centrão

Reinaldo Azevedo: Versão de Villas Bôas é lixo golpista

Justificativa para tuítes que ameaçaram o Supremo está assentada numa mentira factual

O general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, militar mais poderoso da Terra, enfrentou as delinquências de Donald Trump recorrendo à Constituição americana. Por aqui, um general da reserva resolve narrar, em tom que aspira ao pudoroso, a ameaça golpista que fez para intimidar o Supremo.

No dia 3 de abril de 2018, véspera do julgamento de um habeas corpus impetrado pela defesa de Lula, o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, escreveu no Twitter: "Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem d e repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais".Os que dele discordavam não eram "homens de bem". Comandar tanques corresponderia a ter razão. O general ainda distinguiu os que pensavam "no bem do País" dos que estariam preocupados "com interesses pessoais". Adivinhem em que lado ele se via. A propósito: quantas divisões tinha o adversário?Lembro: cinco dos seis ministros que votaram contra a concessão do habeas corpus foram indicados por Lula ou por Dilma. Três dos cinco favoráveis, por outros presidentes.

Villas Bôas concedeu um depoimento a Celso Castro, diretor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da FGV. A fala está condensada no livro "General Villas Bôas: Conversa com o Comandante".

Não é exatamente novidade. O próprio militar já havia tratado do assunto em entrevista, mas fica ainda mais claro desta feita que seus tuítes ameaçadores reproduziam o pensamento do Alto Comando do Exército —ao menos é isso o que diz. Não havendo contestação, assim é. Querem passar um paninho na biografia do general e nas tentações golpistas?

Então fiquem com a versão de que, ao mandar um ultimato ao Supremo, Villas Bôas evitou coisa pior —quem sabe uma tentativa de quartelada, à revelia do Alto Comando, estimulada por pijamas inflamados. Conhecemos, desde Castello Branco, a cascata do militar honrado, que resiste à quebra da hierarquia, mas acaba cedendo a contragosto... A versão vale uma dose de cloroquina contra o coronavírus, ministrada por Eduardo Pazuello, general da ativa.

Uma mentira essencial constitui o pano de fundo do relato de Villas Bôas: a de que Lula poderia concorrer à Presidência se deixasse, então, a cadeia. Falso. Tivesse acontecido, tratar-se-ia apenas de cumprir o que dispõe o inciso LVII do artigo 5º da Constituição.

O petista continuaria inelegível segundo a Lei da Ficha Limpa. Ainda que elegível fosse, a suposta legitimidade da intervenção, à qual o militar pretende emprestar dimensão constitucional, emana de que título legal?

Estou enganado, ou ele pretende legitimar com as baionetas a leitura do artigo 142 da Constituição no esforço de impedir o cumprimento de disposição do artigo 5º, que é cláusula pétrea?

Os militares teriam seus motivos para tanto rancor: estavam revoltados com as conclusões da Comissão da Verdade —jamais um golpista sofreu qualquer prejuízo pessoal--; viam a Amazônia submetida à cobiça de organizações estrangeiras, consideravam a demarcação de terras indígenas um risco à soberania...Pouco me importam os fantasmas que povoam a imaginação criativa do golpismo. Fato: Lula foi o presidente que mais investiu no reaparelhamento das Forças Armadas desde a redemocratização. E desafio que se evidencie o contrário. A ideia de que se forjou um espírito antipetista num ambiente de penúria e de política entreguista (ao onguismo internacional) vale uma dose do vermífugo do astronauta.Não tenho apreço por quem me ameaça. Os tuítes de Villas Bôas marcaram o engajamento explícito das Forças Armadas na candidatura de Bolsonaro. Um dos generais do poder organizou uma lista de compra de votos para eleger o presidente da Câmara. Outro, da ativa, poderá, no fim de fevereiro, discursar sobre 250 mil cadáveres.

Seriam esses os "anseios dos cidadãos de bem?" O depoimento de Villas Bôas tem óbvio interesse histórico. Merece um lugar na prateleira do lixo golpista.


Ruy Castro: Receita de golpe

Edson Fachin analisou com preocupação a cena nacional

Na Folha de quarta última (10), o ministro do STF Edson Fachin analisou com preocupação a cena nacional e listou fatos cuja soma me faz farejar uma receita de golpe de Estado, em preparo por um já declarado candidato em 2022 caso as eleições não o favoreçam. Os ingredientes dessa receita, com meus comentários, são:

1. Remilitarização do goveno civil. Milhares de militares de patentes inferiores, da ativa e da reserva, foram infiltrados na administração. Ensaio de compra das Forças Armadas.

2. Instigação ao fechamento dos demais Poderes. O Executivo tenta intimidar o Judiciário e o Legislativo com mobilizações populares e ameaça de tropa na rua.

3. Declarações acintosas de depreciação do valor do voto. Permanente pregação com fundo antidemocrático, sedimentando o terreno para uma possível alternativa totalitária.

4. Palavras e ações que atentam contra a liberdade de imprensa. Campanha incessante de desmoralização da imprensa livre, aliada à compra descarada do apoio de certos canais de TV —a velha e boa "mamata".

5. Incentivo às armas e à violência. A ideia é armar seus seguidores no caso de as forças da legalidade resolverem intervir no sentido de um impeachment ou interdição.

6. Recusa antecipada de resultado eleitoral adverso. Insinuações de fraude eleitoral, ao estilo Donald Trump, e tentativa de impor o voto por escrito, fácil de viciar, para levar o eleitorado a insurgir-se contra o resultado.

7. Corrupção de agentes administrativos. Inúmeros funcionários e aliados do governo, sem falar nos filhos, são investigados, denunciados ou réus por corrupção. O empenho em corromper atinge também juízes, procuradores, promotores, a Abin, o Coaf, a Polícia Federal, a Receita Federal etc., para controlá-los.

Os golpes desprendem seu mau cheiro muito antes de serem postos em marcha. Não é sensato tapar o nariz. Ainda mais quando já há um em marcha.


Hélio Schwartsman: O sarrafo e a Justiça

Faz sentido anular certos atos de Moro no processo que conduziu contra Lula

Qual a diferença entre um "julgamento" do PCC e um julgamento da Justiça? É a altura do sarrafo. Na tentativa de emular as instituições, gângsters até permitem que os "réus" em seus "tribunais" se manifestem e tentem explicar-se, mas não dá para confundir isso com o direito à ampla defesa e outras garantias fundamentais que estão no DNA das sociedades que se organizam como Estados de Direito.

E é porque o sarrafo é alto que faz sentido anular certos atos de Sergio Moro no processo que conduziu contra Lula. As mensagens trocadas entre o ex-juiz e procuradores da Lava Jato deixam claro que o ex-presidente não teve direito a um julgador minimamente imparcial.

Daí não decorre, é óbvio, que devamos passar um atestado de inocência a Lula. Não é porque Moro e alguns procuradores da Lava Jato não tiveram um comportamento à altura de seus cargos que não havia um bom caso contra Lula.

E nem precisamos nos enfronhar em intermináveis polêmicas jurídicas sobre a culpabilidade do ex-presidente. Mesmo que não existissem provas suficientes para condenar Lula nos termos da lei, não vejo como absolvê-lo no plano da ética. Ele, afinal, estabeleceu uma relação promíscua com empreiteiros que comandaram esquemas de corrupção que atravessaram vários governos e deles recebeu vários mimos.

Pela régua ética que o próprio PT utilizava nos anos 80 e início dos 90 (e que me parece essencialmente correta), isso teria bastado para expulsá-lo do partido.

Outro ponto que merece atenção é a extensão das nulidades que a Justiça deverá decretar. Não dá para fingir que o julgamento de Lula por Moro foi conforme o figurino, mas é preciso cuidado para não pôr a perder anos e anos de investigações da Lava Jato que afetaram centenas de réus e resultaram na recuperação de bilhões de reais desviados dos cofres públicos.

O sarrafo precisa ser alto, mas não infinito.


Bruno Boghossian: Lava-jatismo deve ser página virada na arena eleitoral de 2022

Operação entra em declínio depois de influenciar corridas presidenciais e impeachment

Uma semana após deixar o Ministério da Justiça, Sergio Moro disparou nas pesquisas para 2022. O rompimento com Jair Bolsonaro rachou o eleitorado governista e impulsionou o ex-juiz. Numa simulação de segundo turno feita no levantamento XP/Ipespe do fim de abril, ele aparecia com 58% das intenções de voto, contra 24% do antigo chefe.

O ex-ministro já perdeu o bônus daquele divórcio. Fora dos holofotes de um cargo público, desprovido de habilidade política, moído pelas tropas bolsonaristas e desgastado pela corrosão da Lava Jato, Moro murchou. A última sondagem do mesmo instituto mostra o ex-juiz numericamente à frente, mas em empate técnico com Bolsonaro: 36% a 32%.

O lava-jatismo perdeu fôlego na arena política. Em 2014, os primeiros escândalos desvendados pela operação balançaram a corrida presidencial. Depois, a ação de seus integrantes deu combustível ao impeachment e moldou o tabuleiro eleitoral de 2018. No ano que vem, essa influência tende a ser limitada.

Na pesquisa de abril do ano passado, três personagens estavam empatados na simulação de primeiro turno: Bolsonaro aparecia com 20%, Lula tinha 19% e Moro contava 18%. A trajetória recente do trio teve a marca da Lava Jato, mas a história deve ser diferente na próxima disputa.

Depois de se eleger sob o disfarce da luta contra a corrupção, Bolsonaro rasgou o figurino da campanha. Ancorado na máquina do governo e numa base radical desvinculada do lava-jatismo, ele aparece agora com 28% das intenções de voto.

Já Sergio Moro foi abandonado por uma fatia da direita e continua bloqueado na esquerda. Hoje, ele tem 12% no primeiro turno. Se quiser voltar a campo pela centro-direita, o ex-juiz encontrará um espaço congestionado, à espera de figuras como Luciano Huck e João Doria.

Do outro lado, Lula depende de seu antagonismo com a Lava Jato. A principal jogada do petista é explorar o declínio da operação para reduzir seu desgaste político –como candidato ou como cabo eleitoral.


Vinicius Torres Freire: Tirar de pobre ou rico para dar auxílio a paupérrimo cria crise política

Guedes quer convencer Congresso a tirar de pobre ou rico para dar paupérrimo

O “Orçamento de Guerra” de 2020 levou um mês e cinco dias para tramitar no Congresso. A proposta de emenda constitucional (PEC) foi apresentada no dia 1º de abril e promulgada em 7 de maio. Em resumo grosso, era a PEC que regulamentava os excessos e exceções de aumentos de gastos na epidemia.

Paulo Guedes diz que o novo auxílio emergencial depende juridicamente de uma nova PEC de Guerra. Além disso, quer “contrapartidas fiscais” para compensar o novo gasto extraordinário.

Não interessa, aqui e agora, discutir se o ministro da Economia tem razão, mas de observar que não se trata apenas de dois problemas complicados para a solução de uma crise social urgente.

Condicionar a tramitação da emenda constitucional de gastos emergenciais a um corte de despesas dramático seria mesmo uma guerra, conflito que poderia se arrastar por um tempo politicamente crítico, com batalhas em várias frentes.

“Contrapartida” é o eufemismo para algum corte de despesas, neste ano ou nos próximos, uma desconversa vaporosa que tem aparecido em jornais e TVs.

É bem sabido de onde podem vir os talhos relevantes de despesa. É tedioso voltar à mesma conversa, mas essa discussão pode render uma crise política considerável. No ano passado, quando se discutia o Renda Brasil, o próprio Jair Bolsonaro vetou os cortes.

O primeiro candidato ao talho é o salário dos servidores, que poderia ser congelado ou reduzido por mais de um par de anos, como previsto na PEC Emergencial de 2019. Seria inédito que uma decisão como essas descesse redondo pela goela do centrão.

Uma outra sugestão de corte que irritou Bolsonaro foi a de dar cabo do abono salarial, assim como a proposta de mexer em Benefícios de Prestação Continuada (auxílio de um salário mínimo para idosos e pessoas com deficientes muito pobres). Menos ainda passou a ideia de congelar o valor de outros benefícios do INSS ou do gasto mínimo com saúde e educação.

Pode sair algum dinheiro, “contrapartida parcial”, dos empréstimos subsidiados de bancos estatais (mexe com os produtores rurais, pequenos e grandes). Mas é possível arrumar um dinheirão reduzindo isenções e reduções de impostos. O que isso significa? Aumento de carga tributária.

Seria até uma boa ideia, mas também um tumulto político.

Trata-se, por exemplo, de cobrar mais imposto das empresas no Simples, de reduzir isenções e deduções do Imposto de Renda da Pessoa Física (rendimentos isentos e não tributáveis e deduções de gastos com saúde e educação privadas), inclusive rendimentos de aposentados maiores de 65 anos e rescisões trabalhistas. Há também isenções para produtores rurais, filantrópicas, Zona Franca de Manaus, remédios e equipamentos médicos. Etc.

Nesta discussão não se leva em conta se o gasto com o novo auxílio emergencial será “fura teto” ou dentro do teto, se a “contrapartida fiscal” será devida neste ou nos anos seguintes. Vai aqui apenas uma lista de despesas ou renúncias de receitas que podem ser recuperadas com o objetivo de conter o aumento da dívida pública.

“Contrapartida”, portanto, significa conflito na certa. Se a aprovação de uma PEC de Guerra depender da solução dessa disputa, o caldo pode engrossar. Pode não sair auxílio, com o que haverá crise com o novo comando do Congresso.

Deputados e senadores podem também atropelar o governo e aprovar a nova despesa “na marra” –assim haverá algum sururu na praça financeira, no mínimo.


Ricardo Noblat: Os fatos teimam em contrariar Bolsonaro e Pazuello

Pandemia avança apesar da brigada da cloroquina

Na Sessão Mentiras das quintas-feiras no Facebook, o presidente Jair Bolsonaro voltou a bater de frente com a verdade ao negar que o governo tivesse encomendado à Fundação Oswaldo Cruz a produção de comprimidos de cloroquina para uso contra a Covid-19. Segundo ele, a cloroquina seria empregada no tratamento de outras doenças como malária e lúpus.

Acontece que a Folha de S. Paulo e a TV Globo tiveram acesso a documentos do Ministério da Saúde, de 29 de junho e de 6 de outubro do ano passado, que mostram a encomenda de 4 milhões de comprimidos de cloroquina, e também de fosfato de oseltamivir (o Tamiflu) a serem distribuídos entre infectados pelo vírus. Não há comprovação científica de que tais remédios sejam eficazes.

“Está uma polêmica muito grande sobre hidroxicloroquina, fabricou a mais, gastou, era dinheiro do Covid, não era”, disse Bolsonaro. “Pessoal, tem a Covid, outras doenças continuam. Não é só ela. A malária continua. O lúpus continua. Nós temos aqui, em média, 200 mil casos de malária no Brasil. Muita gente na Amazônia toma”. Manobra diversionista desmentida pelos fatos.

Outro documento do Ministério da Saúde, este enviado ao Ministério Público Federal no dia 4 de fevereiro, aponta a distribuição de cloroquina produzida pela Fundação Oswaldo Cruz a pacientes com Covid-19, e não dentro do programa nacional de controle da malária, como originalmente previsto. Para sustentar uma mentira, o governo é obrigado a dizer outra, e outra, e outra…

No Facebook, Bolsonaro fica à vontade porque fala sozinho, e o que quer. Os que aparecem ao seu lado estão ali para lhe dar razão e reforçar sua palavra. Entrevistas coletivas ele só concede a grupos de jornalistas e a emissoras de rádio e de televisão que compartilham suas ideias ou que estão sempre dispostos a ajudá-los. Esse, por sinal, é o sonho de consumo de todo governante.

Infelizmente para o ministro Eduardo Pazuello, da Saúde, nem sempre ele dispõe de ambientes tão pacíficos. Como há número suficiente de assinaturas para a instalação de uma CPI no Senado sobre a pandemia, Bolsonaro mandou que ele fosse até lá se explicar. O general foi e pouco ou nada convenceu. Se não houver CPI, Bolsonaro deverá mais um favor ao Centrão.

A certa altura da sua exposição sobre os acertos do governo no combate à pandemia, Pazuello foi aparteado pelo senador Eduardo Braga (MDB-AM) que reagiu sem disfarçar sua indignação:

– Senhor ministro, não está tudo bem, não está tudo certo e não foi feito tudo que poderia ser feito. Lá no início de dezembro, eu já dizia a vossa excelência que nós iríamos enfrentar uma onda no Amazonas muito grave. Lhe sugeri, inclusive, que assumisse uma unidade hospitalar no Amazonas diante da comprovação da ineficiência do governo do meu Estado quando da primeira onda.

Covardia de Bolsonaro expor seu ministro dessa maneira. Pazuello é especialista em logística militar. Teve a humildade de confessar que só soube o que é o Sistema Único de Saúde (SUS) depois de ter sentado na cadeira de ministro. E, uma vez ali, por melhores que sejam suas intenções, ele se ressente da falta de conhecimentos médicos e administrativos, e sua autonomia é quase nenhuma.

Fala o que os outros o orientam a falar – e, muitos dos que o orientam, são militares como ele, recém-chegados ao Ministério da Saúde. Profissionais da área técnica do ministério, os mais antigos e experientes, estão no freezer. Não são ouvidos pelo ministro e sua turma. E se tentam ser, acabam afastados ou simplesmente calados. Enquanto isso, a pandemia segue em frente.

Dos 5.570 municípios brasileiros, só 135 têm uma população maior do que o número de vidas perdidas para a Covid até agora, segundo a edição de ontem do Jornal Nacional. De quarta-feira dia 10 para a quinta-feira dia 11, foram registradas 1.452 mortes por Covid, o maior número desde 29 de julho. O Brasil tem 236.397 vítimas da Covid e quase 10 milhões de casos confirmados.


César Felício: As buscas por uma nova narrativa

Uma história que pare em pé é o que o mercado quer ouvir

As eleições de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco desviaram os olhos dos protagonistas do mercado para o lado direito da Praça dos Três Poderes: é sobre o presidente Jair Bolsonaro que recaem todas as atenções e é dele que se espera palavras e atitudes que mantenham o país dentro da canaleta cavada pela praça financeira.

Ou o ímpeto de agradar o mercado partirá de Bolsonaro, ou não haverá nada. É dura a vida: fica agora uma missão difícil para o Bolsonaro e o mercado. O primeiro terá a tarefa de ser um guardião da racionalidade econômica e o segundo precisará acreditar nisso.

Para gente que opera forte na Faria Lima, Lira e Pacheco só representam ganho em relação a Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre por serem menos conflitivos em relação ao presidente. Deixam, portanto, a pista livre para que Bolsonaro demonstre se tem algum compromisso com a agenda liberal e de reformas ou não. No tempo de Maia era admissível pensar em uma pauta reformista com o presidente jogando contra ou até atrapalhando, e a votação da emenda da Previdência mostrou isso. Com Lira essa hipótese é inconcebível.

O presidente ganhou pontos com a banca no fim do ano passado, quando deixou o auxílio morrer. Outros eram os tempos, porém. A popularidade de Bolsonaro estava em alta, a segunda onda da covid-19 ainda não tinha começado e a eleição das Mesas não estava definida.

É com o dedo no gatilho, portanto, que operadores assistem a discussão sobre a recriação do auxílio emergencial. A depender da condução do tema, pode ser desencadeada uma queda de confiança, com retirada de capitais, depreciação da moeda, baixa na Bolsa etc.

Aceita-se como um fato consumado a necessidade de se estabelecer uma ajuda temporária de R$ 200. É quase certo, contudo, que este valor vai subir quando chegar ao Parlamento. Ontem o presidente confirmou que a nova injeção de óleo canforado começa em março, dura “três ou quatro meses”, mas nada falou sobre o montante.

Aguarda-se com ansiedade que Bolsonaro compre a tese de negociar com o Congresso o estabelecimento de contrapartidas, que necessariamente serão impopulares. A PEC do Orçamento de guerra, com dispositivos de corte de gastos, pode entrar na estratégia em que o governo entrega à vista a despesa social, pagando o auxílio já, em troca de controle de gastos à prazo, com a aprovação de medidas legislativas.

Não é propriamente um ajuste, é uma sinalização, mas bastaria isso para segurar em um primeiro momento o descontrole das expectativas frustradas. Como disse um gestor de fundos, seria “uma historinha que para em pé”. O problema é não ter nem isso, e não se sente no Congresso Nacional garantia de que isso haverá. Aí agentes do mercado financeiro podem chegar à desagradável conclusão que Rodrigo Maia podia se estapear com os bolsonaristas, mas entregava mais para a banca. Lira é mais silencioso, porém pode ser menos efetivo.

Sergio Moro

O triste fim da Lava-Jato prenuncia a provável suspeição de Sergio Moro no STF e o restabelecimento da elegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Petista de longa data e ator privilegiado de toda voragem política que convulsionou o Brasil por uns anos, o ex-ministro da Justiça José Eduardo Martins Cardozo assiste de camarote.

“A estrutura de combate à corrupção não nasceu com a Lava-Jato e nem terminou com ela. Assim como seria ingenuidade achar que o abuso ao estado de direito começou e terminou ali”, comentou.

Cardozo foi ministro da Justiça entre 2011 e 2016. À frente da pasta, viu a Lava-Jato nascer e não interferiu em seu funcionamento. Dá a entender que não havia condições políticas para tal. “Se tivéssemos interferido na Polícia Federal como Bolsonaro fez no ano passado, teríamos apressado o processo de impeachment. Ficaria configurado o crime de responsabilidade”, afirmou. Naquele tempo, na visão de Cardozo, “ as abusividades tinham grande apelo popular”.

O avanço de Bolsonaro sobre a Polícia Federal foi possível, segundo o petista, porque se deu em uma circunstância de perda de expressão do Moro.

“A ida de Moro para o Ministério da Justiça foi o ponto inicial para se enxergar a politização da operação. Até então a presença dele na magistratura bloqueava essa percepção. O escândalo do vazamento das mensagens com os procuradores fez o desgaste avançar”. Ou seja, Moro já estava em plano inclinado quando entrou em colisão com o presidente. O artífice do vendaval que sacudiu o país teria plantado, assim, a semente da própria destruição.

Como a estrutura de combate à corrupção no Brasil não foi desarmada, na visão de Cardozo, Bolsonaro corre riscos em sua aliança com o Centrão. Não agora, mas em um futuro ainda remoto. “A história pode mostrar que há certas vitórias que são derrotas. Michel Temer se blindou no Congresso, mas não se livrou de problemas ao sair do cargo. Dilma Rousseff poderia ter problemas semelhantes se fizesse o mesmo. Há preços que não se podem pagar”, comentou.

Ele se refere, claramente, à barganha que o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, buscou estabelecer em dezembro de 2015. Se Dilma e o PT o apoiassem no Conselho de Ética, onde enfrentava um processo de cassação do mandato decorrente das revelações da Lava-Jato, Cunha engavetaria o pedido de impeachment. “O governo teria sido preservado, mas a que custo? A um custo que cobraria sua fatura mais adiante”.

Cardozo hoje se dedica apenas à advocacia, mas opina sobre 2022. Afirma que nunca esteve tão afastado da vida partidária como agora, desde que se tornou secretário municipal de governo, na gestão Erundina, aos 27 anos. “O que o PT quer é a candidatura do Lula, isso é o ideal. Porque representa um resgate histórico. Não há como fugir dele”.


Luiz Carlos Azedo: Falta de vacina agrava a crise

No Senado, Pazuello prometeu que 50% da população estará vacinada até junho e mais 50% até dezembro, mas não disse como. O depoimento do general foi sofrível

A campanha nacional de vacinação deveria se chamar operação vaga-lume, porque não tem vacinas suficientes para imunizar a população de forma contínua, no ritmo necessário para conter a segunda onda da pandemia. Há três semanas, ultrapassamos mais de mil mortes por dia; nos últimos sete dias, em média, foram 1.050 mortos. Entre eles, o senador José Maranhão (MDB-PB), de 87 anos, que estava internado no Hospital Vila Nova Star, em São Paulo, e lutou 71 dias contra a doença. O Brasil já ultrapassa a marca dos 9,6 milhões de casos e 235 mil mortes por covid-19.

Ontem, registramos 1.452 mortes em 24 horas, nível equivalente ao auge da crise no ano passado, em julho. Foi nesse contexto que o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, prestou depoimento ao Senado, tentando se explicar sobre suas trapalhadas à frente da pasta, principalmente no caso do colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) em Manaus, por falta de oxigênio, e do atraso na aquisição de vacinas, que, agora, estão fazendo falta na campanha de vacinação. O SUS tem condições de vacinar até 10 milhões de pessoas por dia, por meio de uma grande rede de postos de vacinação e equipes veteranas em campanhas de imunização.

Apenas 4,3 milhões de brasileiros foram vacinados até agora, a maioria, o pessoal da linha de frente do combate ao novo coronavírus e os mais idosos, sendo que 80 mil já receberam a segunda dose. Isso representa apenas 2,4% da população, muito pouco diante da necessidade de vacinar até 70% dos brasileiros para conseguir eliminar a propagação do vírus, o que corresponderia a 146 milhões de pessoas. Por falta de insumos, a produção de vacinas pelo Butantan e pela Fiocruz está numa escala muito baixa e até intermitente, o que acaba desorganizando a vacinação que já estava programada em diversos municípios, por falta de imunizantes. A importação de vacinas prontas e a liberação do imunizante russo Sputnik V, produzido aqui no Brasil por um laboratório privado, continuam a mesma novela.

No Senado, Pazuello prometeu que 50% da população estará vacinada até junho e mais 50% até dezembro, mas não disse como. O depoimento do general foi sofrível, com informações erradas, afirmações não comprovadas e promessas sem amparo objetivo. O esforço dos aliados do governo no Senado para evitar a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Saúde pode fracassar por causa do desempenho de Pazuello. Por mais boa vontade que tenha o novo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), será muito difícil não instalar a comissão, a não ser que o governo consiga convencer pelo menos quatro dos 31 senadores que assinaram o requerimento a desistirem da CPI.

A CPI da Saúde é uma saia justa para o senador Rodrigo Pacheco. O líder da bancada do MDB, Eduardo Braga (AM), que foi governador do Amazonas, fez duros questionamentos a Pazuello. Disse que alertou o ministro da Saúde pessoalmente, em dezembro, sobre o risco de colapso em Manaus. A morte de senador José Maranhão, que tinha amplo trânsito entre os colegas, aumentou ainda mais o trauma. Pacheco tenta evitar a CPI, mas é cobrado pela oposição, que também o apoiou na eleição, como é o caso do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), autor do requerimento de CPI.

Auxílio
Diante da crise sanitária, o presidente Jair Bolsonaro anunciou, ontem, que pretende prorrogar o auxílio emergencial por mais três ou quatro meses, para mitigar o impacto da pandemia. A falta de vacinas fará com que a crise sanitária se arraste o ano todo, com forte impacto nas atividades econômicas, em decorrência do desemprego e da recessão. Por essa razão, Bolsonaro deseja conceder o abono. Ao contrário do que aconteceu no ano passado, quando sua aprovação popular aumentou, por causa do abono, em janeiro, com o fim do auxílio emergencial, a popularidade dele decaiu.

Ontem, o presidente da República anunciou que pretende prorrogá-lo, provavelmente, com parcelas de R$ 200, mas precisa encontrar uma fonte de receita para não estourar o teto de gastos. Por ora, não há recursos no Orçamento. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já cobrou uma definição do governo. O Centrão e a oposição querem aprovar o abono, mas não a criação de um imposto. Preferem, se for o caso, furar o teto de gastos, porém, a equipe econômica não aceita. O governo também não enxuga seus gastos na Esplanada dos Ministérios.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-falta-de-vacina-agrava-a-crise/

Alon Feuerwerker: Governos têm de funcionar

É preciso mostrar serviço. Quem fala de esperança é a oposição

Passada a eleição municipal e empossados os escolhidos, começa a corrida pela vaga de Jair Bolsonaro. Competição da qual participa o próprio, muito disposto a suceder a ele mesmo. As municipais são nossas “mid­term”. Nos Estados Unidos, elas elegem todos os deputados, uma parte dos senadores e dos governadores. Aqui, todos os prefeitos e vereadores. O ponto médio do período de quatro anos é a largada para a eleição seguinte.

O universo da política gira sempre em torno de eleições. Daí haver certa ingenuidade (ou malandragem) quando se diz ao governante, nos diversos níveis, “desça do palanque e governe”. Mais honesto seria admi­tir: quem desce do palanque está arriscado a enfraquecer-se. Pior. Dada a quase impossibilidade, aqui, de o eleito trazer com ele a maioria parlamentar, se descer do palanque, aumenta o risco de ser derrubado.

Quem desce do palanque não governa, ou enfrenta imensas dificuldades, inclusive porque a periodicidade e a assiduidade das eleições exigem o reabastecimento permanente e atento da expectativa de poder, o que pede ao político alimentar uma projeção de futuro. Isso é mais fácil para quem está na oposição. Pois a pergunta “se está dizendo que vai fazer, por que não fez ainda?” vive exposta na prateleira do supermercado mercadológico eleitoral.

É sempre possível, claro, dizer que não fez ainda porque não deu tempo, porque pegou a situação com muitos problemas e precisa de mais quatro anos para completar a obra. Para esse discurso colar, depende de algumas coisas, duas delas muito importantes: a vida dos eleitores estar algo confortável e haver operadores eficientes empenhados na construção da narrativa “as alternativas não são boas, com elas a coisa poderia estar muito pior”.

Mas, regra geral, quem carrega a tocha da esperança é a oposição, então o governo precisa estar sempre mostrando serviço e com uma defesa bem articulada. Para fazer do presente a ponte da esperança de um futuro mais bonito. No caso de agora, Bolsonaro precisa, em 2021, mostrar serviço nas suas duas frentes principais: a vacinação e o suporte econômico aos mais vulneráveis na pandemia. Sem isso, será alvo fácil em 2022.

Todos dizem que é provável termos vacinas em grande quantidade a partir ainda deste semestre, e que isso é certo para o próximo. Se acontecer, colaborará para “retomar a retomada” econômica (até o governo já prevê retração neste começo de ano). O que pode fazer o povo chegar à eleição com um certo alívio. Se a turma estiver vacinada e a economia crescendo, o candidato a continuar terá credibilidade para falar de um futuro melhor.

Também por isso a vitória de Arthur Lira (PP-AL) foi tão estratégica. Permite a Bolsonaro atravessar esses meses mais delicados sem estar ameaçado pela guilhotina do impeachment. Se desse Baleia Rossi (MDB-SP), apesar de todas as declarações apaziguadoras, já se estaria armando o cadafalso habitual no Brasil. Mas, vamos repetir, o governo precisa funcionar. Nada, ou quase nada (na política o “quase” é importante), pode substituir isso.

Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725


Murillo de Aragão: O papel histórico dos “centrões”

Moderados evitam a ruptura institucional e possibilitam reformas

Amaral Peixoto dizia que as grandes questões institucionais no Brasil tinham sempre o centro político como protagonista. Isso porque aglutinava os moderados da direita e da esquerda para evitar rupturas institucionais graves, para promover avanços. Ou, até mesmo, patrocinar tais rupturas, como no caso do movimento de 1964.

Nos anos 80, no fim do regime militar, o centro político se organizou tanto com os moderados de direita do PDS quanto com os moderados de esquerda do PMDB para conduzir a transição política. Na Assembleia Nacional Constituinte, novamente o centro político reapareceu, minimizando a esquerdização radical proposta pelos setores ditos progressistas.

Na época do Plano Real, os moderados de esquerda do PSDB-­PMDB e o PFL se organizaram para aprovar o plano que eliminou a hiperinflação no país e deu início a um período de intensas reformas. Vale lembrar que o PSDB fora formado, anos antes, pela esquerda do PMDB. Adiante, Lula ganhou a eleição em 2002 quando se movimentou para o centro. Trouxe o empresário José de Alencar para sua chapa e lançou a Carta aos Brasileiros, em que se comprometia a não fazer loucuras na economia.

O governo de Lula foi um sucesso quando marchou da esquerda para o centro, buscou apoio na centro-direita e superou graves crises. Quando elegeu Dilma Rousseff, Lula deixou a fórmula pronta: narrativas de esquerda e gestão centrista. Porém, encantada com a própria mediocridade, ela abandonou o centrismo, encalhou e sofreu o impeachment. Com Michel Temer, o centro se organizou com a direita e reiniciou um processo magnífico de reformas que até hoje ainda dá frutos.

Jair Bolsonaro, aproveitando a destruição da política pelo lavajatismo, chegou ao poder propondo uma nova política que nunca — sequer — conseguiu desenhar. Em março de 2020 passou a construir o seu “novo-­velho” presidencialismo de coalizão, conversando com partidos de centro e dando espaço a políticos em seu governo.

O centro político brasileiro é identificado pela mídia, de forma preconceituosa e errada, como “Centrão”. Como se existisse um Centrão que comandasse de forma harmoniosa os movimentos políticos. O Centrão, como imaginado, é uma ficção, já que se trata de grupos que se juntam e se separam de acordo com as circunstâncias. O rótulo de Centrão vem dos tempos da Constituinte, como forma de sugerir que os grupos que os integram eram “retrógrados” e — pecado supremo — “conservadores”. E, quase sempre, clientelistas, fisiológicos e corruptos. A Lava-Jato provaria que o fisiologismo, o clientelismo, o patrimonialismo e a corrupção não são exclusivos dos que integram o centro político do Brasil.

Com virtudes e defeitos, as forças de centros — quando unidas — formam vetores de reformas importantes. O ano que se inicia apresenta uma agenda espetacular de potenciais avanços, que vão exigir dos integrantes do centro político responsabilidade que está além dos interesses paroquiais, partidários e eleitorais, com vistas aos avanços institucionais de que necessitamos para sair da crise da pandemia.

Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725


Vinicius Torres Freire: Entenda por que a autonomia do BC não muda quase nada

Mandatos para direção do banco em si não impedem mudanças na política econômica

O que muda com o projeto de “autonomia” do Banco Central? Quase nada. Qual a novidade, afora a extinção de uns artigos caducos das confusas leis do sistema financeiro? O presidente e oito diretores do Banco Central terão mandatos fixos de quatro anos.

Por dois anos, um presidente da República eleito para um primeiro mandato terá um presidente do BC nomeado pelo seu antecessor. No terceiro ano de mandato, poderá nomear um presidente do BC “seu”.

No primeiro ano de mandato, poderá também nomear dois diretores; no segundo, mais dois, e assim por diante. No início do terceiro ano, terá nomeado a maioria da diretoria do BC (7 a 2). Se reeleito, terá “maioria” por seis anos.

Não muda mais nada. O BC será “independente”? Não. O BC não poderá definir a política monetária (como vai lidar com a flutuação de preços, quais instrumentos vai utilizar e em qual medida etc.).

Diz o projeto de lei: “Art. 2º: As metas de política monetária serão estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, competindo privativamente ao Banco Central conduzir a política monetária necessária para cumprimento das metas estabelecidas”.

O CMN (Conselho Monetário Nacional) ora é composto pelo ministro da Economia, pelo secretário da Fazenda (nomeado pelo ministro) e pelo presidente do BC.

Logo, o governo pode decidir a política monetária ou outras correlatas, por meio do CMN ou de projetos de leis. Basta ter força política e capacidade de lidar com as consequências práticas na economia e na finança. O BC terá independência para definir suas metas (metas de inflação, no regime atual)? Não. Depende do CMN.

Uma diretoria do BC poderá lidar de modo mais ou menos conservador com as metas da política monetária? Sim, como agora. Exemplo. A meta de inflação para este 2021 é de 3,75%, com margem de tolerância: mínima de 2,25%, máxima de 5,25%, distância grande.

Por cautela ou ideia própria sobre o nível de inflação adequado, pode ser que uma diretoria mire o nível inferior (2,25%) embora não seja lá fácil acertar esse alvo, seja difícil fazer com que uma diretoria inteira concorde com esse conservadorismo e, enfim, o BC só consiga mesmo influenciar a inflação do ano seguinte (2022). Um presidente da República pode não gostar disso.

Vai fazer grande diferença para a economia, em prazo além do curto (um, dois anos?). Hum. O governo poderá demitir os dirigentes do BC “quando apresentarem comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos”, caso tenha autorização da maioria do Senado.

Ficou institucionalmente mais difícil demitir a direção do BC. Antes, já era difícil na prática. A ideia de que o governo queira trocar diretores para implementar uma política doida, inepta ou de outro modo inviável provocaria um salseiro nas taxas de juro e de câmbio (para começar).

Isto é, um governo não é independente dos seus credores e dos donos do dinheiro grosso em geral, ainda menos em um governo mui endividado de um país avacalhado. As questões relevantes ainda são:

a disputa intelectual e de poder pelas diretrizes de política econômica;

a conjuntura econômica, aqui e alhures. Se um governo quiser fazer uma reviravolta na política econômica, será preciso que tenha capacidade política e técnica enorme. Essa nova “autonomia” do BC será o menor dos seus problemas, se tanto.

A lei deveria, sim, incentivar mais responsabilidade dos dirigentes do BC e torná-los mais independentes de “o mercado”. Para ficar apenas em um exemplo, conviria que as reuniões do BC fossem gravadas, para divulgação em um par de anos mais tarde.

O registro obrigaria o diretor a pensar três vezes no que propõe, criando no mínimo um risco de reputação (ou coisa mais séria). Convém dar mais poderes ao BC, como se pretende fazer no caso da legislação cambial? Essa é uma questão grave. Não é o caso dessa “autonomia” votada agora.


Míriam Leitão: Projeto certo na hora incerta

A autonomia do Banco Central é um projeto esperado há muito tempo, mas ontem parecia que a Câmara dos Deputados havia entrado numa realidade paralela. O Brasil está sem orçamento, no meio de um recrudescimento da pandemia, milhões de brasileiros não sabem que dinheiro terão no fim do mês, mas para a equipe econômica e o novo comando da Câmara o fundamental é a autonomia do Banco Central. Mesmo para quem sempre defendeu esse formato institucional para a autoridade monetária, parecia delirante.

O debate não fez sentido também. Os governistas diziam que a autonomia vai garantir a queda dos juros. As taxas nunca estiveram tão baixas na história e devem começar a subir em mais duas reuniões porque a inflação teve uma alta maior do que o BC esperava.

O texto aprovado é ruim e o relator Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) não entendeu ainda qual é o papel do Banco Central. Mas para o Ministério da Economia o importante é dar a impressão de que o encalacrado projeto de reformas está andando. Não está. No Senado, o projeto recebeu um acréscimo que cria uma dissonância. “O BC buscará o pleno emprego”, diz o texto. E o relator acrescentou em seu relatório. “Esta é, sem dúvida, mais uma grande conquista para as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros, que se verão protegidos por um órgão governamental.” Suas únicas missões têm que ser garantir a estabilidade da moeda e o equilíbrio do sistema financeiro, que ele fiscaliza. Desta forma, indiretamente ajudará os trabalhadores. Não pode fazer uma política de fomento de emprego porque não é seu papel e conflita com sua missão. Essa verdade aparecerá agora neste semestre: os juros subirão no meio da elevação da taxa de desemprego.

O assunto entrou para o primeiro da pauta da gestão Arthur Lira porque era mais fácil do que discutir qualquer projeto que implique em corte de gastos. A PEC emergencial, por exemplo, propõe congelar salário mínimo, a correção das aposentadorias, e os salários dos servidores em caso de crise fiscal como a que vivemos. Se fosse aprovada agora, só poderia valer para os reajustes do ano que vem, ano eleitoral. A autonomia do BC pode ser comemorada pelo mercado que, com muita liquidez, demanda otimismo.

O PT lutava ontem contra o projeto com os clichês de sempre. O BC ficaria entregue aos banqueiros, capturado pelo mercado financeiro. O projeto seria um fanatismo liberal. Quando o ex-presidente Lula assumiu a Presidência ele nomeou um ex-presidente de banco estrangeiro para assumir o BC. Henrique Meirelles havia sido presidente do Banco de Boston, fora eleito deputado pelo PSDB e foi para a direção do Banco Central. Seu primeiro movimento foi subir a taxa de juros, que já estava em 25%, para 26,5%. Ele demoliu as desconfianças em relação a atuação do BC e em junho começou a derrubar as taxas. Durante os oito anos que ficou no cargo foi pressionado pela bancada do PT na Câmara. Lula o manteve no posto. Ele comandou a travessia da crise de 2008 e o país retomou o crescimento em 2010.

No governo Dilma, o BC derrubou os juros de 11,25% para 7,25%, quando a inflação já estava começando a subir. Deu rebote. A Selic teve que ser elevada para 14,25%. Ilan Goldfajn, no governo Temer, iniciou a redução, após a derrubada da inflação que havia chegado a dois dígitos. E a entregou em 6,5%. O atual presidente Roberto Campos Neto levou a taxa aos níveis atuais.

A conclusão dessa história é que o BC tem tido autonomia de fato, em alguns governos, e nesses momentos ajudou o país a atravessar crises e pavimentar o crescimento. Mas o fez quando cumpriu bem o seu papel de defender a moeda. O primeiro projeto de independência do Banco Central foi de autoria do então senador Itamar Franco, em 1989. Nos 27 meses em que governou o Brasil teve três presidentes do BC. Com dois ele brigou, Gustavo Loyola e Paulo Cesar Ximenes.

Donald Trump nomeou Jerome Powell, mas mesmo assim entrou em conflito com ele. Powell continuou seu trabalho porque o Fed é independente. Na Argentina, o BC era independente, mas em 2010 a presidente Cristina Kirchner conseguiu demitir Martín Redrado. Jair Bolsonaro tenta dominar todas as instituições e fez isso até com a Procuradoria-Geral da República. Esse projeto conterá seus ímpetos. Tem, portanto, valor, mas não era nem de longe a prioridade do momento.