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César Felício: O grande eleitor e o fator de ruptura
Bolsonaro tem a sorte de poder contar com a oposição
A pandemia e a dificuldade do presidente Jair Bolsonaro em lidar com ela superaram as expectativas mais negativas do mais delirante pessimista. Tudo que pôde dar errado deu, desde escolhas equivocadas na definição das vacinas a serem usadas até o surgimento no país de uma variante especialmente maligna, pouco antes do início da imunização.
O próprio presidente também foi muito além do que se podia imaginar para quem esperava dele um papel de liderança. No dia em que a Nação começava uma escalada rumo ao abismo, à vertigem de mais de um morto por minuto, essa foi a palavra do chefe de Estado: “Nós temos que enfrentar os nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”.
Na sequência, quem começou o mimimi foi ele: “Fui eleito para comandar o Brasil, espero que este poder me seja restabelecido. eu sou um democrata, criticam decisões que tomam contra mim e eu não reajo”, argumentou.
Soma-se a esse desastre verbal a circunstância econômica. O auxílio emergencial virá, menor do que o do ano passado. Compensações para a redução de jornada e salário serão feitas, também, mas inferiores O espaço fiscal para crédito a empresas em dificuldades tende a ser mais reduzido. Estas três variáveis significam que a economia ficará muito mais exposta à devastação da pandemia neste primeiro semestre do que ficou em 2020.
Tudo isso desgasta o presidente, cuja popularidade encolhe na pobreza sem auxílio e cuja rejeição cresce nos segmentos urbanos desesperados com a lentidão da vacinação. O normal, nessas circunstâncias, seria considerar as perspectivas políticas de Bolsonaro sombrias. Foi um combo parecido com esse que terminou por derrotar Donald Trump. Mas aqui não é assim.
Nada, por agora, retira a dianteira de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022, mas antes a condiciona. O presidente torna-se mais dependente de variáveis que não controla.
“O Bolsonaro presidente não tem muito o que entregar para o Bolsonaro candidato”, comentou Antonio Lavareda, presidente do conselho científico do Ipespe, experiente em pesquisas de opinião. O grande eleitor de Bolsonaro, mais decisivo do que o eleitor evangélico e conservador, é a oposição, mais precisamente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O antipetismo ainda é mais relevante que o antibolsonarismo. Se Lula estiver no segundo turno contra Bolsonaro, a eleição presidencial parece resolvida a favor do presidente.
“Percebemos nas simulações que fazemos que, quando Lula é colocado na lista de candidatos, Bolsonaro cresce. Lula tem rejeição absolutamente cristalizada e acirra a polarização”, diz Lavareda.
O ex-presidente por ora está inelegível, dado que tem condenação por órgão colegiado, o que o enquadra na Ficha Limpa. A reversão desta restrição pelo Judiciário, contudo, está longe de ser improvável. A candidatura de Lula, mesmo fadada à derrota, é atraente para o PT. O partido talvez se preocupe mais em manter sua gorda fatia do fundo partidário e uma bancada expressiva no Legislativo do que tirar Bolsonaro do poder.
Se em vez de Lula o candidato petista for Fernando Haddad, o panorama fica um pouco menos risonho para a reeleição de Bolsonaro. “A personalidade política de Haddad está menos sedimentada para o eleitor. Embora ele tenha disputado em 2018, não ficou em evidência ao longo dos últimos anos e o eleitorado vai se modificando”, diz Márcia Cavallari, da Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec), a empresa para onde migrou boa parte do corpo técnico do antigo Ibope.
As opções contra a polarização patinam. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), antagoniza Bolsonaro com todas as pontes com o eleitor de esquerda rompidas, depois das campanhas de 2016 e 2018. Também briga dentro do seu próprio partido. “Ele não tem a direita, não tem a esquerda e não tem o centro”, comenta Lavareda. O ex-governador cearense Ciro Gomes (PDT) faz muito sucesso nas redes sociais, mas não sai do lugar. Essencialmente dialoga com um público fiel.
Para barrar o Fla X Flu entre Bolsonaro e PT, o mais factível seria o surgimento de uma novidade desestruturante, um fator de ruptura. Para Maurício Moura, do Instituto Ideia Big Data, que está permanentemente testando cenários para a eleição de 2022, a empresária Luiza Trajano tem potencial para exercer este papel. “Ela dá um passo além de ser uma simples novidade. É uma empresária, conhecida por ter lojas no Brasil inteiro com seu nome, que dificilmente se enquadra em um cenário de polarização”, comenta.
Em relação ao fator potencialmente disruptivo mais comentado, que seria uma candidatura do apresentador Luciano Huck, ela teria a vantagem de poder navegar em faixas do eleitorado nas quais ele tem dificuldades. Huck vai bem no eleitorado feminino, mais pobre, menos instruído, mais jovem, do Nordeste. É um eleitor semelhante à sua audiência. Luiza transita nesta faixa por inteiro, mas é capaz de entrar em um segmento de renda mais alta no Sudeste que não assiste o Caldeirão.
O ponto fraco de Luiza Trajano, caso ela se anime a se apresentar, é o fato de talvez chegar tarde demais. Tanto Lavareda, quanto Moura e Márcia Cavallari veem um cenário em 2022 adverso a entrantes de última hora.
“A atividade política hoje ganhou uma dinâmica inversa à que vínhamos tendo. Antes podia ser estratégico um candidato novo mas relativamente conhecido ter a menor campanha possível. Hoje a campanha precisa ser longa, para que dê tempo inclusive de se reagir a toda maré de informações negativas que podem surgir”, disse Moura.
“Não basta ser simpática e ter empatia, como Luiza Trajano tem. É necessário também ser vista como presidenciável. Huck faz este esforço há cinco anos e ainda não terminou este processo de construção”, comentou Lavareda.
Sem fato novo que surja a galope e com a improvável sociedade estabelecida com o PT, Bolsonaro parece livre para fazer qualquer bobagem e ainda assim ser reeleito. Da parte que cabe a si, e não à ajuda involuntária dos adversários, precisa ter atenção a dois limites: sua popularidade não pode baixar o patamar de 20% de aprovação e o mercado precisa seguir vendo-o como o mal menor. Do contrário até a conclusão do mandato está em risco.
César Felício: Sinais de alerta
Ao se olhar para o futuro, é bom recordar as lições de 1984
Poucos homens públicos personificaram a elite nacional como Jorge Bornhausen. Aos 83 anos, o ex-governador de Santa Catarina, ex-presidente do PDS, partido de sustentação do regime militar, ex-ministro nos governos Sarney e Collor e dirigente máximo do PFL até o início dos anos 2000 continua frequentando círculos políticos e empresariais em São Paulo. Tenta, na medida de suas forças, lançar um alerta em relação a 2022: para se articular uma alternativa a Bolsonaro fora do espectro da esquerda, é preciso conversar sem pretensões presidenciais colocadas.
Bornhausen votou em Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais de 2018, movido por sua repulsa ao PT, nada mais do que isso. Afirma que não tinha ilusão alguma. “Não podia esperar muito de alguém que fez a apologia do coronel Ustra ao votar o impeachment de Dilma Rousseff”, afirmou, se referindo ao militar que comandou o DOI-Codi paulista nos anos 70 e se envolveu em diversos episódios de tortura a presos políticos.
Ele é taxativo: o presidente da República não tem equilíbrio mental, nem capacidade e nem competência para o cargo. Suas declarações recentes sobre o processo político nos Estados Unidos e seu comportamento relacionado à covid-19 reforçaram esta impressão. O saldo administrativo lhe parece desastroso.
No entanto, nada leva a crer que Bolsonaro não conclua o mandato, mesmo com a incapacidade do governo de governar. A pandemia, que ultrapassou ontem a marca dos 200 mil mortos, conspira a favor da permanência. “Política não se faz sem reunir as pessoas”, comenta Bornhausen, referindo-se tanto às ruas quanto aos gabinetes em Brasília. O agravamento da doença constrange a mobilização dos opositores do presidente, mas não a de seus aliados.
A possível vitória do deputado Arthur Lira à presidência da Câmara poderá ter efeito análogo à de Aldo Rebelo contra José Thomaz Nonô em 2005, ocasião em que, com aquela escolha, ficou sepultada a possibilidade de um impeachment contra o presidente da República de então, Luiz Inácio Lula da Silva. “A aliança do Bolsonaro no Congresso ocorreu na prisão de seu comparsa, Fabrício Queiroz. Bolsonaro quer evitar as possibilidades de impedimento futuro e a eleição na Câmara vai ser um fator explicativo para a sociedade. Trata-se de uma união entre especialistas em rachadinha”, comenta.
Neste quadro, a maior liderança da oposição fora da esquerda, o governador de São Paulo João Doria, não tem tido respostas na opinião pública ao seu sucesso no combate à emergência na saúde. Doria tem 10,8 milhões de doses disponíveis ou para envase da vacina contra a covid. Bolsonaro, de seu lado, tem zero. Desdenha da vacina como a raposa das uvas. A impopularidade do governador tucano, contudo, é um fato.
“O momento exige romper a tradição personalista que marca o Brasil. A experiência da Aliança Democrática de 1984 poderia ser aproveitada. Ali partiu-se primeiro de um princípio, depois dos nomes”, diz, relembrando um instante em que foi protagonista.
Em 1984, no processo de sucessão indireta do então presidente João Figueiredo, a dissidência do PDS, à qual Bornhausen veio a se somar, tinha presidenciáveis fortes, como o então vice-presidente Aureliano Chaves. O PMDB, maior sigla da oposição, tinha como referência política o presidente da sigla, Ulysses Guimarães, e como referência eleitoral o governador de São Paulo, Franco Montoro. Os dois lados se uniram, contudo, para forjar a eleição do governador mineiro Tancredo Neves, o nome que mais compunha.
“O governador Doria parece aceitar a ideia de reunir agremiações em torno de um projeto, disposto a concorrer e disposto a abrir mão. O nome, pode ser Luciano Huck. Ou o governador gaúcho Eduardo Leite. Ou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta”, comenta Bornhausen.
Ciro Gomes, que foi seu candidato a presidente em 2002, também entraria no jogo se assumir compromissos em comum com este campo. Moro não, na visão de Bornhausen, por não demonstrar apetite para a política. Ele vê um arco partidário possível para essa reedição da Aliança Democrática que abarca PSDB, MDB, DEM, Cidadania, Podemos, PSD e Republicanos. Os dois últimos, curiosamente, hoje estão muito associados ao bolsonarismo.
O fio condutor entre Donald Trump e Jair Bolsonaro não é a conduta lunática de seus adoradores, o fanatismo religioso de conveniência, o anticomunismo e a construção de narrativas mentirosas nas redes sociais, ao sabor dos ressentimentos provocados pelas transformações sociais.
O que une os dois líderes, nesse momento, é o populismo, em um dos traços mais marcantes já catalogados por esse modo de se fazer política: o anti-institucionalismo. Trata-se do apelo às massas para que sejam rompidos todos os mecanismos formais de mediação social. Nem Congresso, nem o Judiciário, nem partidos, nem entidades de classe, imprensa, nem absolutamente nada resta em pé no caminho.
De um lado estará o povo, movido pelo seu único intérprete, e também o impulsionando: o formidável demagogo, que incorpora em si o sentimento legítimo da nação, que é o que emana das ruas. Do outro lado, estão os inimigos. Não são adversários, são inimigos. São as instituições, o establishment, os que não carregam a pátria no coração, os que não pertencem, os que não são.
Parece fascismo? Parece. Mas é populismo. Ao arengar as massas, antes da invasão do Capitólio, Trump se desnudou de maneira didática. Não é razoável pensar que ele tencionasse impedir a posse de Biden com o desvario de anteontem. A mensagem é para 2024. Será acima das instituições que tentará se manter no jogo. “Trump se enfraquece dentro do Partido Republicano, mas não como movimento. Neste sentido, pode ser que se reorganize fora do partido”, comentou Carlos Poggio, professor de relações internacionais da PUC-SP.
Desde os quartéis, Bolsonaro escarneceu da autoridade, jogou para a plateia e estabeleceu divisões irreconciliáveis. Poggio frisa que Bolsonaro foi o único líder a bancar a narrativa de Trump de que houve fraude na eleição dos EUA. “Não há outro sentido nessa postura que não seja o de fortalecer uma posição doméstica”, disse. Bolsonaro há tempos desacredita o processo democrático, inclusive a própria eleição que venceu. A literatura sugere que estrondo e fúria não garantem permanência de populistas, como o exemplo de Trump sugere. Mas a institucionalidade é mais fluida no Brasil. Cabe o sinal de alerta.
César Felício: Esteios da governabilidade
Partidos que crescem não vão disputar Presidência
As eleições municipais registraram crescimento dos seguintes partidos na malha de prefeituras espalhada pelo país: PP (de 495 para 682), PSD (de 537 para 650), DEM (de 266 para 459), PL (de 294 para 345) e Republicanos (de 103 para 208). Estes cinco partidos somaram 1.695 conquistas em 2016. Foram 2.344 agora, ou 38% a mais.
Em comum, estes partidos têm a característica de estarem vocacionados para as eleições de caráter local e parlamentar. Não são legendas para disputar a Presidência, salvo às vezes fornecendo o nome para vice em alguma chapa, como fez o PP em 2018 e o DEM em 2010, acompanhando os candidatos tucanos. O PP não lança candidato próprio à Presidência desde 1994, quando ainda se chamava PPR. o DEM não o faz desde 1989, ocasião em que era o PFL. PSD, PL e Republicanos jamais o fizeram. São, portanto, coadjuvantes, e não protagonistas do jogo presidencial.
Os partidos que tradicionalmente são atores da eleição maior tiveram encolhimento de malha. O MDB (candidaturas próprias em 1989,1994 e 2018) caiu de 1.035 para 773. O PSDB minguou de 785 para 512. O PDT deslizou de 331 para 311. O PSB despencou de 403 para 250. E o PT saiu de 254 para 179. Somados, recuaram de 2.808 para 2.025, queda de 28%. A conta pode mudar um pouco com o segundo turno, mas nada que altere o eixo da Terra.
Sem legenda, Bolsonaro não fixou em lugar algum o bolsonarismo. Esta foi uma eleição em que o coração governista ficou de fora, salvo uma ou outra incursão desastrada do presidente por alguma eleição local.
O resultado da eleição tomado pelo atacado, ou seja, pela soma da quantidade de prefeituras conquistadas pelas grandes siglas, mostra uma diminuição da polarização e do efeito nacional sobre as eleições locais, que já não era lá muito grande.
Mesmo sendo bastante tênue, a polarização nacional ainda assim se refletia na competição pelas prefeituras. PT e PSDB viveram ciclos de crescimento nas bases municipais enquanto monopolizavam as eleições presidenciais, entre 1994 e 2014. Agora não há mais o corte entre bolsonarismo e antibolsonarismo. Nem como efeito da eleição de 2018, nem como projeção do que pode ser a escolha para o Legislativo e a presidencial em 2022.
Essa desideologização do pleito de 2022, em linhas gerais, indica uma tendência importante de PP, PSD, DEM, PL e Republicanos terem bancadas muito grandes depois da eleição que acontecerá dentro de dois anos. Passarão com louvor pelo teste da cláusula de barreira e darão cartas no próximo governo.
É no sentido de facilitar a governabilidade e o de darem alguma musculatura a quem tem pouca que estes cinco partidos serão muito disputados para alianças na próxima eleição presidencial.
PP e Republicanos já indicaram de forma claríssima a possibilidade de apoio a uma candidatura presidencial de Bolsonaro. É comentada a hipótese do presidente se filiar a um desses dois partidos.
A adesão ao bolsonarismo é muito menor em relação ao DEM e PSD. O DEM herdará o governo de São Paulo caso o tucano João Doria dispute a Presidência, o que não é pouco. O presidente da sigla, ACM Neto, sequer coloca à mesa um nome próprio para negociar alianças de 2022, o que é sugestivo. O presidente do PSD, Gilberto Kassab, coloca alguns, para valorizar o passe, e daí citou em entrevista à “Folha” os senadores Antonio Anastasia e Otto Alencar.
Os partidos que mais amealharam prefeituras podem dar ossatura para Bolsonaro e Doria na eleição presidencial de 2022, mas obviamente não lhes fornecem os votos para se elegerem. A dinâmica presidencial é outra. Permitem antever apenas, no caso de vitória de um ou de outro, base parlamentar relativamente tranquila para governar.
Pode-se perguntar onde está o MDB nesta análise. O MDB é um esteio da governabilidade que esmaece. Tinha 1.194 prefeitos depois das eleições de 2008, às vésperas de fechar a parceria Dilma/Temer vencedora de duas presidenciais. Era 35% maior do que hoje. O MDB hoje é mais uma entre as legendas que se candidatam a fiel de balança.
O jogo da esquerda é disputado nas grandes cidades. Guilherme Boulos mudou de patamar na política nacional, ainda que perca a eleição paulistana, como é provável. O PT não poderá olhar mais o Psol com a condescendência de um irmão mais velho, como faz hoje. Se José Sarto ganhar em Fortaleza, o PDT e Ciro Gomes se preservam do vexame das apostas erradas no Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo.
O duelo entre Marília Arraes (PT) e João Campos (PSB) pela Prefeitura do Recife terá consequências na eleição presidencial de 2022. A vitória de Marília tende a ameaçar a hegemonia do PSB no governo de Pernambuco e deste modo situar a sigla de modo definitivo no antipetismo. Pode ser uma boa notícia para Ciro.
Ganhando ou perdendo em Porto Alegre, Manuela d’Ávila será uma estrela a brilhar com força no PCdoB, partido condenado a morrer pela cláusula de barreira. É provável que o PCdoB, com o governador do Maranhão Flávio Dino à frente, procure uma incorporação branca a alguma sigla de esquerda ou centro-esquerda mais capacitada a sobreviver. PT parece o caminho mais natural, mas de nenhum modo é a única saída que resta.
E Luciano Huck? O apresentador de TV e candidato a ser um presidenciável pouco ou nada tem a ver com as eleições municipais. Sua possível candidatura dependerá do fracasso de outros atores. Huck se viabiliza caso tudo ou quase tudo dê errado para Doria e Bolsonaro. Vencida esta peneira, ele procurará os esteios da governabilidade já mencionados.
César Felício: O tempo no Amazonas começa a fechar
Política e pandemia estão entrelaçadas de modo absoluto
No Amazonas, a estação das chuvas está próxima. É bom se preparar para a tormenta. No café de um hotel em São Paulo, o governador amazonense Wilson Lima (PSC) puxa do celular e abre em sua tela diversos vídeos de WhatsApp que recebeu. Mostram cenas da campanha eleitoral deste ano tanto em Manaus quanto em cidades do interior.
Muita gente, muita música. Abraços, beijos, festa popular. Em pelo menos um dos vídeos não é possível distinguir uma pessoa sequer de máscara. No Amazonas, explica Lima, a política funciona assim: com contato físico e, obviamente, intensa troca de partículas microscópicas por aerossol.
Na capital, o decano das eleições amazonenses, Amazonino Maia (Podemos), com 80 anos, tenta voltar à prefeitura. Faz campanha sem circular, com reuniões remotas, presença digital. Seu jingle remete a isso: “O pai tá on”. Ele perde terreno nas pesquisas. Seus rivais mais próximos, Davi Almeida (Avante) e Ricardo Nicolau (PSD) fazem campanha de rua e se aproximam. Seguem a lógica do Estado.
A campanha eleitoral, adiada, engata com a virada da estação, em que síndromes de quadro respiratório proliferam. No Amazonas, comícios foram proibidos em apenas dois dos 62 municípios. No Amapá, a covid parou a campanha na capital.
A média de óbitos por dia em Manaus está em nove. Era cinco há algumas semanas, mas chegou a ser de 100 nos piores dias da pandemia. O indice de ocupação de leitos da UTI já alcança 86%. Precisamente só há hoje 51 vagas disponíveis para esta enfermidade. No Estado. O governador sabe que os casos vão aumentar e na segunda-feira começa o processo para colocar mais 42 leitos no sistema.
Lima diz que não considera provável, mas também não descarta de todo, a possibilidade de Manaus reviver em breve o cenário de maio, com hospitais alojando pacientes em contêineres e os cemitérios organizando filas para enterros coletivos.
O “lockdown”, segundo o governador, não é uma opção. Embora bastante alinhado ao presidente Jair Bolsonaro, não usa argumentos ideológicos para combater a política de isolamento social. Para Lima, ela não é uma afronta a liberdade, como dizem os bolsonaristas xiitas. Ela é inútil, porque um decreto de fechamento do Estado não seria obedecido.
“Ninguém respeita. Ninguém respeita. Isso na França, na Espanha, na Alemanha, é muito bacana. Em Manaus, não funciona. Isso não é opinião, é constatação”, diz. Ressalve-se que o pensamento de Lima não é unanimidade no Amazonas. O entendimento do prefeito de Manaus, o tucano Arthur Virgílio, é outro, a favor do isolamento.
A proatividade do governador do Amazonas pode estar sendo afetada por dois fatores: um é sua sustentação política frágil. Ele foi alvo este ano de uma tentativa mal sucedida de impeachment, que deixou como saldo seu afastamento definitivo do presidente da Assembleia Legislativa.
Outro foi a rumorosa compra de respiradores com indícios de superfaturamento na intermediação do negócio por uma loja de vinhos. Lima tornou-se personagem da “Operação Sangria”, que já está na sua segunda fase, com direito a busca e apreensão de documentos e a um pedido de prisão, este negado pelo STJ. Sua situação não está resolvida. As investigações continuam na Procuradoria-Geral da República.
“A investigação está sob sigilo e eu estou tranquilo. Se houve superfaturamento, foi em uma relação entre privados. O Estado só estava preocupado em garantir o atendimento em um momento de escalada de preços e de falta do produto”, diz. Ainda assim, ele assegura ter trocado todo o pessoal da Secretaria da Saúde e instituído uma controladoria para auditar todas as compras relativas à pandemia.
Medida necessária, considerando que a secretária da Saúde foi presa em junho. O antecessor dela também foi parar na cadeia.
Sem ter muito o que fazer para deter a progressão da doença, ou pelo menos é nisso que ele acredita, que seu raio de ação é reduzido, o governador amazonense aguarda com ansiedade que a poeira baixe e a discussão sobre vacinação caminhe para uma direção técnica.
Lima receia um quadro em que a Anvisa avalize uma vacina de origem chinesa produzida em São Paulo, mas o governo federal não a coloque no plano nacional de imunização, como ameaça Bolsonaro. “Não faz sentido um Estado poder vacinar sua população e o outro não. Um Estado pobre não terá como comprar vacinas”, diz.
Para Lima, a discussão sobre vacinas está de cabeça para baixo. “Não temos que pensar se vacina é uma obrigação ou não. Temos que assegurar a vacinação como um direito. Isso não está assegurado”, alerta. Ele arrisca um palpite: “Eu não acredito que alguém da periferia de Manaus rejeite uma vacina porque ela vem da China. Isso não existe.”
São Paulo
A última pesquisa XP-Ipespe, divulgada pelo Valor, mostra que o primeiro turno da eleição paulistana pode ser decidido por dois candidatos de baixa competitividade: Jilmar Tatto (PT) e Arthur do Val, o “Mamãe Falei”, do Patriota. Os dois saíram do traço para o patamar dos 5%.
Ambos crescem de maneira assimétrica nas diversas faixas do eleitorado. A ascensão de Tatto complica a passagem de Guilherme Boulos para o segundo turno, porque se dá nos segmentos de menor renda. Na alta renda e na população com ensino superior, Boulos já lidera. São veios que parecem estar próximos do esgotamento. Para ultrapassar 20%, o candidato do Psol precisa da periferia.
O crescimento de “Mamãe Falei” acontece entre homens jovens. É um eleitorado que lastreou o começo do crescimento de Bolsonaro nas pesquisas, na fase de pré-campanha presidencial. Em tese, seria um eleitor mais próximo do bolsonarismo. Se este candidato avançar, pode aprofundar o declínio de Russomanno.
Ainda que não vá para o segundo turno, uma votação acima de dois dígitos deixa Boulos muito maior do que entrou na disputa.
César Felício: Derrota quase certa
Politização da vacina pode ser barrada no STF
A não ser que o presidente desmanche com o cotovelo o que escreve com a mão, Jair Bolsonaro talvez tenha contratado uma derrota ao proclamar que rejeita vacinas contra a covid-19 oriundas da China ou que possam de um modo ou outro beneficiar o tucano João Doria.
O problema por ora não existe, por ainda não existirem vacinas. Mas na hora que se chegar a elas, é quase impossível impedir, dosar, ou retardar, ou direcionar politicamente a vacinação em massa da população brasileira.
Horas depois de Bolsonaro desautorizar seu ministro da Saúde, governadores avisaram que, no limite, quem vai decidir a questão é o Supremo Tribunal Federal. A julgar pelo retrospecto de decisões do STF sobre pandemia e sobre saúde pública, é provável que Bolsonaro se depare com uma ordem do Judiciário para que a União compre toda e qualquer vacina de eficácia comprovada pela Anvisa para o programa nacional de imunizações.
Em 16 de abril, o STF decidiu, por exemplo, que Estados e municípios podiam estabelecer normas próprias para a pandemia, impedindo que o presidente forçasse o comércio a reabrir contra a vontade dos governos regionais. Não foi uma votação apertada, foi por unanimidade.
Pode-se argumentar que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estaria aparelhada ideologicamente pela extrema-direita e irá recusar a autorização do uso no Brasil da Coronavac por motivos de ordem política. Em se tratando de Bolsonaro nada pode ser descartado, mas como órgão técnico, a Anvisa precisa dar uma justificativa técnica. Qual seria? É uma questão que os bolsonaristas precisam responder antes de dar o seu golpe da caneta.
Conspiram contra a politização do tema as consequências que o país sofreria caso a vacinação se torne parte da guerra cultural, e essa é a força do argumento dos governadores.
Um risco é o que o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), chama de “cenário hobbesiano”: a Anvisa autoriza a Coronavac, o governo não compra a vacina, e cada governador vai à luta, ombro a ombro com o setor privado, em uma distópica guerra de todos contra todos. “Isso significa que os critérios para compra não serão uniformes e os problemas que existiram para a aquisição de respiradores podem se replicar para garantir o acesso à vacina”, disse.
A ausência do Ministério da Saúde no processo de capacitação do sistema público para poder atender os enfermos, como se sabe, rebaixou a tomada de decisão para Estados e municípios e abriu a porta para o descontrole: houve até importadoras de vinhos comprando respiradores, entre outras aberrações. Com a vacina, o descontrole pode ganhar escala geométrica.
Se a Anvisa não autorizar a Coronavac por problemas políticos, pode ser instalada uma crise entre China e Brasil, na visão do governador da Bahia, Rui Costa (PT). “A economia brasileira, o nosso agronegócio, é capaz de suportar uma retaliação chinesa?”, indaga o petista.
Caso a vacinação brasileira atrase em comparação com o processo de outros países, o Brasil dependerá da imunização de rebanho para sair da pandemia e ficará para trás. Estará desguarnecido quando vier a segunda onda de contaminação, que virá. O setor privado será afetado, na visão de Renato Casagrande (PSB), governador do Espírito Santo. “É mais tempo perdido para voltar à atividade plena”, argumentou.
Como o presidente definitivamente não é tolo, torna-se um desafio tentar entender o porquê do movimento. A hipótese menos arriscada é a do cálculo político imediato: provocando uma tremenda confusão em um primeiro momento, Bolsonaro impede um ganho claro para o governador paulista em um momento em que decidiu se imiscuir na eleição municipal. A capitalização que Doria tenta fazer de seu protagonismo na questão da vacina é clara.
Na outra ponta, reforça a narrativa contra o vírus chinês, propagada por seu inspirador, Donald Trump, em um momento em que os republicanos estão nas cordas dos Estados Unidos. De quebra, o presidente reencanta a parte de seus seguidores que vive no mundo mágico das conspirações da internet. Os fascistas do YouTube tinham caído das nuvens com a indicação de Kassio Marques para a Suprema Corte.
A ser isso, Bolsonaro operou no curto prazo. Quantos brasileiros a mais morrerão por causa dessas tertúlias políticas, nesta ótica, é um mero detalhe.
Fome
Recluso desde março, o escritor e ativista Frei Betto lança seu “Diário da Quarentena”, pela Editora Rocco. É uma das primeiras reflexões organizadas de um pensador da esquerda sobre o processo que o mundo inteiro vive.
O irmão leigo dominicano não é otimista em relação ao fim próximo da pandemia. Lembra que na história das vacinas a que teve seu ciclo mais rápido foi a da caxumba, que demorou quatro anos para ser desenvolvida. Mas projeta a vista adiante, dimensionando uma das catástrofes que devem ganhar impulso com a pandemia: a fome generalizada. “A pandemia atinge a todos e leva ao gasto de bilhões e bilhões de dólares. A fome mata muito mais, mas não atinge a todos. Ela incide sobre os mais pobres e reforça a desigualdade. Ela faz distinção de classe”, diz.
Neste sentido, a entrega este ano do Prêmio Nobel da Paz para o Programa Alimentar da ONU foi um alerta definitivo. O agravamento da fome, em escala planetária, será uma consequência incontornável da covid-19.
Frei Betto acha que, diante de tamanho desafio, é míope entender que a manutenção ou não de um auxílio emergencial robusto está condicionada ao quadro fiscal de cada nação. A perenização de um auxílio emergencial para os mais vulneráveis tende a se tornar uma bandeira universal e abalar sistemas políticos em todo o globo.
No caso do Brasil, Frei Betto considera que a pandemia teve um efeito político claro: deixou a oposição brasileira à mercê de variáveis que não controla e que não pode, por uma questão de integridade moral, torcer para o quanto pior melhor.
“O governo está com a hegemonia narrativa. Os panelaços silenciaram. O auxílio emergencial faz parte da explicação disso e não há como a esquerda se contrapor”.
Bolsonaro com o auxílio emergencial foi acolhido pelos que não votaram nele. “Em 13 anos de poder o PT não fez a alfabetização política do povo. O bebê do pobre chora de fome e não tem resposta. Isto é uma trava. Colabora com o conformismo. São 120 milhões que ganham até dois salários mínimos. É muita pobreza e este contingente fica acondicionado a acolher tudo o que vier.”