centrão

Arthur Lira: A força do centro

Liderar a Câmara é um cargo de moderação e equilíbrio

Quem lê o título acima pode até se assustar com essa defesa. Aqui e ali há tentativas de gourmetizar o chamado centro da política brasileira. Em reportagens e em manifestações nas redes sociais, algumas tentativas buscam abrandar o termo, como é o caso do “centro democrático”, do “novo centro”, entre outros novos apelidos para o bloco único de deputados e partidos que partilham muita coisa em comum.

Desde a Constituinte, com o objetivo de conciliar ideias para o Brasil, o Centrão mantém e continuará a relacionar esse conjunto de parlamentares, até mesmo aqueles que tentam disfarçar-se de outra coisa. O que se provou na formulação na Constituição, o centro mostra, na prática, o trabalho que estamos fazendo pelo bem do país.

Foi esse bloco que se solidificou para defender as prerrogativas do Parlamento no início do ano passado, que se uniu em torno de Rodrigo Maia nas duas últimas eleições para presidente da Casa e que fez andar as reformas trabalhista e da Previdência — vistas como essenciais para o equilíbrio fiscal e para dinamizar a economia. Sem falar na aprovação do teto de gastos — uma rigorosa linha de defesa fiscal que manteve de pé a credibilidade com investidores.

Isso é um pouco do que o Centrão fez nos últimos anos. E há muito por fazer diante da imperiosa retomada econômica e do desenvolvimento social no pós-pandemia.

Centrão ou centro gourmet, pergunto-me onde está a diferença. Despir-se da capa de Centrão só vale na hora da entrevista ou do tuíte? Aliás, fica aqui o registro de que, na Plataforma Radar do Congresso, os partidos PSL, DEM, Novo e MDB apresentam índices de votação a favor do governo acima dos 80%. Se o disfarce de uma dita oposição não cola, a diferença do candidato de Rodrigo Maia será o jeito de conduzir o dia a dia da Casa. Pelo visto, primeiro vai ter que decidir o que é.PUBLICIDADE

Falamos de independência do Congresso. Eu a defendo dando voz a cada colega, previsibilidade para a pauta e compromisso com a palavra dada. Eu não mudo nem tergiverso de acordo com o interlocutor: sou, sim, um dos representantes do pensamento de centro na Câmara dos Deputados. É essa franqueza e transparência que quero levar para a presidência da Câmara e que demarca a diferença fundamental do projeto que defendo, construído com um conjunto de lideranças e parlamentares.

Liderar a Câmara é um cargo de moderação e equilíbrio, que exige ouvir as minorias, seguir o regimento ao pé da letra e promover discussões acaloradas, porém respeitosas. Isso significa ouvir, colocar as comissões para funcionar, dar espaço para o bom debate e deixar que, no jogo democrático do Legislativo, a maioria vença. Independentemente de ser contra ou a favor deste ou daquele governo.

Nos últimos anos, o dia a dia dos deputados lembrava aquele jogo de meninos no playground: a bola só rolava quando o dono deixava. Queremos mudar isso. Meu compromisso sempre foi de tocar a bola com os outros 512 deputados federais, sem birra, sem surpresas. Comigo, todo mundo joga e tem espaço.

Arthur Lira é deputado federal (PP-AL)


Merval Pereira: A traição decidirá

O ex-presidente Tancredo Neves afirmava que voto secreto “dá uma vontade danada de trair”. Nada mais certo quando vemos as traições sendo negociadas à luz do dia, em troca de emendas e cargos. Traições dignas do nome, e traições travestidas de ação política, como os partidos de esquerda que cogitam lançar candidaturas próprias quando sabem que, com isso, estarão selando a vitória do candidato do Palácio do Planalto.

Por isso, quem vai decidir a sucessão na Câmara dos Deputados é a traição, que ocorre sempre nas votações secretas, e não apenas nas eleições congressuais. Na Academia Brasileira de Letras (ABL), por exemplo, há uma taxa histórica de “traição”, o candidato vencedor tem que contar com cinco votos a mais, pelo menos, do que o mínimo necessário.

No caso da Câmara, é tradicional essa taxa de “traição”, mas desta vez ele está sendo negociada abertamente. O PT começou conversando com o candidato do Planalto, deputado Artur Lira, alegando a necessidade de ter um espaço institucional na Mesa Diretora. Lira nega, mas há quem confirme que nessas conversas, até mesmo mudanças na Lei da Ficha Limpa foram abordadas, para favorecer o ex-presidente Lula.

Como a posição ficou esquisita, o PT voltou a se reunir com o grupo do presidente da Câmara Rodrigo Maia, e reivindicou a primeira-vice presidência da Mesa, exigência justa por ser a maior bancada da Câmara. Para valorizar sua posição na negociação, voltou a insinuar que lançará uma candidatura própria. Também o PSOL pensa lançar seu candidato.

PDT, PCdoB e PSB trabalham para que a esquerda esteja unida em apoio a um candidato lançado contra o do Planalto, para garantir a independência em relação a Bolsonaro. A presidência da Câmara está denunciando que o governo está estimulando por baixo do pano uma candidatura de esquerda para enfraquecer o campo adversário.

Claro que se uma bancada de 54 deputados como a do PT lançar seu candidato próprio, sem a menor chance de vencer, estará favorecendo a candidatura do governo, que tem sua base já montada. O PSB teve que tomar uma posição oficial contra o apoio ao candidato do governo, pois havia dissidentes negociando individualmente.

Uma votação de 80 a 0 no diretório nacional decidiu não apoiar o candidato do governo. O deputado Alessandro Molon foi incisivo: “É preciso preservar a independência da Câmara e proteger o Brasil de Bolsonaro”. Se a esquerda se unir em torno do grupo de Rodrigo Maia, a disputa fica parelha. A esquerda, como sempre, é o fiel da balança.

O deputado Molon é o que defende com mais ênfase a união da esquerda, lembrando que uma candidatura isolada não tem a menor chance de ganhar, e pode dar a Artur Lira a chance de vencer no primeiro turno. No momento, há a possibilidade de essa união vingar dentro do grupo, mas o PT continua considerando apresentar um candidato único da esquerda, mas dentro do bloco de Rodrigo Maia, que tem como mais provável candidato o deputado do PMDB Baleia Rossi.

O PT acha que a esquerda, com metade do bloco, tem o direito de indicar o candidato. A decisão deve sair em duas etapas. Na primeira, talvez hoje, a esquerda unida anunciará que faz parte do bloco de Rodrigo Maia com outros seis partidos conservadores. A segunda etapa será a escolha do candidato que una todo esse grupo. Como a eleição é 1º de fevereiro, ainda há tempo de chegar a um consenso, ou melhor, ao candidato que mais agregue apoios no grupo.

Cada disputa para a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado tem sua própria importância, mas esta está revertida de um significado especial, pois o presidente Jair Bolsonaro está empenhado pessoalmente.Toda vez que um presidente da República se mete na disputa interna da Câmara, a chance de ser derrotado é grande. Já deu em Severino Cavalcanti, já deu em Aécio Neves quebrando um acordo com o então PFL, que teve consequências graves para o governo Fernando Henrique.

Desta vez, está em jogo a agenda política do governo, que tem predominância nos temas regressivos de valores da sociedade e do meio-ambiente, em detrimento das reformas estruturais necessárias.


Bruno Boghossian: O centrão e os radicais

Presidente quer convencer apoiadores de que aliança no Congresso favorece agenda radical

A ansiedade de Jair Bolsonaro está em alta. Depois de tropeçar nas votações do Congresso ao longo de dois anos de mandato, o presidente conta com a vitória de aliados que possam garantir um caminho mais suave para seus planos nas chefias da Câmara e do Senado.

Bolsonaro começou a anunciar suas prioridades para o Legislativo em 2021. As propostas incluem a redução de punições para policiais que matam em serviço, a instalação do voto impresso e a mudança de regras de regularização de terras no país.

Em discursos nas últimas semanas, o presidente disse que terá chances de aprovar esses projetos a partir do ano que vem. A menção a essas pautas não foi acidente: Bolsonaro tenta encantar sua base fiel para neutralizar os danos causados pela aliança do governo com o centrão na disputa pelo comando do Congresso.

Ainda que o presidente tenha abandonado há tempos a fantasia da campanha, a aproximação com os velhos políticos ainda provoca abalos na relação do governo com seus apoiadores mais radicais. A ideia é convencê-los de que esse movimento se dá em nome de uma causa maior.

Na terça (15), Bolsonaro falou com otimismo sobre o plano que protege policiais. “Se Deus quiser, com a nova presidência da Câmara e do Senado, vamos botar em pauta o excludente de ilicitude”, declarou, num gesto àqueles que defendem uma política de segurança violenta. Em campanha, ele dizia que a proposta daria “carta branca para policial matar”.

O presidente também já afirmou que o novo comando do Congresso votaria a chamada MP da grilagem, que flexibiliza a regularização fundiária e pode favorecer os ruralistas. Ele disse ainda que vai trabalhar pela aprovação do voto impresso –pauta de extremistas que preparam terreno para contestar uma eventual derrota de Bolsonaro em 2022.

Não se sabe se essas ideias são distrações ou se o presidente vai gastar capital político para aprová-las. No centrão, muita gente acredita que ele só quer escapar do impeachment e livrar a família de investigações.


Rosângela Bittar: Depois da meia-noite

Rumo à reeleição, afloram os piores instintos políticos. A busca por adesões excita os currais

Para quem não está entendendo o sucesso da plataforma eleitoral antipovo do candidato Arthur Lira à presidência da Câmara, inclusive com o embarque da esquerda na caravana bolsonarista, aqui vai uma explicação. O deputado alagoano e suas costas quentes exploram muito bem, pois a conhecem profundamente, a oportunidade que o calendário oferece.

O tempo do Congresso se divide em dois. No primeiro, os dois anos iniciais do mandato, procuram-se realizar os avanços e as reformas. No segundo biênio, o bom senso dá lugar ao vale-tudo da renovação dos mandatos. Quando coincide com a campanha da reeleição também do presidente da República, a confluência de interesses chega ao paroxismo. É o que está se vendo neste momento.

Deputados e senadores só pensam em poder, emendas e cargos que os ajudem eleitoralmente. No Senado, os prazos são outros, pois o mandato é de oito anos, mas a essência é a mesma.

O ex-deputado e ex-ministro Roberto Brant, com sabedoria mineira, costumava comparar o que ali se passava com as diferentes etapas de uma festa: até a metade, os convidados mantêm a compostura e a elegância, conservam o glamour das novas ideias que trouxeram de casa. Mas, ao bater a meia-noite, tendem ao desespero. Jogam para o ar o que tinham de melhor e partem para o uso e o abuso.

Rumo à reeleição, afloram os piores instintos políticos. A busca por adesões excita os currais. Principalmente se quem vai exercer o poder o faz em nome do presidente da República.

Avanços políticos, alguns verdadeiramente civilizatórios, como foi a extinção do imposto sindical, voltam à mesa de negociação com cínica naturalidade. Celebrado no passado como novo sindicalismo, tal como Jair Bolsonaro foi celebrado como nova política, o malfadado imposto foi reprovado com amplo apoio popular. Para os que dele viviam, os chamados pelegos, a extinção teria sido a razão do enfraquecimento dos sindicatos. Raciocínio que é uma impostura. Sem ele, os sindicatos ganharam autenticidade. Ao associar-se ao projeto, a esquerda atinge o trabalhador em uma de suas mais difíceis conquistas.

Na cabala de votos, sobretudo do PT, o candidato bolsonarista se solidariza também com o período do uso da Petrobrás na montagem de um extenso esquema de corrupção. Acena com a facilitação da volta da candidatura Lula por intermédio da desmoralização da Operação Lava Jato, já abalada por certos equívocos dos principais condutores das investigações. Momento em que os extremos se encontram. Todos deliram na mesma farra eleitoral embora saibam que, Lula, candidato, nunca mais.

Incluiu-se na barganha temática um tranco na Lei da Ficha Limpa, outro avanço com apoio popular prestes a ser perdido. O candidato bolsonarista promete atenuar a lei, quem sabe, abrindo uma janela de fuga. As lacunas são conhecidas, entre elas uma das piores é o poder de juízes locais de fustigar os inimigos políticos com um peteleco jurídico, mas não é nesta circunstância que a discussão será justa e eficiente.

De posse da chave do cofre do governo nesta campanha, o candidato bolsonarista à presidência da Câmara promete reabastecê-lo de recursos, com a aprovação da também defenestrada CPMF. Uma regressão em proporções nunca vistas, camuflada pela infamante versão de que o único obstáculo ao absurdo imposto sobre transações era um capricho do atual presidente da Câmara. O fantasma da meia-noite da virada do mandato vestiu, com isso, sua máscara. A Câmara inteira era aliada da sociedade, contra o imposto. Não se sabe como será agora.

Se ficar a serviço deste projeto de poder, o Congresso deixa de ser proteção para ser ameaça. Pode-se prever o quadro de desequilíbrio que vem por aí. A economia, mal; a recuperação, incerta; o desemprego, subindo; o isolamento internacional, absoluto; o Congresso, servil. Para a sociedade, perplexa, nega-se até a vacina contra a morte.


Catarina Rochamonte: Centrão acima de tudo, Flávio acima de todos

A preocupação de Bolsonaro tem sido evitar o impeachment e blindar seu filho, duas coisas que se complicaram após a denúncia de que a Abin produziu relatórios com orientações para que o caso Queiroz fosse anulado

O envolvimento de Bolsonaro na campanha de Arthur Lira (líder do Centrão e réu por corrupção) para a presidência da Câmara Federal é grande. Tão grande quanto o preço com que a sua eleição está sendo negociada. Para eleger o candidato que coleciona processos judiciais e denúncias que vão de violência doméstica à cobrança de propina, passando por operação de “rachadinha”, a máquina governista trabalha a todo vapor, oferecendo liberação bilionária de emendas parlamentares e generosa distribuição de cargos, com promessa de descartar alguns ministros para acomodar nomes do Centrão.1 8

Como a ideologia fraqueja diante das infindáveis benesses que o poder proporciona, até parte da esquerda flerta com o candidato de Bolsonaro, que procurou José Dirceu e se dispôs a procurar Lula prometendo, em troca do apoio do PT, pautar a criação de um novo imposto sindical, revisar a Lei da Ficha Limpa e combater o “lavajatismo”. Tudo em acordo tácito com o presidente, cuja preocupação maior tem sido evitar o seu impeachment e blindar o filho Flávio, duas coisas que se complicaram após a denúncia de que integrantes da cúpula da Abin produziram relatórios com orientações de como os advogados do senador deveriam proceder para que o caso Queiroz fosse anulado.

A orientação visava sustentar a narrativa de supostas irregularidades na obtenção dos dados de Flávio a fim de invalidar as provas contra ele. Com o objetivo de “defender FB no caso Alerj”, o relatório traça linha de ação que passa por acessar dados da Receita e demitir servidores do Fisco e da Controladoria-Geral da União (CGU) que fossem um obstáculo a isso.

À frente da Abin está Alexandre Ramagem, cuja tentativa de indicação para o comando da PF (frustrada pelo STF) foi o pivô da saída de Sérgio Moro do governo. Comprova-se, portanto, o que Moro denunciou ao sair: a interferência de Bolsonaro nas instituições com o objetivo de proteger o seu filho das investigações de que é alvo.Catarina Rochamonte

*Doutora em filosofia, autora do livro 'Um olhar liberal conservador sobre os dias atuais' e presidente do Instituto Liberal do Nordeste (ILIN).


Luiz Sérgio Henriques: Entre o centro e o centrão

O Exército de Brancaleone.

Um governo como o de Jair Bolsonaro tem o caráter de desafio imprevisível e continuado. As provações a que submete a institucionalidade democrática se sucedem umas às outras, como num alucinante trem fantasma que não parece chegar nunca mais à estação terminal. Seria um tanto ofensivo invocar o cineasta Mario Monicelli, um convicto homem de esquerda, mas o fato é que a atual equipe dirigente lembra quase automaticamente a armata Brancaleone, com a arregimentação desregrada de militares, a trazer acentuadas preocupações sobre o papel das Forças Armadas, e a ação de um autoproclamado “núcleo ideológico” em guerra permanente contra a modernidade, praticamente confundida com o “comunismo”. A estes dois grupos, de resto conflagrados entre si, se acrescenta a cota bem nutrida dos incompetentes, ainda que, nisso tudo, as linhas de separação sejam muito difíceis de traçar.

Os otimistas sublinham a resiliência das instituições: elas não se submeteram ao assalto aberto, às manifestações subversivas, à tropelia das milícias reais ou digitais. O próprio presidente, num dado momento, sem abandonar a truculência verbal e as decisões irracionais, como na triste guerra das vacinas em que ora empenha seus generais e sua armata, passou a valer-se de modo mais regular dos poderes convencionais do Executivo. Passou a usar, em suma, a tal “caneta” cheia de tinta, não a Montblanc de antes, mas uma Bic incomparavelmente mais perigosa. No STF ainda não tomou assento o ministro “terrivelmente evangélico”, mas o primeiro voto importante do recém-empossado jurista conservador, confeccionado sob medida para aplainar o caminho do presidente do Senado e barrar o da Câmara, não deixa dúvida sobre o que se pode esperar.

O centrão amorfo, expressão consumada da “velha política”, reaparece com nobres e altas funções. Longe de ser exorcizado pelo refrão do samba de Bezerra da Silva, como se queria nos tempos “heroicos” da campanha eleitoral, agora está metamorfoseado na frente parlamentar que já funciona como dique contra qualquer impeachment e possivelmente, a partir de fevereiro de 2021, funcionará como suporte da agenda reacionária do governo, se derem certo os cálculos do estado-maior da armata. Dali para a frente, quem gritar “pega ladrão” irá encontrar, vai-se lá saber, uma pequena multidão de ministros e dirigentes acotovelados em secretarias e estatais, a cumprir ritos e preceitos franciscanos – não os do inquieto Papa argentino, mas os que, pondo de lado o disfarce das boas intenções, pavimentam o caminho de negócios e transações, muitas das quais tenebrosas, a julgar pelos precedentes.

Um ponto específico deve ser aqui mencionado. O ressurgimento em grande estilo do centrão, tal como desenhado nas pranchetas da batalha, implicará abrir brechas de demorada reversão nas fileiras de um centro parlamentar ordenadas a duras penas por gente como o deputado Rodrigo Maia. Nestas fileiras confluíram mais estavelmente, nos dois primeiros anos da legislatura, partidos como o DEM, o PSDB e o MDB, além de siglas menores, mas simbólicas, como o Cidadania. Vez por outra, uma boa surpresa: víamos parlamentares de outros partidos da centro-direita, relativamente desconhecidos, a opinar com lucidez sobre leis e medidas provisórias, demonstrando apreço pelo interesse público. De particularíssimo relevo, além disso, os variados canais de comunicação mantidos pela presidência da Câmara com a esquerda “pura e dura”, cuja representação, evidentemente, não é lícito ignorar.

A resultante de todo este esforço foi claramente, no primeiro biênio legislativo, uma Câmara e um Congresso capazes de tomar iniciativas, como no caso da reforma previdenciária e do auxílio emergencial, mas também, efundamentalmente, capazes de mostrar que seus destacamentos mais relevantes estavam firmemente postados nas trincheiras da institucionalidade. Em outras palavras, a construção de um centro parlamentar ativo, um valor em si mesmo, tornou possível algum contato produtivo com a(s) esquerda(s), garantindo o protagonismo do legislativo em certos casos e, em outros, o veto a nefastas proposições governamentais. Um resultado nada desprezível, se considerarmos o contexto de divisões, conflitos e até rancores que envenenaram a política e a nação nos últimos (muitos) anos.

Na renovação das mesas diretoras, em particular da Câmara dos Deputados, uma parte das esquerdas poderá escolher o caminho da candidatura própria, autodispensando-se de negociações e apregoando farisaicamente a própria nobreza de intenções. Conseguirá, assim, meia dúzia de votos e proclamará à sua maneira um lema de inspiração brancaleônica: pocos, pero sectarios. Outra parte poderá embarcar na atração fatal do carro governista – pois, nesta altura, pouca dúvida há de que, com a rearticulação congressual do centrão, volta a se animar a virulenta agenda destrutiva dos tais “conservadores cristãos” que constituem a alma populista deste governo. E não se trata de firulas ou pruridos: ninguém pode ignorar os pesados reflexos que teria sobre o cotidiano da população a aprovação de medidas que reduzam o âmbito e o escopo dos direitos humanos ou facilitem a disseminação ainda mais acentuada de armas e balas, para nada falar da tragédia ambiental em andamento.

Tudo isso pode estar certo, mas – dirão ainda – o centro parlamentar representado por Maia tem um lado negativo que impede alianças. É que ele também se fez protagonista de reformas liberais, e estas, na visão de uma certa esquerda, nunca são razoáveis nem passíveis de reparos legislativos que pelo menos atenuem a perda de direitos ou até ajudem a vislumbrar, e quem sabe afirmar, outros direitos de novíssima geração. Neste caso se afirmaria à esquerda uma posição de mera recusa, radical mas impotente. Uma impotência que se agravaria com o tempo, pois é certo que, além da agenda regressiva de valores, a troca do centro pelo centrão tornaria bem mais viável o liberalismo à la Guedes, por sinal um ingrediente bizarro que seria tremendamente injusto esquecer se de armata Brancaleone falamos.


Ricardo Noblat: A rendição de Bolsonaro ao sistema que prometera desmontar

Uma vez Centrão, sempre Centrão

Jair Bolsonaro chegou à presidência da República com uma ideia fixa, por sinal a única que lhe sopraram sem maiores detalhes e ele gostou logo de saída: quebrar o maldito sistema.

Não sabia bem o que era o sistema, mas de tanto ouvir falar dos seus males e da sua força intuiu que essa poderia ser uma bandeira atraente para despertar esperança.

Afinal, não tinha projeto para o país porque sempre fora incapaz de conceber um ou de sequer preocupar-se com isso. E a facada acabou salvando-o do risco de revelar-se um candidato vazio.

Em sua primeira visita aos Estados Unidos, limitou-se a repetir vagamente que destruiria o sistema para só mais tarde construir outro. Foi ouvido pelos americanos como um líder pitoresco.

Bem que ele tentou derrubar o sistema, se entender-se assim a fase em que provocou uma crise atrás da outra e ameaçou o Congresso e a Justiça com manifestações de rua antidemocráticas.

Recuou com medo de ter o mandato cassado e os filhos presos por corrupção. Desde então se rendeu ao sistema que pretendia demolir e se empenha em extrair o maior proveito dele.

A mais recente prova disso foi a demissão do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, um dos homens que o carregaram ensanguentado nos braços depois da facada redentora.

Marcelo não foi despachado porque havia sido denunciado por corrupção nas eleições de 2018. Nem porque chamou de “traíra” o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria do Governo.

O general é um pau mandado de Bolsonaro e está acostumado a ser desacatado por colegas. Ricardo Salles, do Meio Ambiente, já o chamou de Maria Fofoca e nada lhe aconteceu.

O de Bolsonaro não é um governo, mas um serpentário onde quase todos se golpeiam o tempo inteiro na tentativa desesperada de acumular mais poder e de agradar mais ao chefe.

Salles agradou Bolsonaro ao desqualificar o general que já teve na marca do pênalti várias vezes. Marcelo não o agradou por ter dito que o general negociava seu cargo com o Centrão.

Haverá algo que se identifique mais com o sistema, alvo pretérito de Bolsonaro, do que o Centrão? O cargo de Marcelo caberá ao Centrão na reforma ministerial prevista para janeiro próximo.

Bolsonaro, hoje, depende do Centrão para eleger o deputado Arthur Lira (PP-AL) presidente da Câmara daqui a dois meses. E do Centrão depende para se reeleger em 2022.

Para quem acenara com a recriação da política, decorrência natural do baque a ser imposto ao sistema, o Centrão é tudo o que existe de velho, podre e corrompido desde que surgiu em 1988.

Nada de estranho para Bolsonaro. Ele já se filiou a cerca de 10 partidos nos seus quase 30 anos como deputado federal. E todos eles faziam parte do Centrão que agora se robustece.

Nem se poderá dizer que o filho pródigo retornou à casa porque Bolsonaro de fato jamais a abandonou.


Bruno Boghossian: Ministro só foi demitido por não se encaixar nos planos de Bolsonaro para 2022

Saída se explica pelas duas maiores preocupações do presidente: o controle do Congresso e a reeleição

Ameaçado no cargo, o ministro do Turismo comprou briga com um colega na terça (8). Num grupo de mensagens, Marcelo Álvaro Antônio destacou suas credenciais como apoiador precoce de Jair Bolsonaro em 2018, atacou o articulador político do Planalto e disse que o governo paga “um altíssimo preço” para aprovar projetos no Congresso. No dia seguinte, foi demitido.

Antes disso, Bolsonaro teve outras oportunidades para se livrar de Álvaro Antônio, mas preferiu manter o aliado no governo. Quando ele foi denunciado pelo Ministério Público no ano passado, sob acusação de desviar dinheiro no esquema de candidaturas laranjas do PSL, o presidente disse que não havia elementos para mandá-lo embora.

Um bate-boca no WhatsApp pode parecer um motivo menor, mas foi pretexto suficiente. A decisão instantânea de Bolsonaro se explica pelas duas maiores preocupações do governo na agenda política: o controle do Congresso e a eleição de 2022.

O presidente não teve dificuldade para demitir um aliado que fazia propaganda de sua dedicação ao chefe. Álvaro Antônio apostou cedo no deputado do baixo clero e foi muito bem recompensado com um ministério no governo. Ele só não percebeu que aquela lealdade envelheceu e que Bolsonaro pensa exclusivamente na próxima eleição.

O cargo do ministro se tornou uma peça na engrenagem que o presidente tenta recauchutar para fortalecer o governo no Congresso e pavimentar o caminho para sua candidatura à reeleição. O estopim da fúria de Álvaro Antônio foi justamente o empenho de Luiz Eduardo Ramos, chefe da Secretaria de Governo, na entrega desse posto para o centrão.

Para completar, Bolsonaro ainda puniu com uma demissão sumária o subordinado que apontou o dedo para o abraço entre o governo e os partidos tradicionais do Congresso. No fim das contas, a cadeira aberta na Esplanada dos Ministérios deve engordar as negociatas para eleger um presidente da Câmara afinado com o Palácio do Planalto.

*Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).


Celso Rocha de Barros: Centro-direita terá que escolher entre ser adulto responsável pelo Jair ou seu rival

Um clima de conflito generalizado pode favorecer o projeto autoritário do presidente

Desde janeiro de 2019, estabeleceu-se uma divisão do trabalho entre o governo Bolsonaro e a maioria de centro-direita no Congresso.

Do seu lado, o Congresso governa por Bolsonaro: faz reforma da Previdência, marco do saneamento, auxílio emergencial (com ajuda da esquerda). Do outro lado, Bolsonaro tenta fechar o Congresso.

Veja bem, eu não disse que era um relacionamento saudável.

Esse arranjo deve entrar em crise agora que as eleições de 2020 deram esperança de vitória presidencial para a centro-direita. Em todos os casos anteriores, Bolsonaro colheu os frutos de popularidade e/ou apoio das elites gerados pelo trabalho do Congresso.

Se a centro-direita tiver seu próprio candidato em 2022, não é provável que continue governando por Bolsonaro.

Mas abandonar Bolsonaro à maldição bíblica de ter que ganhar o pão com o suor do próprio rosto também pode ter custos. Ano que vem a crise vai ser feia. Isso pode mudar o humor do eleitorado, no momento favorável a candidatos moderados.

Em janeiro o auxílio emergencial acaba. Daí em diante, as projeções são muito ruins.

A renda dos pobres vai cair muito, a desigualdade deve disparar, o desemprego deve aumentar, e aquele efeito multiplicador do auxílio —mais gente consumindo porque tem mais gente com dinheiro na mão— vai se reverter.

O custo do auxílio foi alto: a situação fiscal é muito ruim.

Por incompetência de Bolsonaro, e só por isso, o Brasil será vacinado por último. Não há qualquer iniciativa do governo em curso para lidar com nada disso.

Se os piores cenários projetados para 2021 se confirmarem, o eleitorado pode sair do estado de espírito zen, moderado, centrista, “quero-um-gestor” da eleição de 2020.

Uma grave crise social pode acirrar de novo a disputa política. Talvez isso favoreça a esquerda, que é mais combativa contra Bolsonaro.

Talvez um clima de conflito generalizado favoreça o projeto autoritário de Bolsonaro, que nunca deixou de ser seu plano A.

De qualquer forma, no pior cenário para 2021, o centro pode deixar de ser o melhor canal para exprimir o sentimento popular.

Ou seja, se o centro continuar trabalhando para Bolsonaro, arrisca fortalecer o presidente contra um candidato centrista em 2022.

Mas, se parar de trabalhar para Bolsonaro, a crise pode ser grave o suficiente para virar o humor centrista do eleitorado.

Vejam o caso da reforma tributária. Há uma proposta de reforma no Congresso, baseada nas ideias do economista Bernard Appy, que conta com base de apoio bastante razoável.

Todos os principais candidatos a presidente em 2018, à exceção de Bolsonaro, sinalizaram que a teriam implementado.

Mas as notícias são de que Bolsonaro sabota a tributária para enfraquecer Maia (uma espécie de Cunha reverso).

Guedes quer a idiotice da CPMF. O ministro das Comunicações, Fábio Faria, reclamou que o aumento de impostos sobre ricos seria “socialismo”. Ou seja, se deixar na mão dessa turma, a reforma não sai.

A centro-direita no Congresso deve tocar a reforma por sua própria conta, sabendo que eventuais frutos eleitorais do crescimento econômico serão colhidos por Bolsonaro? Ou deve abandonar a tributária, arriscando uma crise econômica mais grave e a volta da polarização?

Não vai ser fácil ser o adulto responsável pelo Jair e o rival do Jair ao mesmo tempo.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Bernardo Mello Franco: O PT diante da derrota

Foi um tombo histórico. Pela primeira vez, o PT não conquistou a prefeitura de nenhuma capital. Um desempenho ainda pior que o de quatro anos atrás, quando só venceu em Rio Branco.

Em 2016, o desastre era inevitável. O partido havia acabado de enfrentar o impeachment de Dilma Rousseff e as prisões espetaculares da Lava-Jato. Agora não há como culpar os outros. O petismo sucumbiu aos próprios erros — e parte da sua cúpula ainda está em negação.

A presidente Gleisi Hoffmann tentou dourar a pílula. Exaltou a vitória em quatro cidades no segundo turno, embora a sigla tenha perdido em nove. Ela classificou o fiasco como uma prova de que a esquerda “sabe lutar”.

“Não se pode converter derrota em vitória. Derrota é derrota”, reagiu Alberto Cantalice, do diretório nacional do PT. Ele disse em público o que outros dirigentes repetem em privado: sem uma renovação radical, o partido arrisca perder de vez a ligação com o eleitor.

“O antipetismo ficou maior do que o petismo”, desabafa um ex-ministro. Ele considera que houve um “erro grave de leitura” em 2020. O PT apostou tudo na imagem desgastada de Lula, subestimando sua rejeição nos grandes centros. Além disso, recusou-se a apoiar outras siglas para lançar candidatos pouco competitivos.

Em São Paulo, a tática deu errado. Jilmar Tatto ficou em sexto lugar, com menos de metade dos votos do PSOL. Em Belo Horizonte, Nilmário Miranda também acabou em sexto, com 1% dos votos. No Rio, Benedita da Silva amargou a quarta colocação.

“Nós envelhecemos”, admite outro ex-ministro que participou da fundação do PT. Ele ressalta que as novas caras da esquerda emergiram fora da legenda: Guilherme Boulos, do PSOL, e Manuela D’Ávila, do PCdoB. A exceção foi Marília Arraes, derrotada no Recife.

O veterano diz que o PT precisa se reciclar e entender as mudanças da sociedade. As fábricas se esvaziaram, os sindicatos perderam força e os trabalhadores foram empurrados para a informalidade. Um dos públicos a conquistar agora seriam os entregadores de aplicativos. “Nosso drama não é só eleitoral. Para sair do fundo do poço, temos que nos reconectar com o povo”, resume. 


Fernando Abrucio: "Eleitor evangélico mostrou que não é voto de cabresto"

Para cientista político, PT ampliou o isolamento e bolsonarismo terá dificuldades em 2022. “Ninguém aguenta mais ficar ouvindo essa discussão ideológica, essa invasão da política na vida diária das pessoas, é uma overdose, cansou”

Aiuri Rebello, El País

Atuando como consultor na construção de candidaturas para as eleições de 2022 e com acesso a diversas pesquisas qualitativas junto a eleitores encomendadas por partidos, o cientista político Fernando Luiz Abrucio, professor da Fundação Getúlio Vargas, está confiante em dizer que o tempo do bolsonarismo acabou, apesar de ainda haver mais dois anos de mandato para o presidente Jair Bolsonaro. Mais que isso, ele observa que a esquerda perdeu a hegemonia na discussão de questões sociais e que essa pauta definirá o próximo pleito presidencial e para governador nos Estados. “O grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo”, resume. Nessa entrevista ao EL PAÍS onde analisa o cenário político brasileiro com o resultado das eleições municipais de 2020, Abrucio fala ainda do isolamento do PT e da confirmação de que os eleitores evangélicos na enorme maioria dos casos não coloca a pauta dos costumes acima de questões concretas como emprego, saúde e educação. Leia abaixo.

Pergunta. O que chama atenção nos resultados das eleições municipais deste ano? Existe um padrão no segundo turno?

Resposta. Não só no segundo turno, também no primeiro, nas principais cidades do país vemos uma derrota muito forte do bolsonarismo. Ele teve derrotas muito claras em campanhas nas quais se envolveu, mas não é só isso. O discurso dos vencedores anuncia já um clima de opinião muito diferente do clima de 2018. A eleição municipal é importante não para dizer quem vai ganhar a eleição presidencial, mas para vermos o clima de humor, os assuntos, o clima de opinião. O clima de opinião que vimos em 2018 já estava colocado nas eleições de 2016. O candidato antissistema já estava lá. Pensemos no Doria quando dizia “eu sou gestor, não sou político”. Nessa campanha nenhum dos vencedores falou eu não sou político. Bruno Covas fez uma campanha muito certinha, quadradinha, e explorou o oposto. Dizia na TV, “eu sou político”.

Fora que a imagem do Bolsonaro está muito desgastada. Se pensarmos que o presidente da República e os filhos fizeram campanha pessoalmente para a Wal do Açaí ao cargo de vereadora em Angra dos Reis e ela não se elegeu... Ele teve um nível de superexposição nestes dois anos, lives no Facebook toda semana, tempo todo nas redes sociais. Para o eleitorado mediano em um contexto de crise, afetou ele fortemente, fica se oferecendo como alvo para a frustração das pessoas com a situação.

P. Bruno Covas se distanciou da imagem e discurso do padrinho político dele, no caso o governador João Doria.

R. Não foi só em São Paulo que isso aconteceu. Em todos os lugares o discurso de valorização da política, um discurso mais orgânico, de ativação com a sociedade, isso tudo veio muito forte. Na verdade é o contrário de tudo que foi o bolsonarismo em 2018, uma candidatura antissistema, polarizadora, baseada em chavões e não em discussão de programas. Ele fez uma campanha inteirinha sem falar em questões sociais em um país tão desigual e carente de soluções na área como o Brasil. Se pegarmos as campanhas a prefeito nas capitais agora, olha em Salvador e Rio o DEM, em São Paulo o Bruno Covas e o Guilherme Boulos, as principais candidaturas foram todas muito parecidas em suas temáticas. Especificamente as questões sociais, esse é o tema. E esse vai ser o tema de 2022. É muito diferente do humor eleitoral que a gente tinha em 2018. Eu pego muitas pesquisas qualitativas constantemente e uma coisa está muito clara: o grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo. Hoje não temos um ministro da Educação e nem da Saúde dignos do nome do cargo. Se você fizer uma enquete na rua ninguém vai saber quem são os dois, não conseguem nem gastar o pouco dinheiro que tem.

Na área social o Governo é uma nulidade e a agenda bolsonarista foi enterrada pela pandemia e pelas eleições municipais. Ainda tem a mudança de humor no cenário externo, com a eleição do Joe Biden e que ainda não foi sentida por aqui. A União Europeia agora vai atacar fortemente isso e a China e os EUA também. Vai juntar os três para pressionar o Brasil. A gente começa a perceber que existe uma mudança externa, a pandemia e as eleições municipais que fazem com que aquela agenda e clima de opinião que imperou em 2018 acabou já era.

P. O bolsonarismo está morrendo?

R. Não, mas vai diminuir progressivamente e chegar em 2022 bem menor. Em 23 das 26 capitais, aumentou muito a rejeição ao Bolsonaro nas últimas duas semanas. Isso é impressionante. Em São Paulo, tem pesquisa colocando ele com 17% de bom e ótimo... nunca teve isso e a tendência é piorar, não é melhorar. Não vai ter muito dinheiro para o ano que vem, os partidos do Centrão ali vão se afastar completamente do bolsonarismo para compor a eleição da presidência da Câmara e continuarem firmes, toda a oposição a ele vai começar a bater cada vez mais forte. É todo mundo contra ele. Vendeu-se uma ilusão de que seria um governo que antissistema, que derrubaria o sistema por completo, que acabaria com a corrupção, e essa bandeira o Bolsonaro não tem mais condições de carregar, não consegue mais se colocar como um arauto anticorrupção.

P. O peso do voto evangélico nesse cenário diminuiu?

R. Se você pegar no Rio de Janeiro, grande parte dos evangélicos votou no Eduardo Paes. Por que os evangélicos votaram nele? Em 2018, grande parte dos evangélicos foi nesse discurso bolsonarista de ser contra a corrupção, pela pátria e a família. Passados dois anos, boa parte desse grupo percebeu que precisa de mais alguma coisa. Não adianta ficar falando de pátria, família e religião se não tiver emprego, renda, escola, se parentes estiverem ficando doentes e morrendo de covid-19. Quem é o evangélico com perfil mais padrão na Baixada Fluminense, por exemplo? Homens e mulheres negros ou pardos, é o primeiro dado demográfico. Aí vem o presidente e o vice-presidente dizer que não existe racismo no Brasil? O cara já está sem emprego, vivendo da economia informal, o auxílio emergencial está acabando, percebe que seu filho está sem aula e tem algum parente ou amigo que morreu de covid? Esse cara não está para brincadeira nesse momento.

Para completar, sente-se uma inflação nessa mesma ponta. Embora esteja começando a se alastrar agora e o tamanho disso ainda tem de ser mesurado e vermos se o efeito será duradouro, até agora é principalmente uma inflação acelerada de alimentos. E quem é que sente mais isso? As famílias de baixa renda, boa parte delas evangélicas. A imagem do Bolsonaro está bastante desgastada inclusive dentre os evangélicos, não adianta tentar se desvincular de todos os problemas, as pessoas precisam de soluções. Ele tem um erro de estratégia e comunicação de privilegiar essa coisa ideológica ao invés de políticas públicas. Ninguém aguenta mais ficar ouvindo essa discussão ideológica, essa invasão da política na vida diária das pessoas, é uma overdose, cansou. Neste ano, o eleitor evangélico não é um voto de cabresto, que não obedece cegamente as orientações das lideranças das igrejas. No Rio e em São Paulo, para ficarmos só nesses exemplos, os candidatos da Igreja Universal e do bispo Edir Macedo, Marcelo Crivella e Celso Russomanno, perderam inclusive entre os evangélicos, mostram as sondagens.

P. É possível falar em um renascimento da esquerda, mesmo que incipiente?

R. Não sei. Na verdade o que a gente vê é que a agenda social tornou-se muito forte e não foi exclusividade da esquerda. Os candidatos de direita e centro-direita que abraçaram a pauta social se deram bem. Mais importante que falar no fortalecimento da esquerda é falar no fortalecimento da pauta social, que sempre foi prioritária da esquerda e agora foi incorporada por outros atores políticos. Se pegarmos a situação de Porto Alegre, por exemplo, tirando as fake news contra a Manuela D’Ávila que tiveram um peso importante na derrota dela, o Sebastião Melo começou a falar da questão social o tempo todo. Teve o bárbaro assassinato no Carrefour e ele rapidamente entrou no Twitter e já se posicionou, estava antenado com isso. Os conservadores mais empedernidos que insistem em não legitimar questões como o enfrentamento ao racismo estão de fora dessa nova onda. Isso mostra que apesar de resultados importantes em alguns lugares, mais do que o renascimento da esquerda é a ascensão da questão social, essa é a nova questão central.

P. O presidente e o bolsonarismo de uma maneira geral conseguem se reposicionar e entrar nessa onda?

R. Não, ficou muito ruim para o presidente, porque ele não está preparado para lidar com a questão social. Não tem essa agenda, não se preparou para isso. Não tem técnicos capazes de dar essas respostas, não tem gente que pensa a questão social no Governo federal. Para fazer isso tem de haver vínculos com a sociedade civil, de diversas formas, e o que o Bolsonaro fez desde que assumiu foi cortar essa ligação do Governo com o resto do país, ele está completamente desarticulado com a sociedade. Ele acha que fazer política é fazer live na Internet. Fechou conselhos de participação social, não conversa com ninguém. O retorno que a gente tem de empresários, políticos, representantes de entidades e organizações civis de reunião com o Paulo Guedes e com o Bolsonaro é de que eles não são ouvidos. Então essa ascensão da questão social, que vai se tornar mais forte em 2022, pegou o bolsonarismo de calça curta. Eles não contavam no meio do caminho com a pandemia. O auxílio emergencial é um acidente. Não existia no programa de governo do Bolsonaro nenhuma previsão de transferência de renda. Eles não tem como transformar isso em uma pauta social porque nunca tiveram essa preocupação, não sabem nem por onde começar.

O próprio entendimento sobre a segurança pública pública está mudando. Em 2022 vai ter muito candidato defendendo que a criminalidade é uma questão social. Aquele discurso linha dura do Doria, do Wilson Witzel, caiu. Em 2022 quem vier com esse papo de que bandido bom é bandido morto vai ter ali 15%, 20% dos votos e não passa disso, vai ser massacrado. Nessa campanha a gente viu policial para tudo quanto é lado nas candidaturas e, se olharmos os resultados com calma, não teve a mesma onda que rolou em 2018. Os caras pensaram que iam surfar. Em São Paulo elegeram dois vereadores da segurança pública e um deles foi eleito com a defesa dos cães e gatos. É uma piada. A questão social ganhou uma dimensão que não vai dar em 2022 para falar de segurança pública sem um ponto de vista mais amplo. Teve esse assassinato covarde em Porto Alegre que gerou uma onda forte de revolta ao redor do país, a questão racial está na pauta do dia no cenário externo. A morte do George Floyd nos EUA foi um divisor de águas nesse sentido. É uma onda muito forte essa, igual foi a Operação Lava Jato, o combate à corrupção e a linha dura na segurança pública em 2018. À direita e à esquerda, quem quiser ir bem nas eleições vai ter que modular o discurso e as ações de acordo com essa conjuntura toda que é uma novidade.

P. Qual o perfil do candidato “ideal”, de acordo com esse clima político?

R. Não existe um perfil ideal. Tanto Bruno Covas quanto Guilherme Boulos, por exemplo, com perfis completamente diferentes, foram bem em São Paulo. No caso do Covas, o que ainda prejudicou a imagem dele foi a associação com o vice e o governador João Doria. Não fosse isso ia ser mais parecido ainda. Do ponto de vista programático, não há nenhuma diferença frontal entre as propostas dos dois. Ninguém discorda das questões sociais e identitárias. Essa é uma onda que eu acho que vai vir avassaladora nas próximas eleições.

P. O que podemos dizer da situação do PT? Sai da eleição politicamente enterrado e sem nenhuma capital?

R. No cenário nacional, o que vemos é que o PT ficou mais isolado ainda no cenário político. O eleitor que tradicionalmente votava no PT preferiu o Boulos, o candidato do Ciro e em 2022 pode fazer mesmo ao invés de votar no Lula ou seu indicado novamente. Eu não diria que é um grande perdedor, por que na verdade quem já estava por baixo não tem como ser o grande perdedor. Grande perdedor é quem estava forte e perdeu espaço. Ele não sai maior ou menor, sai mais isolado.

P. E o papel do Novo nesse ciclo político que se inicia agora?

R. Qual é a grande marca do Novo em meio a pandemia? Processo seletivo para lançar candidatos. Não conseguiu oferecer nada de concreto para o país. Eles parecem completamente descolados da realidade brasileira. O resultado eleitoral é esse aí, pífio. A principal liderança eleita deles, que é o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, vai ter problemas para conseguir se reeleger. É engraçado como eclodiu uma nova agenda e muitos não se prepararam, incluindo o Novo. Eles não conseguiram entender até agora o que é fazer política pública. E fora isso perderam identidade. Eles eram a favor do Sergio Moro, da Lava Jato. O Moro saiu do jeito que saiu do Governo e o que eles fizeram? Nada. Estão completamente perdidos. Se você olhar as redes sociais, muito mais que o Novo quem tem ocupado o lugar de um partido liberal na economia e costumes é o Livres. O Novo se propôs a ser conservador nos costumes e liberal na economia. Não precisava de um partido novo para isso. Tem vários na praça com essa proposta. Talvez fosse em uma campanha em outro país, um muito rico. Eles perderam o bonde da história.

P. Com o resultado do Bruno Covas em São Paulo, o governador João Doria obteve uma vitória importante para lançar seu nome à presidência?

R. Eu vejo o Doria enfrentando muita dificuldade. Ele foi muito longe no discurso bolsonarista e agora está com problemas para voltar atrás. Você a aprovação do Doria e do Bolsonaro em São Paulo nessas últimas pesquisas, é ruim igual. É um negócio assustador ali na casa dos 15% de bom e ótimo. Disseram que a campanha em São Paulo ia ser uma prévia do embate entre Doria e Bolsonaro, e o Covas tem o dobro de popularidade dos dois. O eleitorado identificou nele sensibilidade social. O Doria vai ter muita dificuldade de fazer essa volta no discurso. As pessoas não perdoam ele em São Paulo. Se chegar em 2022 com essa rejeição em São Paulo, o PSDB não vai querer dar a cabeça de chapa presidencial para ele e, se fizerem isso, vão começar a ter problemas para eleger bancada legislativa. O Doria tem o ano que vem para mostrar que se redimiu e está dentro da nova agenda da sociedade brasileira. Nesse quadro, a vacinação prometida pode virar o jogo para ele.

P. O ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, fica onde nesse xadrez político e eleitoral?

R. Esse impulso de novas temáticas pode ser aproveitado pela centro direita e pela esquerda. A direita mais ligada ao bolsonarismo e a Lava Jato está muito distante dessa pauta. O Moro não entendeu em que país estamos. Não tem a menor ideia do que fazer em educação, saúde, combate à desigualdade, não sabia nem o que fazer na segurança pública. A única agenda dele é o combate à corrupção. O discurso de que isso vai salvar o país não cola mais. As pessoas continuam achando importante, mas perceberam que sem um conjunto de medidas mais amplo não resolve nada. Essa agenda específica hoje está lá embaixo na lista de prioridades. Então vejo muita dificuldade eleitoral para os dois salvadores da pátria, Bolsonaro e Moro, que brigaram e querem disputar entre si. Mesmo o eleitorado de classe média, mais conservador, percebeu que precisa de mais que isso. A situação social piorou demais no país, e todo mundo vê isso.


Rolf Kuntz: O apagão das canetas e a perversão da política

O governo tem de gastar, diz o seu líder, para ter seus projetos aprovados

Votos custam dinheiro, muito dinheiro, no Congresso Nacional. Por isso o governo precisa gastar para ampliar sua base e conseguir aprovação de projetos. Quem diz isso é o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR). Diz em público, e suas falas têm sido noticiadas. Na terça-feira ele acusou órgãos de controle de causar um “apagão das canetas”, impedindo a liberação de verbas para obras de interesse de parlamentares. A discussão continuou e na quinta-feira já se falava, em Brasília, de negociações com o Tribunal de Contas da União. A ideia era obter autorização para empenhar recursos, neste fim de ano, para investimentos em 2021. Tudo foi dito abertamente, como se fosse normal e saudável, numa democracia, abrir o cofre em troca de apoio parlamentar.

Nenhum sinal de hipocrisia, até aí. A propósito, a hipocrisia, repetia-se em outros tempos, lembrando La Rochefoucauld, é a “homenagem que o vício presta à virtude”. Pressupõe-se no hipócrita, portanto, alguma noção de virtude, assim como algum respeito aos costumes valorizados numa sociedade. A fala aberta, sem subterfúgios, seria um sinal ainda mais certo da reverência àqueles valores. Será possível, no entanto, sustentar esse pressuposto no caso dos protestos contra o “apagão das canetas”? É duvidoso. Os envolvidos podem ter simplesmente usado em público, sem autocensura, a linguagem própria do seu meio e dos seus costumes.

O apagão, nesse caso, foi luminoso. Tornou mais clara, até ensolarada, a natureza da relação entre o Executivo chefiado pelo presidente Jair Bolsonaro e a sua, por assim dizer, “base de apoio”. Esta expressão é imprópria, embora usada no dia a dia, e também isso pode ter ficado mais visível para os menos atentos. Não se trata, de fato, de uma base, mas de um reservatório de votos, uma fonte acessível de acordo com as condições e as cotações de cada momento.

Outras práticas, diferentes da negociação de votos por verbas, são mais frequentes em outras democracias, especialmente naquelas onde os partidos têm cores mais definidas. Há acordos de conveniência, assim como conchavos e jogadas eleitorais, mas é possível, em geral, associar a votação a princípios partidários e ideológicos. Embora avariado, o Partido Republicano ainda é reconhecível. Nem o presidente Donald Trump conseguiu desfigurá-lo totalmente e convertê-lo em instrumento de seu populismo nacionalista, neofascista e, sobretudo, personalista.

Sem censura, a fala aberta revelou também, no episódio do apagão das canetas, a inversão de noções fundamentais da vida política. Segundo o líder Ricardo Barros, “o deputado quer uma obra”, isto é, quer “mostrar serviço a seus eleitores”. O governo, portanto, deve entregar o benefício ao congressista, para deixá-lo satisfeito. “Precisamos estabelecer a relação republicana que precisa existir entre parlamentar e governo”, concluiu o líder, segundo relato do Estadão.

Esse é um conceito muito particular de republicanismo. “Relação republicana” designa, em sentido próprio, algo muito diferente de um intercâmbio desse tipo, isto é, da troca de um benefício político-eleitoral, pago com dinheiro do Tesouro, por um voto a favor de um projeto.

A noção de república, em sentido próprio, remete a uma ordem comum, sujeita a um poder soberano (atributo do Estado) e caracterizada por leis conhecidas e formuladas segundo processos legitimados. Essas leis estabelecem, entre outros aspectos da vida coletiva, a distinção entre o público e o privado. Essa distinção desaparece quando meios públicos são usados para fins particulares.

Meios públicos podem ser dinheiro, empresas, instalações estatais, recursos humanos de qualquer escalão ou ainda processos e órgãos típicos de Estado. Exemplo: se um presidente, por hipótese, convocar dois altos funcionários para discutir problemas legais de um de seus filhos, meios públicos serão usados para fins privados. Esse uso é estranho às funções e aos poderes presidenciais e nada tem, portanto, de republicano.

A lei submete o Orçamento ao exame e à aprovação do Congresso. Congressistas podem apresentar emendas de interesse de suas bases eleitorais. A lei regula as condições de execução dessas emendas. Mas nenhuma lei confere caráter republicano à negociação de vantagens privadas com base nesse ou em qualquer outro uso de bens públicos.

Em quase todo o mundo o exercício do governo envolve negociações, articulações e trocas de vantagens políticas. A presença de mais de um partido no Ministério pode ser um meio de fortalecer a ação do Executivo. Mas isso pressupõe, normalmente, uma convergência possível entre orientações partidárias distintas – quando cada partido merece esse nome.

Interesses particulares, em escala nacional, regional ou local, sempre serão afetados, de forma positiva ou negativa, por decisões políticas de alguma importância. Decisões de caráter republicano sempre serão tomadas, no entanto, com base em princípios gerais e levando em conta as funções e os limites do poder público. Fugir disso é privatizar o Estado.