centrão

William Waack: Divisor de águas?

É tudo muito diferente daquela vez quando a Câmara proibiu que um deputado fosse processado pelo regime militar

A história que se repete para nós não é uma farsa, tragédia, nem sequer uma rima tem. Em 1968, o AI-5 foi decretado para punir uma Câmara dos Deputados que impedira que fosse processado um deputado que defendia liberdades cerceadas pelos militares no poder. A atual Câmara dos Deputados – depois de uma ditadura, uma redemocratização e uma Constituição – vai se ocupar da situação de um deputado que usa das liberdades reconquistadas por gerações de brasileiros para propor acabar com essas liberdades. 

Do ponto de vista do estado de direito e do funcionamento de suas instituições era mais fácil então identificar onde estava o “bem” e o “mal”. Não, não é a questão da “liberdade de expressão” consagrada na imunidade parlamentar: essa proteção não é absoluta nem existe para a prática de delitos penais e o incitamento do golpe e destruição da ordem democrática. O pano de fundo muito mais preocupante é o da legitimidade das instituições envolvidas. 

Começa pelo STF. Uma parte relevante da “insegurança jurídica” que caracteriza as relações na sociedade brasileira se deve à atuação política desse órgão. E do entendimento, entre seus integrantes, de qual seria o melhor efeito político ao tomarem decisões que fizeram da Constituição (que cabe ao STF zelar) uma questão de interpretação dependendo das circunstâncias do momento. Com ministros dando rasteiras em ministros. 

Essa noção (a da instabilidade causada por canetadas de magistrados), mais a situação de caos social com a greve dos caminhoneiros, é o que estava na raiz do “pronunciamiento” em 2018 do então comandante do Exército, general Villas Bôas. Na prática, o coletivo do STF aceitou o que dizia o oficial. Naquele mesmo ano assumiu um novo presidente da Corte e, num entendimento peculiar com o próprio general, aceitou-se como um dos principais assessores do presidente do STF quem até ali fora o chefe de Estado-Maior do Exército (e hoje é o ministro da Defesa). Tudo em nome da pacificação e estabilização da atmosfera política. 

A franja aloprada do bolsonarismo, eleita com expressiva votação na onda disruptiva daquele ano, dedicou-se desde sempre a atacar qualquer instituição ou nome entendido como obstáculo ou adversário do “mito”, em boa parte incentivada por ele mesmo. Para efeitos práticos, foi acompanhada por alguns militares que, de fato, passaram a enxergar no STF um tolhimento inconstitucional dos poderes do chefe do Executivo. Até ele entender-se prazerosamente com o “Centrão”, esse velho conjunto de forças políticas em parte conduzido por gente notória por colidir com a ética, a moral e o Código Penal. 

Legislativo brasileiro, a quem cabe a relevante decisão política sobre o deputado aloprado bolsonarista, vem perdendo qualidade e sofre com extraordinária fragmentação. São resultados muito evidentes de décadas de desgaste do sistema político. No topo desse desgaste figura exatamente a questão da representatividade, ou seja, do distanciamento entre quem elege e quem foi eleito – como ocorre com outros fenômenos do populismo moderno (como Trump), há mais do que um grão de verdade na denúncia que esses movimentos fazem “disso tudo que está aí”. 

Em 1968, a decisão da Câmara de proibir que um deputado fosse processado pelo regime militar foi um divisor de águas na nossa história política. Não é o que se prenuncia agora, pois a palavra de ordem em Brasília é “acomodação”. Fora os estridentes aloprados e suas redes sociais, não há forças relevantes dispostas a partir para qualquer coisa remotamente parecida a um tudo ou nada. Os militares se acomodaram no governo, que se acomodou com o Centrão, empenhado desde sempre em acomodar seus interesses às custas dos cofres públicos, por sua vez esticados ao limite para acomodar as visões antagônicas de garantir ajuda emergencial e respeitar o teto de gastos. 

Todos confortáveis com a ideia de que o próximo embate é só para 2022. 


Igor Gielow: Prisão de deputado mostra os custos do bolsonarismo para os Poderes

STF confirma decisão de Moraes em momento de tensão da corte com militares

A decisão do Supremo Tribunal Federal de manter preso deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) demonstra a extensão dos danos do bolsonarismo à relação entre Poderes no Brasil.

Num preâmbulo, a decretação da prisão pelo ministro Alexandre de Moraes deu oxigênio a uma fogueira cujas brasas foram animadas pelo general Eduardo Villas Bôas, jogando no mesmo escaninho de confusão institucional temas que são imiscíveis —embora guardem raízes genéticas, por assim dizer.

A tensão na praça dos Três Poderes havia sido reduzida consideravelmente no país após a prisão do faz-tudo do clã Bolsonaro Fabrício Queiroz, que levou o presidente a recolher-se e estabelecer uma dança com o centrão que acabou no baile dado por Arthur Lira (PP-AL) ao conquistar a Câmara dos Deputados.

Claro, impropérios seguiram sendo ditos e descaminhos trilhados, em especial na condução da pandemia da Covid-19, mas as palavras Planalto, golpe, Supremo e militares pararam de frequentar conversas como ocorria de forma quase ligeira até junho do ano passado.

Agora, o flagrante contra Silveira após um vídeo de baixo calão que só não é inacreditável porque trata-se de um bolsonarista de quatro costados na tela, evidencia o custo da associação institucional com o movimento ideológico que tem no presidente o líder.

Aliados de Bolsonaro correm para dizer que ele não é Silveira, mas parecem não ter visto o tuíte do filho presidencial Carlos lamentando a prisão do amigo.

Com a previsível confirmação da prisão pelo plenário do Supremo, sobraram a Lira duas opções para a análise do cargo.

A do fígado, usar o corporativismo e relaxar a prisão de Silveira, que alguns especialistas apontam como de difícil justificativa no modo flagrante, embora o crime seja evidente.

Para quem tem a deputada Flordelis (PSD-RJ), acusada de assassinato, solta nos corredores da Câmara, não é um preço moral alto.

A outra saída, cerebral, seria compor um acordo que talvez poupe Silveira da cadeia, mas que o coloque no patíbulo do Conselho de Ética imediatamente.

Seria uma forma de dar alguma satisfação extra corporis. Como lembrou o decano Marco Aurélio Mello, agora Lira terá de analisar não uma decisão monocrática, e sim do plenário por unanimidade.

Seja como for, o presidente da Câmara não tem nem três semanas no cargo e já paga o preço institucional de associação com o bolsonarismo extremado. Silveira inclusive envolveu o Senado em suas críticas.

"Lá no Senado tem muito senador na mãozinha de vocês. E vocês estão nas mãos de muitos senadores", esbraveja o deputado seu monólogo direcionado ao Supremo.

Como não se vê de Bolsonaro disposição de promover uma versão política da Noite das Longas Facas, quando em 1934 Adolf Hitler eliminou a cabeça das SA (Tropas de Assalto) que lhe pavimentaram a chegada ao poder para então consolidar sua aliança condicional com o establishment alemão, a questão que fica é outra.

Lira irá apenas colocar mais um item na fatura apresentada ao Planalto por seu apoio ou começará a ponderar o custo de sua adesão?

Até aqui, pautas bolsonaristas mais explícitas já sofrem bombardeio no Congresso, disposto a tocar agendas econômicas simpáticas ao Planalto. Mas ele também viu temas caros ao centrão, como o enterro da Lava Jato, sendo levados em frente.

Mas há dimensões adicionais à crise em plena data que já foi conhecida como Quarta-Feira de Cinzas.

É indissociável do contexto da decisão confirmada pelos ministos do STF o braseiro mexido pelo general Villas Bôas ao revisitar a confecção do tuíte em que tentava emparedar a corte a não impedir a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva em abril de 2018.

O ex-comandante do Exército, em livro-depoimento lançado pela Fundação Getúlio Vargas, traça claramente o cenário em que discutiu a nota com o Alto-Comando da Força em um ambiente de crescente antipetismo e adesão à candidatura Bolsonaro.

Afinal, como a Folha mostrou no domingo (14), o texto de admoestação era ainda mais duro e segundo Villas Bôas foi lido por três generais que são ministros de Bolsonaro —ao menos um, Luiz Eduardo Ramos, nega ter participado.

Essas revelações precipitaram a reação do ministro Edson Fachin, que levou Silveira a produzir o chorume virtual contra o Supremo, que por sua vez horrorizou outros membros da corte.

Na quarta (16), pelo menos três deles conversaram, inclusive dois críticos de Fachin, levando ao pedido de reação por parte de Moraes —que adota linha dura contra os radicais do bolsonarismo desde o ano passado. O presidente do Supremo, Luiz Fux, não participou da articulação.

Para os militares, a saída até aqui foi o silêncio. Repercutiu mal, mesmo entre oficiais-generais que apoiam a posição de Villas Bôas, ele ter tripudiado de Fachin ao questionar no Twitter por que ele demorou três anos para ver na postagem de 2018 uma ameaça.

Os militares, o comandante do Exército Edson Leal Pujol à frente, riscaram uma linha no chão e tentaram de alguma forma dissociar-se do dia-a-dia de um governo que tem 9 fardados entre seus 23 ministros, inclusive o contestado general da ativa Eduardo Pazuello (Saúde).

Inexequível como fato, deu mais ou menos certo como imagem. Agora, tudo isso é colocado em xeque, com o bônus de verem Silveira, que simboliza um radicalismo ao qual os generais dizem ter asco, no mesmo lado do ringue que eles.

O problema adicional é que a narrativa de Villas Bôas no livro explicita que, no berço, muito da espuma produzida pela hidrofobia bolsonarista tem DNA verde-oliva: o ódio ao PT, ao politicamente correto, ao que percebiam como revanchismo de esquerda.

Agora caberá à surradas instituições, testadas o tempo todo sob Bolsonaro, acharem uma acomodação para mais esse espasmo. A bola está com Lira.


Metropóles: MPF denuncia deputado Daniel Silveira ao Supremo por agressões à Corte

Denúncia foi resposta da Procuradoria-Geral da República (PGR) a ataques contra integrantes do Supremo feitos pelo deputado federal

Flávia Said, Metropóles

O Ministério Público Federal (MPF) denunciou nesta quarta-feira (17/2) o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) ao Supremo Tribunal Federal (STF). A denúncia acusa o deputado de três crimes: 1) praticar agressões verbais e graves ameaças contra ministros da Corte para favorecer interesse próprio, 2) incitar o emprego de violência para tentar impedir o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário e 3) incentivar a animosidade entre as Forças Armadas e o STF.

A denúncia, assinada pelo vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, foi apresentada minutos após o Plenário do Supremo manter, por unanimidade, a prisão em flagrante do parlamentar por crime inafiançável.

A prisão foi determinada após o parlamentar divulgar vídeo em que dispara ataques aos integrantes da Corte, com especial destaque a Edson Fachin, que subiu o tom contra declaração de 2018 feita pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas.

No vídeo, Silveira afirma que os 11 ministros do Supremo “não servem pra porra nenhuma pra esse país”, “não têm caráter, nem escrúpulo, nem moral” e deveriam ser destituídos para a nomeação de “11 novos ministros”. Ele também fez apologia ao Ato Institucional nº 5 (AI-5), mais duro instrumento de repressão da ditadura militar (1964-1985).

Mais sobre o assunto

“Neste último vídeo, não só há uma escalada em relação ao número de insultos, ameaças e impropérios dirigidos aos ministros do Supremo, mas também uma incitação à animosidade entre as Forças Armadas e o Tribunal, quando o denunciado, fazendo alusão às nefastas consequências que advieram do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, entre as quais cita expressamente a cassação de ministros do Supremo, instiga os membros da Corte a prenderem o general Eduardo Villas Bôas, de modo a provocar uma ruptura institucional”, descreve a denúncia.

Resposta da PGR às declarações do deputado federal, a denúncia é uma acusação formal feita na Justiça que, se recebida, torna réu o investigado e dá início a uma ação penal. Como o deputado tem foro privilegiado, cabe ao Supremo analisar o caso.

Prisão em flagrante

Silveira foi preso em sua casa, em Petrópolis (RJ), pela Polícia Federal (PF) no fim da noite de terça, dia em que compartilhou nas redes sociais o vídeo com os ataques ao Supremo. Ele está detido na Superintendência da PF no Rio.

O parlamentar já é investigado pelo STF em dois inquéritos: o que investiga a propagação de fake news e o que mira o financiamento e organização de atos antidemocráticos em Brasília.

Em junho, ele foi alvo de buscas e apreensões pela Polícia Federal e teve o sigilo fiscal quebrado por decisão do ministro Alexandre de Moraes, que é o relator dos inquéritos.


O Globo: Por unanimidade, STF mantém prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira

Decisão foi expedida pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news

Carolina Brígido, O Globo

BRASÍLIA — Por unanimidade, os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmaram nesta quarta-feira a prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), determinada ontem pelo ministro Alexandre de Moraes. No início da sessão, antes de iniciada a votação, o presidente da Corte, Luiz Fux, fez um breve discurso em prol da harmonia entre os Poderes e em defesa do STF.

— Compete ao Supremo Tribunal Federal zelar pela higidez do funcionamento das instituições brasileiras, promovendo a estabilidade democrática, estimulando a construção de uma visão republicana de país e buscando incansavelmente a harmonia entre os Poderes. Por esses motivos, esta Corte mantém-se vigilante contra qualquer forma de hostilidade à instituição. Ofender autoridades além dos limites permitidos pela liberdade de expressão que nós tanto consagramos no STF exige necessariamente uma pronta atuação da Corte — disse Fux.

Apoiador do presidente Jair Bolsonaro, Silveira é investigado no inquérito dos atos antidemocráticos, que apura a organização e realização de manifestações com ataques ao Legislativo e ao Judiciário, e também no inquérito das fake news, que apura ataques aos ministros da corte. A prisão ocorreu por flagrante delito por crime inafiançável e foi determinada de ofício pelo ministro dentro do inquérito das fake news, sem pedido da Polícia Federal ou da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Antes de determinar a prisão, Moraes consultou alguns ministros, de quem obteve apoio para colocar a medida em prática. O presidente da Corte, Luiz Fux, foi um dos que concordaram com a ideia de Moraes. Portanto, a expectativa já era de que o plenário mantivesse válida a ordem de prisão. A medida foi determinada porque o parlamentar publicou um vídeo com ataques aos ministros do Supremo. Em um dos trechos mais agressivos, ele diz que gostaria de ver ministros da Corte “na rua levando uma surra”.

— Por várias e várias vezes, já te imaginei (Fachin) levando uma surra. Quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa corte aí. Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra. O que você vai falar? Que eu tô fomentando a violência? Não, só imaginei. Ainda que eu premeditasse, ainda assim não seria crime, você sabe que não seria crime. Você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível. Então qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada nessa sua cara com um gato morto até ele miar, de preferência após a refeição, não é crime — afirmou Silveira.

PUBLICIDADE

Ao votar em plenário, Moraes defendeu a manutenção da prisão em flagrante ordenada contra Silveira. O ministro considerou “gravíssima” a conduta do parlamentar.

Veja: A íntegra da decisão do STF que mandou prender em flagrante o deputado Daniel Silveira

— As suas declarações (do deputado), a sua incitação à violência não se dirigiu apenas a diversos ministros da Corte, ofendidos pelas mais abjetas declarações, mas muito mais do que isso: suas manifestações dirigiam-se a corroer a estrutura do regime democrático e do Estado de Direito, fazendo apologia à ditadura, ao AI-5, pleiteando o fechamento do STF, incitando a violência física, nos limites inclusive da morte de ministros, porque não concorda com posicionamentos — disse, acrescentando:PUBLICIDADE

— Muito mais do que crimes contra a honra praticados contra ministros do STF e a instituição, muito mais do que ofensas pesadas, aqui as manifestações tinham o mesmo intuito de corroer o sistema democrático brasileiro, de abalar o regime jurídico do Estado Democrático de Direito brasileiro.

O ministro lembrou a vida pregressa recente de Silveira. Citou que, em 2019, o parlamentar quebrou a placa feita pela prefeitura do Rio de Janeiro em homenagem à vereadora Marielle Franco, que havia sido assassinada meses antes. Ele também entrou à força do colégio carioca Pedro II para denunciar o suposto uso de material de conotação política em ambiente escolar. O deputado só deixou o local quando a escola chamou a Polícia Federal.

Em outra ocasião, se recusou a usar máscara de proteção individual em um avião durante a pandemia do coronavírus. A PF foi acionada e o a aeronave precisou pousar para o parlamentar ser retirado. Moraes ressaltou também que, quando foi preso na terça-feira, Silveira voltou a se recusar a utilizar máscara no Instituto Médico Legal (IML) e desacatou a policial que pediu que ele realizasse o procedimento.

Na decisão de ontem, Moraes escreveu que “as condutas criminosas do parlamentar configuram flagrante delito, pois verifica-se, de maneira clara e evidente, a perpetuação dos delitos acima mencionados, uma vez que o referido vídeo permanece disponível e acessível a todos os usuários da rede mundial de computadores, sendo que até o momento, apenas em um canal que fora disponibilizado, o vídeo já conta com mais de 55 mil acessos”.

Pouco antes de ser preso, Silveira gravou um novo vídeo com provocações a Moraes. O parlamentar relatou na gravação que a Polícia Federal estava naquele momento em sua residência com um mandado de prisão, mas os policiais não aparecem nas imagens. Silveira afirmou que a decisão descumpria sua “prerrogativa constitucional” de deputado federal.

— Ministro, eu quero que você saiba que você está entrando numa queda de braço que você não pode vencer. Não adianta você tentar me calar. Eu já fui preso mais de 90 vezes na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro — disse, em recado a Moraes.


O Estado de S. Paulo: Aliados de Lira avaliam rejeitar prisão de Silveira e enviar caso ao Conselho de Ética

Deputado bolsonarista foi detido após divulgar um vídeo com apologia ao AI-5, além de discurso de ódio e xingamentos contra os integrantes da Corte

Daniel Weterman, Vinícius Valfré e Anne Warth, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Aliados do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), se articulam para rejeitar a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-SP), mas de uma forma que evite passar a imagem de afronta a uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). A ideia avaliada nos bastidores, principalmente por partidos do Centrão, éderrubar a ordem do ministro do STF Alexandre de Moraes, referendada, por unanimidade, pelo plenário da Corte. Na tentativa de contornar o desgaste, porém, o grupo tenta construir um acordo para enviar o caso ao Conselho de Ética da Casa, que está parado desde o ano passado por causa da pandemia do novo coronavírus.

Silveira, um dos principais aliados do presidente Jair Bolsonaro no Congresso, foi preso no fim da noite desta terça-feira, 16, por ordem de Moraes. A decisão ocorreu após o deputado divulgar um vídeo com apologia ao Ato Institucional nº 5 (AI-5), além de discurso de ódio e xingamentos contra os integrantes da Corte.

Moraes considerou que a postagem feita por Silveira configurou desrespeito à Lei de Segurança Nacional ao atentar contra a independência dos Poderes e contra a democracia. Pela Constituição, um deputado só pode ser preso por “flagrante de crime inafiançável”, devendo a Câmara ser comunicada em um prazo de 24 horas para confirmar ou rejeitar a decisão.

Em público, líderes partidários mais envolvidos na construção do acordo têm evitado fazer considerações sobre o episódio, mas, a portas fechadas, há articulações para salvar Silveira. A proposta de enviar o caso ao Conselho de Ética, que, em tese, passaria a analisar um processo de cassação contra o deputado por quebra de decoro parlamentar, seria apenas para ganhar tempo e dar uma resposta à opinião pública e ao próprio Supremo.

Na prática, este será o primeiro teste de fogo de Lira no comando da Câmara. O desfecho do processo liderado por ele poderá representar um enfrentamento ao STF ou um aceno a seus pares, que também têm demandas judiciais na Corte e se incomodam com a pressão de ministros sobre eles.

Levantamento feito pelo Estadão sobre a ficha corrida dos congressistas eleitos em 2018 mostrou que um terço deles é alvo de investigações. O próprio Lira responde a inquéritos em tramitação no Supremo: um relacionado a desvios na Companhia Brasileira de Trens Urbanos e outro na Lava Jato, do chamado “quadrilhão do PP”. Agora, ele tenta construir um acordo para que a crise não se torne uma afronta ao mesmo STF que o tornou réu.

Para barrar a prisão de Silveira, parlamentares devem argumentar que, embora considerem graves as declarações do deputado, Moraes exagerou ao determinar a prisão “em flagrante” após a postagem do vídeo. Nos bastidores, há um temor de que a confirmação da decisão do ministro abra um precedente.

O primeiro vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), afirmou que Silveira cometeu crimes, mas que é preciso avaliar tecnicamente a necessidade de prisão. “A despeito dos ânimos exaltados, o julgamento não deve ser sobre quem falou e o que falou, mas sobre a existência ou não do flagrante. Lembremos que essa decisão gerará precedente”, disse Ramos.

Na mesma linha, o deputado Marco Feliciano (Republicanos-SP), também aliado do Palácio do Planalto, alertou para uma brecha no futuro. “Não concordo com o perfil do deputado, mas o STF não é o dono do Brasil. Hoje foi Daniel, amanhã pode ser qualquer um de nós”, escreveu o parlamentar.

Para o líder da bancada do Novo, Vinícius Poit (SP), houve abuso na decisão de Moraes porque Silveira deveria ser processado antes pelos ataques, como qualquer outro cidadão. Embora não concorde com o teor das declarações do colega, Poit disse que a tendência é a bancada da sigla rejeitar a prisão.

“Estamos tendendo a votar pela rejeição da prisão. A gente tem que pontuar que não concordamos com o que ele falou, mas estamos estudando se cabe alguma coisa no Conselho de Ética ou não. Liberdade é liberdade. Não podemos aplicar a lei só quando nos convém”, afirmou o líder do Novo.

A estratégia para trocar a prisão de Silveira por providências internas enfrenta, porém, resistência mesmo entre integrantes do grupo mais próximo ao governo e a Lira. O receio desses parlamentares é de que uma eventual abertura de processo no Conselho de Ética seja interpretada como tentativa de ludibriar a opinião pública e o STF. O colegiado está desativado por causa da pandemia e ainda nem começou a analisar o caso da deputada Flordelis (PSD-RJ), acusada de mandar matar o marido.

Um dos principais aliados de Lira, o deputado Jhonatan de Jesus (Republicanos-RR) disse que sua posição ainda não está definida. “Que a decisão do ministro Alexandre vai além do artigo 53 da Constituição Federal (sobre a prisão em flagrante), ela vai. Mas a forma como o colega deputado abordou é humilhante para os ministros da Suprema Corte”, admitiu ele.

Já na avaliação do deputado Fábio Trad (PSD-MS), a decisão de Moraes não ofende direitos dos parlamentares e está correta sobre a prisão em flagrante. Para o parlamentar, um “meio-termo”, com envio do caso ao Conselho de Ética, seria uma mensagem negativa da Câmara à sociedade.

“São 19 minutos de ofensas que estão sendo reportadas e chegando ao conhecimento do público pela postagem. As consumações se perpetuam no tempo. Não vejo violação de prerrogativas do Parlamento”, destacou Trad. “Até ele ter o direito, a tramitação, a ampla defesa, o contraditório (no Conselho de Ética), qual a mensagem que o Parlamento transmite à sociedade? Isso não pode. Não há liberdade para a prática de crimes. E ele praticou”.

Oposição defende cassação de Daniel Silveira

Enquanto os partidos aliados a Lira se movimentam para rejeitar a prisão de Silveira, a oposição quer marcar posição e cassar o mandato dele, sob o argumento de quebra de decoro.

O líder do PT na Casa, Ênio Verri (PR), disse que o partido vai se posicionar a favor da cassação do mandato de Silveira. “Vou me posicionar a favor da instalação do Conselho de Ética, que é quem deve decidir. Mas sou a favor da cassação do mandato dele, pelo histórico, não apenas pelo fato. Ele é reincidente, e uma pessoa que não honra o que jurou sob a Constituição tem de responder por isso”, afirmou.

A primeira vice-líder do PCdoB, Perpétua Almeida (AC), disse que Silveira “confunde imunidade parlamentar com impunidade” e abusa da liberdade de expressão para cometer crimes. “O deputado atenta contra a Constituição e os pilares da Democracia, diminuindo a autoridade do STF e a independência dos Poderes”, observou ela. “O Parlamento não pode assistir a tudo isso e não puni-lo. Precisamos manter a prisão, levá-lo ao Conselho de Ética e cassar o mandato dele.”

O PSOL entrou com representação para cassar o mandato do deputado no Conselho de Ética da Câmara. Aliados de Lira, no entanto, dizem ser preciso reativar o colegiado para avaliar eventuais punições mais leves a Silveira, entre elas a suspensão.

O líder do PSDB na Câmara, Rodrigo de Castro (MG), não antecipou qual será a orientação à bancada na votação sobre manter ou não a prisão, mas reprovou os ataques feitos por Silveira aos ministros do Supremo.

“As declarações são estarrecedoras. Trata-se de um dos ataques mais ultrajantes que a Suprema Corte já sofreu”, observou Castro. “No âmbito da Câmara, o foro para apurar as infrações cometidas pelo deputado é o Conselho de Ética, mas, ainda assim, todas as penas que possam ser aplicadas contra ele são insuficientes frente ao que a sociedade espera”.

NOTÍCIAS RELACIONADAS


Fernando Exman: A vacina foi a ilusão do Carnaval de 2021

Governo deveria viabilizar produção local do imunizante

Quarta-feira de Cinzas, dia em que as ilusões de Carnaval se tornam menos turvas, a realidade se impõe, nada mais serve de desculpa para adiar novamente a execução do que foi planejado ou ignorado. Ilusões de Carnaval em tempos de pandemia têm lá suas particularidades.

Em Brasília, o devaneio foi do governo local. Acreditou que conseguiria inventar por meio de decreto uma nova modalidade de folia, o Carnaval sentado. Bares e restaurantes foram autorizados a funcionar, desde que não houvesse passistas nos salões ou nas ruas. Impossível controlar. Os próximos balanços do Ministério da Saúde dirão se a estratégia funcionou ou foi apenas para autoridade sanitária ver.

O governo Bolsonaro também vai criando suas histórias de Carnaval. No primeiro ano, a data ficou marcada pelas publicações escatológicas do presidente. Este deve passar a ser conhecido por aquele em que apenas o Centrão e os armamentistas tiveram motivos para jogar confete.

Depois de muito resistir e criticar quem o fez, Bolsonaro acabou cedendo o Ministério da Cidadania a partidos aliados. Outras mudanças no primeiro escalão devem ocorrer durante a Quaresma - para quem crê na Bíblia, um período de penitência e reorientação.

Bolsonaro descumpriu o compromisso feito durante a campanha de manter-se afastado das práticas tradicionais da política, mas, em contrapartida, na sexta-feira editou uma nova leva de decretos para flexibilizar o acesso a armas e munições. Era uma promessa antiga, adiada há tempos. Já havia, inclusive, virado motivo de deboche entre seus apoiadores em razão da demora e de sucessivos adiamentos.

O governo esperou a nova cúpula do Congresso tomar posse e se estabelecer no comando da Câmara e do Senado. Agora é menor o risco de aprovação de um decreto legislativo que suste esses atos normativos do Executivo, tanto que a oposição já decidiu judicializar. Mesmo assim, será interessante ver como o governo vai se equilibrar entre dois de seus pilares de sustentação: a bancada da segurança pública e a bancada evangélica.

Contudo, provavelmente a vacina seja a maior ilusão do brasileiro nesta Quarta-Feira de Cinzas. Estados e municípios registram problemas no fluxo de imunização da população. Crescem as reclamações dos entes federativos quanto aos critérios de divisão das doses e à demora no envio das próximas levas. Governadores que fazem oposição ao governo indagam se haveria algum tipo de desprestígio proposital em relação às suas administrações.

Tem sido lenta, também, a mobilização do setor público no sentido de construir as condições necessárias para o desenvolvimento e a produção em massa de vacinas nacionais.

O registro de novas cepas do coronavírus comprova a necessidade de o Brasil ter como garantir, a longo prazo, uma autonomia nesta frente de batalha contra a covid-19. Isso envolve a estruturação de uma cadeia que assegure o desenvolvimento e a capacidade de produção em massa de imunizantes, testes para a detecção de novas variantes, assim como pressuponha a autossuficiência no abastecimento de insumos farmacológicos ativos (IFAs), substâncias que só ganharam notoriedade do público em geral depois que começaram a faltar.

Não por culpa do setor privado, é ainda tímida a interação entre a indústria e o governo. A indústria farmacêutica depende da inovação, se não quiser vender apenas produtos existes e acabar caindo numa guerra de preços cujo resultado óbvio seria manter no jogo apenas quem tiver muita escala.

O Estado, por sua vez, deve adotar práticas regulatórias mais amigáveis e exercer seu poder de compra - inclusive dividindo os riscos, para que a iniciativa privada consiga avançar no sentido de dominar as tecnologias e processos fundamentais para o cumprimento desta missão. Por isso são tão bem-vindos instrumentos como o da encomenda tecnológica, corretamente utilizada nesta primeira fase do combate à covid-19.

Reginaldo Arcuri, presidente executivo do Grupo FarmaBrasil, associação da indústria farmacêutica de capital nacional e de pesquisa, conta que a entidade tem mantido contato com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, BNDES e Ministério da Economia. A ideia é mapear o que é necessário fazer para que se tenha uma vacina brasileira.

O que é preciso para enfrentar esse desafio com sucesso? Arcuri responde: “Clareza do governo do que ele quer. Segundo, coordenação dos órgãos de governo. Não pode começar o processo e lá na frente a Receita Federal ou a Advocacia-Geral da União (AGU) dizer que não pode... Em terceiro, dinheiro. Tem que ter dinheiro. Mas, não é dinheiro para jogar para o alto e ver quem pega”.

Ele cita como exemplo a análise do custo de uma etapa pré-clínica. Nesta fase, argumenta, as empresas devem dizer quanto estão dispostas a desembolsar, mas o governo também precisaria fazê-lo. “Isso é compartilhamento de risco. Está na legislação brasileira e pode ser feito. Não há problema nenhum. E a fundo perdido, não é empréstimo.”

Previsibilidade e segurança jurídica entram na equação. “Tudo leva tempo”, acrescenta o presidente executivo do Grupo FarmaBrasil, segundo quem a indústria nacional demoraria entre um e dois anos para produzir um imunizante local, se todas as condições ideais forem construídas. “Correr risco com dinheiro público não é dar dinheiro para bandido.”

Informações oficiais do governo apontam que algumas vacinas nacionais já estariam em fase de desenvolvimento, inclusive com testes em animais e com a possibilidade de começarem logo a testagem em seres humanos. A velocidade que isso vai se desenrolar ainda é uma incógnita.

Talvez o Carnaval do ano que vem seja marcado por marchinhas e sambas-enredo críticos à atuação do governo. Os foliões não costumam perdoar. Nem mesmo o médico sanitarista Oswaldo Cruz escapou das ironias na época da Revolta da Vacina, mesmo estando do lado certo da história.


Vinicius Torres Freire: Com a corda no pescoço, general Pesadello tenta provar que vai trazer vacina

Prefeitos pedem a cabeça de Pazuello, governadores cobram vacinas e UTIs

A Confederação Nacional dos Municípios pediu a cabeça de Eduardo Pazuello, ainda aboletado no Ministério da Saúde. A Frente Nacional de Prefeitos diz que o governo de Jair Bolsonaro é culpado pela falta de vacinas e ainda se perde com coisas como decretos de armas e "pauta de costumes".

Nesta quarta-feira (17), governadores têm reunião com o general Pesadello (João Doria não vai). Vão cobrar o cronograma de entrega de vacinas até abril, dinheiro para pagamento de leitos de UTIs e fazer pressão para que se aprove a fabricação da vacina russa no Brasil. Pesadello está pela hora da morte, que sempre foi o seu tempo.

A vacinação vai parando, por falta de doses. Vai andando o inquérito do Supremo sobre Pesadello. Vidas, a economia e o prestígio de Jair Bolsonaro vão depender da política e de alguma esperteza do governo nas próximas semanas.

Governadores são bem mais próximos de senadores do que os deputados. Vários estão como medo do que vai acontecer com sua fama caso a vacinação seja interrompida, como deve ser, nos próximos dias.

Há no Senado um pedido de CPI para investigar o desastre o Pazuello, um grosseirão autoritário, intelectualmente limitado e incapaz de administrar um almoxarifado de arruelas. Se Pazuello fugir da casinha, como de costume, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, poderá ter mais dificuldade de segurar a CPI --nesta quinta (18) deve haver reunião decisiva de senadores.

Embora CPIs sejam cada vez mais fracassadas, sabotadas ou de algum modo inócuas, são sempre um risco. No caso da incompetência criminosa da Saúde, o problema espirra em Bolsonaro, pois Pazuello é um capacho do presidente.

Dois senadores sem amor algum pelo governo dizem que Pazuello pode ajudar a adiar a CPI. Precisa demonstrar pelo menos uma vez capacidade de conversar, de conter suas grosserias de caserna. Contidas as patadas, teria de provar que virão regularmente insumos da China para fabricar mais vacinas e resolver o financiamento de UTIs.

Mesmo com a sua inteligência escassa, Pazuello poderia ganhar tempo para mostrar que seu cronograma de vacinas pode funcionar (e fazê-lo funcionar). Um calendário baseado em possibilidades de produção do Butantan e da Fiocruz, além de doses da Covax, indica que até março poderiam ser vacinados pouco mais de 31 milhões de pessoas. Até abril, 51 milhões. Até maio, 68 milhões. Seria uma mudança de jogo: a imunização de grupos em que morrem 89% das vítimas de Covid-19. No entanto, por ora chegaram apenas doses para vacinar 15 milhões (foram aplicadas ou podem ser fabricadas com material já entregue ao país).

Se Pesadello fizesse algo que prestasse na vida, conseguiria trazer outras 30,4 milhões de doses até maio, suficientes para vacinar pouco mais de 14 milhões. Mas não se sabe se a negociação dessas vacinas da Rússia e da Índia é mera fantasia do almoxarifado militar da Saúde. Pior, ainda não entendemos bem o que bloqueou ou pode bloquear a remessa de mais insumos da China para o Butantan e Fiocruz.

Variantes talvez muito perigosas do coronavírus se espalham pelo país sem que tenhamos testes para identificá-las, rastreá-las e entender o seu perigo: sua pestilência, capacidade de matar ou de driblar vacinas.

Estamos entre a possibilidade de vacinação em massa para grupos mais sujeitos a morrer de Covid-19 e o risco de um desastre ainda maior até abril. É uma corrida de morte entre a vacinação e a ameaça de uma nova onda monstruosa de epidemia.


Ruy Castro: O Brasil nas ruas

Não fosse pela pandemia, já haveria comícios gigantes contra a putrefação de Bolsonaro

No fundo de uma gaveta surge de repente um objeto cheio de história: um button verde-amarelo de um comício da campanha pelas Diretas Já, em 1984. Era o comício da Candelária, aqui no Rio, no dia 10 de abril. Não me lembrava desse button e vejo agora que ele viajou comigo por apartamentos, casas e cidades nesses inacreditáveis 36 anos —em breve, 37.

Pouco antes, em janeiro daquele ano, acontecera o primeiro comício pelas Diretas, o da praça da Sé, em São Paulo, que reunira 300 mil pessoas. Mas o do Rio teria 1 milhão, com a multidão entupindo a avenida Presidente Vargas, do palanque na Candelária à praça da República, e atapetando a Rio Branco, da praça Mauá à Cinelândia —uma massa humana em forma de cruz, mostrando de vez que o país estava farto dos militares.

No palanque, os artistas, os famosos e os líderes Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro, Fernando Henrique, Miguel Arraes, Leonel Brizola, Lula. Nem todos ali se davam: Montoro não gostava de Brizola, Brizola não gostava de Lula e Lula não gostava de ninguém. Mas todos tinham um inimigo comum: o regime, que já caia de podre e respirava por aparelhos, que eram as eleições indiretas para presidente votadas por um Congresso viciado. Daí os comícios, para pressionar os políticos a aprovar uma emenda que propunha restabelecer as diretas. Duas semanas depois, em 25 de abril, o Congresso traiu como sempre a nação, derrotando a emenda.

As diretas viriam, mas só dali a cinco anos, e Deus sabe quantos erros, desde então, cometeram-se em seu nome. As jornadas de 1984, no entanto, eram a prova de que existíamos ---e, não fosse pela pandemia, que nos obriga a lutar pela vida dentro de casa, o país estaria hoje de novo nas ruas, para exigir o despejo de Jair Bolsonaro.

Em 1984, a ditadura tinha 20 anos. Com dois anos de Bolsonaro, o Brasil já chegou a nível equivalente de putrefação.


Vinicius Sassine: Os comandantes e o bolsonarismo

Próximos anos podem servir para novas reações à relação entre um comandante e o ex-capitão

No comando do Exército, o general Eduardo Villas Bôas agiu para pressionar o STF e para favorecer seu candidato à Presidência: Jair Bolsonaro. Um tuíte com verniz conspiratório, agora dissecado pelo próprio Villas Bôas, foi feito para interferir no julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Lula, em 2018. A prisão do petista mudou a eleição.

As reações ao que ocorreu naquele momento-chave chegam com um atraso já habitual na democracia brasileira. Além de tardias, não passam de ruídos. E o mesmo deve ocorrer em relação à postura de um outro comandante, sucessor de Villas Bôas e atual líder do Exército brasileiro: o general Edson Leal Pujol.

Pujol não é Villas Bôas. Seu estilo é quase o oposto. Não há verborragia, redes sociais, pontes sólidas no mundo político ou ausência de sutilezas. Mas o comandante serve ao ideário bolsonarista, e sua conduta (ou a ausência dela) ajuda a compor as ofensivas mais danosas de Bolsonaro nesta primeira metade de mandato.

A permanência do general Eduardo Pazuello no cargo de ministro da Saúde e na ativa do Exército contou com aval de Pujol. Pazuello, hoje, é investigado por crimes e improbidade, suspeito de omissão diante de iminentes mortes por asfixia.

O laboratório do Exército produziu 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina, droga sem efeito para Covid-19, porque não houve objeção do comandante. Pelo contrário: o Exército distribuiu o medicamento de Bolsonaro a estados e municípios.

E o armamento da população, com flexibilização de regras, passa diretamente pelo esvaziamento de atribuições do Exército. Mais uma vez, Pujol é condescendente.

O comandante justifica a postura com explicações genéricas. "O laboratório do Exército é executor, não decide sobre medicamentos." Ou: "A passagem do militar à inatividade não é decisão discricionária do comandante". Os próximos anos podem servir para novas reações à relação entre um comandante e o ex-capitão.


Hélio Schwartsman: O golpe dos militares

Esforço para convencer de que a ditadura era coisa do passado não passou de propaganda enganosa

Por algum tempo eu acreditei que as Forças Armadas brasileiras haviam se profissionalizado, abandonando de vez a ingerência política e buscando o aprimoramento técnico. Eu estava errado.

Especialmente nos anos 1990 e na primeira década deste século, os militares brasileiros empreenderam um grande esforço de relações públicas para nos convencer de que a ditadura era coisa do passado e que as Forças Armadas estavam comprometidas com a democracia e preocupadas com a eficiência.

É claro que os militares ainda torciam o nariz para iniciativas como a Comissão da Verdade e, de vez em quando, algum deles, em geral um general de pijama, vinha com um discurso com ares de recaída autoritária. Nada que preocupasse muito. Bastaram, porém, alguns anos com a perspectiva de exercer mais poder, para constatarmos que tudo não passava de propaganda enganosa.

É complicado julgar uma instituição por alguns de seus membros, mas, se a performance dos militares no governo é representativa das Forças Armadas, a competência passa longe dos quarteis. O caso mais gritante é o do general Eduardo Pazuello, perdido no Ministério da Saúde, mas não é o único. Nunca um governo teve tantos militares em seus quadros e nunca vimos uma administração tão ineficaz quanto esta.

O compromisso com a democracia também não era firme. O famoso tuíte de 2018 em que o general Eduardo Villas Bôas fez ameaça velada ao STF até poderia, com boa vontade, ser classificado como estupidez individual. Agora que ficamos sabemos que a mensagem resultou de uma trama envolvendo toda a cúpula do Exército, o caso ganha outra dimensão.

Num país mais decente, os generais que participaram da reunião e ainda estão na ativa seriam postos na reserva e se abriria uma investigação para apurar sedição. Mas estamos no Brasil. Não precisam se preocupar com isso. Tolo sou eu que acreditei no golpe de marketing castrense.


Bernardo Mello Franco: Gilmar e Fachin no baile de máscaras do Supremo

O carnaval foi cancelado, mas o Supremo manteve viva a tradição do baile de máscaras. Na terça-feira gorda, o ministro Gilmar Mendes voltou a se exibir em nova fantasia. Ex-integrante do Bloco da Lava-Jato, ele agora desfila na ala dos críticos da operação.

Em entrevista à BBC News Brasil, Gilmar disse que a força-tarefa de Curitiba virou “movimento político” e “tinha candidato” na última eleição presidencial. Faz sentido, mas parece que ele demorou a notar.

Por muito tempo, o ministro elogiou os métodos de Moro, Dallagnol & cia. Em setembro de 2015, ele disse que a operação salvou o Brasil de virar uma “cleptocracia”. “A Lava-Jato estragou tudo”, comemorou.

Seis meses depois, Gilmar barrou a nomeação de Lula para a Casa Civil com base num grampo divulgado ilegalmente por Moro. A liminar invadiu atribuição do Executivo e deu o empurrão final para o impeachment.

Consumada a queda de Dilma Rousseff, o ministro passou a enxergar abusos na Lava-Jato. Em entrevista recente, ele apontou um “jogo de promiscuidade” entre juiz e procuradores. Curiosamente, não viu problema em seus 43 telefonemas com Aécio Neves quando o tucano era investigado por corrupção.

Com a fantasia de garantista, Gilmar reciclou a imagem e virou herói de setores da esquerda. A amnésia faz parte da folia, mas a Lava-Jato é a mesma de outros carnavais. Quem mudou foi o supremo ministro.

Na segunda-feira, Edson Fachin brilhou como destaque no baile de máscaras. Em nota, ele afirmou que a pressão de militares sobre o Supremo é “intolerável e inaceitável”. O ministro tem razão, mas está atrasado.

Quando o general Villas Bôas emparedou o tribunal com uma ameaça de golpe, às vésperas da eleição de 2018, Fachin silenciou. Quase três anos depois, desperta para a interferência “gravíssima” dos quartéis.

A esta altura, o protesto não tem qualquer efeito prático. Só serve como tentativa de retocar a biografia do ministro. Ainda assim, ele virou alvo de novo deboche do general


Zeina Latif: É o que temos para hoje

"Não convém tomar a aprovação da autonomia do BC como um sinal de que medidas importantes virão na sequência"

O comportamento do dólar tem incomodado o mercado financeiro, por estar muito descolado das moedas de países parecidos. A taxa de câmbio oscila ao redor de R$/US$ 5,40, enquanto modelos de projeção do câmbio apontam para aproximadamente 4,20 atualmente. Esse hiato não será eliminado tão cedo.

É verdade que os modelos de projeção têm grandes limitações, pois a taxa de câmbio não é um preço qualquer da economia, mas também de um ativo financeiro, sensível a expectativas e percepção de risco de investidores, que não são diretamente mensuráveis.

Mesmo assim, a expressiva distância entre as cotações atuais e o projetado, poucas vezes vista, sinaliza um novo fator de risco doméstico não captado pelos modelos.

Algo similar ocorreu no início do governo Temer, mas no sentido contrário: cotações muito abaixo do projetado, em função da expectativa de reforma da Previdência, um tabu na época. O escândalo político esvaiu o descolamento.

Via de regra, fatores externos associados ao ciclo mundial (dólar contra uma cesta ampla de moedas, preços de commodities, apetite global para risco) têm maior importância para explicar o comportamento do dólar, e deveriam estar puxando a cotação para baixo, assim como o fazem em outras economias emergentes.

Porém, fatores domésticos associados ao risco de ter recursos no Brasil estão pesando mais.

O novo fator de risco decorre de um duplo efeito da pandemia. Primeiro, uma inevitável correção de expectativas do mercado, excessivamente empolgado com o governo até então.

A crise evidenciou a baixa qualidade da gestão governamental e a reduzida disposição de enfrentar problemas estruturais, apesar de crises poderem ser janela de oportunidade para reformas.

O segundo ponto é que o Brasil sairá estruturalmente mais fraco da longa pandemia. O potencial de crescimento será provavelmente menor, pois há baixo investimento nas empresas e a mão de obra estará ainda mais despreparada, diante de desemprego prolongado e avanço digital.

E o quadro fiscal se agravou. O corolário é que aumentou a urgência de reformas.

Não convém tomar a aprovação da autonomia do BC como um sinal de que medidas importantes virão na sequência.

Foi apenas um gesto da Câmara sob nova presidência, com um tema menos polêmico e com concessões em demasia para vencer resistências da oposição. A cada etapa, o jogo recomeça. A base do governo não é sólida e tampouco a agenda de reformas.

A dinâmica da dívida pública é suficientemente preocupante, pois seguirá em alta por muitos anos, incluindo o próximo mandato presidencial, mesmo cumprida a regra do teto.

Mas ela não revela de forma precisa os riscos fiscais a serem enfrentados, especialmente com crescimento medíocre – as projeções do PIB em torno de 2,5% nos próximos anos parecem otimistas.

Além de prejudicar a arrecadação, a economia fraca pressiona os gastos sociais, eleva o risco de inadimplência nas linhas de crédito com garantias da União e de ações judiciais, particularmente as relativas a pagamentos de tributos.

Apesar de não haver uma relação clara entre o fluxo de recursos para um país e o comportamento da moeda, vale citar a saída de US$28 bilhões em 2020. O valor é inferior aos US$45 bilhões em 2019, mas a abertura dos dados não traz alento.

Parte importante da “melhora” é transitória (como a queda de gastos de turistas no exterior) ou negativa (desinvestimento de empresas brasileiras no exterior). E a queda de 51% no investimento direto estrangeiro destoa do recuo de 12% em países emergentes ou mesmo de 42% no mundo.

O Brasil perde participação global por conta da baixa expectativa de crescimento - variável chave para atrair o capital estrangeiro menos volátil.

No mercado, alguns torcem para o Banco Central elevar a taxa de juros Selic para aumentar a atratividade do real. Talvez ajude a conter a volatilidade da moeda, mas o problema é de outra natureza, de perspectiva de médio-longo prazo.

A não ser que haja sensível enfraquecimento do dólar no mundo, é pouco provável que o câmbio recue de forma relevante. Pelo menos até que haja expectativa de renovação política em direção a uma agenda mais estruturada e ambiciosa para destravar, paulatinamente, a economia. Em um cenário de campanha competitiva do centro democrático liberal em 2022, o dólar poderá ceder.