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Maria Hermínia Tavares: Bolsonaro não acabou

Seria um equívoco ler seu destino nas cartas distribuídas nas eleições municipais

As eleições municipais confirmaram o que se viu em 2018: o Brasil dobrou à direita –muito embora os partidos que se beneficiaram dessa virada sejam muitos e diferentes em tamanho e relações com o governo.

De seu lado, mesmo derrotadas, as esquerdas se revelaram competidoras aguerridas em capitais e cidades maiores. Ganhando ou perdendo, mobilizaram os jovens e estão levando pautas progressistas às Câmaras Municipais.

Com razão, comentaristas tem destacado que vitoriosos foram os partidos de oposição a Bolsonaro situados no centro-direita e na direita. PSDB, MDB e DEM governarão o maior número de brasileiros, mesmo tendo perdido Prefeituras. Também é verdade que os candidatos abertamente apoiados pelo presidente foram derrotados; a maioria, já no primeiro turno.

Não está claro, porém, o que isso diz da força política do chefe do governo. E seria um equívoco ler seu destino nas cartas distribuídas nas eleições municipais. Primeiro, porque, salvo o PTB, todas as siglas ajuntadas no centrão, que o sustentam no Congresso, cresceram de forma muito significativa.

Depois, porque, amargando embora a derrota de seus candidatos, o presidente sem partido tem ainda o apoio de 37% dos brasileiros, segundo a pesquisa XP-IPESP, feita após o primeiro turno. Uma porcentagem muito próxima à do primeiro mês de seu mandato (40%), em franca recuperação do seu pior momento, em maio deste ano (25%).

Especialistas no estudo da opinião pública costumam estimar que algo em torno de 15% do eleitorado forma o núcleo duro dos adeptos de Bolsonaro. De fato, a pesquisa “Impactos Políticos da Pandemia”, coordenada pelo cientista político Carlos Pereira, da Fundação Getúlio Vargas, encontrou, em duas rodadas, respectivamente 15,2% e 18,5% dos entrevistados que se dizem dispostos a votar de novo nele em 2022.

No poder, o ex-capitão deu cara e alcance nacional à minoria extrema que já existia no país, mas não tinha um líder com o qual pudesse identificar-se na grosseria da fala, no primarismo da visão de mundo e no medievalismo em matéria de valores e condutas. Essa extrema direita não se esfumará.

Antes, continuará a mostrar presença no dia a dia e na arena eleitoral. Sua relação com os outros tons da direita dependerá de muitas coisas: por exemplo, do que o governo fará ou deixará de fazer diante do repique da pandemia, com as vacinas, com a economia. Mas também das estratégias das direitas ­—das mais próximas ao governo às mais centristas— e, em menor medida, do que façam as esquerdas daqui até 2022. Bolsonaro não acabou e dificilmente acabará tão cedo.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Andrea Jubé: A lição de Patos para a sucessão em 2022

Centro-direita larga fragmentado para 2022

Os ingredientes da eleição para prefeito de uma cidade média no sertão paraibano alçaram-na ao patamar de microcosmo político do país, na visão de alguns cientistas políticos.

Projetando-se o cenário local para o plano nacional, em um criativo exercício de análise política, o resultado da eleição em Patos, na Paraíba, colocaria em xeque o sucesso de uma eventual chapa encabeçada pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro em 2022.

Uma premissa somente autorizada, ressalte-se, no contexto da recuperação da política tradicional como principal resultado do primeiro turno das eleições municipais.

Com 108 mil habitantes, o terceiro reduto de poder mais cobiçado da Paraíba - depois de João Pessoa e Campina Grande - foi palco de uma eleição acirrada, polarizada entre um “outsider” e um representante da “velha política”.

De um lado, concorreu o Juiz Ramonilson Alves, postulante do Patriota, que se aposentou para ingressar na política; na outra ponta, o ex-prefeito Nabor Wanderley, candidato do Republicanos.

Chamado de “Moro da Paraíba”, o Juiz Ramonilson encabeçou a chapa, com o DEM na vaga de vice. Nos discursos, afirmava que a solução para a cidade passava pelo combate intensificado à corrupção e pelo fim do monopólio político local.

Seu adversário era um legítimo representante da política tradicional, encabeçando uma coligação formada por Republicanos, PP, PSD, PSL, Rede e Cidadania. Nabor governou a cidade duas vezes, de 2005 a 2012.

Nabor respondeu a denúncias de corrupção, muitas delas julgadas por Ramonilson. No horário eleitoral e em entrevistas, acusou o ex-magistrado de persegui-lo há muitos anos, desde sempre com finalidades eleitorais.

Ao fim de um embate acalorado, Nabor alcançou 51% dos votos, contra 41% do Juiz Ramonilson. Um resultado local que refletiu o quadro verificado no plano nacional, considerado o placar das capitais e principais cidades brasileiras: a vitória da política tradicional sobre a “nova política”, da qual Jair Bolsonaro foi o expoente em 2018.

“A eleição municipal restaurou o sistema político, o “outsider” perdeu valor no mercado político e o centro institucional saiu consagrado”, disse à coluna o cientista político Nelson Rojas de Carvalho, professor do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

Para ele, este resultado reduz as chances de “players” de fora da política cotados para a sucessão presidencial, como Sergio Moro e Luciano Huck.

O pesquisador aponta a derrota da “nova política” neste pleito, mas, não a do presidente Jair Bolsonaro como cabo eleitoral. Isso porque a eleição municipal não tem determinantes nacionais, mas, sim, consequências no plano nacional.

“A eleição municipal tem uma dinâmica local que gera efeitos nacionais”, argumenta o autor de “E no início eram as bases - Geografia política do voto e comportamento legislativo no Brasil”.

Ele aponta dois efeitos principais do pleito municipal no âmbito nacional: uma configuração mais sólida do quadro sucessório, e a composição de forças no Congresso Nacional na próxima legislatura.

O primeiro efeito do pleito municipal na sucessão presidencial, na visão de Nelson Rojas, é a fragmentação das forças de centro-direita, que tendem a avançar separadamente após o resultado deste ano.

Para o pesquisador, o desempenho do DEM, principalmente nas capitais, levará o partido a lançar candidatura própria em 2022. “O partido não aceitará ser vice do PSDB de novo”.

Um dos nomes colocados é o do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Correm por fora o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

No primeiro turno, o DEM reelegeu Rafael Greca, em Curitiba; Gean Loureiro, em Florianópolis; elegeu Bruno Reis em Salvador; e avança rumo à vitória de Eduardo Paes, que deverá governar o Rio de Janeiro pela terceira vez.

De igual forma, se o PSDB reeleger o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, não terá por que renunciar à cabeça de chapa na disputa presidencial em 2022. O nome mais provável é o do governador João Doria, embora o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, também seja cotado para a empreitada.

Mas se Covas for à lona, abatido pelo ativista Guilherme Boulos (PSOL), “o PSDB se perde”, e ficará difícil encabeçar a chapa, diz Nelson. Em especial, após o desempenho de Geraldo Alckmin em 2018, que obteve 4,7% dos votos válidos.

No espectro da esquerda, o pesquisador vê Ciro Gomes (PDT), ou um candidato apoiado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mais competitivos numa conjuntura de crise econômica, em um paralelo com a Argentina, onde a derrocada levou à vitória de Alberto Fernández.

“Se a economia chegar em 2022 em um diapasão tolerável”, as chances aumentam para a centro-direita”, diz o professor, que foi colunista convidado do Valor.

O segundo reflexo das eleições municipais na conjuntura nacional, segundo Nelson Rojas, vai se consumar na eleição dos deputados federais e senadores para a legislatura de 2023-2026.

Ele afirma que a nova correlação de forças que emerge da eleição municipal vai se refletir na composição do novo Congresso, e os partidos que elegeram mais prefeitos serão hegemônicos no Legislativo. As seis siglas que mais conquistaram ou preservaram prefeituras foram MDB, PP, PSD, PSDB, DEM e PL, todos representantes do centro político.

Nelson discorda da interpretação de que o primeiro turno das eleições municipais foi um “plebiscito” sobre o governo Bolsonaro. Ele acha equivocado atribuir o mau desempenho do prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), ao apoio de Bolsonaro. O presidente perdeu, na sua visão, ao não conseguir organizar o seu partido, e com ele, ocupar espaço no pleito municipal.


Alon Feuerwerker: As dúvidas sobre o frentismo em 2022

Confirmou-se que o primeiro turno das eleições municipais trouxe a capilarização dos partidos da base do governo, e que por isso tinham, e aproveitaram melhor, o acesso ao orçamento federal. Viu-se também um certo movimento de continuidade, natural e esperado em meio a uma pandemia. Notou-se ainda a resiliência da esquerda, fenômeno facilmente detectável na manutenção dos votos para vereador e na votação significativa nos grandes centros.

O debate agora é sobre o que o resultado de 2020 projeta para 2022. Com os necessários cuidados, pois não há transposições mecânicas. E falta muito tempo político. Feitas as ressalvas, a dúvida que fica é sobre os possíveis blocos e alinhamentos. E para esse debate é útil a observação do que vai se dar no segundo turno, daqui a uma semana. Pois ficará claro o estágio atual da disposição dos diversos atores para alianças e formação de coalizões. Informação essencial para definir a tática.

Já está explícito, por exemplo, que mesmo as frações mais resistentes a alianças e frentismos na esquerda estão dispostas a votar em qualquer candidato não bolsonarista para derrotar o bolsonarismo. A opção do presidente da República por manter o discurso e a prática alinhados ao que podemos chamar de núcleo ideológico facilita um agrupamento quase automático de forças contrárias quando só há duas opções.

Mas, atenção, desde que o adversário seja palatável aos que em 2018 votaram Bolsonaro ou se abstiveram, e agora procuram outro caminho.

E se em 2022 o presidente for ao segundo turno contra alguém da esquerda? Neste momento, não é excessivo supor que ele deverá arrastar de volta pelo menos uma parte dos arrependidos. Ou será que não? Duas das disputas neste segundo turno são um termômetro para tirar a dúvida. Vitória (ES), onde a o PT está no segundo turno, e Belém, onde o adversário do candidato bolsonarista é do PSOL.

Em Fortaleza, o cirismo parece ter formado com facilidade a frente antibolsonarista. Veremos o resultado na urna. Mas, e em Vitória e Belém, o autonomeado centrismo ficará de que lado?

De todo modo, 2022 projeta forte pulverização de candidaturas majoritárias, pelos menos das forças com pouco acesso a orçamentos públicos. Porque o voto majoritário é uma ferramenta preciosa para puxar o voto proporcional, e não custa lembrar sempre que daqui a dois anos a cláusula de desempenho na votação para a Câmara dos Deputados estará colocada alguns centímetros acima do que em 2018.

E a votação para deputado federal, além de definir se o partido fica na Série A ou cai para a B, acaba também definindo quanto a legenda terá de espaço no horário eleitoral e verba do fundo eleitoral em 2024 e 2026. Não é pouca coisa em jogo.

Portanto, é ilusão imaginar alianças muito amplas na largada. Cada um precisará caminhar com suas próprias pernas. Talvez haja alguma convergência entre MDB, PSDB e Democratas, notam-se ensaios. E entre as legendas do chamado centrão, estrito senso, e talvez em torno do presidente da República. O que dependerá, obviamente, da popularidade de Jair Bolsonaro quando chegar a hora de tomar as decisões.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Fernando Abrucio: Lições para além da vitória do centro

Muitos creem que as eleições, nos EUA e aqui, apontam um novo caminho de centro para 2022. Faz sentido, porém, é preciso destacar que moderação política não significa inação

Marco Maciel, um dos políticos mais experientes do país, já dizia que uma eleição começa quando acaba a outra. No momento atual, o debate brasileiro multiplica esse provérbio: duas eleições recentes estão alimentando a discussão política, a presidencial americana e a municipal daqui. Inspirados pelo enredo e resultados de ambas, muitos acreditam que elas apontam um novo caminho para o pleito de 2022, no qual um novo centro teria grande espaço para conquistar a Presidência da República. A ideia faz sentido, mas é preciso evitar que ela não se transforme numa fácil e falsa fórmula eleitoral.

Inspirar-se efetivamente nessas duas últimas eleições seria buscar o seu sentido mais profundo, e não ficar na superfície do fenômeno. Se isso for feito, as descobertas irão além de um receituário para o novo centrismo, em contraposição ao Centrão e à polarização Bolsonaro versus Lula. Trata-se de entender os contextos, atores e projetos que deram materialidade à vitória de Joe Biden e Kamala Harris nos Estados Unidos, bem como as razões do triunfo dos políticos pragmáticos vencedores das eleições municipais de 2020.

De maneira sucinta, cinco elementos advêm dessas duas experiências eleitorais como lições para os que pretendem vencer o presidente Bolsonaro. O primeiro deles é que o desempenho do governante de plantão é a baliza básica do jogo político, especialmente quando ele busca a reeleição. No caso americano, a principal escolha estratégica de Biden foi mirar nos principais erros de Trump, colocando-se como o seu oposto nestes pontos, algo que foi facilitado pelo rotundo fracasso federal no combate à covid-19.

Para quem quiser seguir essa trilha, dois passos são necessários: definir quais são os pontos mais frágeis de Bolsonaro, centrando o foco neles, e começando a se construir como oposição a eles. Parece uma obviedade, mas o debate sobre novo centrismo brasileiro fala pouco de oposicionismo. Lembra-se muito da característica moderada de Biden - o que é verdade -, porém se esquece que sua moderação veio a serviço de uma oposição que não foi montada às vésperas da eleição.

Colocar-se mais claramente e o mais rápido possível como oposição, especialmente centrando a crítica nos pontos certos, é fundamental para se definir como um dos projetos alternativos ao governo Bolsonaro. Provavelmente haverá mais de uma proposta política em 2022, de modo que quem ficar esperando e apenas dourando a pílula não terá identidade política junto ao eleitorado. Definitivamente, moderação política não é inação.

Um bom exemplo da necessidade de contrapor claramente ao poder vigente vem de um dos mais brilhantes políticos de centro da história brasileira: Tancredo Neves. Ele só conseguiu o apoio da sociedade que queria acabar com a ditadura e, ao mesmo tempo, dos dissidentes do regime porque marcou sua posição contra o então governante, fez críticas certeiras durantes meses, sem que isso o impedisse de conversar com todos os lados. Cabe ressaltar que se Bolsonaro perder popularidade (e isso tem boas chances de ocorrer), mais a população e os políticos (inclusive governistas) vão começar a buscar alternativas. Qualquer novo centrismo tem que se mexer, o mesmo valendo para os opositores à esquerda.

Uma segunda lição que vem das eleições americanas e das disputas aos governos locais no Brasil é que o desempenho eleitoral depende muito das políticas públicas, mais fortemente quando há um candidato à reeleição. Muitas razões explicam a derrota de Trump, um dos poucos presidentes do pós-guerra que não se reelegeu. Mas é inegável que, quando analisadas as pesquisas de opinião, fica evidente o fracasso de seu governo. Segundo os eleitores, sua atuação na pandemia foi desastrosa, a política educacional foi ruim, a criação de empregos e de um colchão de proteção social diante da crise foi modesta. No computo final, a maioria do eleitorado preferiu votar olhando para resultados, em vez de se definir por guerras culturais.

De maneira inversa, os vitoriosos das eleições nas capitais brasileiras que buscavam a continuidade do governo tiveram seu sucesso muito atrelado à aprovação de suas políticas públicas. Daí que quem quiser usar essas lições eleitorais para pavimentar o caminho contra Bolsonaro precisa definir o atual governo como um fracasso de políticas públicas - na Educação, Saúde, Meio Ambiente, Direitos Humanos etc. - e apresentar alternativas simultaneamente críveis e desejáveis pela população. Esse debate é o terreno mais difícil para o bolsonarismo.

Dentro da agenda de políticas públicas, é preciso entender quais são as tendências que mais vão mobilizar os eleitores. Essa é outra lição, a terceira, para quem quiser vencer em 2022. A dupla Biden-Harris concentrou-se nas principais questões que poderiam engajar a maioria dos cidadãos: pandemia, desigualdades, questão racial, uma política menos polarizada, entre as principais, captando o espírito da época, o que foi expresso numa diferença de cerca de 5 milhões de votos.

Quais serão as principais tendências da eleição de 2022? É muito difícil cravar com certeza uma lista de prioridades porque em dois anos muita coisa pode acontecer. Mas parece que o espírito da época que vai marcar a próxima eleição presidencial vai ter na desigualdade, em suas várias facetas (de renda, regional, de gênero, racial e de acesso aos serviços públicos), o seu aspecto central. Além disso, a questão ambiental, ainda mais com a pressão externa, deve crescer de importância. Por fim, todo mundo quer que a economia ande, pois ninguém aguenta mais uma estagnação tão longa. Em outras palavras, pauta de costumes perde força quando o básico falta para a população.

Qualquer projeto oposicionista vai ter de dizer que com Bolsonaro o Brasil piorou. As qualidades da moderação centrista podem se sobrepor à polarização, mas esse grupo precisa estar antenado com as principais preocupações da população, trazendo respostas aos problemas que afligem à maioria do eleitorado. Em síntese, um novo centro só vai ganhar do bolsonarismo e da esquerda se interpretar melhor o espírito da época que vai alimentar as eleições de 2022. Não basta vender o bom-mocismo.

Além da compreensão do espírito da época, o sucesso da campanha presidencial no Brasil vai depender do grau de engajamento de setores estratégicos do eleitorado. A quarta lição aqui vem mais forte do caso americano, embora o caso paulistano recente tenha mostrado como Boulos foi muito sagaz em mobilizar o eleitorado jovem num momento de pouca participação das pessoas em comícios e afins. Quem quiser ter melhor sorte em 2022 precisará construir uma estratégia de comunicação envolvente, que atinja os grupos que podem decidir a eleição. Aliás, é neste ponto que o bolsonarismo tinha vantagem sobre as outras forças político-partidárias, como ficou claro em seu triunfo em 2018, apesar da dúvida que há hoje após o fiasco nas eleições municipais.

A dupla Biden-Harris foi capaz de fazer uma campanha que se colocou contra o histrionismo de Trump, ao mesmo tempo em que foi criativa e engajadora dos três grupos mais relevantes para a vitória democrata: os mais jovens, as mulheres e os negros. Ficam as perguntas: quais serão os setores decisivos na eleição presidencial de 2022? Como mobilizá-los, tanto na forma como no conteúdo? Essas duas questões são essenciais para todos os aspirantes à Presidência da República, sejam de esquerda, direita ou centro. Ser centrista não é uma forma óbvia de dar conta desses desafios. Criatividade, pluralismo e inserção social mais profunda serão muito mais importantes.

A construção das alianças será essencial, por isso fica aqui como a lição que finaliza o artigo. Entretanto, é engraçado que o debate brasileiro tenha começado neste ponto, quando deveria lidar com os quatro primeiros para desaguar neste último. De qualquer modo, a questão central é a seguinte: uma candidatura fora dos extremos precisa unir candidatos diferentes numa mesma chapa. Ou seja, se o presidenciável vem do centro ou centro-direita, tem de ter um vice mais à esquerda, e se vem da centro-esquerda, tem de ter uma companhia mais ao centro (ou centro-direita). Essa foi a fórmula democrata, que aliás também procurou construir uma parceria entre dois atores políticos com características distintas - um homem e uma mulher, um branco e uma negra, um da costa Oeste e outro da Leste. Isso tem de ser adaptado para as circunstâncias brasileiras, encontrando que tipos de coisas diferentes devem ser unidas para produzir uma chapa competitiva.

Em suma, encontrar uma estratégia para se organizar como oposição ao bolsonarismo, focar no debate das políticas públicas (calcanhar de Aquiles de Bolsonaro), entender quais são as tendências predominantes que importam aos eleitores, construir um modelo de engajamento e comunicação que atue sobre grupos estratégicos do eleitorado, e, por fim, montar uma aliança presidencial entre diferentes, são as peça-chave para se ter uma candidatura bem-sucedida em 2022. Ser de centro ou ter apoio de parcelas importantes do centrismo são características que podem ajudar nesta tarefa, mas com certeza isso não é suficiente. Biden entendeu isso, bem como os pragmáticos que venceram as eleições municipais de 2020.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.


Vladimir Safatle: A república oligárquica precisa morrer

O processo de mudar o que significa “governar” tem sua mola principal na liberação da energia e inteligência dos setores mais violentados de nossa história de latifúndio escravocrata primário-exportador

Os resultados das eleições do último domingo evidenciaram duas linhas principais de confronto a animar a política brasileira. Não seria mero exercício retórico afirmar que nosso destino a curto e médio prazo depende do desdobrar de tais linhas.

A primeira delas indica a resiliência da República oligárquica brasileira. Os números mostram com clareza a hegemonia eleitoral de uma constelação na qual encontramos representantes tradicionais do aparato econômico e da chamada “direita de sobrenome”, ou seja, esse setor da elite política que tem relações históricas e familiares com o poder, espalhado em múltiplos níveis regionais e locais. Tal grupo há muito conseguiu se consolidar como verdadeira “casta” política e é marcado por práticas políticas conhecidas, nas quais se misturam brutalidade policial e racista, guerra contra pobres, ausência de qualquer formulação de fortalecimento do espaço comum, assim como submissão aos múltiplos interesses imobiliários e concentracionistas em operação em nossas cidades.

Esse grupo conseguiu se vender, ironia maior do Brasil contemporâneo, como “anteparo de racionalidade” contra o “extremismo” do Governo federal, como retorno da “política” contra o “populismo”. Na verdade, essa foi sua estratégia para reconstituir a balança do poder diante da ascensão de outro grupo, a saber, uma extrema direita popular, composta por setores que eram normalmente sócios menores e subalternos dos consórcios do poder. Setores compostos por: milicianos, representantes do aparato repressivo policial, agitadores midiáticos de extrema direita e pastores. Normalmente, eles eram servidores da direita oligárquica que conseguiram, nesses últimos anos, subir ao primeiro time, amparado pela força histórica das tendências fascistas na sociedade brasileira.

Esta direita oligárquica, que comunga com a extrema direita o mesmo projeto econômico de espoliação e concentração, a mesma brutalidade social e indiferença no uso da violência de Estado, mas que sabe usar melhor planilhas de CEO, conceitos acadêmicos e sabe onde fica a Avenue Foch, viu-se em meados deste ano a ponto de ser definitivamente afastada do poder dentro de uma escalada pré-golpe. Como a arte da sobrevivência lhe é um traço inerente, ela soube reordenar suas forças, capitanear chamados a “frente ampla e redentora contra o fascismo e em prol da defesa da democracia” para simplesmente repactuar uma divisão provisória de poder. Agora, ela soube se vender nas eleições como uma espécie de “volta à normalidade”, mesmo que essa normalidade seja o verdadeiro nome da catástrofe brasileira.

Ela tentará agora colocar em circulação estratégias aprendidas observando o comportamento de sua matriz, a saber, a direita oligárquica norte-americana encarnada no Partido Democrata. Nas últimas décadas, o Partido Democrata em seu eixo Clinton-Obama procurou compensar a aliança incondicional com políticas militaristas e de preservação do capitalismo financeiro de Wall Street com um “rosto mais humano” expresso na tentativa de integração de representantes dos setores mais sistematicamente violentados da população (pretos, LGBT’s , mulheres), sem mexer em praticamente nada nas engrenagens de espoliação, de precarização e sujeição socioeconômica que lhes afetam mais diretamente. Afinal, não é possível nomear Timothy Geithner (representante maior dos interesses dos sistema financeiro) secretário do Tesouro na administração Obama e fingir que se está a lutar pela transformação estrutural contra as múltiplas formas de sujeição social. A pobreza é a matriz das piores violências.

Mas há um problema que faz essa equação não fechar muito bem. A revolta vinda desses setores é potente, explosiva, assim como é real seu desejo de transformação. As tentativas de vampirizar sua força pela direita oligárquica equivalem a tentar domar, com velhos truques de mágica, processos com verdadeiro potencial de mudança. Ou seja, a tendência de que esse arranjo se quebre é grande e chegará uma hora que o espantalho de “todxs contra o trumpismo” não funcionará mais. De toda forma, o trabalho do Partido Democrata é relativamente facilitado porque eles não têm, por enquanto, nenhuma força à sua esquerda com quem se confrontar. Esse não é, felizmente, o caso do Brasil.

É nesse ponto que encontramos a segunda linha principal de confronto que emerge do primeiro turno das eleições. Se a primeira se resume às estratégias de preservação das oligarquias locais contra a extrema direita de matriz integralista, sob fundo de concordância geral, a segunda diz respeito à paulatina incorporação de novos processos coletivos de exercício do poder popular. Por isto, essas eleições foram também o início de um novo embate que começa, não por acaso, no centro econômico e financeiro do país: São Paulo.

São Paulo é uma das representações mais bem acabadas do poder das oligarquias. O Estado é governado de forma ininterrupta, há quase quarenta anos, pelo mesmo grupo e suas divisões internas. De Montoro a Doria, a linha é reta e constante. Diante de tanta continuidade há de se imaginar que São Paulo deva ostentar resultados robustos de políticas inovadoras nas áreas de saúde, educação, transporte, habitação, saneamento ou qualquer outra área. Mas a mediocridade dos resultados das políticas públicas do Estado só é ofuscada pela tranquilidade olímpica com que sua oligarquia dirigente se vê exercendo algo como um direito divino de mando entregue por deus em pessoa desde a época dos cafezais e dos bandeirantes caçadores de homens.

Há de se admirar os representantes dessa casta a falar, sem tremer, da “experiência” que porventura teriam na arte de “ser gestores”. Alguém poderia, nesses momentos, perguntar: experiência exatamente em relação a o quê? A como tentar despoluir um rio por 30 anos, como o Tietê, sem sucesso gastando 1,7 bilhão de reais só nos últimos noves anos? A como tentar passar ração humana como merenda escolar? A como implantar políticas de combate a pandemia enquanto obrigava mais de 2 milhões de pobres a pegarem transporte público lotado? A construir Rodoanéis que nunca terminam e eivados de processos por corrupção que, milagrosamente, caem no esquecimento? Talvez haja um dialeto ainda não identificado nessas terras onde “experiência” significa algo oposto ao seu sentido trivial em português castiço.

Contra isto, novas forças lutam por mostrar que “governar” pode significar abrir os processos decisórios e deliberativos à inteligência coletiva dos movimentos sociais e profissionais, à inteligência coletiva dos artistas, à inteligência coletiva das universidades. É isto que se está a defender em São Paulo, contra a falácia de um saber tecnocrata que sempre foi apenas a gestão em nome da preservação dos interesses oligárquicos de sempre. Esse processo de mudar o que significa “governar” tem sua mola principal na liberação da energia e inteligência dos setores mais violentados de nossa história de latifúndio escravocrata primário-exportador. Diferente dos norte-americanos, esses setores não precisam lidar aqui com as travas impostas pela realidade política bipartidária. Por isso, eles têm campo para declinar sua potência de transformação no espaço estendido dos embates econômicos, políticos e sociais, como vimos ocorrer na sublevação popular do Chile, com seus resultados surpreendentes. Se bem sucedido entre nós, esse processo pode ser o início de uma abertura do campo político à energia de tudo aquilo que a oligarquia temeu e procurou apagar.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo


Eliane Brum: “Me beija e me chama de centro”, diz direita brasileira

No Brasil, o “moderado” que se apresenta para “unir o país” é o novo velho malandro da crônica política

Mais importante que o mau desempenho nas urnas dos candidatos que Bolsonaro apoiou formalmente são os dois grandes marcos desta eleição: um novo líder se consolida no campo da esquerda no Brasil; e a disputa do legislativo aconteceu com um número inédito de candidatos negros, de indígenas e de pessoas transexuais, algumas delas as mais votadas de seus municípios. Também o número de mulheres cresceu. É pouco, diante do domínio de alguns dos partidos mais viciados e fisiológicos, mas é bastante em um dos países que mais mata negros e faz vítimas por transfobia do mundo, além de ostentar um número assombroso de estupros e feminicídios.

A ampliação da diversidade na política institucional acontece exatamente no momento em que o país é governado por um presidente declaradamente racista, misógino e homofóbico. O avanço dessas forças e o risco de Bolsonaro fracassar em seguir representando os interesses das elites econômicas faz a direita iniciar um curioso processo de mudança de identidade. “Me abraça, me beija e me chama de centro” poderia ser o título do mais recente capítulo da crônica política brasileira.

A eleição de domingo mostrou que toda a violência e o autoritarismo de Bolsonaro não foram capazes de interromper o crescente protagonismo dos grupos periféricos da sociedade― negros, indígenas, mulheres e LGBTQIA+― que reivindicam o centro político. Mostrou também que, depois de passar os últimos anos dando voltas em torno do próprio rabo, devido ao controverso legado de Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores, o campo da esquerda começa a se mover. Guilherme Boulos, do PSol de Marielle Franco, é líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, uma das principais organizações populares de luta por moradia do país. O fato de disputar o segundo turno para a prefeitura de São Paulo, maior e mais rica cidade brasileira, é a maior notícia desta eleição. Que o PSDB de Bruno Covas saia na frente, com toda a máquina de governo e o tempo de propaganda eleitoral a seu favor, é o óbvio. Boulos é o corte.

O que acontece em São Paulo sinaliza rumos para o Brasil. Não justifica nenhum maremoto de otimismo, mas aponta que existem brechas e que aqueles que aprenderam a resistir seguem avançando por elas. Se é verdade que o antipresidente fracassou como cabo eleitoral, é também muito cedo para dar Bolsonaro e, principalmente, o bolsonarismo, por derrotado. Em pequenas e médias cidades, abrigados nos mais variados partidos, há muitos prefeitos bolsonaristas de alma e também de coldre, e a violência nos interiores do Brasil, tanto quanto nas periferias urbanas, é da ordem do massacre. Como, por exemplo, em municípios do Arco do Desmatamento, na Amazônia.

Os sinais de que Bolsonaro pode se enfraquecer para disputar a reeleição em 2022, porém, já levou a direita a buscar um rearranjo estratégico nas últimas semanas. Figuras que até pouco tempo atrás dançavam de rosto colado com o antipresidente, como o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, começaram a costurar uma aliança para 2022 junto com Luciano Huck, popular apresentador da TV Globo, que já fez efusivas carícias públicas em Bolsonaro. Doria quis tanto se grudar em Bolsonaro em 2018 que literalmente colou o nome dos dois na propaganda eleitoral: “BolsoDoria”. No caso do herói decaído da Operação Lava Jato, até sua mulher, Rosângela Moro, insuspeita, portanto, já afirmou que via o juiz justiceiro e o Governo Bolsonaro “como uma coisa só”. Huck, na eleição de 2018, chegou a declarar que Bolsonaro tinha “uma chance de ouro de ressignificar a política”.

Antecipando-se ao risco de que a esquerda possa se unir para disputar a sucessão de Bolsonaro, como acontecerá no segundo turno de São Paulo, a direita tira do bolso truques manjados, mas que ainda podem funcionar. Como fizeram com Lula quando o então líder sindical se iniciou na política, as urnas nem tinham terminado de ser apuradas no domingo e já começaram a estampar em Boulos o carimbo de “radical”, na tentativa de amedrontar o eleitor num momento de intenso desamparo por conta do desemprego e da pandemia. Ao colocar “radical” como palavrão, a direita revela seu profundo preconceito contra os movimentos sociais. Tratar como radical a luta por moradia num país em que há mais casas sem gente do que gente sem casa revela mais da direita que se finge de centro do que da esquerda que Boulos representa.

O fato é que a esquerda finalmente começa a dar sinais de que há vida depois do lulismo ―e o legislativo vai ficando mais preto e mais trans. Dez prefeitos indígenas e mais de 50 vereadores quilombolas também foram eleitos, desbranqueando prefeituras e câmaras, embora ainda não suficientemente. Nas ruínas do Brasil, é necessário olhar para onde está a resistência que teima em criar vida mesmo nos escombros.

Assustada, a velha direita tenta vestir a máscara de moderação de Joe Biden. O problema é que Joe Biden foi eleito porque teve o apoio da esquerda progressista do Partido Democrata, na qual a maior parte dos expoentes nasceu justamente de lutas contra o racismo e o preconceito. A direita que agora se finge de centro e pretende nunca ter apoiado um defensor de tortura, quer justamente fazer o contrário: esmagar toda a potência emergente que primeiro Michel Temer (MDB) e depois Bolsonaro golpearam, mas fracassaram em parar. Não há máscara grande o suficiente para conter o topete laranja que salta bem no meio da testa destes malandros.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Demétrio Magnoli: A eleição que não terminou

Partido Republicano corre o risco de ser reduzido a movimento de contestação do sistema democrático

‘Nós precisamos considerar o antigo vice-presidente como presidente eleito. Joe Biden é o presidente eleito.” A declaração do governador de Ohio, o republicano Mike DeWine, riscou o céu de Washington uma semana depois que a apuração dos votos da Pensilvânia concluiu a disputa pela Casa Branca. O óbvio caiu quase como uma bomba nas hostes republicanas, ainda congeladas pelo negacionismo eleitoral de Donald Trump. A eleição americana não terminou: ela prossegue sob a forma de um conflito existencial no interior do Partido Republicano.

Trump assentou sua estratégia pós-eleitoral em três pilares. O primeiro: a alegação de que o candidato democrata fraudou a vontade popular. O segundo: o Partido Republicano, submetido a sua liderança incontestável, rejeitará de modo monolítico qualquer diálogo com o governo do suposto usurpador. O terceiro: o partido funcionará, desde já, sob o signo de sua candidatura presidencial de 2024.

Trump começa a erguer o Comitê de Ação Política “Save America” (Salvar os EUA), destinado a operar como direção efetiva do Partido Republicano. Simultaneamente, prepara-se para criar uma nova rede de TV, concebida como veículo pessoal e alternativa à direita da Fox News. O projeto trumpiano é subordinar as bancadas republicanas na Câmara e no Senado a suas conveniências, transformando-as em máquinas de sabotagem permanente do governo Biden.

Os tribunais derrubarão, uma a uma, as alegações vazias de fraude de Trump. Biden será, certamente, empossado em 20 de janeiro. Mas Trump planeja jamais reconhecer a legitimidade do novo presidente, esticando até o limite a corda que prende os EUA ao mastro da democracia representativa. Se os republicanos o acompanharem nessa aventura, reduzirão o partido à condição de movimento nacional-populista de contestação do sistema democrático.

A ascensão da direita nacionalista produziu dois tipos de deslocamento nos sistemas político-partidários ocidentais. Países como França, Itália, Alemanha e Espanha experimentaram o declínio de partidos moderados tradicionais e a emergência de um grande partido de direita. Nos EUA, porém, assim como no Reino Unido, o deslocamento ideológico realizou-se no interior de um dos dois partidos históricos, que foi capturado pelo nacionalismo.

No caso do Partido Conservador britânico, verificou-se uma captura parcial, impulsionada pela rejeição à União Europeia e pelo plebiscito do Brexit. Já o Partido Republicano dos EUA conheceu uma cisão mais profunda com seu passado.

O governo de Boris Johnson flerta com a xenofobia e com o nacionalismo, mas não contesta os fundamentos da democracia parlamentar ou os valores básicos do Ocidente. O governo Trump, por outro lado, operou no plano internacional como parceiro de regimes autoritários (Putin, Erdogan, Orbán) e, no plano nacional, como motor de restauração da “nação de colonos brancos”. Nesse passo, os republicanos assumiram as feições de partido da reação.

A resistência republicana a Trump percorreu a campanha presidencial pela voz do Projeto Lincoln, uma dissidência do partido que fez campanha aberta por Biden. O presidente eleito recebeu mensagens de congratulação da velha guarda republicana, representada por figuras como o ex-presidente George W. Bush, o ex-candidato presidencial Bob Dole e o atual senador e também ex-candidato Mitt Romney. Contudo, fora eles e um punhado de parlamentares, o partido segue mais ou menos alinhado ao negacionismo eleitoral trumpiano. É por isso que a declaração do governador de Ohio tem especial relevância.

A encruzilhada diante da qual se encontra o Partido Republicano interessa ao mundo inteiro. Se os republicanos se ossificarem como partido antidemocrático controlado por Trump, será comprometida a estabilidade política da maior potência mundial e se acelerará a tendência ao declínio internacional dos EUA. Se, pelo contrário, a maioria cindir com Trump, restabelecendo a tradição moderada republicana, a nação americana voltará a conversar, e os movimentos populistas de direita, na Europa e no Brasil, sofrerão um golpe devastador. Olho nos EUA.


Marcelo Trindade: Coalizão em torno do centro

Um bom começo é reconhecer a fragilidade da democracia

Menos de 50 mil votos em três estados (Arizona, Geórgia e Wisconsin). Essa foi a real diferença que elegeu Joe Biden presidente dos Estados Unidos, não os mais de cinco milhões de votos de vantagem no resto do país.

Para a maioria dos analistas, essa vitória só foi possível porque Biden é de centro, capaz de atrair eleitores de todas as correntes. Só a coalizão foi capaz de vencer o radicalismo, e por tão pouco. É urgente traduzir essa lição para o ambiente brasileiro, se pretendemos, como nação, voltar a progredir, deixando para trás a ignorância e o ódio.

Um bom começo é reconhecer a fragilidade da democracia e trabalhar imediatamente por uma coalizão em torno do centro, que possa vencer as eleições de 2022.

Depois há que negociar as medidas consensuais nos setores mais urgentes — educação, saúde, segurança, saneamento. Há muita convergência nesses campos, e em outros praticamente só há consenso — meio ambiente, cultura, política externa, liberdades, minorias. Os debates nas trincheiras da divergência ideológica devem ser adiados, pelo bem comum.

Para a conversa evoluir, será também preciso definir, de saída, o modelo para a escolha do futuro candidato a presidente — não necessariamente o nome. Uma ideia seria exigir reputação e experiência, e permitir apenas um mandato de quatro anos, a ser cumprido até o fim. O movimento poderia incluir, ainda, a volta ao regime original da Constituição de 1988, de cinco anos de mandato sem reeleição, a partir de 2026.

Só com ousadia e espírito público será viável uma concertação de centro. O momento é de grave crise institucional, e a polarização só tende a aumentar, em benefício de quem a promove. Quatro anos de pacificação política, gestão profissional, retomada de fôlego e preparação para o futuro são essenciais antes de uma nova disputa eleitoral dividida, sob pena de um radical prevalecer. Foram menos de 50 mil votos que livraram a maior democracia do mundo desse risco. Não temos tempo a perder.

*Marcelo Trindade é advogado e professor da PUC-Rio


Bruno Carazza: Em busca de sinais

Eleições mornas dificultam leitura dos resultados

“Que lições podemos tirar destas eleições?”, pensava eu enquanto voltava para casa depois de cumprir minha obrigação democrática, esta coluna esperando para ser escrita. Seções sem filas, nenhum cabo eleitoral distribuindo santinhos nas imediações do local de votação, ruas desertas como num feriado qualquer - nem parecia dia de eleição.

A pandemia foi apontada por muitos como a principal razão para o desinteresse demonstrado pelo eleitor com o pleito deste ano. Certamente o medo da contaminação e as medidas de distanciamento social tiveram sua importância, mas o novo coronavírus está longe de ser a única explicação.

Nos últimos meses os governos locais flexibilizaram as restrições às atividades econômicas e sociais, e muitos de nós também relaxamos as limitações auto impostas de circulação. Dados compilados pelo aplicativo Waze e disponibilizados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mostram que a taxa de congestionamento de trânsito nas regiões metropolitanas brasileiras, que chegaram a cair mais de 80% em abril, já estavam “apenas” 8% menores na última semana. O relatório de mobilidade urbana do Google também vai na mesma direção, indicando que a frequência a locais de trabalho, que atingiu -34% na última semana de março, já havia recuperado para -5% no dia 10, na média nacional.

Com bares lotados, comércio reaberto e até atividades de lazer e interação social (como clubes, academias e cultos) liberadas, seria muito raso atribuir à pandemia a culpa pelas eleições mais mornas de nosso passado recente. Afinal, se as campanhas não ganharam as ruas, tampouco agitaram as redes sociais. Depois de tudo o que se falou sobre o poder dessas novas mídias em 2018, a disputa entre Biden e Trump teve repercussão imensamente superior nos grupos de WhatsApp e no Twitter dos brasileiros do que o pleito atual.

Embora careça de comprovação científica a hipótese de que as eleições municipais são uma prévia das disputas gerais a serem realizadas dois anos depois, sempre houve uma conexão entre o local e o nacional, seja olhando para frente ou para trás.

Em 1992, o processo de impeachment de Collor impulsionou a vitória de muitos candidatos da esquerda (PT e PDT), e a implantação do Plano Real foi fundamental para o sucesso dos partidos da base de apoio de FHC em 1996.

Na sequência, os três principais partidos da redemocratização dominaram também o poder na maioria das cidades brasileiras na primeira década do século, com MDB, PSDB e PT angariando a maioria das prefeituras do país (e não só nas capitais).

Mas eleições municipais também funcionam como pequenos sismos que podem anunciar grandes terremotos políticos sendo gestados nas entranhas do território nacional. Foi assim em 2000, quando a vitória do PT em seis capitais importantes, nas cinco regiões geográficas, sinalizou que o partido abria caminho para alçar seu voo mais alto, com a eleição de Lula dois anos depois. Da mesma forma, o efeito devastador da Lava-Jato, o impedimento de Dilma e a crise econômica aplicaram uma surra nos petistas em 2016, permitindo o avanço de um discurso anti-establishment e conservador que desaguou na onda bolsonarista de dois anos atrás.

Em 2020, porém, nada disso parece ter ocorrido. Os grandes figurões da política nacional abstiveram-se de vestir a camisa e entrar com vontade no campo municipal. Bolsonaro, Lula, Ciro, Doria, Moro e Huck - nomes que vêm sendo apontados como prováveis nas urnas em 2022 - ou tiveram atuação pontual nas disputas (em geral com resultados bem ruins, como Lula e Bolsonaro), não se envolveram (Moro e Huck) ou até mesmo foram ignorados por correligionários (caso de Bruno Covas e Doria).

Com isso, as eleições deste ano perderam muito de seu apelo como previsão meteorológica do clima político no futuro próximo. Para completar, o auxílio emergencial ainda deixa a população anestesiada quanto aos efeitos econômicos da covid-19 (que chegarão com força em 2021), também impedindo a nacionalização da disputa. Isso não quer dizer, porém, que não possamos extrair algumas tendências para serem monitoradas a partir dos resultados eleitorais de ontem.

A maioria dos analistas tem criticado a fraqueza de Bolsonaro como cabo eleitoral (principalmente por causa do fracasso de Russomano em São Paulo), mas a recuperação de Crivella na véspera da eleição no Rio e o bom desempenho de candidatos evangélicos e militares Brasil afora mostram que o presidente mantém forte influência sobre boa parte do eleitorado brasileiro.

No outro extremo, o mau resultado nas capitais comprova a tendência, já visível em 2018, de enfraquecimento do petismo em favor de outras legendas que costumavam girar ao seu redor. Assim, a esquerda entra no jogo das próximas eleições presidenciais dividida entre um partido com estrutura, mas com forte resistência do eleitorado (PT), e novas lideranças com um discurso mais atraente principalmente para os jovens, mas sem musculatura nacional (Psol, PDT e PCdoB). Unir-se numa frente única ou seguirem independentes pelo menos no primeiro turno será o grande dilema a atormentar a esquerda daqui pra frente.

Para aqueles que esperam contar com uma opção viável entre Bolsonaro e um adversário de esquerda em 2022, os resultados de ontem indicam que o eleitorado pode se inclinar mais à centro-direita do que à centro-esquerda. As vitórias (ou lideranças provisórias) de candidatos do DEM, PSDB, PSD e demais partidos do Centrão nas capitais mais populosas e no Nordeste - onde se deu a resistência de Haddad em 2018 - indicam que a construção de uma opção nesse campo pode ter condições de furar a polarização atual. Resta saber se essas forças de direita, menos extremas que o bolsonarismo, conseguirão chegar a um denominador comum ou entrar fragmentados (e assim, fadados à derrota) como foi há dois anos.

A falta de empolgação do eleitor e a prevalência de fatores locais sobre os nacionais tiraram o brilho da disputa de ontem. Isso, porém, não reduz a importância do seu resultado. Pelo contrário, analistas e principalmente lideranças políticas levaram um bom tempo deglutindo os números das urnas.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”


Vera Magalhães: Há espaço contra polarização Bolsonaro-PT

O que fica evidente é que há espaço para projetos alternativos à polarização Bolsonaro-PT, porque o eleitor está cansado do primeiro e sem saudade do segundo

Existe a máxima segundo a qual eleições municipais levam em conta apenas fatores diretamente ligados aos municípios. É verdade. Mas também é impossível, sobretudo nos grandes centros urbanos, dissociar esse voto de algumas balizas nacionais.

A primeira delas neste 2020 é a pandemia. Ela não só mudou a maneira como se fez campanha como moldou a disposição do eleitor de encarar os candidatos de forma mais racional e desapaixonada. Os gestores que demonstraram responsabilidade no trato da pandemia foram reconhecidos pelo eleitor.

A segunda grande conclusão possível é que houve um resgate da política do pântano no qual ela foi jogada depois de eventos traumáticos como Lava Jato, impeachment de Dilma Rousseff, prisão de Lula, desmoralização de Aécio Neves e denúncias em série contra Michel Temer no curso de sua curta Presidência.

Esse conjunto surreal de eventos, em menos de quatro anos, permitiu que um outsider como Jair Bolsonaro virasse um Cacareco com sucesso eleitoral.

A pandemia, a maneira irresponsável com que Bolsonaro se comportou ao longo do ano e a rápida debacle de outras figuras histriônicas eleitas na sua aba levaram a que agora, apenas dois anos depois, a “nova” política fosse devolvida às redes sociais.

A terceira conclusão é o surgimento de uma nova esquerda não petista com musculatura em todo o País. PSOL, PDT, PSB e até o PC do B, com histórico de ser um satélite petista, vão avançando em várias capitais, ao passo que o PT tem a cabeça de chapa em apenas duas disputas de segundo turno – sem ser favorito em nenhuma delas.

O partido segue negando as evidências: o fato de que não fez nenhum gesto sincero e efetivo de reconhecimento de que promoveu corrupção sistêmica no governo, ao mesmo tempo em que destruiu a economia.

Por fim, a eleição mostra um espaço de reconstituição do centro, também ele dizimado em 2018. A abrangência desse centro, suas delimitações à esquerda e à direita e quem será aceito na festa do céu são questões postas desde já. O que fica evidente é que há espaço para projetos alternativos à polarização Bolsonaro-PT, porque o eleitor está cansado do primeiro e sem saudade do segundo.


Vera Magalhães: Reocupar o centro

Mesmo premida pela pandemia, eleição 2020 pode ser início do resgate da política

Foi só na semana passada que as pessoas parecem ter acordado para o fato de que hoje tem eleição. Nos últimos dias, três debates tiraram a campanha de São Paulo da clandestinidade imposta pela pandemia e pela omissão de quem a usou como desculpa para se esquivar do seu dever de promover a discussão como combustível da democracia.

O que esses debates e as pesquisas mostraram é que, mesmo driblando as restrições do ano do vírus e privado de informações, o eleitor parece ter chegado à conclusão de que é preciso votar com a cabeça, e não com o fígado ou com o coração. As disputas municipais vão resgatando a política, feita de bode expiatório em 2018, e escanteando a nova política estridente e feita de lacração nas redes sociais.

Com o pesadelo que é aguentar Jair Bolsonaro e sua Presidência buliçosa todos os dias há quase dois anos, depois de dois governadores eleitos na sua aba defenestrados, seu partido implodido e seus náufragos boiando dispersos por legendas amorfas, parcela significativa do eleitorado que votou nele (porque votaria até no demônio para não votar no PT) parece ter acordado do transe psicótico.

No outro lado, também sumiu da praça o eleitor negacionista dos descalabros do PT, aquele que fez ouvidos moucos para uma série de revelações baseadas em fatos e provas que mostravam que houve um assalto sistemático ao Orçamento público e ao patrimônio de estatais como forma de perpetuar um projeto de poder.

Isso era razão para se eleger um deputado ligado a milícias, com a família inteira empregada na política e se locupletando dela na forma de desvio de recursos de gabinetes para engordar patrimônio, defensor de tortura, assassinato de Estado, apologista do estupro e da homofobia? Certamente não. Portanto podem guardar o blablablá da falta de simetria porque não é disso que eu falo.

Justamente porque os ventos da política sopram rápido, a rápida corrosão da imagem fake do justiceiro minou as chances de simulacros de Bolsonaro de Norte a Sul do País. O presidente, ainda enebriado por aquela popularidade transitória do auxílio emergencial no meio do ano, achou que seria bom cabo eleitoral e se jogou no palanque.

Não satisfeito em conspurcar todas as instituições em 23 meses, enfiou mais o pé na jaca ao fazer lives diárias para promover seus candidatos. O resultado? Esses e os que levaram o capitão à TV viram suas chances minguarem. Enquanto isso, o centro, humilhado nas urnas em 2018, parece ter voltado a ser um lugar de conforto para um cidadão traumatizado por morte, doença, desemprego, inflação e falta de perspectiva.

Políticos experimentados, sem histrionismo, e uma nova esquerda não-petista avançam em capitais e cidades importantes.

A lição para partidos e lideranças de centro será clara: é pela via da política que o Brasil construirá uma saída para seu impasse, como fizeram os Estados Unidos.

Não se trata de correr para achar um dublê de Joe Biden, ou perder tempo nas redes sociais com a discussão ridícula de se vai ter frente ampla ou não, e quem pode entrar nela. Mas de reconhecer a emergência de se construir pontes para o dissenso democrático, que reconheça adversários e suas pautas como legítimos e representativos de parcelas da sociedade.

É só assim que o legado de destruição do tecido social, institucional e civilizatório de Bolsonaro poderá ser superado em 2022. Ele não é carta fora do baralho, e tem dois anos para tentar construir sua sobrevivência, a depender da economia. Além disso, eleição municipal nem sempre é prévia de nacional.

Com todas as ressalvas, é alentador que tenha sido o eleitor, quietinho numa campanha quase fantasma, a apontar o caminho para superar essa distopia. A bola agora está com os políticos.


Fernando Henrique Cardoso: Paciência histórica

Que movimentos e partidos poderão materializar um radicalismo de centro?

Com a eleição de Bolsonaro e a hecatombe que se abateu sobre o sistema partidário, o melhor é manter a “paciência histórica”. Com a idade, algo se aprende. A principal lição talvez possa ser resumida em antigo ditado popular: “Não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe”.

Como em todo slogan, nesse há muita coisa indefinida: o que alguns qualificam como “bem” para outros pode ser o “mal”. A despeito de opiniões distintas, penso que a onda conservadora que se prenuncia não será boa, como não seria a da arrogância petista, que está na raiz do atual estado de coisas, com a polarização do “nós” contra “eles”.

Democrata, curvo-me à decisão da maioria. Mas não me amoldo, como não me amoldaria se fosse vencedor o polo oposto. Pertenço à família espiritual dos que pretendem ser razoáveis, aceitam o diálogo, podem mudar de opinião e quando o fazem dizem o porquê. E não querem ficar espremidos num “centro amorfo”. Essa família sabe que a emoção existe, deixa-se envolver por ela de vez em quando, mas tenta apegar-se a algum grau de razoabilidade.

Nas circunstâncias, há que esperar. Como será o governo Bolsonaro? Como enfrentará os desafios de reduzir a desigualdade social, como retomará o crescimento econômico para criar empregos; porá ordem nas finanças públicas, assegurará a tranquilidade às pessoas assustadas com tanta violência nas ruas e no campo, será capaz de combater o crime organizado? Sem falar na hercúlea tarefa, que é de todas as forças políticas, sobretudo das que tenham maior convicção democrática, de recolocar nos trilhos o sistema eleitoral e partidário, que afundou na corrupção, na fragmentação e na perda de conteúdo programático.

Não se trata de esperar sem fazer nada, nem de assumir a posição fácil de criticar tudo o que o governo faça. A possibilidade de se criar um “centro” não amorfo implica tomar partido com base em valores e na razão.

Li outro dia uma expressão de que gostei: um “centro radical”. Radical em não aceitar o arbítrio e, portanto, em respeitar a Constituição. Ah, dirão, ela está obsoleta. Então que se mude o que pereceu, mas por meio de emendas que o Congresso aprove, mantidas as cláusulas pétreas. Ser radical de centro implica ser firme na preservação dos direitos civis e políticos e propor uma sociedade não excludente e justa. Sem conservadorismo.

A onda conservadora concentra-se principalmente nos costumes, na cultura. O centro radical prega o respeito à diversidade e sua valorização, que é constitutiva da democracia, embora se recuse a transformar a diferença em expressão única do que é positivo. Opõe-se à violência contra os que têm preferências, sexual ou sobre o que seja, divergentes do padrão e sustenta os direitos das minorias. O mesmo vale para a preferência religiosa: há que respeitá-la integralmente, mesmo quando diversa da crença dominante ou quando composta de fragmentos de várias crenças ou quando for nenhuma. O que vale para as crenças vale com a mesma força para as ideologias, desde que elas aceitem não ser a expressão única da verdade e da moralidade.

A radicalidade de um centro progressista não se limita, contudo, aos aspectos comportamentais. Propor soluções econômicas antiquadas, a exemplo do controle estatal dos setores produtivos e do desprezo pelo equilíbrio fiscal, como setores da esquerda fazem, não somente é anacrônico, como também contraria os interesses do povo. Como oferecer emprego e melhorar a renda dos mais pobres propondo uma política econômica que leva à estagnação e ao desemprego, como se viu recentemente com a “nova matriz econômica”?

Sem fundamentalismos desnecessários e mesmo contraproducentes, o “centro progressista e radicalmente democrático” deve incorporar ao seu credo uma visão mais liberal, sem medo de ser tachado de “elitista” ou “direitista”.

Sem cair, por outro lado, na apologia do “individualismo possessivo”, porque o mercado não é a única dimensão da vida nas sociedades contemporâneas. A ideia de que se pode comandá-lo ou regulá-lo com mão de ferro é irrealista. E o realismo não é de direita nem de esquerda, é um requisito para o bom governo. Este, por sua vez, não se resume à adequação eficiente entre meios e fins. É preciso crer numa “utopia, viável”: a da busca de uma sociedade aberta, decente e, portanto, mais igualitária. A sociedade civil, em sua pluralidade de opiniões, tem um papel crítico na construção de tal tipo de utopia.

Num artigo de jornal não cabem demasiadas considerações sobre os valores que poderão dar arrimo a um centro que não se confunda com a fisiologia de “centrões”, nem se perca na vacuidade das indefinições. Mas é preciso deixar no ar a pergunta: que movimentos e partidos poderão materializar o radicalismo de centro?

Comecemos com a autocrítica. Também o PSDB, ainda que vitorioso em Estados expressivos, se desfigurou nas últimas eleições. Será capaz de se remontar? Francamente, não sei. E os demais partidos e movimentos de renovação, que rumos eles tomarão para sobreviver?

Se for o da adesão oportunista ou o da crítica indiscriminada a tudo o que o novo governo fizer, de pouco servirão para a retomada do rumo democrático e progressista. É cedo para apostar. A paciência histórica é boa conselheira e não se confunde com inação. A consolidação de um novo movimento requer desde já a pavimentação de alianças, não só no círculo político, mas principalmente na sociedade, para formar um polo aglutinador da construção de um futuro melhor. E como as eleições de outubro mostraram, não basta ter boas ideias, é preciso que elas circulem nas redes que conectam as pessoas e mobilizam corações e mentes.

*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República