Palácio do Planalto. “Há um contingente muito expressivo dos parlamentares destes partidos em Estados onde o governador está na oposição. É difícil para um deputado destes partidos ser oposição ao mesmo tempo ao governador e ao presidente”, disse.

E se há alguma coisa que cresceu na catástrofe da pandemia foi o protagonismo dos governadores. Há um certo consenso de que o paulista João Doria ganhou muita densidade política, estabeleceu uma polarização com o presidente e se consolidou como a principal alternativa, no momento, a uma eleição presidencial em 2022. Todos os movimentos recentes de Rodrigo Maia coincidem com os interesses de Doria e isso explica muito da escalada de Bolsonaro contra o presidente da Câmara.

Os deputados do Centrão aceitam a aproximação, mas evitam se comprometer com a desmontagem de Maia. “O presidente sente que uma base mais sólida no Congresso é necessária e tenta reduzir a influência do Rodrigo, mas não sei se isso vai funcionar. Os partidos separam as coisas. Vão dar musculatura para o governo atuar na crise, mas Rodrigo não estará isolado e será o condutor da própria sucessão”, disse o deputado Marcelo Ramos (PL-AM).

A entrega de cargos aos partidos do Centrão é a argamassa fundamental para essa aproximação, em um processo sinérgico de ganhos políticos entre os militares - leia-se o ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, e o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos - e os parlamentares do bloco pragmático.

Os militares cedem posições que estavam guardando até o momento. Será a turma da caserna que dará lugar no segundo e terceiro escalões a indicações políticas. Ganham os militares assim respaldo político. Assumem o papel de mediadores das crises. Entregam peças para avançar várias casas.

O objetivo central é o posto Ipiranga. Provocar um “downgrade” na condição de superministro de Paulo Guedes é uma meta que parece ao alcance da mão, agora que Braga Netto lançou seu plano nacional de desenvolvimento. “Os militares tem o apoio da base política para o enfrentamento maior dentro do governo”, resumiu Ramos.

A pandemia abriu um espaço para esta aliança. O discurso antiquarentena de Bolsonaro, por mais irresponsável que seja, o fortalece, enquanto a catástrofe produzir mais desemprego e perda de renda do que mortos. “É um discurso bem encaixado para um ponto futuro, para o que vem a seguir”, reconheceu Orlando Silva. Mas Bolsonaro precisa de respaldo político para romper com a cartilha de Guedes. O que implica em repactuar com o Congresso.

Neste cenário, a pandemia já trabalha contra a polarização ideológica, à parte do alarido dos fanáticos. Quando o presidente e seus aliados falam ou insinuam golpe, despertam a sombra do impeachment. Quando a oposição se mobiliza pelo impeachment, reforça o discurso de vitimização de Bolsonaro.

Estabeleceu-se um equilíbrio do terror. Os que defendem golpe e impeachment, a princípio, perdem. Os bombeiros tendem a ganhar.

Nesta quadra, tentar tirar Valeixo agora pode ter sido um passo em falso de Bolsonaro. Quando os interesses de Moro são contrariados certas coisas começam a acontecer, engrenagens que pareciam paradas estalam e se movimentam, há uma certa constância nisso. A pedido da Lava-Jato, um juiz federal em Curitiba bloqueou parcialmente os salários do líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), e do deputado Arthur Lira (PP-AL), com quem o presidente confraternizou recentemente. Mais uma frente fria que vem do Sul e chega ao Cerrado.

*César Felício é editor de Política.


César Felício: A simulação presidencial

Inépcia do governo em temas sociais é perturbadora

Os trabalhadores autônomos e informais que anseiam pela ajuda de R$ 600 precisam respirar fundo. O histórico de inépcia do governo Bolsonaro em relação a temas sociais é perturbador.

Parece que faz muito tempo, mas foi há poucas semanas, em janeiro, que se constatou que os brasileiros que cumpriam as exigências da nova reforma da Previdência para se aposentar não conseguiam fazê-lo, porque o INSS não havia se preparado para alterar seus parâmetros na concessão dos benefícios. O gargalo era a falta de mão de obra, porque a autarquia não repôs o quadro de funcionários que tinha se aposentado nos últimos anos. O principal sistema de seguridade social travou.

No ano anterior, o Ministério da Cidadania anunciou a concessão do décimo-terceiro salário para os beneficiários do Bolsa Família, mas não havia uma previsão clara de receita para garantir este pagamento. A solução encontrada foi o enxugamento de mais de 1 milhão dos beneficiários, alvos de uma operação pente-fino.

Durante um ano inteiro, o governo federal tergiversou sobre como atender a faixa um do programa Minha Casa Minha Vida. Pensou em voucher, pensou em restringir o benefício, pensou muito. Nada foi posto de pé.

Na balbúrdia do coronavírus, o presidente da Câmara cobra medidas urgentes do governo para preservar a economia e o governo se exime: para Bolsonaro e tecnocratas como o presidente do Banco do Brasil, a solução é soltar as amarras do isolamento, bater de frente contra orientações sanitárias mundiais e cada um que vá cuidar de seu sustento, porque a hora é de trabalhar. Nas curiosas palavras do presidente do Banco do Brasil, o isolamento social não é um tema para ser decidido no âmbito da medicina.

O livre-pensar das autoridades do governo não implanta um isolamento vertical que é desaconselhado por especialistas e que ninguém sabe como poderia funcionar. Serve apenas como areia nos olhos para distrair o público da inação.

O governo Bolsonaro será aquele lembrado por sugerir a privatização da Eletrobras como uma das medidas emergenciais para se combater uma pandemia mundial. Ou pela iniciativa de tentar restringir a Lei de Acesso à Informação. Ou ainda por ser a administração em que o presidente e sua família passam o dia divulgando notícias de procedência duvidosa e batendo boca com adversários políticos. Também pode ser recordado pelo filho deputado que criou uma querela inútil com a China no meio do pânico.

É vasta a sequência de pseudofatos, de crises artificiais, de cavaleiros riscando os cavalos, tinindo as esporas, saindo dos pagos em louca galopada para nada, como dizia o poeta Ascenso Ferreira. Bolsonaro ganha uma aparência de proatividade, quando na realidade é apenas reativo. Traveste-se de vítima do sistema, para justificar a própria inação.

Por último, parte o presidente em entrevista para a Rádio Jovem Pan para a inacreditável tarefa de fritar o seu ministro da Saúde no olho do furacão. Ameaça ordenar a abertura do comércio agora, sendo que o pico da epidemia está sendo projetado para o fim do mês. É de se apostar que o Congresso ou Judiciário irá impedir o tresloucado gesto.

Lições do passado
Observar o passado ajuda a projetar algumas linhas para o futuro. A história da saúde pública no Brasil é uma história de combate a epidemias e pandemias. A cada devastação produzida por um patógeno, houve uma elevação da saúde pública para outro patamar e a subordinação de políticas de Estado a objetivos sanitários.

A trajetória começou com a proclamação da República. Avanços na ciência fizeram com que a medicina se voltasse para a epidemiologia. Não por acaso o serviço sanitário paulista foi criado em 1892, o Instituto Soroterápico de Manguinhos em 1899 e o Instituto Pasteur chegou em 1903.

O cenário estava montado para que o governo implantasse uma política higienista de erradicação de cortiços, aterramento de pântanos, remoções de populações inteiras e vacinação compulsória.
Direitos e garantias individuais que contrariavam a saúde pública não foram levados em conta pelos governos que deram amparo a cientistas como Oswaldo Cruz, Emílio Ribas, Adolfo Lutz, Vital Brasil e Carlos Chagas, que estavam na linha de frente do combate às doenças infecciosas. A revolta da vacina de 1904 é um emblema de uma política de estado que, em nome do interesse da coletividade, se sobrepôs de modo violento à individualidade.

Rompeu-se com a inviolabilidade dos lares e com a garantia do livre arbítrio sobre a própria saúde, em um país em que a emancipação de escravos ainda era uma adolescente de 16 anos. A resistência popular ao higienismo foi combatida com fogo de artilharia de navios de guerra ancorados no Rio.

O saldo imediato, como ficou evidenciado nos anos seguintes, foi a queda drástica nos grandes centros urbanos dos casos de febre amarela, peste bubônica, varíola, malária, cólera e outros flagelos. No caso da varíola, foram 3.566 mortes de cariocas em 1904. Em 1910, apenas uma.

A ação brutal do governo de então, contudo, não debelou a gripe, que continuou matando cerca de 500 pessoas por ano na capital federal, em média. Rodrigues Alves, o presidente higienista da Revolta da Vacina em 1904 terminaria por ser vítima do H1N1, vírus da pandemia de influenza eternizada como gripe espanhola.

A moléstia chegou ao Brasil em 16 de setembro de 1918, a bordo do navio Demerara. Ela se caracterizava por uma evolução lancinante. Entre os primeiros sintomas e o óbito podiam se passar apenas 12 horas. Sem nenhum tratamento conhecido, o isolamento radical era a única maneira de contê-lo e coube a Carlos Chagas comandar o enfrentamento na capital, com carta branca do presidente Venceslau Brás, em fim de mandato. A doença matou 35 mil pessoas no Brasil.

Com 70 anos, Rodrigues Alves seria reconduzido ao poder. Teria sido o segundo presidente mais velho a exercer o cargo, depois de Getúlio e Fernando Henrique. Era conhecido por ser uma pessoa adoentada e não resistiu. Não chegou a tomar posse.

Diferentemente do Brasil da República Velha, o atual é uma democracia. Na evolução desta pandemia, é bastante provável que as autoridades médicas que estão na linha de frente do combate ao vírus ganhem projeção eleitoral relevante no futuro.


César Felício: Quem sobrevive

Na pandemia, política e compaixão são água e óleo

Política e compaixão são universos que não se misturam, está claro, assim como economia e comiseração. Em uma calamidade como a que vivemos, fica evidente o brutal “trade-off”: a classe política deve tolerar quantas mortes na pandemia? É aceitável que os mais vulneráveis morram para que a engrenagem gire? Qual o custo social da parada da engrenagem?

Não há desavisados neste jogo e as opções de cada um dos protagonistas têm em mente o equilíbrio das forças que buscam o poder. Sobre o comportamento do presidente da República, há quem veja em sua atuação intenções preocupantes.

Para o filósofo Marcos Nobre, presidente do Cebrap, a perspectiva eleitoral deixou de ser o plano A na estratégia política do presidente Jair Bolsonaro para se manter no poder. Nobre acredita que o presidente concluiu que a pandemia do coronavírus comprometeu definitivamente o cenário econômico para 2022.

A depressão econômica retira o favoritismo de uma candidatura à reeleição. Bolsonaro teria passado então a apostar no caos social, eliminando os instrumentos de controle da pandemia que tentam ser impostos, como forma de estimular o surgimento de um cenário que permita a ruptura institucional.

“Bolsonaro não está pensando mais em eleição para se manter no poder. Ele acha que com o caos há um ambiente para as Forças Armadas interferirem. Se há algo que as Forças Armadas não toleram é o caos”, aposta Nobre.

Segundo o filósofo, em meio ao tumulto do coronavírus o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), surgiu em cena para aumentar o grau de confusão. Ele nota que é nítido que o tucano se movimenta para tentar assumir um papel de liderança entre os governadores e avoca para si o figurino de antibolsonarista por excelência. Ou seja, busca garantir a polarização que lhe interessa em 2022 agora em 2020.

Na visão de Nobre, a manobra de Doria só favorece Bolsonaro. Partir da premissa que haverá 2022 quando o adversário já não trabalha mais com este cenário seria um equívoco. A antecipação da disputa eleitoral faz com que o tucano perturbe o surgimento de uma grande coalizão nacional que imponha a Bolsonaro o isolamento vertical de si próprio e conduza o país a uma saída institucional.

Esta é uma visão que suscita diversas indagações. A primeira é se Bolsonaro de fato já não trabalha mais com perspectiva eleitoral. Não é apenas no Brasil que existe uma tensão entre o governo central e as administrações regionais, e nem apenas aqui há uma discussão sobre a extensão da política de confinamento. Ela se repete em outras partes.

A dinâmica é semelhante: o governo central parece mais preocupado em não paralisar a economia do que evitar mortes a qualquer custo. Os governos regionais pressionam por um fechamento total e cobram socorro da administração central. A mensagem subliminar é política: quem vai pagar a conta eleitoral do desastre econômico que se seguirá à catástrofe sanitária?

Presidentes como Bolsonaro, Trump e Lopez Obrador querem passar esta conta para a oposição. Nem todos têm US$ 2 trilhões para injetar na economia. Em países sem margem fiscal, como o Brasil, o abismo é mais fundo.

Aliás, melhor seria dizer que, no Brasil, vale passar a conta para qualquer um, inclusive para aliados. Foi o golpe que o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, acusou anteontem, ao anunciar seu rompimento com Bolsonaro. Ele disse textualmente que o presidente procurava criar uma situação “como se amanhã o desemprego fosse responsabilidade das pessoas que estão contendo o fluxo”, ou seja, os governadores. A transferência de responsabilidade, portanto, pode embutir um cálculo eleitoral.

Outro aspecto a se considerar é qual a força que Bolsonaro teria para levar a um fechamento de regime, em meio a uma situação de caos social e econômico. O fato do vice-presidente ser um general reformado dá às Forças Armadas maior tranquilidade para aceitar uma decisão do mundo político de arrumar um pretexto qualquer para afastar Bolsonaro, dentro dos parâmetros da lei do impeachment.

O apoio do establishment empresarial a Bolsonaro está diretamente ligado à capacidade do presidente de implementar as reformas prometidas pelo mercado. É algo que pode desaparecer como que por encanto se por acaso surgir uma alternativa real de poder, já que no cenário presente a capacidade do presidente de promover reformas naturalmente diminuiu.

O presidente parece dispor do apoio incondicional das igrejas evangélicas, muitas das quais também cerraram fileiras e ocuparam ministérios nas gestões de Lula e Dilma. Talvez seja um sustentáculo suficiente para dar musculatura eleitoral a um governante que vai se tornando impopular, mas pouco para segurar na cadeira um presidente que eventualmente entrar em uma espiral de ingovernabilidade.

Finalmente há os ativistas da Internet, todos muito ligados a uma espécie de negacionismo da política, da mídia, da ciência, de que tudo que se tornou conhecimento doutrinário. Empoderam o presidente e o presidente os empodera, dando likes, retuítes e postagens aos vídeos e WhatsApps insanos que recebe. Olavo de Carvalho é o exemplo mais notório, mas não o único, e talvez sua influência junto ao presidente tenha sido superestimada. São a base popular sólida de Bolsonaro, a ligação entre o líder e as massas. São capazes de segurar o presidente? A moral da história é que, querendo, Bolsonaro talvez não consiga golpear as instituições, mesmo em um ambiente de balbúrdia.

Sobre Doria, é fato que o governador paulista acelerou a estratégia de antecipar a disputa eleitoral. Não tanto por sua presença diuturna na mídia nesta fase de combate à pandemia - os demais governadores também estão fazendo isso -, mas pelo grau de antagonismo em relação ao presidente. Foi de Doria que partiu a iniciativa de colocar o conflito com Bolsonaro em discussão, na última reunião do presidente com os governadores. Ele parece ter no horizonte sólidas condições de forjar uma aliança do PSDB com o DEM e o PSD nas eleições de 2022.

Doria continua emparedado pela questão de sempre - ninguém se sente sócio de seu projeto no mundo político e empresarial, nem seu próprio partido.

A disputa política por aí prosseguirá, subjacente, enquanto a estatística de mortos pela covid-19 desenvolver a sua espiral de subida. Ela, com certeza, sobreviverá à pandemia.


César Felício: Bolsonaro na encruzilhada

Coronavírus muda dinâmica entre governo e Congresso

Não faltaram tiros de advertência antes de o Congresso detonar a pauta-bomba contra o governo Bolsonaro. A derrubada do veto presidencial ao projeto que amplia a base populacional a receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC) está longe de ser um ato inaugural.

E nem teria como ser, afinal se tratava de uma tréplica do Congresso, depois do presidente ter decidido barrar a proposta votada pela Câmara e Senado.

O projeto que aumentou o limite de renda per capita para receber o benefício de 25% do salário para a metade era bastante antigo, do ex-senador catarinense Casildo Maldaner. Tramitou no Legislativo por nada menos que 23 anos. Passou no Senado no fim de novembro, sem que o governo esboçasse reação. Bolsonaro vetou a proposta no dia 20 de dezembro.

A relação entre Executivo e Legislativo no Brasil é péssima desde o início do governo, mas a crise envolvendo o Orçamento impositivo - estopim para a derrubada do veto - estava delineada com perfeição desde o fim de 2019.

Ainda falta no governo Bolsonaro, onde pululam militares no Palácio do Planalto, uma figura como Golbery do Couto e Silva, o ministro da Casa Civil de Geisel e do início do governo Figueiredo. A ele é atribuída uma frase, que teria sido dita a líderes da oposição:

“Segurem seus radicais que nós seguramos os nossos.”

Todo este ambiente de impasse fez diminuir o otimismo em relação à manutenção de ambiente para aprovar no Congresso a agenda pró-mercado, como vinha sendo feito. Chegamos aos idos de março, com as eleições se aproximando e o coronavírus tracionando a escalada do pânico.

O cronograma de 15 semanas que seriam as disponíveis este ano para o ministro da Economia, Paulo Guedes, para aprovar sua agenda este ano - conforme o próprio ministro disse em encontro com parlamentares - corre, célere, sem que fique claro sequer quem é o interlocutor do Planalto com o Legislativo. Quem era no começo do governo? Onyx Lorenzoni? Bebianno? Santos Cruz? e quem é agora? Braga Netto? Ramos? Jorge Oliveira? Rogério Marinho?

“O governo não tem o diálogo necessário com o Congresso”, constatou há alguns dias o deputado Vinicius Poit (Novo-SP), que está a uma distância abissal da oposição. “Houve uma destruição da confiança entre o Executivo e o Legislativo”, disse o cientista político, Carlos Melo, do Insper.

Para Melo, que conversou com a coluna antes de ser revelado que o próprio presidente aguarda o resultado do teste sobre o coronavírus, a entrada em cena da pandemia no cenário político pode ter um desdobramento ironicamente positivo para Bolsonaro, válido obviamente se ele não tiver problemas maiores de saúde.

A crise provocada pela covid-19 pode se tornar um bom álibi para justificar um resultado econômico ruim e um saldo político pobre no ano atual. “A covid-19 pode se tornar um bodex-2020”, ironizou Melo, fazendo um gracejo com a eventual sigla que teria as duas primeiras sílabas da expressão “bode expiatório”.

Em termos concretos, isto significaria que uma questão conjuntural ajudaria a mascarar os sintomas de um problema real, que é a deficiência de articulação entre Bolsonaro e o Congresso.

Outro efeito, não mencionado por Melo, é que a pandemia produza um cenário mais positivo para aplainar a relação entre Legislativo e Executivo. A reunião de anteontem entre ministros e lideranças parlamentares para falar sobre o coronavírus mostra que esta é uma possibilidade concreta. A atitude de Bolsonaro de pedir que as manifestações sejam suspensas ou adiadas a reforça.

Ao tirar o dedo do gatilho em relação aos atos convocados para o dia 15, o presidente dá o primeiro passo para se tornar o Golbery de si mesmo.

Ele segurou seus radicais, os que pedem o fechamento do Congresso, do Supremo, dos partidos oposicionistas, da imprensa e sabe-se lá mais o quê. É possível que o Legislativo também segure os seus, aqueles que impulsionaram a imposição de um parlamentarismo torto, engessando o Orçamento.

Como não está claro se Bolsonaro desestimulou a manifestação do dia 15 porque quer apostar no diálogo ou por motivo de força maior, não dá para cravar que esta visão benigna de que o coronavírus produzirá uma espécie de união nacional irá prevalecer.

O pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV do presidente na noite de ontem não permite se chegar a uma conclusão. Ao mesmo tempo em que afirmou que “o momento é de união, serenidade e bom senso”, ressalvou que “o Brasil mudou” e que “as motivações da vontade popular continuam vivas e inabaladas”. Fica a porta entreaberta para ser batida de forma estrepitosa ou cruzada em sinal de boa vontade.

Caberá ao presidente esclarecer o mistério, nos próximos dias. Para citar outra frase atribuída a Golbery, no jogo de xadrez do poder, o governo joga com as brancas.

A longo prazo, o crescimento econômico fraco em 2020 cobrará seu preço eleitoral. Bolsonaro perderá força, sem que se divise no horizonte ninguém que possa recolher as esperanças dos desiludidos. A palidez da economia torna menos nítido o panorama de 2022.

*César Felício é editor de Política


César Felício: Céu de brigadeiro, horizonte distante

Bolsonaro quer ficar só e suas alianças são de curto prazo

Falar de 2022, para o presidente Jair Bolsonaro, é levar a discussão para uma zona de conforto. O presidente hoje - dois anos e oito meses antes do sufrágio - concretamente não tem adversários. A pesquisa divulgada ontem pelo site da revista “Veja”, realizada pela FSB com 2 mil entrevistas por telefone, é mais uma indicação neste sentido. Além de Bolsonaro liderar em todos os cenários em que é incluído, há um tanto de irrealismo em considerar como ameaças seus principais rivais.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, benzido pelo papa ou não, é inelegível, pelas normas da Lei da Ficha Limpa. O ministro da Justiça, Sergio Moro, por ora é um candidato a uma vaga no Supremo Tribunal Federal, não há elementos para se pensar o contrário. O apresentador Luciano Huck é só uma conjectura. Ciro, Haddad e Amoêdo são puro “recall”. E Doria é o último colocado em qualquer cenário testado.

O antibolsonarismo é uma força, basta olhar a rejeição ao presidente, que não é capitalizada por ninguém. Há um vácuo, um posto vazio no cockpit, e Bolsonaro dá suas voltas no circuito. Seu maior inimigo, no momento, é o tempo. Faltam 30 meses e a quantidade de variáveis que podem surgir inviabilizam qualquer projeção de favoritismo. No começo de 2015, mesma antecedência em relação ao pleito futuro que vivemos hoje, também era impossível divisar quem encarnaria o antipetismo.

Bolsonaro deu partida para seu plano de reeleição em 2022 redobrando a aposta na comunicação direta com seu público de estimação, sem se comprometer com nenhuma liderança intermediadora.

Nada mais irônico do que o nome que adotou para o partido que articula, o Aliança pelo Brasil. Não há aliança com ninguém. O partido que se ergue é uma mistura de uma estratégia jurídica e de operação de marketing. Quem encabeça a ação são os advogados Luis Paulo Belmonte, Admar Gonzaga e Karina Kufa, com a ajuda do publicitário Sérgio Lima. Não existem quadros fora da família Bolsonaro. Os integrantes da bancada do PSL que devem migrar para a sigla, como Carla Zambelli (SP), o príncipe Luiz Philippe (SP), Filipe Barros (PR), Carlos Jordy (RJ) e Daniel Silveira (RJ) são fenômenos da internet.

O empresário Paulo Skaf é a mais gritante exceção a este quadro, já que para ele parece reservada a vaga de candidato do bolsonarismo ao governo estadual em São Paulo. É o único aliancista que tem alguma força própria, não necessariamente eleitoral, para agregar ao presidente. No mais, as parcerias são operações de resgate a curto prazo, como a que se desenha agora para a prefeitura da capital. Os aliancistas cortejam o apresentador José Luiz Datena, mas essa é mais uma estratégia para chegar ao jornalista antes que outras forças políticas o façam. Um certo ceticismo permanece sobre a disposição de Datena em se candidatar. O que parece certo é que não interessa aos aliancistas patrocinar ninguém da direita pura e dura na eleição de São Paulo.

Não havendo Datena no horizonte, poderá até haver um pacto sutil entre o bolsonarismo e um nome de centro-esquerda, como o ex-governador Márcio França (PSB). Ele mesmo, o “Márcio Cuba”, como o acusou durante a campanha eleitoral João Doria. As pontes existem. Caso se concretize, será um movimento meramente tático. O que se busca é a derrota de Doria, de um modo que não fortaleça nem o PT, nem apoiadores futuros de Huck.

Um eventual sucesso de França - cenário atualmente pouco provável - seria especialmente amarga para o governador. Na campanha eleitoral de 2018 França foi um opositor público da privatização da Sabesp, a joia da coroa que Doria quer vender ainda em seu mandato. O principal ativo da Sabesp é o serviço de água e esgoto em São Paulo e o resultado da eleição municipal pode atrapalhar esta equação.

Passada a eleição, Bolsonaro se manteria no mesmo lugar em que está hoje, e Doria com suas pretensões seriamente comprometidas. Impedir o antagonista de crescer é a estratégia.

Guedes
Ficou nítido na manhã de ontem que há um descompasso entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Não apenas pareceu ter irritado o presidente o comentário desastroso de Guedes a respeito do suposto acesso que empregadas domésticas tiveram a viagens internacionais com o câmbio mais favorecido no passado, como também há indícios de visões diferentes em relação ao próprio desempenho da moeda brasileira. “Está um pouquinho alto o dólar”, disse o presidente cedo, durante o seu tradicional encontro com jornalistas na porta da Alvorada. Anteontem, em dia que o dólar teve sua quinta alta consecutiva e fechou a R$ 4,35, Guedes afirmou que a moeda americana estar em um patamar alto era “bom pra todo mundo”.

O ministro anda provocando problemas para Bolsonaro, o que não é habitual neste governo, mas não chega a ser inédito. A comparação de servidores públicos a parasitas, na semana passada, gerou um desgaste que ainda não se dissipou. O presidente foi obrigado agora a expor sua divergência com o ministro para dissociar a sua imagem à dele: “Pergunta para quem falou isso”, disse ao repórter que o abordou para repercutir a declaração do ministro na véspera. “Eu respondo pelos meus atos”, concluiu. A Bolsonaro pareceu melhor o risco de comentar sobre tema tão explosivo quanto o câmbio do que perder pontos junto a um eleitorado em que precisa avançar: o de pessoas de renda mais baixa que nos últimos anos tiveram alguma ascensão no padrão de consumo.

Na breve declaração, Bolsonaro frisou que não interfere na política cambial e de juros. Mas a simples menção ao tema já representa uma interferência. É curioso que, ao conversar com jornalistas, Bolsonaro tenha mencionado que “de vez em quando”, conversa com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. A instituição financeira anunciou 40 minutos depois desta declaração a venda de 20 mil contratos de swap cambial. O presidente entrou em um terreno perigoso ao comentar sobre o dólar e suas conversas com Campos Neto, mas a ação da autoridade monetária deixou patente que o erro original ao estimular especulações altistas partiu de Guedes na véspera.

*César Felício é editor de Política.


César Felício: A pedra angular

Aliança pelo Brasil ganha ares confessionais

Na concepção de poder bolsonarista, existem pilares de sustentação, que o alicerçam no liberalismo econômico exacerbado, com Paulo Guedes; e no jacobinismo das classes médias, com Sergio Moro. E há a pedra angular, aquela que se destaca no centro dos arcos de construções antigas, mantendo toda a estrutura de pé e com capacidade para suportar os pesos laterais.

Trata-se aqui, evidentemente, do ativismo evangélico no exercício da política. Tal como se descreve no versículo 22 do salmo 118, a pedra que os construtores do passado rejeitaram tornou-se a pedra angular. São os evangélicos imbuídos do propósito de construir um projeto de poder que fazem o elo entre Bolsonaro e a parcela mais pobre do eleitorado.

Há muitos ministros evangélicos neste governo, mas uma única pessoa está lá exclusivamente por este motivo. Muito subestimada ao longo de 2019, é a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves que estrutura o bolsonarismo nesta faixa de público.

A pauta de Damares não é a da arena pública, não são estratégias globais de saúde, educação, crescimento sustentável, distribuição de renda, longe disso. Sua agenda se conecta com assuntos de ordem moral, que estão da porta para dentro dos lares, não fora. A recente polêmica sobre a abstinência sexual é um exemplo. Ou não está no rol de preocupação de toda mãe a sexualização precoce e a gravidez ainda na adolescência?

Além de estabelecer estas faixas de sintonia, a ministra também parece disposta a fazer política. Em entrevista à jornalista Rachel Sheherazade, do SBT, Damares falou que um de seus propósitos é colocar mais mulheres na vida pública. Ela se queixou de que há 1,3 mil cidades no Brasil sem sequer uma vereadora. Prometeu uma “revolução” na ocupação de espaço político e incentivar a eleição de pelo menos uma mulher por municípios. Como fará isso, não disse.

A capilaridade que Damares busca não é banal. A ministra estrutura o programa “salve uma mulher”, para treinar pessoas a dar apoio a mulheres vítimas de violência. Não se limitará a servidores públicas. Ela quer envolver no projeto manicures, depiladoras, instrutoras de academias de ginástica. Uma multidão avaliada por ela em 4 milhões de pessoas.

Não lhe falta portanto ambição, como indica o próprio fato de ter feito treinamento de mídia e consultoria de imagem pouco depois de assumir o cargo. A ministra chegou onde chegou porque evangélicos mais bem posicionados para este patamar se inviabilizaram, como foi o caso do ex-senador Magno Malta, de quem foi assessora parlamentar. Ela pode continuar a auferir ganhos com as debilidades de potenciais concorrentes internos. Seu nome parece mais leve que o de Marcos Feliciano, por exemplo. E é bom lembrar que em 2018 a opção que Bolsonaro mais buscou para compor a chapa presidencial era um nome evangélico.

Partido confessional
O Aliança pelo Brasil, assim que se converter na nova estrela do firmamento partidário brasileiro, poderá ocupar um posto sem precedentes: arrisca a ser o primeiro partido confessional da história do país. Não há registro de um pastor pedir a fiéis que assinem apoio a um partido, acompanhado por funcionários de cartório, como fez o pastor Emerson Patriota, da Igreja Presbiteriano de Londrina, em vídeo divulgado esta semana pelas redes sociais.

Nem todos os evangélicos aplaudiram. Em nota, a Igreja Presbiteriana do Brasil se proclamou apartidária. Também pastor presbiteriano, em Florianópolis, o reverendo André Mello comentou ser difícil distinguir quem perde mais, se a Igreja ou o Estado, quando as duas esferas se misturam.

“Estão tentando fazer um partido religioso. Um partido que não será de uma religião específica, mas que terá um líder claro, que está no poder. Será que não percebem dentro das igrejas o risco que estão correndo? Será que ninguém está vendo?”, indaga Mello. O risco que se corre, por óbvio, é o dos templos se tornarem correias de transmissão de uma estrutura política. E das denominações, muitas das quais dominadas por clãs familiares, perderem o comando sobre sua base.

“A Igreja no Brasil tem credibilidade por ser vista pela população como autônoma em relação ao governo. Quando se abraça um projeto de poder, a linha divisória desaparece e o risco que surge é maior para a Igreja do que para o Estado”, comenta.

Mello não é neutro nessa história. Ele pertence ao Livres, um dos movimentos que tentam se inserir na política fora do ambiente partidário. No caso do Livres, com um recorte liberal na economia. O importante é que ele convida a observar o fenômeno de uma perspectiva pouco visitada até o momento: muitos procuram mostrar como Bolsonaro aderiu à agenda evangélica, mas nem tantos lançam o olhar para a trajetória inversa, a de como o bolsonarismo está dominando os templos.

O que a torna equação mais preocupante é que há outro evento em curso, o da expansão exponencial do protestantismo. As igrejas evangélicas espalham-se neste século pela América Latina como um todo e pelo Brasil em particular por motivos estruturais, que antecederam o advento das redes sociais e que ganharam tração depois delas.

“Para entender a força do crescimento evangélico é preciso entender que essa é uma religião de migrantes. De gente que saiu em sua maioria de um mundo desfeito, o da tradição rural, o dos pequenos municípios, o que está completamente fora do cosmopolitismo, das bandeiras universais. Os evangélicos crescem aí, na tentativa de desenraizados se recomporem”, analisa o reverendo.

Durante a era petista, Lula entregou políticas de transferência de renda a quadros que, em sua origem remota, estavam no catolicismo de esquerda. Foi da herança deste vetor religioso que se construíram as ferramentas que consolidaram o lulismo nos grotões, da qual o programa Bolsa Família é o carro-chefe. Para desestruturar esta fortaleza, Bolsonaro concluiu que precisaria ter a Bíblia à mão.

*César Felício é editor de Política.