centrão
Vera Magalhães: Entubados, mas armados
Se depender de Jair Bolsonaro, o número de mortes pela Covid-19 passará em breve dos 300 mil brasileiros, sem que haja uma palavra de compaixão, reconhecimento da tragédia ou das múltiplas ações e omissões propositais que nos levaram a isso. O presidente não está nem aí, já se cansou de dizer.
Para este homem, este presidente incidental e lamentável, pouco importa que as UTIs colapsem com gente entubada em uma, duas, três ondas sucessivas e contínuas da pandemia, desde que ele passe com sua boiada de desmonte das políticas civilizatórias. Para isso, quanto menos gente estiver olhando, melhor.
Se for na calada da noite de um não carnaval ermo, sombrio, melancólico, em que as pessoas lamentam a alegria suprimida com as vidas das pessoas amadas, perfeito.
Para o presidente da República do Brasil, o “povo tá vibrando”. Bolsonaro conhece tanto de povo quanto de cloroquina: absolutamente nada. Sua noção de povo se limita a olhar gráficos de popularidade em pesquisas e, quando eles caem, se preocupar com o próprio pescoço.
É quando isso acontece, que ele se lembra de chamar algum auxiliar e ordenar uma medida que arrefeça a indisposição com seu governo, coalhado de ministros tão ineptos quanto o chefe, que só por isso estão onde estão.
Quem seria Gilson Machado em qualquer outra época que não fosse o governo Bolsonaro? Nem para tocar sanfona como calouro num daqueles programas dos anos 1980 serviria. Seria gongado por Aracy de Almeida. Sem o escrutínio daquele baluarte do bom gosto musical, somos obrigados a ouvi-lo não apenas tocar desajeitadamente o instrumento, como fazer perorações absurdas acerca de um suposto “castigo divino” que teria se abatido sobre nós pelos pecados do carnaval e teria resultado nas mortes por Covid-19.
Tal pessoa, saída de algum desvão da História onde deveria ter permanecido, é ministro do Turismo! Motivo de um indisfarçado orgulho de um presidente que se jacta de ser cercado de fracassados e ressentidos — com cada vez mais raras exceções que, se não se tocarem de onde estão enfiadas, vão virar a regra.
Depois de boicotar de todas as formas que conseguiu a vacinação dos brasileiros e comprar, fabricar e enfiar goela abaixo de doentes incautos um medicamento sabidamente ineficaz, Bolsonaro parece encantado com a possibilidade de a Covid-19 sumir com um spray nasal.
A droga, em fase inicial de testes, é desenvolvida por Israel, o que faz com que o presidente a considere “ideologicamente correta”. Surtiu efeito em, vejam só, 29 pessoas! Uau!
Mas onde estão as vacinas, presidente? Por que seu ministro-general da Saúde, que o senhor disse ser especialista em logística quando demitiu dois médicos, não consegue estruturar um plano de chegada de doses mínimas de imunizantes a estados e municípios que terão de paralisar a vacinação?
Por que, no lugar de editar de uma vez, na calada da noite, quatro decretos inconstitucionais e imorais, que liberam geral não apenas a posse de armas, mas de miras telescópicas e a fabricação de munição, e permitem transformar os amigos caçadores, atiradores e colecionadores em Rambos armados até os dentes, o senhor não estava cobrando de Pazuello que implemente um plano de vacinação capaz de tirar o Brasil da UTI, onde permanece entubado graças à incompetência do senhor e do seu estafe?
É inadmissível que assistamos anestesiados à completa inversão de prioridades numa crise sanitária. A vacina mingua no momento em que estamos no pico de casos e mortes, com a nova cepa do vírus se espalhando pelo país. O auxílio emergencial ainda está sendo estruturado, mas os decretos de armas estão aí, a desafiar o bom senso, o Supremo Tribunal Federal e um Congresso que é cúmplice da incitação à barbárie e à morte.
El País: Supremo manda prender deputado Daniel Silveira, e Lira tem primeiro teste institucional na Câmara
Deputado divulgou vídeo com ataques à Corte e foi detido em flagrante no inquérito das ‘fake news’, após ordem do ministro do STF Alexandre de Moraes. Câmara decide se o manterá preso e presidente da Casa diz que irá se guiar pela Constituição
A batalha entre os Poderes em Brasília ganhou um novo front nesta quarta-feira. Quase no início da madrugada, o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) recebeu uma visita da Polícia Federal em sua casa, por instrução do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. “Polícia Federal na minha casa neste momento cumprindo ordem de prisão, ilegal, do ministro Alexandre de Moraes”, publicou em suas redes sociais o deputado, dando início a uma série de vídeos em que divulgaria os passos de sua detenção. Horas antes, o parlamentar havia publicado outro vídeo com duras críticas e ataques aos ministros do Supremo que foram consideradas por Moraes como parte das “condutas criminosas” de Silveira. O vídeo, de acordo com o ministro, configurou ”flagrante delito”, o que justificou a ordem de prisão inafiançável do deputado no âmbito do polêmico inquérito das fake news, aberto pelo próprio STF, sem pedido da Procuradoria Geral da República, para investigar ameaças à Corte Suprema. Silvera é um dos investigados. Caberá à Câmara, contudo, a última palavra sobre a prisão. Os deputados podem decidir soltar o colega após uma votação com maioria absoluta ―257 dos 513 votos da Casa.
O recém-empossado presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), anunciou convocação de reunião extraordinária da Mesa para as 13h desta quarta-feira. Na sequência, ocorre encontro do Colégio de Líderes. “Vamos, em conjunto, avaliar e discutir a prisão do deputado Daniel Silveira.” Na madrugada, ele já havia comentado via redes sociais que “a Câmara não deve refletir a vontade ou a posição de um indivíduo, mas do coletivo de seus colegiados, de suas instâncias e de sua vontade soberana, o Plenário”. “Nesta hora de grande apreensão, quero tranquilizar a todos e reiterar que irei conduzir o atual episódio com serenidade e consciência de minhas responsabilidades para com a Instituição e a Democracia”, escreveu Lira, que chegou ao comando da Casa legislativa com o apoio do presidente Jair Bolsonaro. “Para isso, irei me guiar pela única bússola legítima no regime democrático, a Constituição. E pelo único meio civilizado de exercício da Democracia, o diálogo e o respeito à opinião majoritária da Instituição que represento”, finalizou.
No vídeo que desencadeou a reação de Alexandre de Moraes, Silveira, que ficou mais conhecido no país após quebrar uma placa em homenagem à vereadora assassinada Marielle Franco, diz que por várias vezes já imaginou o ministro Luiz Edson Fachin “levando uma surra”. “Quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa Corte aí. Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra. O que você vai falar? Que eu tô fomentando a violência? Não, só imaginei. Ainda que eu premeditasse, ainda assim não seria crime, você sabe que não seria crime”, diz o deputado em um trecho da gravação, que Moraes mandou o Facebook tirar do ar. “Você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível. Então qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada nessa sua cara com um gato morto até ele miar, de preferência após a refeição, não é crime”, completa Silveira, ainda em referência a Fachin.
O fio desse novelo de fim desconhecido começou a ser puxado em 2018, quando o então comandante do Exército Eduardo Villas-Bôas comentou nas redes sociais o julgamento de um pedido de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Villas-Bôas escreveu em seu perfil no Twitter que o Exército brasileiro compartilhava do “anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”, numa mensagem que foi interpretada como manifestação indevida de um chefe militar, ainda que não mencionasse diretamente o caso de Lula, que seria julgado pelo STF naquele mesmo dia. Villas-Bôas comenta esse episódio em livro recém-lançado, no qual detalha que aquela manifestação foi discutida previamente com o Alto Comando do Exército.
O ministro Fachin divulgou nota nesta terça-feira para dizer, à luz do que o general detalhou em seu livro, que a manifestação de Villas-Bôas foi uma “intolerável e inaceitável” pressão das Forças Armadas no Judiciário. Foi contra esse comentário de Fachin que o deputado Daniel Silveira se insurgiu. “Vá lá, prende Villas-Bôas”, provocou o deputado no vídeo, sempre se dirigindo a Fachin. “Seja homem uma vez na tua vida, vai lá e prende Villas-Bôas. Seja homem uma vez na tua vida, vai lá e prende Villas-Bôas. Fala pro Alexandre de Moraes, o homenzão, o fodão, vai lá e manda ele prender o Villas-Bôas. Vai lá e prende um general do Exército. Eu quero ver, Fachin. Você, Alexandre de Moraes, Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes, o que solta os bandidos o tempo todo. Toda hora dá um habeas corpus, vende um habeas corpus, vende sentenças”, acusa o deputado na gravação, incluindo outros ministros do STF em seus ataques.
“Fachin, um conselho pra você. Vai lá e prende o Villas-Bôas rapidão, só pra gente ver um negocinho”, provoca Silveira em outra passagem do vídeo, quando também inclui provocações ao ministro Luís Roberto Barroso.. “Se tu não tem coragem, porque tu não tem culhão pra isso, principalmente o Barroso que não tem mesmo. Na verdade ele gosta do culhão roxo. Gilmar Mendes... Barroso, o que é que ele gosta: culhão roxo. Mas não tem culhão roxo. Fachin, covarde. Gilmar Mendes... [esfrega os dedos no sinal de dinheiro] é isso que tu gosta né Gilmarzão? A gente sabe.” Em outro trecho, o ataque fica mais generalizado: “Eu sei que vocês vão querer armar uma pra mim pra poder falar ‘o que é que esse cara falou no vídeo sobre mim, desrespeitou a Supremo Corte’. Suprema Corte é o cacete. Na minha opinião, vocês já deveriam ter sido destituídos do posto de vocês e uma nova nomeação convocada e feita de onze novos ministros. Vocês nunca mereceram estar aí. E vários que já passaram também não mereceram. Vocês são intragáveis”.
A prisão de Silveira pôde ser acompanhada por seus seguidores por meio do Facebook. No último vídeo que divulgou, o deputado aparece no Instituto Médico Legal (IML) batendo boca com uma agente sobre a obrigação de usar máscara para evitar a disseminação do novo coronavírus. Após resistir, Silveira acaba colocando uma máscara. Seus perfis nas redes sociais seguem sendo abastecidos após a detenção. “Aos esquerdistas que estão comemorando, relaxem, tenho imunidade material. Só vou dormir fora de casa e provar para o Brasil quem são os ministros dessa suprema Corte. Ser preso sob estas circunstâncias, é motivo de orgulho”, diz uma das mensagens.
O PSL, partido do parlamentar, afirmou em nota que o parlamentar deve ser afastado do partido, e informou que “repudia com veemência os ataques proferidos pelo deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) a ministros do Supremo Tribunal Federal”. A direção nacional da legenda pela qual o presidente Jair Bolsonaro foi eleito ―mas do qual ele saiu em novembro de 2019 para fundar um partido próprio, ainda não consolidado― também defendeu o STF, que classificou como “guardião da Constituição Federal e, como tal, um dos pilares do Estado Democrático de Direito”. A nota de repúdio do PSL é uma explícita tentativa de afastar o partido do viés golpista das mensagens divulgadas pelo parlamentar. “A Executiva Nacional do partido está tomando todas as medidas jurídicas cabíveis para a afastamento em definitivo do deputado dos quadros partidários.”
Resta saber como a Câmara, enquanto instituição, irá se manifestar. “Foi uma fala gravíssima contra a ordem democrática e contra a autonomia dos Poderes, e [o deputado] deve ser duramente reprimido. Mas para ser preso não basta que ele tenha cometido um crime”, comentou o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), 1º vice-presidente da Câmara, em entrevista ao programa Sua Excelência, o Fato, dos jornalistas Luis Costa Pinto e Eumano Silva. “Se a Câmara tivesse dado exemplo desde o primeiro caso [de ataques ao STF], não estaríamos passando por este momento. Se não tivesse sido leniente com outras declarações, não estaríamos nisto”, comentou.
Pedro Dória: Prisão de deputado bolsonarista põe Arthur Lira em xeque
Com a prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), já no fim da noite de terça-feira, o Supremo colocou o presidente da Câmara, Arthur Lira, em xeque. E, simultaneamente, enviou um forte aviso ao Exército Brasileiro e ao Palácio do Planalto. A situação toda é muito delicada.
Para Lira, o problema é simples: Silveira foi preso por ameaçar o Supremo. Por ele ser deputado, o plenário da Câmara precisa confirmar a prisão — ou negá-la. Se nega, o Legislativo manda ao Judiciário uma mensagem. Considera normal que parlamentares ameacem outro Poder. Aquilo que o presidente Jair Bolsonaro passou o primeiro semestre de 2020 fazendo — ameaçar o Supremo — passa a ser prerrogativa também dos deputados. Se, porém, permite a prisão, Lira entra em conflito com o próprio Planalto e a base ideológica do presidente.
O centrão, do qual Lira é líder, tem duas características. Uma é de que troca favores no Parlamento por espaço no Executivo e verbas para os deputados. Outra é que é ideologicamente amorfo e evita se definir. O gesto de Silveira — em seu vídeo o deputado essencialmente desafiou o Supremo a prendê-lo — obriga o centrão a se posicionar para defender um discurso bolsonarista radical. Ou, então, se afastar.
Ocorre que o Planalto ainda não liberou as verbas e mal distribuiu cargos no ministério. O acerto de contas para ser feito pela eleição de Lira ao comando da Câmara não ocorreu. É cedo para ter este desgaste na relação — mas o centrão vai ter de se posicionar. E não é simples. Muitos deputados precisam estar nas graças do STF. Como precisam estar nas graças do Planalto.
De sua parte, o STF agiu claramente dentro da lei para efetuar a prisão. O ataque foi a Edson Fachin, o relator da Lava-Jato, num momento em que a operação está sob fogo cerrado. E, indiretamente, mostra uma resposta da Corte à pressão que sofreu em 2018, só agora se sabe, não apenas do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas. Mas de todo o Alto Comando da Arma. Afinal, quando atacou o Tribunal no vídeo que motivou sua prisão, Silveira desafiava os ministros a prenderem Villas Bôas — ou se abaixar perante a pressão. Com seu gesto, ofereceu à Corte uma terceira saída. Prendê-lo e assim mostrar um gesto forte.
O Globo: Decreto das armas divide Centrão e será primeiro teste da nova base aliada de Bolsonaro
Parlamentares da oposição já se movimentam para derrubar medidas assinadas pelo presidente
Jussara Soares e Paulo Cappelli / O Globo
BRASÍLIA — Duas semanas após ajudar a eleger Arthur Lira (PP-AL) como novo presidente da Câmara negociando emendas e cargos com partidos políticos, o presidente Jair Bolsonaro enfrenta o primeiro teste de fogo de sua aliança com o Centrão para sua agenda pessoal. Os quatro decretos editados na última sexta-feira para flexibilizar regras para compra e uso de armas no país sem passar pelo Congresso são questionados tanto por parlamentares de oposição como por deputados de siglas que compõem a nova base do governo.
A reação aos decretos das armas, segundo parlamentares ouvidos pelo GLOBO, vai dar a dimensão ao presidente de que, apesar de ter saído vitorioso na eleição no Congresso, não terá apoio irrestrito, mesmo do Centrão, em suas pautas. E sinaliza ao governo que a cada nova pauta a negociação deverá ser retomada do zero, principalmente nos projetos que tratam de costumes.
Lideranças de siglas como PL e PSD, duas das maiores do Centrão, e do MDB, já se manifestaram de forma contrária aos decretos. O Cidadania apresentou ontem um decreto legislativo para derrubar as novas normas, sob alegação de que o ato do presidente usurpa poderes do Congresso de legislar. Em sua primeira manifestação, Lira afirmou discordar dessa avaliação. Veja ao final desta reportagem os principais pontos dos decretos.
O posicionamento mais emblemático até o momento é o do vice-presidente da Câmara, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), eleito na chapa de Lira com o apoio do Planalto. No Twitter, o parlamentar criticou o conteúdo dos decretos e afirmou que que Bolsonaro exacerbou sua competência.
“Mais grave que o conteúdo dos decretos (...) é o fato de ele exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo. O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando um PL (projeto de lei) à Câmara”, escreveu. Em entrevista ao G1, Ramos disse que há “o uso da questão dos CACs (colecionadores, atiradores e caçadores) para dissimular o desejo de armar a população”.
Vice-líder do Cidadania, o deputado Daniel Coelho (PE) ingressou, ontem, com uma proposta de decreto legislativo (PDC) para derrubar o decreto 10.630, que julga ser o mais “amplo” dos quatro. Se aprovada, a medida poderá suspender boa parte dos atos de Bolsonaro que tratam de cadastro, registro, porte e compra de armas e munição, além do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas e o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas. Para isso, Coelho precisará do apoio de três quintos dos votos.
O líder do PSDB na Câmara, deputado Rodrigo de Castro (MG), disse que o partido apoia a iniciativa do Cidadania e também estuda apresentar um PDC para derrubar os decretos do presidente Jair Bolsonaro.
— É um ato revestido de ilegalidade, um ato extemporâneo e é uma falta de noção muito grande por parte do governo, que não está olhando os pressupostos legais — disse o líder tucano na Câmara. — Somos radicalmente contra esse aumento (de armas), até porque ele é feio sem critérios.
O deputado Fábio Trad (PSD-MS) se posicionou contra os decretos e diz que no seu partido, embora tenha parlamentares armamentistas, não tem a ampla maioria apoiando a medida.
— O governo enfrentará resistência no Centrão. Eu, individualmente, sou contrário tanto por vício de iniciativa quanto pelo conteúdo, que me parece fora da prioridade do que o Brasil precisa. Não vejo coesão no Centrão hoje em relação a essas medidas — disse Trad.
Líder do MDB, Isnaldo Bulhões (AL) disse ser “totalmente inoportuno” o governo publicar decretos que ampliem o acesso a armas em meio à pandemia. A bancada do partido se reunirá na próxima terça-feira para tratar do assunto. A expectativa é que, salvo exceções, a maioria do MDB se manifeste contra os decretos publicados por Bolsonaro.
Outras lideranças aliadas de Bolsonaro no Congresso evitaram se posicionar diretamente e afirmam que ainda analisam os textos publicados na última sexta-feira. Aliado de Arthur Lira, o líder do DEM na Câmara, deputado Efraim Filho (PB), disse que o partido ainda fará uma reunião para consolidar uma posição majoritária sobre o tema. A bancada evangélica, grupo majoritamente contra ampliação da posse de armas, também ainda não se manifestou.
Bolsonaro já teve uma derrota semelhante no ano passado quando tentou, por decreto, flexibilizar as regras de posse e porte de armas. Um projeto de decreto legislativo (PDL) para derrubar a medida foi protocolado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e aprovado por 47 votos a 28. O texto seguiria para a Câmara, mas, antes disso, Bolsonaro recuou e revogou o decreto.
O presidente da Câmara, em entrevista ao G1, defendeu as medidas de Bolsonaro e disse que o Executivo não ultrapassou sua competência:
— Ele não invadiu competência, não extrapolou limites já que, na minha visão, modificou decretos já existentes. É prerrogativa do presidente. Pode ter superlativado na questão das duas armas para porte, mas isso pode ser corrigido — disse Lira.
Ontem, o ministro Luís Roberto Barroso liberou a continuidade do julgamento que analisará uma resolução do presidente Jair Bolsonaro que busca zerar a alíquota de importação de revólveres e pistolas. A medida entraria em vigor em janeiro, mas foi suspensa por liminar do ministro Edson Fachin após ação movida pelo PSB. O processo começou a ser discutido no plenário virtual da Corte no último dia 5, mas havia sido suspenso após Barroso pedir vista do processo. A expectativa é que, agora, o tema entre na pauta do plenário virtual desta sexta-feira ou da sexta da semana que vem.
Principais pontos dos decretos
Limite de armas
Agora o cidadão comum pode adquirir seis em vez de quatro armas, desde que preencha requisitos necessários. Esse limite sobe para oito no caso de policiais, agentes prisionais, membros do Ministério Público e de tribunais.
Porte de armas
Agora é permitido o porte simultâneo de duas armas, o que significa poder circular com elas.
Munição para CACs
Antes, caçadores, atiradores e colecionadores poderiam comprar, por ano, até mil munições para cada arma de uso restrito (submetidas a maior controle do Estado) e cinco mil para cada arma de uso permitido. Agora, poderão comprar também, por ano, insumos para recarga de até dois mil cartuchos nas armas de uso restrito e insumos para recarga de até cinco mil cartuchos nas de uso permitido.
Armas para CACs
Os caçadores, atiradores e colecionadores agora só precisarão da autorização do comando do Exército para comprar armas acima do limite estabelecido em decreto anterior: cinco unidades de cada modelo para colecionadores; 15 unidades para caçadores; 30 para atiradores. Essas quantidades valem tanto para as armas de uso restrito quanto para as de uso permitido.
Controle do Exército
Não serão produtos controlados pelo comando Exército itens como projéteis de munição para armas de porte ou portáteis, até o calibre máximo de 12,7mm — não vale para projéteis químicos, perfurantes, traçantes e incendiários; miras como as holográficas, reflexivas e telescópicas; armas de fogo obsoletas que tenha projeto anterior a 1900 e utilizem pólvora negra.
Juan Arias: A macabra e psiquiátrica paixão de Bolsonaro pela pólvora
Talvez o mais grave dessa loucura do presidente seja o silêncio até agora das instituições do Estado frente aos novos decretos para aumentar o número de armas particulares
Se algo caracteriza a idiossincrasia de Bolsonaro é sua paixão pelas armas, por tudo o que cheira à pólvora. Além do tiro ao alvo ser um dos seus esportes preferidos, sua ânsia por armar até os dentes os brasileiros revela seguramente um distúrbio psiquiátrico que não sei se tem nome científico. Dizer que “o povo está vibrando” de felicidade por poder possuir tantas armas revela mais, talvez, sua obsessão macabra pela violência.
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Nos comentários à reportagem de Carla Jiménez e Regiane Oliveira sobre os novos decretos do Presidente que amplia de 4 a 6 o número de armas que uma pessoa pode possuir legalmente e os caçadores, até 40, foram muito significativos. “Menos armas e mais emprego”, “menos armas e mais educação”, “menos armas e mais vacinas”. Outros chegaram a fazer hipóteses que nessa pressa de Bolsonaro em armar a população pode significar que o que deseja é criar sua própria milícia para que o defenda no caso de tentarem retirá-lo do poder ou perca as próximas eleições, criando um clima violento no país de guerra civil.
É uma hipótese bem possível, mas acho que essa paixão desmedida por tudo o que cheira à pólvora e a tudo relacionado às armas de fogo pode fazer parte de sua personalidade de morte e destruição, de negacionismo e de mania de perseguição. E até de medo. Ele confessou que dorme com uma arma ao lado de sua cama, como se em sua residência presidencial não existisse segurança suficiente para defendê-lo. Esse amor pelas armas e pela violência pode explicar sua frieza às mortes da pandemia. Não sabemos como são os sonhos de Bolsonaro além de que dorme muito pouco porque sofre de insônia, mas certamente são povoados de armas e mortes.
Essa sua paixão desmedida por disparar armas de fogo fez com que em sua viagem oficial a Israel pedisse para realizar uma exibição de tiro ao alvo. E essa paixão pelas armas é evidente vendo suas fotografias imitando com as mãos o gesto de disparar. Três fotos são particularmente eloquentes e aterradoras a esse respeito: a dele e seus três filhos políticos juntos imitando disparar um fuzil e com os quatro sorrindo de orelha a orelha. A do hospital após a operação depois do atentado durante a campanha eleitoral ainda envolto em mistério. A foto o apresenta ainda se recuperando imitando com suas mãos o disparo de um fuzil. E a mais aterrorizante talvez seja a que o mostra com uma menina de cinco anos em seus braços enquanto a ensina a fazer o gesto de disparar um revólver com suas mãozinhas inocentes.
Bolsonaro querer agora que os brasileiros possam se tornar o país mais armado do mundo com até 600 armas para cada cem habitantes é uma aberração em um Brasil já martirizado com mais de 40.000 homicídios por ano. Não porque seja um país mais violento do que os outros e sim porque sofre uma carência crônica de segurança do Estado incapaz de defendê-lo.
Em um país em que as pessoas podem, se desejarem, ter até seis armas em sua casa é se esquecer que isso só é possível para os que podem se permitir esse luxo. Enquanto os de sempre ficarão mais expostos à violência, que costumam ser os negros, os jovens e as mulheres pobres assim como os habitantes das periferias que já são alvo a cada dia de cenas de morte e terror dos policiais e dos traficantes de drogas.
E talvez o mais grave dessa loucura do Presidente por sua paixão pelas armas e a violência seja o silêncio até agora das instituições do Estado frente aos novos decretos para aumentar o número de armas particulares. O STF, o Congresso e o Senado ficarão de mãos cruzadas? Não vão parar esses instintos de morte e violência de um Presidente que pode contribuir para aumentar ainda mais o rio de sangue inocente que corre pelas ruas do país?
Há silêncios que podem acabar sendo mortais. E o silêncio, quando não a cumplicidade das instituições do Estado com os instintos de morte do Presidente, podem acabar em uma tragédia nacional.
Celso Rocha de Barros: O centro democrático existe?
Como no caso da crise do DEM, a crise do PSDB é mais uma vitória de Jair Bolsonaro
Na semana passada, o PSDB resolveu fazer uma dessas coisas que tucano faz e isolou João Doria. Isso, o cara que comprou a vacina, o único tucano com um trunfo eleitoral para 2022.
Como resultado desse isolamento, Doria pode ficar sem a legenda do PSDB para concorrer em 2022. Se isso acontecer, o único sucesso de políticas públicas do Brasil desde a eleição de Bolsonaro —a compra das vacinas pelo estado de São Paulo— pode não ter qualquer peso na eleição presidencial de 2022.
Um dos fatores que parecem ter precipitado a briga foi a tentativa de Doria expulsar Aécio Neves, aquele do Joesley. Doria queria expulsá-lo porque Aécio seria um dos incentivadores dos tucanos que traíram a candidatura de Baleia Rossi na eleição da Câmara. Perdeu a briga. Aécio ainda controla uma máquina fisiológica em Minas Gerais, e, neste caso específico, estava defendendo o direito de os deputados se venderem, algo que a turma leva bastante a sério.
Além disso, uma ala do PSDB lançou o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, para disputar com Doria a candidatura de 2022. Leite começou a disputa afirmando que o PSDB não deve fazer oposição “sistemática” a Bolsonaro.
Foi uma declaração desastrosa. Ninguém discute que os tucanos podem apoiar as propostas de Guedes, mas abster-se de fazer oposição dura a Bolsonaro é perdoar o autogolpe, é perdoar as mortes da pandemia, é defender uma impunidade muito pior do que a que foi negociada no acordão que encerrou a Lava Jato. Leite, um político jovem, não precisava dessa declaração no currículo.
Como no caso da crise do DEM, a crise do PSDB é mais uma vitória que Jair Bolsonaro conquistou por ter ganho o Congresso para Arthur Lira. Mas a cabeça de Doria é um prêmio muito maior do que a de Rodrigo Maia.
O governador de São Paulo é o principal desafiante de Bolsonaro já no ringue. Tinha o trunfo da vacina, que, vamos repetir, é o trunfo que todo mundo queria ter: a vacina salva vidas. Só a vacina vai trazer a normalidade de volta, só com normalidade teremos crescimento econômico de novo. E todos sabemos que Bolsonaro só começou a comprar vacinas para competir com Doria.
Enfim, morreu de vez o argumento dos tucanos que dizem que votaram no Bolsonaro porque do outro lado era o PT. Não foram capazes de tomar uma posição clara contra Bolsonaro nem quando do outro lado eram eles mesmos.
Primeiro o DEM, depois o PSDB, o que sobrou do tal centro democrático? Ele existe? Talvez não. Talvez ele sempre tenha sido a direita incomodada com o fato de que Bolsonaro não havia lhe entregue nacos suficientemente grandes do governo, do orçamento, do poder.
Acho cedo para cravar esse diagnóstico. A popularidade de Bolsonaro é baixa para o padrão histórico de presidentes nesta altura do primeiro mandato. Se toda a rejeição a Bolsonaro fosse de esquerda, o segundo turno de 2022 seria entre Ciro e Haddad. Como isso não parece provável, imagino que haja, sim, um setor do eleitorado que é mais ou menos de centro e é contra Bolsonaro.
Se esse eleitorado existir, Luciano Huck pode herdá-lo sozinho. Não seria surpresa, aliás, se descobríssemos que os partidários de Huck no PSDB estavam entre os que manobraram para neutralizar Doria. Se não manobraram, certamente lucraram com a manobra.
El País: Decretos para aumento de venda de armas elevam insegurança com Bolsonaro. Tema pode chegar ao STF
Presidente assinou medidas na sexta, 12, para facilitar comércio de armas e afrouxar fiscalização. Entidades e lideranças políticas reagem para o que já é considerado um risco democrático, especialmente depois da invasão do Capitólio, que não foi condenada pelo mandatário brasileiro
Carla Jiménez e Regiane Oliveira, El País
O presidente Jair Bolsonaro aproveitou a sexta-feira, véspera de um quase Carnaval no Brasil, para assinar quatro decretos que facilitam ainda mais a venda de armas e reduzem a fiscalização pelos órgãos competentes. É o trigésimo ato normativo publicado nos últimos dois anos por Bolsonaro, dentro de uma política que ajudou a aumentar as armas em circulação no Brasil. O anúncio, feito pelo twitter do mandatário, gerou reações imediatas entre entidades ligadas a direitos humanos e lideranças políticas. “O populismo armamentista de Bolsonaro, além de agravar o problema [de violência], é uma cortina de fumaça para suas aspirações golpistas”, escreveu Marcelo Freixo, deputado do PSOL no Rio. Freixo anunciou um projeto para anular os últimos decretos de Bolsonaro e protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal. “O presidente não pode legislar sobre armas via decreto”, reclamou o deputado.
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Um levantamento do jornal O Globo mostra que só a posse de armas nas mãos de civis deu um salto de 65% no país desde dezembro de 2018, pouco antes de Bolsonaro assumir o poder no dia 1 de janeiro. No final de janeiro eram mais de 1,1 milhão de armas nas mãos de cidadãos, número que deve subir facilmente caso os decretos do presidente não forem derrubados na Justiça, como esperam os especialistas em segurança pública. Dentre as normas previstas pelo Governo, estão o aumento de limite de compra de armas para cidadão, que passam de 4 para 6 armas. O número pode chegar a 8 para membros da magistratura, do Ministério Público e os integrantes de polícia e agentes e guardas prisionais.
Outras medidas preveem a redução de controle e rastreamento de armas e munições, um risco que coloca os armamentos mais próximos do crime organizado. Há facilidade para que atiradores e caçadores, por exemplo, comprem entre 30 e 60 armas, sem necessidade de autorização expressa do Exército. Projeteis e máquinas para recarga de munições e carregadores também deixam de ser controlados pelo Exército. Facilitação de acesso armas mais restritas, que interessam às milícias. “O aumento da venda de armas de maior potencial circulando inevitavelmente acaba inevitavelmente abastecendo o crime”, diz Carolina Ricardo, diretora do Instituto Sou da Paz. “Uma arma de um acervo de um atirador ou caçador pode ser roubada ou desviada e abastecer o mercado ilegal”, alerta ela, lembrando que a inexistência de rastreamento dificulta a investigação de crimes. No ano passado, uma portaria do Exército revogou regras sobre rastreamento de armas e munições, dispositivos de segurança e marcação de armas de fogo e munição no Brasil.
A política ostensiva de liberação de armas do Governo Bolsonaro tem gerado insegurança na sociedade, especialmente depois da invasão do Capitólio nos Estados Unidos, no dia 6 de janeiro. O presidente ultradireitista não condenou até hoje a invasão dos eleitores de Trump que não aceitaram o resultado da eleição. Bolsonaro também não perde uma oportunidade para reforçar o discurso de desconfiança sobre as urnas eletrônicas – sem evidências para tal — e de dizer que quer ver a população armada, antecipando uma crise que ele pode abrir no ano que vem, caso não seja reeleito nas presidenciais.
Em nota, o Instituto Igarapé, think tank que estuda a segurança pública, afirmou que o pacote de decretos “não só tem efeitos letais para o país que mais mata com armas de fogo no mundo, como reforça possíveis ameaças à democracia e à segurança da coletividade”. Segundo Michele dos Ramos, assessora especial Igarapé, “há muitas perguntas a serem respondidas pelas autoridades federais sobre as motivações políticas do descontrole de armas no país, uma vez que não há qualquer justificativa ou conhecimento técnico que embase as perigosas mudanças”.
Após divulgar a nota técnica, Ilona Szabó, cofundadora e presidente do Instituto Igarapé, foi bloqueada pelo presidente no Twitter. “Impressionante ver como a máquina do ódio é eficiente e está aparelhada para bloquear qualquer contestação à narrativa oficial. Isso só acontece em ditaduras. Já vivemos tempos de exceção”, disse.
O vice-presidente da Câmara dos Deputados Marcelo Ramos (PL-AM), aliado de Bolsonaro, criticou as novas medidas. “Mais grave que o conteúdo dos decretos relacionados a armas editados pelo presidente é o fato de ele exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo. O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando PL a Câmara”, escreveu no Twitter.
Bolsonaro ignorou as críticas e ironizou que “o povo está vibrando” com as novas medidas. Ele publicou um vídeo em que comenta os decretos com um pequeno grupo de pessoas no sul do país. O deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), ex-presidente da Câmara, reagiu “Bolsonaro considera a parte pelo todo. Acha que seu mundo extremo representa o país. O povo não está vibrando. O povo não quer armas. A população anseia pelas vacinas”.
A crise de saúde pública da pandemia do coronavírus parece ter criado um cenário propício para o desmonte da política pública de combate às armas, uma promessa eleitoral que Bolsonaro tem se empenhado em cumprir com sua política de decretos pró-armamentista, que já conseguiu desconfigurar o Estatuto do Desarmamento, conjunto de leis voltadas ao controle de armas e responsável por salvar mais de 160.000 vidas, segundo estudos.
O Governo chegou até mesmo a zerar a alíquota de importação de armas com argumento de que isso iria estimular o comércio. O caso foi parar no Supremo, após um pedido do PSB, e o ministro Edson Fachin suspendeu a decisão. Ele considerou que, embora o presidente da República tenha prerrogativa para conceder isenção tributária, a opção de fomento à aquisição de armas por meio de incentivos fiscais colide com o direito à vida e à segurança, que são garantidos constitucionalmente.
A política armamentista de Bolsonaro vai na contramão da política pública que será adotada nos Estados Unidos no Governo de Joe Biden. O presidente norte-americano pediu neste domingo (14) que o Congresso aja “imediatamente” para limitar a circulação de armas de fogo em um comunicado que marca os três anos do ataque a escola de ensino médio em Parkland, Flórida, onde 14 estudantes e três professores morreram. “Este Governo não vai esperar pelo próximo tiroteio em massa para ouvir os apelos à ação”, afirmou Biden no comunicado.
Ricardo Noblat: O general Villas Bôas e o labirinto em que se meteu
Nota para intimidar o Supremo Tribunal Federal era mais incendiária do que foi
Reverenciado pela oposição e a mídia como um líder moderado e defensor da democracia à sua época de comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas conta em livro de memórias que a nota que divulgou em abril de 2018 para coagir o Supremo Tribunal Federal a não beneficiar Lula era mais incendiária na versão original. Deixou de ser por pressão de seus colegas.Três ministros do governo Bolsonaro, todos, hoje, generais da reserva, foram consultados sobre a nota e, segundo Villas Bôas, o aconselharam a amenizá-la: Joaquim Silva e Luna, atual diretor-geral de Itaipu; Fernando Azevedo, então chefe do Estado Maior e agora ministro da Defesa, e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria do Governo. Ramos respondia pelo Comando Militar do Leste.
No dia 4 de abril daquele ano, a seis meses do primeiro turno da eleição presidencial, o Supremo julgaria uma ação que, se aceita, revogava a possibilidade de prisão de condenado em segundo instância. Lula já fora condenado em segunda instância no processo do tríplex do Guarujá. Se o Supremo recusasse a ação, ele poderia ser preso e ficar impedido de concorrer com Bolsonaro.
A versão suavizada da nota de Villas Bôas, postada no Twitter na véspera do dia do julgamento, foi uma clara advertência aos ministros do Supremo: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”
E concluía sem ter o cuidado de disfarçar a intenção golpista do seu autor: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. Imagine a versão abortada da nota original…
Uma vez que o Supremo, por 6 votos contra 5, manteve a prisão de condenado em segunda instância, Lula foi preso e levado para Curitiba em 7 de abril, ali permanecendo por 580 dias. Liderou as pesquisas de intenção de voto até meados de agosto. Apoiou então a candidatura de Fernando Haddad. Bolsonaro venceu Haddad no segundo turno. Villas Bôas e os generais celebraram a vitória.
Missão que se propuseram (evitar que a esquerda voltasse ao poder), missão cumprida com êxito! Villas Bôas reconhece que Lula como presidente foi generoso com as Forças Armadas dando-lhes dinheiro para a compra de equipamentos. Critica Dilma por ter instalado a Comissão Nacional da Verdade que investigou casos de tortura e de mortos pela ditadura militar de 64.
A ojeriza dos militares brasileiros à esquerda é uma questão ideológica que data do início do século passado. A revolução comunista russa foi em 1917. O Partido Comunista do Brasil é de 1922. Em 1935, uma intentona comunista tentou depor o governo de Getúlio Vargas, mas fracassou. Na 2ª Guerra Mundial, militares brasileiros e comunistas russos lutaram contra Hitler.
Logo depois começou a chamada Guerra Fria entre os Estados Unidos e seus aliados, um deles o Brasil, e a União Soviética e seus aliados. Capitalismo x comunismo. A União Soviética desmoronou em 1991. O mundo tornou-se unipolar. A China se diz comunista, mas é tão capitalista quanto os Estados Unidos e, em breve, sua economia será a maior do planeta.
O comunismo, hoje, resiste em Cuba, na Coreia do Norte e onde mais? Serve de espantalho a governantes autoritários que querem se perpetuar no poder, e aos seus apoiadores, fardados ou não. Serve também de aríete para corroer a democracia mundo afora.
O Globo: Huck conversa com seis partidos para eleição em 2022
Apresentador avalia cenário, cercado de experientes interlocutores, mas só decide se concorrerá ao Planalto em setembro
Thiago Prado, O Globo
RIO — No domingo, dia 7, o ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) desembarcou no Rio para um encontro com o apresentador Luciano Huck. Ao deputado, interessava alinhar os seus rumos após a eleição do deputado Arthur Lira (PP-AL) para sucedê-lo e a briga pública com o ex-prefeito de Salvador ACM Neto (DEM-BA). A Huck, era importante ouvir um dos muitos interlocutores que passou a ter na política nos últimos tempos devido às articulações para se lançar candidato ao Planalto no ano que vem.
Desde 2018, quando seu nome já havia sido especulado para a disputa que elegeu Jair Bolsonaro, o apresentador tem relações explícitas com PSDB, DEM e Cidadania (na época chamado de PPS). O GLOBO apurou que, nos últimos meses, o apresentador também já abriu canal com PSB, Podemos e PSD como possibilidades para 2022. Ele até agora não indicou, entretanto, se de fato entrará na política e se adotará um perfil de centro-esquerda ou centro-direita.
Na conversa com Maia, Huck ouviu que o DEM não poderia mais hospedar um projeto antibolsonarista diante do alinhamento da bancada baiana na vitória de Lira na Câmara — dias depois, ACM Neto telefonou para o apresentador negando a informação. Naquela noite, o ex-presidente da Câmara queria saber dos planos de Huck e contou ao apresentador as suas duas principais hipóteses quando deixar o DEM: filiar-se ao PSL, dono de milionário fundo partidário; ou migrar para o PSDB de João Doria. Liderar uma fusão de Cidadania, Rede e PV, noticiado como possibilidade durante a semana, está em segundo plano para Maia. A ex-senadora Marina Silva resiste a dar fim ao Rede; já o PV vive uma crise interna com parte da sigla tentando desalojar do poder o presidente José Luiz Penna.
Huck mais uma vez não se comprometeu com respostas concretas a Maia. Tem sido este o conselho dado pelo seu principal consultor político, o ex-governador do Espírito Santo, Paulo Hartung. O ex-presidente do Banco Central, Arminio Fraga, exerce o mesmo papel na área econômica. O apresentador considera que haverá dois momentos de tomada de decisão: a entrada na política, por volta de setembro deste ano, quando o cenário econômico e social estará mais claro; e a filiação partidária no primeiro semestre de 2022 apenas.
Projeção de cenários
Hartung e Huck têm olhado com lupa todas as pesquisas recentes para decidir os próximos passos. O ramo das sondagens interessa tanto ao apresentador que ele abriu sua agenda em 5 de fevereiro para uma conversa com Murilo Hidalgo, dono do Paraná Pesquisas. Diante dos dados, o ex-governador do Espírito Santo projeta o seguinte cenário para Huck organizar o futuro: Bolsonaro perderá popularidade ao longo do ano. Mesmo criando um novo auxílio, o valor jamais será próximo aos R$ 600 pagos em 2020, o que alimentará a frustração de parte do eleitorado. Com o poder da máquina, Hartung imagina, contudo, que o piso da avaliação ótimo e bom do presidente não cairá de 25%, o que o tornará competitivo para estar no segundo turno em 2022.
A despeito da força do Planalto, pesquisas divulgadas neste início de ano, especialmente uma do Datafolha de janeiro, animaram Huck e o seu entorno. Em um índice de confiabilidade de figuras públicas brasileiras, o apresentador apareceu na frente do governador de São Paulo, João Doria, com ativos eleitorais que há tempos os tucanos encontram dificuldades de ter: entrada no Nordeste e na população de baixa instrução.
Baixos índices
Hartung chegou a fazer uma análise para Huck no fim do ano passado: a vacina Coronavac, do Instituto Butantã, poderia equivaler ao Plano Real para FH em 1994. Quase um mês depois do início da imunização no país, os índices de popularidade de Doria pelo Brasil profundo patinam. Os baixos números do governador de São Paulo coincidem com o movimento que ocorreu na semana passada no PSDB, de lançamento da pré-candidatura presidencial do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.
No campo do que se convencionou chamar de centro na política brasileira, uma análise de Huck e seu entorno é diferente de praticamente todo o mundo político: o ex-juiz Sergio Moro ainda pode, sim, ser candidato devido aos seus altos e resilientes (embora em queda) índices de popularidade. Com Moro na urna, Huck estará fora do jogo de 2022.
Fernando Gabeira: O precoce começo de 22
Algumas religiões desaconselham explicar muito sua fé. O zen-budismo, por exemplo, costuma alertar: quem sabe não fala, quem não sabe é quem fala.
O grande viajante inglês Richard Francis Burton converteu-se ao sufismo e adotou, simultaneamente, uma tática chamada taquia, que consiste em esconder sua fé. A política é uma esfera muito diferente, mas também nela é preciso cuidado para não falar muito ou dar a falsa impressão de que sabe mais que os outros.
Lembro-me de que, em Brasília, os que caíam nessa tentação eram discretamente rejeitados e, quase sempre, chamados de professor de Deus. Conheci vários professores de Deus e, confesso, que sabiam realmente muito menos do que imaginavam saber.
Dito isso, é com humildade que meto a colher nesse debate sobre a oposição a Bolsonaro e as alternativas para derrotá-lo em 2022. Talvez, no chamado centro democrático, seja necessário superar o clima de lamentos, acusações mútuas e desencanto.
Não há nada de extraordinário na adesão de quadros do DEM e do PSDB a Bolsonaro. Durante a ditadura, o MDB se dividiu, e os que faziam oposição eram chamados de autênticos.
Sempre sobra um pequeno núcleo com visão nacional, e sua tarefa é levar o trabalho adiante, tratando de unificar a partir das lutas cotidianas, das quais não se pode fugir. Coisas simples e decisivas, como vacinação em massa, ajuda emergencial.
No campo da esquerda, houve também uma certa surpresa, no meu entender exagerada, com o lançamento de um candidato do PT, Fernando Haddad. O partido ocupou o poder durante muito tempo, tem uma grande bancada no Congresso, disputou com Bolsonaro o segundo turno.
Todos sabem que lançará candidato próprio. Mesmo nas eleições municipais de São Paulo, com poucas chances segundo as pesquisas, disputou o primeiro turno.
Já defendi a ideia de que é indispensável uma grande frente. No entanto as próprias eleições municipais mostraram possibilidades diferentes.
O candidato de Bolsonaro perdeu tanta consistência em São Paulo que nem chegou ao segundo turno. No Rio, o aliado do presidente chegou ao segundo turno tão combalido que seria derrotado pelo próprio índice de rejeição.
Alguma dessas hipóteses pode acontecer com Bolsonaro, uma vez que ainda não foi metabolizado pela população seu fracasso ao tratar da pandemia, muito menos sua irresponsabilidade em defender e produzir remédios ineficazes contra o coronavírus. E nem foi revelado amplamente à juventude do país seu trabalho de destruição da natureza.
O caminho pela frente, de um lado, é de crise social; de outro, uma aliança entre Bolsonaro e o Centrão, que pode até esboçar algumas respostas, mas, ao longo da história, tem se mostrado um tipo de aliança que cava um abismo entre política e sociedade.
Os que defendem a frente falam também de um projeto nacional, uma visão de como e para onde conduzir o Brasil, sua inserção internacional. É inegável a importância do argumento. No entanto a experiência tem mostrado também que muitos eleitores se definem por algum tema que lhes interessa e avaliam também a trajetória e a personalidade do candidato.
Por isso, talvez, em vez de estarmos vendo apenas a fragmentação de uma potencial frente única, estejamos assistindo às cotoveladas e artimanhas que antecedem o lançamento das candidaturas.
É importante que se lancem e comecem a trabalhar seriamente. Não existe uma certeza de que a eleição que virá repetirá os protagonistas da eleição de 2018. Muito menos a certeza de que, repetindo os protagonistas, repita o resultado.
Tenho dúvidas se conseguiremos deter satisfatoriamente a pandemia antes de 2022. Isso torna o caminho mais complicado, mas não impede a existência de um caminho aberto, ainda não fatalisticamente desenhado; enfim, um que depende daqueles que vão desbravá-lo.
Paulo Fábio Dantas Neto: As unhas da política e as viúvas da Lava Jato
Começo explicando porque o presente texto tornou-se, excepcionalmente, dominical. A live de Maria Bethânia, a princípio, foi só um belíssimo pretexto, convertido em aviso aos leitores dessa coluna, para adiar de ontem para hoje a publicação do artigo semanal. As nuvens políticas do sábado estiveram tão densas que a noite chegou e eu não conseguia encontrar o que dizer com mínima convicção, a não ser constatar a virtual dissolução de uma política moderada no interior do autodenominado centro político.
Depois do cavalo de pau de Rodrigo Maia em adesão (para mim, surpreendente) ao modo João Dória de fazer política - o qual pode até ser chamado de “extremismo de centro” - outros políticos do centro democrático começaram a seguir, ou ameaçar seguir, essa tocha de insensatez que pode conduzi-los a um haraquiri político. Estava a centímetros de arriar o rei diante desse xadrez político de baixa qualidade quando escutei duas frases de Bethânia achadas agora na rede, como memória da live, podendo citá-las sem risco de ser infiel. Uma expressa um desejo de abelha-rainha: "A força dos meus sonhos é tão forte que de tudo renasce exaltação e nunca minhas mãos ficam vazias.". Outra, uma vontade prudente, mediada pela necessidade, com a qual a realeza revela empatia para com quem trabalha e vê entes queridos morrerem como formigas: "Quero vacina, respeito, verdade e misericórdia".
Acordei neste domingo com a sensação de que a falta de atores políticos capazes de construir uma vontade agregada e prudente está deixando a maioria dos brasileiros sem sonhos fortes e de mãos vazias, em vias de exasperar, por não verem o que exaltar. Ouvi, no entanto, numa entrevista à CNN, concedida dias atrás, pelo jovem governador gaúcho, entre outras ideias que me pareceram lúcidas, a seguinte frase: “eu acredito numa política que efetivamente seja mais sobre cicatrizar do que sobre abrir novas feridas”. Percebi um zum-zum na testa que abriu uma fresta no desalento. Achei não só essa frase, como toda a entrevista, merecedora de um comentário dizendo sim. Mas o dever da análise impunha também considerar as inúmeras razões para dizer não ao que se tem falado e feito no campo onde o governador se move. Só que a algaravia é tão intensa que entontece e não indica por onde começar. Uma segunda leitura, da coluna de hoje da jornalista Eliane Cantanhede, no Estadão, deu-me mote a uma crítica menos apegada às jogadas de varejo do xadrez político e mais voltada a interpretações que se faz sobre elas. Achei, numa interpelação à visão da respeitada colunista, o tema que faltava ontem.
Cantanhede aventa a hipótese de a empresária Luiza Trajano vir a ser uma alternativa eleitoral, diante da virtual falência de uma frente política do centro liberal-democrático, que estaria se derretendo por adesismo ao governo de Bolsonaro. A hipótese teria um indisfarçável sentido de retomar o tema da alternativa à “velha política”, que teve forte apelo nas eleições gerais de 2018 e foi arquivado pelos eleitores nas municipais de 2020. Na falta da Lava Jato e diante de Sergio Moro passar de aspirante à política a candidato a réu, seria como buscar outro herói (no caso, heroína) para enfrentar Bolsonaro, alijando a “política dos políticos” do segundo turno. Para sermos justos com Trajano, é preciso dizer que se ela seria tão outsider na política quanto Moro tem as vantagens, em relação ao ex-juiz, de já ter história, como empresária e ativista do grupo Mulheres do Brasil, de contraponto ao extremismo vigente, fazendo oposição afirmativa ao sexismo e ao racismo e de liderar um arrojado e muito bem vindo projeto de intervenção civil em favor da causa da vacinação em massa, que é o principal desafio social do momento. Pauta irrepreensível, cujo apelo agregador provém do fato de ela não ter, até aqui, pretensão político-partidária. Se passar a tê-la, como teve Moro, arrisca-se a perder sentido. A quem se ocupa de política com responsabilidade pública cabe apurar se a hipótese aventureira de substituir o juiz como salvação do país, contra a política, tem anuência da própria Trajano, ou não. No caso de não ter, como parece mais provável, muito bem fará quem a ela se associar. Havendo fogo sob essa fumaça, é preciso que políticos e partidos responsáveis providenciem o antídoto para que esse recurso ao amadorismo político não vingue, como ideal de solução de crises tão complexas como as do Brasil atual. Obtém-se o antidoto por palavras e gestos de moderação e agregação, no campo do centro liberal democrático e na esquerda. Mas no dito centro, abundancia retórica de palavras unitárias já divide espaço com outras que as negam. E preocupa a escassez de gestos concretos. As razões disso precisam ficar claras.
ACM Neto pode perder a batalha interna que trava no DEM para resistir ao governo pela razão oposta à que Cantanhede aponta. Em vez de adesismo, já se pode perceber - em suas mais recentes declarações sobre a indicação, por um outro partido, de um liderado seu para o ministério da Cidadania - imprudência quase análoga às de Maia e Dória. Mesmo estando o ato do governo cercado de evidências de que se trata de estratégia intencional para colar no presidente do DEM a etiqueta de governista e, com isso, consumar uma implosão do partido, o alvejado cedeu à retórica voluntarista, diante de uma imprensa ávida por confrontos na pequena política. O modo como se expressou, cobrando lealdade política e pessoal a um quadro de outro partido, torna irresistível, para seus adversários, acionar a memória do lado mandonista e informal da complexa e contraditória atitude política do seu avô. Esse lado nega a imagem pública construída pelo neto há mais de uma década. É o que indica até aqui a exoneração, da Prefeitura de Salvador, de um quadro ligado ao ministro indicado, João Roma. Envolve na briga uma prefeitura que já não mais dirige e num contexto social crítico, em que ela precisa manter interlocução com o governo federal. Traz instabilidade, simultaneamente, à institucionalidade federativa e ao combate à pandemia. Tenho me colocado sempre contra visões elitistas, travestidas de progressismo, que desprezam ou demonizam a pequena política. Ela tem papel importante no mundo real, mas Antônio Gramsci é aqui referência incontornável: é grande política reduzir tudo à pequena política. Esse tipo de grande política desertifica a política positiva. ACM Neto ainda tem crédito para se supor que tenha sido um escorregão hepático.
Cantanhede está vendo "implosão" no PSDB também. Será que é isso o que ocorre mesmo, ou ali está se procurando evitar a implosão, um risco provocado por quem a articulista considera ser a vítima, no caso o governador de São Paulo? Até onde posso enxergar, essa discussão está ligada à situação que abordei em artigo nessa coluna, em 12.12.2020 (“Em busca de um centro: uma eleição e dois scripts”). Da experiência promissora das eleições de 2020 surgiram duas possibilidades de construção de alianças no chamado centro político.
A primeira seguiria uma rota a partir de São Paulo e levaria a atrair a centro-direita para uma aliança ao centro, sob hegemonia do PSDB, para um confronto desde já com Bolsonaro, sendo a possibilidade de incluir a esquerda transferida para o segundo turno, a depender de quem lá chegasse. A segunda possibilidade, que teve êxito em várias capitais, a de uma frente mais ampla se formar já para o primeiro turno, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda, tendo como âncora uma agenda positiva capaz de envolver o PSDB, outras partes da oposição e setores que se declaravam independentes do governo, como DEM e MDB, sem reconhecimento prévio de hegemonia de qualquer partido. O então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, parecia talhado a ser o principal articulador dessa segunda rota, enquanto o governador de São Paulo seria o da primeira.
O modo como se constituiu a frente em prol da candidatura de Baleia Rossi à presidência da Câmara atou, àquela disputa, o destino de uma eventual aliança eleitoral e o modo como Maia reagiu à derrota fê-la transbordar os muros da Câmara e comprometer a segunda possibilidade de rota na arena interpartidária. Recepcionando, no PSDB, o articulador derrotado da segunda rota, João Dória imaginou consolidar, definitivamente, a rota São Paulo - Brasil. Esqueceu de avisar a cozinha, onde a outra rota estava sendo considerada, como demonstram a entrevista do governador gaúcho e a decisão, da Executiva do partido, de prorrogar, por um ano, o mandato do presidente que Doria queria substituir. Evidentemente, como no caso do DEM, o dedo do palácio comparece para incendiar a luta interna, mas quem a provocou é questão em aberto e não uma premissa.
Resta, ainda, falar do MDB e o farei de modo sucinto porque nesse partido não há, por enquanto, uma crise interna com as proporções das que afetam DEM e PSDB. O deputado Baleia Rossi, que se conduziu com dignidade na disputa da Câmara e mantém, após a derrota, um também digno silêncio, precisará mesmo submergir para tentar se manter, ou ao seu grupo, no comando nacional do partido. Terá, para isso, que refratar o duplo ataque que lhe aguarda. De um lado, o do palácio, que quer tornar invertebrados os três principais partidos do centro de modo a ampliar o seu centrão. De outro, o do hábil senador Renan Calheiros, que ensaia fazer da posição de líder do partido no Senado um posto articulador para levá-lo a mover guerrilhas tão verbalmente imoderadas quanto pragmaticamente pontuais contra o governo, como se o MDB pudesse ser uma espécie de centrão do B.
É logico que está em curso, por parte do governo, uma operação para rachar os três partidos, que estão entre os mais institucionalizados do país. Operação que, ademais dos seus objetivos táticos, é coerente com uma tradição estatal brasileira de modelar partidos ao gosto dos interesses do Executivo e com uma estratégia mais geral, do governo atual, de esgarçar e, no limite, destruir instituições. Tem ficado evidente, também, a vulnerabilidade desses partidos a esse tipo de investida, seja por uma crescente dependência de fontes de financiamento orçamentárias (fenômeno estrutural dos sistemas políticos atuais e não uma jaboticaba brasileira), seja por uma cultura personalista que os afeta (embora não os defina, nem seja singularidade deles, pois se espalha por toda a sociedade e tem também uma incidência internacional), seja por redes de clientela que a eles se vinculam (embora a vida desses partidos não se resuma a elas), seja, ainda, por particularidades regionais próprias da forma federativa do Estado brasileiro e por aí vai. As duas coisas (a investida do governo e a vulnerabilidade dos partidos) são facilmente verificáveis.
O que é obscuro na argumentação - aparentemente límpida, em sua simplicidade - de que o centro político cava sua própria sepultura ao se comportar mal, é o motivo pelo qual deveríamos achar que a estratégia do governo é meramente uma ação beneficiária da má qualidade de uma elite política formada por políticos “menores”, em especial de uma inépcia essencial do centro político. Sem colocar aqui em questão essa qualidade geral, ou a inépcia do centro atual, penso que se toma como causa o que é mais consequência ligada a uma baixa capacidade de certos atores do sistema em dar resposta a desafios. As crises internas do DEM e do PSDB são análogas, mas com raízes distintas. A do DEM resulta de uma iniciativa do palácio, que não está sendo refratada a contento. A do PSDB, de uma afoiteza endógena, aproveitada pelo palácio. Mas, varejos à parte, a baixa capacidade de resposta afeta os voluntaristas, mais do que os políticos praticantes da moderação. Daí a preocupação prioritária de extremistas adversários do sistema político de alvejarem lideranças e instituições partidárias ligadas ao centro, onde a moderação é mais frequente.
De todo o modo, o extermínio do centro é estratégia de governo e não cabe fazer, de seus alvos vulneráveis, sujeitos de uma oração cujo sentido é uma sentença acusatória que reitera, pela direita, o diagnóstico de “falência da velha política”, por vezes corroborado, na ponta esquerda, pelo de “crise da representação”. Depois de render homenagens, nem sempre sinceras, a políticos que, por terem sido derrotados no jogo pelo seu voluntarismo, tornam-se resíduos funcionais ao argumento, o arremate final dessa argumentação contra políticos moderados resilientes é que, diante do seu adesismo, o jeito é Trajano, mora? Aqui se conclui o diálogo com Cantanhede e começa a análise de um sentimento difuso de contestação da política, que, a meu ver, data vênia, a sua análise subestima.
Extremismo tornou-se consenso negativo tanto na sociedade civil, como no âmbito das instituições. Mesmo se a Câmara de Lira se converter em turba, arrancar recursos de poder para reeleição de deputados e dividir o país em torno de costumes, dificilmente dirá tudo bem, diante de arroubos extremistas contra o sistema democrático. Embora não se saiba até que ponto o eleitorado corresponderá, em 2022, a esse feliz consenso negativo, as urnas de 2020 também deixaram claro um recado por moderação, agora reforçado pelo exemplo de processo político pacificador que deu a vitória a Biden, nos EUA. Com isso a roda da fortuna girou favoravelmente à elite política e o “lugar de fala” que ela ocupou, no pós-2018, passou a ser cobiçado. Agora todo mundo quer ser moderado, até Bolsonaro.
A acusação de adesismo ao governo Bolsonaro é a tocha acesa por adversários da política dos políticos, deserdados pelo acordo do governo com o centrão, para desalojar políticos moderados da posição relativamente confortável que vinham ocupando. Podiam, desde já, dialogar com a esquerda em torno de protocolos civilizados e, mais adiante, atrair parte do centrão a uma ampla frente democrática, num segundo turno. A imputação de adesismo cumpre o papel centrífugo que acusações de corrupção cumpriram no pre-2018. Em vez de lavar a política, trata-se agora de incendiá-la de novo. A aposta parece ser que ocorrerá o que ocorreu no clima de lacração prévio àquele pleito, ou seja, políticos em geral seguirão atras da tocha, disputando quem é oposição mais firme, num salve-se-quem-puder, procrastinando as pautas unitárias que realmente importam, nesse momento. Essas pautas poderiam ser, então, empalmadas por algum outsider adversário, tanto dos políticos sem rumo, quanto do presidente extremista. O problema é que, enquanto a tocha é seguida, o governo se expande, ocupa o centro, tenta roubar os discursos da vacina, do auxílio social e até o da conciliação. Daqui a pouco será confundido com a misericórdia.
Especula-se, nas últimas horas, que Luciano Huck, dobrando a aposta de Dória e Maia, poderia ir até a esquerda tourear com Ciro, Lula e Boulos. Flavio Dino, se o está atraindo, faz o jogo certo de quem está na esquerda, tentando levar gente do centro para oxigenar seus ares e torná-la mais competitiva. O jogo do centro é outro e não dá nem pra fazer cócegas em ninguém se não for capaz de unir seus quadros e ainda dividir a direita, costeando o alambrado do centrão. Se uma direita governista é difícil de ser vencida, mesmo quando dividida, imaginem se estiver unida, sob uma hegemonia antidemocrática!
Numa democracia, no entanto, a política dos políticos não chega nunca a ser suprimida e, em geral, após uma faxina, renasce como unha. Foi o que começou a ocorrer nas eleições de 2020. Sobreveio, para o dito centro, um começo de 2021 adverso, pela combinação de assédios de fora e erros em casa. O impulso das urnas do ano passado pode ser retomado se esse agrupamento informe tiver compromisso social para priorizar o combate à pandemia e o auxílio aos mais pobres, responsabilidade para entrar no debate econômico, firmeza na defesa da Constituição, instinto de preservação para não incendiar suas instituições partidárias e prudência política para pacificar os ânimos. São muitos “ses”, o que torna o protagonismo do centro uma hipótese pouco provável no horizonte atual. Sem a concretização de, ao menos, parte dos “ses”, será difícil uma aliança nesse campo tomar forma política e atrair um candidato competitivo – como Luiz Mandetta, por exemplo - para, na hora certa, chamar o eleitorado. Mesmo cumprindo seu dever de casa, até aqui mal encaminhado, não é certo que esse pretenso campo político consiga protagonismo. Mas se parar de bater cabeça terá ao menos como marchar razoavelmente unido para uma outra solução democrática, mesmo exógena, para tentar derrotar o extremismo, que deve piorar muito, se houver reeleição. Pela consideração dessas distintas hipóteses (endógena e exógena), Mandetta será o foco da coluna, na próxima semana. E na seguinte, a esquerda.
*Cientista político e professor da UFBa.
Marcus Pestana: Regulação, privatizações e crescimento
Além da universalização da imunização para superarmos a pandemia, há um desafio central que é a retomada do crescimento econômico visando a geração de renda e emprego. Quem pode desencadear a retomada são os investimentos. E como sabemos, o setor público brasileiro encontra-se mergulhado em grave fiscal. Ou seja, a resposta virá majoritariamente dos investimentos privados. E não basta para atrair investimentos possuir bons fundamentos macroeconômicos. É preciso um ambiente de confiança e credibilidade ancorado em previsibilidade, bons marcos legais e regulatórios, estabilidade de regras e respeito aos contratos.
Ao longo dos séculos XIX e XX, o papel do Estado esteve no centro das discussões sobre modelos de intervenção e desenvolvimento. Há uma dimensão ideológica que coloca liberalismo versus estatismo, mas há também a questão da eficiência global da economia e sua produtividade e dos impactos no orçamento público e suas prioridades.
As tarefas necessárias para o funcionamento da sociedade e da economia podem ser supridas pela ação direta do Estado, pelo terceiro setor, como hospitais filantrópicos e as APAES, por exemplo, ou pela iniciativa privada. O desfaio é conseguir o melhor e mais eficiente mix que potencialize a efetividade das ações e a produtividade dos recursos.
Na atual crise fiscal e diante da evolução da economia, o papel do Estado no Brasil deve ser muito mais de regulador, coordenador e estimulador. Não faria o menor sentido em pleno século XXI ter uma VALE estatal produzindo minérios ou uma EMBRAER produzindo aviões. Quando o serviço é público ou há monopólio natural e se delega à iniciativa privada, devem existir agências regulatórias robustas, fortalecidas e eficientes para defender os usuários e a estabilidade contratual, oferecendo segurança tanto à sociedade, quanto aos investidores.
O Governo Federal almeja privatizar a Eletrobrás e os Correios. O Governo de Minas pretende vender a CODEMIG e o do Rio, a CEDAE, entre tantas outras propostas de privatização.
Na última semana, foram tomadas atitudes contraditórias. Por um lado, aprovou-se a autonomia do Banco Central, medida positiva para blindar o agente que defende a nossa moeda de intervenções políticas voluntaristas e desastrosas. Por outro lado, a ofensiva política contra a autonomia da ANVISA na questão das vacinas, abala o prestígio de nossas agências regulatórias como um todo. Para a privatização da Eletrobrás ou dos Correios, que apoio, precisamos de uma ANEEL e de uma ANATEL transformada em ANACOM, fortes, autônomas, profissionalizadas e prestigiadas. A população não quer saber se o fornecimento de energia ou o abastecimento de água é feito por uma empresa estatal ou privada. Quer, na verdade, eficiência, qualidade e preço justo.
Quanto à CODEMIG, tenho minhas dúvidas. Ela gera soluções, não problemas. Tem uma estrutura levíssima para administrar os direitos minerários da exploração do nióbio, minério do futuro, que será cada vez mais valorizado. É uma das poucas fontes de financiamento de investimentos públicos em Minas. Ainda mais que se dará o famoso caso de “vender a geladeira para pagar comida”.
A parceria entre Estado e iniciativa privada pode ser, se bem construída, uma importante alavanca para a retomada do crescimento no Brasil pós-pandemia.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)