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Bruno Boghossian: Ministros querem evitar que processo de Silveira saia do STF em caso de cassação ou renúncia

Integrantes do tribunal acreditam que deputado tem menos chances de ser condenado se ação mudar de instância

Mesmo com a prisão mantida pela Câmara, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) ainda tem chances de escapar de uma punição definitiva. Ministros do STF lembram que, se o parlamentar for cassado ou renunciar ao mandato, o processo contra ele pode ser remetido a um tribunal de primeira instância.

No Supremo, o ambiente é evidentemente desfavorável ao deputado, como mostrou a sessão da última quarta (17). Até o decano Marco Aurélio Mello, famoso por ficar isolado nas votações, aderiu à maioria e ressaltou que “ninguém coloca em dúvida a periculosidade do preso”. É praticamente certo, portanto, que o tribunal deve tornar Silveira réu.

Ainda assim, o processo pode sair das mãos do STF. As regras do foro especial determinam que uma ação muda de instância se um político perde o cargo antes da conclusão da fase de depoimentos. Em caso de renúncia ou de cassação do mandato por seus colegas da Câmara, ele pode responder em Petrópolis (RJ) pelas ameaças ao Supremo.

Alguns ministros consideram improvável que Silveira seja condenado em sua cidade natal. Um dos juízes federais que atuam no município já citou Olavo de Carvalho, ideólogo do bolsonarismo radical, ao rejeitar uma denúncia de estupro contra um militar da ditadura. Ele escreveu que direitos humanos não devem ser “meros pretextos para dar vantagens a minorias selecionadas que servem aos interesses globalistas”.

Ainda que a Câmara prefira não cassar Silveira, o deputado pode renunciar para encontrar um terreno mais confortável. De quebra, ele escaparia de se tornar inelegível e poderia disputar eleições em 2022.

Integrantes do Supremo querem parar o chamado “elevador processual”. Um dos ministros defende uma questão de ordem para que o processo continue no tribunal em caso de cassação ou renúncia, sob o argumento de que não é possível escolher o órgão julgador. O próprio STF manteve essa brecha no confuso processo que atropelou a lei e mudou à força as regras do foro especial.


Elio Gaspari: Daniel Silveira errou o tiro

Deputado, que se dizia “cagando e andando” para as opiniões do STF, pensou em criar uma crise institucional; deu errado, fosse qual fosse a intenção

Daniel Silveira é um ex-PM do Rio. Em seis anos na corporação, pagou 26 dias de prisão, com 14 repreensões. Antes de entrar para a polícia, ele se valia de falsos atestados médicos fraudados por um faxineiro para faltar ao serviço. Preso na semana passada, manteve dois celulares na sala da Polícia Federal onde ficou, por decisão do ministro Alexandre de Moraes.

Esse personagem, que dias antes se dizia “cagando e andando” para as opiniões de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), pensou em criar uma crise institucional no Brasil. Ele foi o estuário de uma visão nascida em 2018, quando o deputado Eduardo Bolsonaro disse que “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal”. Não bastam.

Ao seu estilo, Daniel Silveira usou a repercussão do depoimento do general da reserva Eduardo Villas Bôas para atacar, em nome de sua agenda pessoal, os ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Os inquéritos sobre mobilizações antidemocráticas propagando mentiras estão na mesa de Moraes. Fosse qual fosse a intenção de Silveira, deu errado.

Na última terça-feira, quando os ataques do deputado chegaram ao conhecimento de ministros do Supremo, vários deles discutiram o caso com Moraes. À noite, ele mandou prendê-lo. Silveira sustenta que o flagrante citado por Moraes não se sustenta. O que não se sustenta é sua jurisprudência. Enquanto uma mensagem está postada pelo autor, o delito está em curso. (Depois que Silveira foi em cana, o vídeo foi apagado.)

Pelo andar da carruagem, ainda nesta semana o doutor poderá passar para um regime de tornozeleira, com limitações cautelares. A partir daí, tudo dependerá do seu comportamento.

A julgar pela sua conduta respeitosa durante a audiência de custódia de quinta-feira, o que foi combinado ficará de pé. Caso Silveira tenha uma recaída, saindo por aí “cagando e andando” por onde bem entende, cairá de novo na jurisdição de Alexandre de Moraes.

Villas Bôas também esperou três anos

O general da reserva Eduardo Villas Bôas ironizou o arroubo do ministro Edson Fachin, que considerou “gravíssima” sua revelação dos bastidores da preparação do famoso tuíte de 2018. Nele, o então comandante do Exército prensou o Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento de um habeas corpus impetrado em favor de Lula.

Villas Bôas foi breve: “Três anos depois”.

Na mosca. Fachin demorou para ficar indignado, e não foi por falta de exemplo, porque o ministro Celso de Mello repudiou o tuíte no dia seguinte.

“Três anos” também foi o tempo que Villas Bôas demorou para contar como produziu o texto, colocado na sua conta pessoal do aplicativo. Com uma diferença: Fachin demorou, mas pôs a cara na vitrine; Villas Bôas terceirizou parte da iniciativa.

Nas suas palavras:

“O texto teve um ‘rascunho’ elaborado pelo meu staff e pelos integrantes do Alto Comando residentes em Brasília. No dia seguinte — dia da expedição—, remetemos para os comandantes militares de área. Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente.”

O general fez dois tuítes, somando 75 palavras. Se elas tomaram todas as horas do expediente, cada uma foi medida. A certa altura, Villas Bôas assegurou que “o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade”. Deu no que deu.

Em outros tuítes, Villas Bôas havia louvado o “soldado Luciano Huck” e uma apresentação de Sabrina Sato na Academia das Agulhas Negras. Noutra ocasião, defendeu o desempenho da atriz Regina Duarte, então secretária de Cultura, numa entrevista, por sua “grandeza, perspicácia, inteligência, humildade, confiança, doçura, (e) autoconfiança.”

Ao revelar detalhes da edição do tuíte, Villas Bôas compartilhou sua gênese. Chefe militar pode ouvir seus comandados por respeito e até mesmo por cortesia, mas não revela isso três anos depois.

Imaginar comandantes como Leônidas Pires Gonçalves ou Orlando Geisel contando que suas palavras foram submetidas e discutidas com subordinados equivale a imaginá-los de boné num show do cantor Belo na Maré.

Nunca é demais lembrar o papelzinho que o general Dwight Eisenhower guardou no bolso em 1944, durante o dia do desembarque das tropas aliadas na Normandia, caso a operação fracassasse:

“Se alguma culpa deve ser atribuída à tentativa, ela é só minha”.

Deu tudo certo, e em 1953 ele se tornou presidente dos Estados Unidos.

Nunes Marques

Na noite de quarta-feira, os ministros do Supremo achavam que no dia seguinte a Corte sustentaria a decisão de Alexandre de Moraes por 10x1.

Ficaria vencido o ministro Nunes Marques. Feitas as contas do outro lado, entendeu-se que esse resultado seria pior. E assim chegou-se à unanimidade.

Ricardo Boechat

Completaram-se dois anos da morte do jornalista Ricardo Boechat, e o laboratório Libb, que o havia contratado para uma palestra em Campinas, interrompeu as negociações amigáveis para custear a continuidade do tratamento médico de uma das filhas que deixou, estimado em R$ 15 mil a R$ 20 mil mensais. Enquanto viveu, Ricardo Boechat arcou com essa despesa.

Boechat morreu quando caiu o helicóptero que o trazia de volta a São Paulo, depois de uma palestra no Libb, em Campinas.

Contratualmente, o transporte de Boechat era de responsabilidade do Libb. A aeronave estava bichada, e a empresa contratada não tinha autorização para fazer esse tipo de serviço.

Depois de quatro meses de negociações amigáveis, o laboratório Libb resolveu judicializar a questão. Ele é o oitavo maior do mercado, com o slogan “empresa inspirada pela vida”.

Numa conta de padaria, uma decisão de primeiro grau poderá demorar mais de um ano. Com recursos, pode-se ir a cinco anos.

Turismo irresponsável

Disposto a mostrar que não é um “maricas”, Jair Bolsonaro passou o carnaval na praia, festejando curiosos, sempre sem máscara.

Seu governo lançou a campanha “Turismo Responsável”, criando um selo para agências de serviços e empresas.

Quem vê os vídeos da propaganda do selo pode pensar que está na Nova Zelândia. Lá, sob o comando da primeira-ministra Jacinda Ardern, morreram 26 pessoas, cinco para cada milhão de habitantes. Na terra das palmeiras, onde canta o capitão, morreram mil para cada milhão de brasileiros.

Perseverança

Depois de cinco meses de viagem, o robô Perseverance pousou em Marte.

Completaram-se 14 meses do dia em que o repórter Aguirre Talento revelou a existência de um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)que torraria R$ 3 bilhões na compra de equipamentos eletrônicos para escolas públicas. Os 244 alunos de um colégio mineiro receberiam 30.030 laptops.

Ainda não se sabe quem botou esse jabuti na burocracia do FNDE.

A perseverança da Nasa é coisa de principiantes.


Bernardo Mello Franco: O caminho do Capitólio

No dia seguinte à invasão do Capitólio por seguidores de Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro avisou que sua tropa pode replicar a baderna no Brasil. “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, disse.

Trump questionou o resultado das urnas para mobilizar seus radicais contra a democracia. O capitão mina a confiança no voto eletrônico para justificar uma rebelião em caso de derrota. Na cabeça dele, o “problema” pode ser a solução para se manter no poder pela força.

Na véspera do carnaval, Bolsonaro editou novos decretos que facilitam o acesso a armas e munições. A iniciativa segue a cartilha anunciada na reunião ministerial de abril passado: “É escancarar o armamento no Brasil. Eu quero o povo armado”. Naquele momento, a ideia era fomentar um levante contra governadores e prefeitos. No ano que vem, a mira deve se voltar contra a Justiça Eleitoral.

No discurso de Bolsonaro, armar o “povo” significa municiar aliados e seguidores. Gente como o extremista Daniel Silveira, que incitou a violência contra o Supremo e se disse disposto a “matar ou morrer” pelo chefe.

O deputado marombado foi preso, mas suas ideias estão soltas na base bolsonarista. Na sexta-feira, o ogro foi tratado como mártir pelo Clube Militar. Em nota, a entidade exaltou a ditadura e falou em “arbitrariedades do STF”. Apesar de defender o regime autoritário, reivindicou “liberdade de expressão” para o conspirador.

A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, alerta que a ofensiva armamentista do governo nada tem a ver com o discurso de autodefesa do “cidadão de bem”. Um dos novos decretos permite que o mesmo atirador compre 60 armas.

“Bolsonaro incentiva abertamente a formação de milícias privadas. Esta é a principal ameaça à democracia no Brasil, junto da politização das forças policiais”, afirma a pesquisadora. Neste cenário, milícias que já elegem deputados e vereadores podem ser usadas para subverter a corrida presidencial.

Em entrevista recente à “Folha de S.Paulo”, o ministro Edson Fachin manifestou “preocupação agravada com a corrupção da democracia” no país. Entre os sintomas da doença, listou a “remilitarização do governo civil”, o “incentivo às armas”, as “declarações acintosas de depreciação do valor do voto” e os ataques ao Judiciário e à imprensa.

O ministro desenhou o caminho para uma invasão do Capitólio tupiniquim. Ele assumirá o comando do TSE em fevereiro de 2022, a oito meses da eleição presidencial.

Velhas novidades

O Partido Novo se diz liberal, mas não perde uma chance de lustrar as botas do capitão. Das 24 legendas na Câmara, foi a única a votar unida contra a prisão de Daniel Silveira.

O deputado Marcel van Hattem ousou comparar o bolsonarista ao ex-deputado Márcio Moreira Alves. Um defende a ditadura e queria surrar ministros do Supremo; o outro denunciou as torturas e foi cassado pelo AI-5.

Van Hattem foi o campeão de votos do Novo em 2018 e se tornou o primeiro líder da sigla em Brasília.


Merval Pereira: Preparando o futuro

Sem entender, ou se preocupar, com a importância de cada palavra sua, especialmente em questões sensíveis como a administração de uma estatal como a Petrobras, que tem acionistas em várias partes do mundo, o presidente Bolsonaro prometeu que na próxima semana teremos mais surpresas como a que derrubou o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, e colocou em seu lugar mais um general.

A politização vulgar de todos os temas nacionais, desde a questão das armas até o preço do diesel, faz com que o presidente Bolsonaro transforme o cotidiano brasileiro em um campo de batalha onde o que importa são os votos que esta ou aquela decisão poderá trazer para sua obsessiva busca de manter o poder que conquistou em momento de depressão nacional.

Emílio Delçoquio, um dos líderes da paralização dos caminhoneiros durante o governo Temer, é amigo de Bolsonaro, e o acompanhou nos feriados de Carnaval em Santa Catarina. Esta aproximação, no momento em que se discutia o aumento do óleo diesel, é preocupante e leva a uma ilação natural de que a mudança na Petrobras foi gestada naqueles dias.

O General Joaquim Silva e Luna, antes mesmo de assumir a presidência da Petrobras, disse que a estatal tem que se preocupar, além dos acionistas, com o povo brasileiro, que precisa encher o tanque de seu carro. A Venezuela também botou um General no comando da PDVSA, e se preocupava com o preço da gasolina nos postos. Tinha a gasolina mais barata do mundo, para alegria dos venezuelanos, e a popularidade de Chávez. Mas o país quebrou, e junto com ele a empresa estatal.

Tudo é tratado pontualmente, mesmo quando há um projeto político por trás, como é o caso do armamento. O presidente retirou o debate sobre o armamento da esfera da segurança pública e o levou para o da política, ao dizer que o povo tem que se armar para defender sua liberdade.

Nenhuma questão tomou mais a atenção da administração bolsonarista do que esta, com mais de 30 decretos e  regulamentações com o mesmo objetivo,  ampliar o uso e o acesso de armas de fogo ao cidadão comum, e o relaxamento do controle que anteriormente era feito pelo Exército ou pela Polícia Federal, e que passa a ser responsabilidade de clubes de tiros, ou liberado de uma burocracia que, nestes casos, servia para manter sob o controle de organismos do Estado o rastreamento de munições e o uso de armamentos e equipamentos antes restritos aos militares.

Como adverte o ex-ministro da Defesa Raul Jungman, agindo assim o presidente incorre em problemas sérios: está quebrando o monopólio da violência legal, fator constitutivo do Estado nacional, cuja existência se dá a partir do momento em que ele controla esse monopólio. As Forças Armadas, lembra Jungman, são a base desse monopólio, e com isso perdem o papel de garantidor da democracia.

Política de tal teor “está levantando o espectro terrível de uma guerra civil entre os brasileiros”, lamenta Jungman, que lembra que as milícias e o crime organizado saem vitoriosos desse afrouxamento de regras sobre o armamento, fazendo letra morta o Estatuto do Desarmamento. Os grupos protofascistas dos quais faz parte o deputado federal (ainda?) Daniel Silveira só cresceram em audácia pelo ambiente permissivo de violência, verbal e física, instalado no país por Bolsonaro.

A militarização dos quadros do Estado, que leva um general a substituir outro na binacional Itaipu, por exemplo, mistura o que deveria ser óleo e água, com políticos e militares disputando lugares na administração federal, cada qual garantindo a Bolsonaro imunidades a seus alcances. Quando um presidente da República anuncia que o regime democrático não é o que ele gostaria, está declarando que sua preferência é outra, deixando no ar que prepara um futuro mais adequado às suas inclinações ideológicas.

Cabe às forças democráticas barrarem esses delírios, como fizeram no caso do deputado parlapatão, e como anunciam que farão com os decretos de armas.


Já está no ar edição 28 da Revista Política Democrática Online

Edição de fevereiro destaca entrevista com o ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga. Reportagem especial analisa como os impactos da pandemia aprofundam as desigualdades no Brasil

Já está no ar a edição 28 da Revista Política Democrática Online. Armínio Fraga é o entrevistado especial desta edição, que teve a participação de Raul Jungmann e Caetano Araújo como entrevistadores.

Clique para acessar a edição 28 da Revista Política Democrática Online

Nesta edição você também pode conferir a reportagem especial escrita pelo jornalista Eumano Silva, que faz uma análise de como os impactos da pandemia aprofundam as desigualdades no Brasil, com as incertezas aumentadas pelo fim do auxílio emergencial e as falhas na vacinação da população brasileira pelo Ministério da Saúde do Governo Bolsonaro.

A RPD 28 traz, ainda, artigos dos articulistas Mauro Oddo Nogueira, Ivan Accioly, Lilia Lustosa, Henrique Brandão, Nelson Tavares, Dora Kaufman, José Gomes Temporão, Luiz Antonio Santini, Dawisson Belém Lopes e André Amado, além da charge de JCaesar. Confira, também, o editorial da Revista Política Democrática Online.

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Cristovam Buarque: Labirinto de espelhos

Brasil está ficando para trás na marcha do progresso

Por nossos erros ao longo de décadas, o Brasil está ficando para trás na marcha do progresso. Em decadência pela desigualdade social, pobreza, fracasso educacional, sem produtividade nem inovação, um Estado esgotado fiscal, gerencial e moralmente, sistema de ciência e tecnologia insuficiente, democracia e instituições políticas frágeis, sociedade violenta e armada, cidades “monstropolitanas”. Para agravar, com governo despreparado, desumano, sem bússola, antidemocrático, antissocial, sem empatia, reacionário, armamentista, preconceituoso, negacionista do valor do conhecimento, desmoralizado no cenário internacional.

O Brasil precisa de um rumo para orientar-se no seu terceiro centenário, que se inicia no próximo ano. Mas antes mesmo de formular este rumo, o Brasil precisa de coesão no presente e evitar o desastre previsível para os próximos. Ao observar os movimentos dos candidatos a presidente em 2022, a sensação é de que eles estão passeando em um labirinto de espelhos: nenhum sabe o caminho e cada um olhando para si ou seu partido, não para o país. Não reconhecem os erros cometidos que levaram à derrota em 2018, nem assumem responsabilidade pelas consequências de reeleição do atual presidente. Ao final do labirinto de espelhos, os candidatos imaginam a cadeira presidencial lhes esperando, sem perceberem que os caminhos labirínticos podem levar a um abismo.

Além de não perceberem o labirinto de espelhos, os candidatos não estão buscando construir uma base eleitoral capaz de vencer e impedir à maldição de um segundo mandato de Bolsonaro. Evitando ficarmos ainda mais divididos e desiguais internamente, isolados internacionalmente, armados miliciamente, enganados pelo negacionismo. E ainda ameaçados de reforma constitucional para permitir mais de uma reeleição depois.

Nossa função imediata consiste em unir os candidatos e escolher aquele com mais condições de atrair o voto do eleitor, com a menor rejeição. Na tormenta, a âncora é mais importante que a vela. Precisamos de quatro anos que permitam o debate entre os candidatos, buscando um projeto de nação para o terceiro centenário da independência. Até lá, precisamos quebrar os espelhos: os candidatos olharem menos para seus partidos e mais para o país, se preocuparem menos com seus programas, visões e interesses pessoais e mais com a tarefa do presente, menos divisão personalista e ideológica e mais unidade democrática, desde o primeiro turno.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


Paulo Fábio Dantas Neto: Emergência sanitária e paciência política - O fator Mandetta

Ao longo do ano de 2021 a situação de grave vulnerabilidade sanitária em que se encontra a população brasileira promete converter-se numa nefasta singularidade no mundo. Tudo parece indicar que seremos, ao final desse ano, o único país de relativa importância que não terá vacinado, em grau decente, a sua população. Além das centenas de milhares de vidas já perdidas, o acesso precaríssimo a vacinas condena os brasileiros à ausência de horizontes. À insegurança, à desconfiança e ao medo, que afetam a qualidade da vida de cada pessoa, corresponde a experiência comum de radical incerteza quanto ao momento de interrupção do círculo vicioso de adoecimento e morte, que afeta o ambiente social.

Ar rarefeito, dura e ameaçadora realidade enfrentada pelas pessoas enfermas, tornou-se metáfora precisa das condições possíveis de sobrevivência coletiva em nosso país. Elas são uma jaboticaba venenosa, plantada pelo desligamento paulatino e deliberado dos motores do Ministério da Saúde, a partir do final de abril de 2020. O atentado ao SUS, a virtuosa jaboticaba federativa que o processo de democratização nos deixou como legado, já produziu consequências irreversíveis. O que se pode - em angustiante médio prazo que requer ação imediata - é deter a marcha implacável da tragédia e mitigar seus efeitos, por meio de uma política de redução de danos. Inusitado convívio de emergência e paciência.

É dever da política providenciar o oxigênio. Inexiste explicação, argumento ou causa nobre que justifique deslocar a plano sequer concorrente qualquer outra prioridade do país. Suspender juízos doutrinários, moderar impulsos inovadores, adiar definições partidárias, repensar alianças políticas são procedimentos cabíveis para combater, da melhor forma possível, os danos sociais da pandemia. Esse o sentido mais objetivo e atual que podem assumir a política econômica, as políticas de auxílio a vulneráveis e as chamadas reformas, por mais que todas essas políticas remetam, também, a horizontes transcendentes ao contexto da pandemia. Prospecções e metas, sejam quais forem seus intervalos temporais, tendem ao fracasso se não dialogarem com esse contexto que as pauta. Pode-se dizer que entregar esse oxigênio é a prova de legitimidade a que se submete, hoje, nossa democracia.

A representação política é a forma institucional que permite conseguir o oxigênio para a sociedade não parar de respirar. Fora dela o sucesso é improvável. Contra ela, inviável. A ciência normativa da política ensina que, num país onde presidencialismo é tradição arraigada e instituição vigente, a representação política nacional realiza-se, de fato, por duas vias concorrentes, o Congresso e a Presidência da República, que repartem o governo. E sendo o Estado, ademais, federativo, essa bifurcação da representação desdobra-se em governadores e prefeitos, deputados e vereadores. 

No mesmo sentido há uma lição da política prática que a pandemia reitera de modo cabal. Passaram pelo crivo da representação política – sob guarda e vigilância do Judiciário - todos os instrumentos de que, bem ou mal, dispomos hoje para reduzir danos. E todos os fracassos que agravaram danos estiveram ligados à pretensão presidencial de desvirtuar a representação política, seja para tornar despótica a que ele exerce, seja para atacar as demais instâncias representativas e seus respectivos titulares, em quem vê inimigos.

É fato, porém, que, mesmo subvertendo instituições e os padrões de interação política próprios da democracia, o presidente exerce um mandato representativo. E para que não se incorra em autoengano, é bom entender que seu mandato foi conquistado em arena eleitoral diversa daquela que cria a representação legislativa, sendo exercido, portanto, conforme lógica personificada, oposta à que preside a dinâmica partidária do Legislativo.  Portanto, não será propriamente uma aberração Bolsonaro enfrentar com sucesso uma nova eleição presidencial mesmo se estiver novamente, como já esteve, isolado, no Congresso.

Do mesmo modo poderá se dar mal na reeleição, mesmo com todo o centrão em seus braços. Retomo um ponto que mencionei em artigo recente (“Crônica de um revés parcial: duas arenas e a política de resistência democrática” – Revista eletrônica Política Democrática / fevereiro 2021para frisar que a dinâmica eleitoral e parlamentar do Congresso é uma, a da disputa e exercício da Presidência, outra.  O fato de Bolsonaro ser um protofascista não deve cegar para o fato de que não apenas ele é um líder plebiscitário, mas também é plebiscitária a lógica da instituição que ele preside, embora o faça de modo exacerbado, capaz de levar a lógica à sua nêmesis. Competir implica atentar a esse aspecto.

Conclamações, no interior da sociedade política, a um esforço comum dos Poderes da República, acima dos partidos e grupos, para haver vacina e vacinação refletem crescente consenso a partir de uma gradativa noção da gravidade do problema e do perigo intrínseco que ele traz de esgarçar o tecido social e assim trincar a legitimidade do sistema político. Porém, é da própria natureza da política democrática, que a coordenação de ações cooperativas ocorra tendo como premissa a competição política.

Nada mais inócuo do que o apelo - ingênuo ou demagógico - para que se sacrifique crenças e interesses parciais para abraçar crenças e interesses comuns. O repertório de crenças é sempre plural e o interesse comum são pontos. Portanto, fala-se aqui não de sacrifício, mas de boa compreensão. Os termos da competição mudam em presença da pandemia, reforçando o hábito de alianças e a construção de consensos.  Mas não se cogita suspender a competição. Precisamente nisso consiste uma diferença crucial entre saídas democráticas e autoritárias da crise.

Resulta, daí, que é possível pensar numa ampla frente por vacinação no Congresso, que vá do centrão à esquerda, quase uma unanimidade e ser necessário fazer, na outra arena, oposição frontal à política (ou antipolítica) de Bolsonaro na Saúde. O mesmo vale para o auxílio emergencial e todos os demais pontos da agenda política. Consensos legislativos constroem-se pela média das posições. Eles não excluem que o que ficou à margem do consenso seja objeto de renhida disputa na arena presidencial.

Considerar assim a competição implica em saber que o governo federal, em que pese ter posto em prática, durantes vários meses, uma ação negacionista aniquiladora dos meios institucionais de combate à pandemia, acena agora a uma reversão de turbina no objetivo, sem, no entanto, desistir do método de desconstruir instituições. Declara agora querer apressar a vacina e sob esse pretexto procura desqualificar tecnicamente a Anvisa, por uma manobra legislativa que a submeteria a comandos políticos. Sob o mesmo pretexto, o ministro Pazuello altera o critério da vacinação e desorienta prefeitos a não mais guardarem segundas doses, ainda que ao risco de criar um contingente de sub vacinados.  Seriam folclóricos, se não fossem delituosos, os arroubos ilusionistas do ministro, fazendo projeções fictícias com vistas a acalmar os sobressaltos, adiando-os até que se tornem novos e trágicos fatos consumados. Para não falar na manutenção, em meio à guinada retórica, da mesma omissão do MS nas tarefas de coordenação do SUS, do que resulta uma ausência de padrão nacional no modus operandi da vacinação e a insensata definição de 80 milhões de pessoas como prioritárias. A demagogia é filha primogênita do negacionismo. Quais serão os frutos podres seguintes?

Há, portanto, novidades nos movimentos atuais do Bolsuello na Saúde e quem quiser se opor a eles de modo consequente precisa entender o mal desde a gênese. É errado narrar o processo como desastre iniciado só quando o Eichmann da logística sentou-se na cadeira de ministro. Assim como erra quem supõe que o mal é banal como ele e se irá com ele caso as instituições o expilam, como devem fazer.  A operação militar cujas consequências mais drásticas talvez o país ainda não tenha sofrido não pretendeu, a princípio, implantar coisa alguma, só intentou destruir um arranjo institucional de política pública com alta capacidade de agregação política, que dava a esse arranjo também um potencial eleitoral. A imprensa brasileira e os meios políticos enxergaram bem que Bolsonaro, ao retirar Luiz Mandetta do ministério da Saúde, no auge da pandemia, queria afastar um potencial adversário nas urnas. Mas não estavam igualmente atentos – ou se estavam subestimaram – ao fato de que o script era, mais que afastar Mandetta, destruir o arranjo que ele armou. 

A memória dessa pandemia precisa corrigir um equívoco: ela não se divide em antes e depois de Pazuello e sim entre um durante e um depois de Mandetta. É inaceitável colocar como análogas a sua experiência no MS e a de Nelson Teich. Mas é o sistematicamente dito, desde aquela época. E, no entanto, cá estamos, um ano depois, falando de Mandetta. Por que, se nenhum partido o adotou? Atribuo o fato à consistência do legado de uma gestão.

Uma oposição realista que se deseje digna do substantivo e do adjetivo não fará movimentos em círculo para reinventar a roda.  Se quiser um roteiro para uma condução alternativa à irresponsabilidade do MS, irá encontrá-lo naquela curta experiência. A propósito, permitam-me fazer nova autorreferência, agora ao artigo “Desconstrução de memória da gestão Mandetta é ameaça ao SUS” (Revista Política Democrática / maio 2020). Relembro aqui partes dele, indicando que Pazuello ainda não era ministro e já não se sabia aonde fora parar a ênfase engajada no isolamento como conduta prudente e solidária; a conexão estreita com o mundo da ciência e a área técnica da saúde pública; a articulação federativa que gerava sintonia fina entre o MS e os governadores; a articulação com o Congresso, para opinar sobre o conteúdo das medidas a serem votadas.

Pazuello ainda era o segundo do MS e já se notava a lassidão federal face à velocidade da crise sanitária e era notória a indiferença do ministro sucessor à dimensão política da crise. Já ali a intervenção começara, através da secretaria executiva do ministério, desconectada da área de saúde e assumida por um militar interventor que já rondava a cadeira do ministro.  E já ali se interrompia o fluxo de informação segura, realista, transparente e diária com a qual o MS vinha a público, substituída por informação rarefeita e filtrada na forma de monólogos.

Infelizmente não se deu a esse imediato contraste a atenção devida. O fato do novo ministro ser um médico permitiu uma benevolência que gerou um lapso curto, mas fatal. Os meios de comunicação e as forças políticas do País não esboçaram, diante do gesto absurdo do presidente contra um gestor comprometido com uma política pública geradora de moderação e de grande empatia social, uma reação sequer aproximada à que se deu quando, logo depois, o ministro Sergio Moro saiu do governo atirando. Bem pesadas as coisas, merece reflexão crítica a prioridade dada, como fato digno de reação política e civil, à indicação do superintendente da PF do Rio de Janeiro, objeto de intervenção judicial, enquanto a demissão do ministro da Saúde sequer suscitara declarações de intenção de embargo. Contudo, o contraste foi instantaneamente gritante entre a sensação de segurança relativa de antes, em meio ao temor e a impressão, já então presente, de que o governo desligara os motores do MS para descer na banguela a ladeira da pandemia.

Hoje já está em curso mais do que uma ação destrutiva. Apesar dos danos que ela causou e causa, o governo pretende ser beneficiário de ações da coalizão pró vacina que se articula no Congresso Nacional. Entendendo o paralelismo das arenas, é papel da oposição reforçar a coalizão sem permitir essa fraude. A marcação cerrada sobre o MS, com ou sem Pazuello, não poderá descansar. Precisa envolver a sociedade civil e ter clareza sobre o que propor.

Os pontos que alinhavei sugerem que cabe ao ex-ministro da Saúde papel de coliderança no grande esforço nacional para enfrentar a crise sanitária sem ceder ao caráter antissocial da política do governo e ao mesmo tempo sem dispensá-lo das pressões possíveis para que cumpra o seu papel. Sua imagem pública lhe permite agir ao modo usual da sociedade civil .

Ele também é um quadro da sociedade política que se conectou com o andar de baixo do eleitorado  sem a mediação de uma prévia identidade partidária. É um perfil incomum no âmbito do que se tem chamado de centro do espectro político. A dificuldade desse campo construir alternativas politicas viáveis na arena eleitoral presidencial possivelmente tem a ver com a lógica parlamentarista que costuma guiar a práxis dos seus quadros. Nesse sentido, Mandetta é um ponto fora da curva, porque funde uma prudência política centrista e afeita à arena parlamentar, com a conduta assertiva nos campos da gestão e da comunicação política, típica de protagonistas da arena de competição presidencial.

Por esse motivo penso que está em patamar diverso de outros nomes do chamado centro, que se concentram em entendimentos interpartidários, típicos da arena parlamentar, como possíveis plataformas de lançamento a projetos voltados a eleições majoritárias. Será bom caminho trocar a imagem do médico que não abandona o paciente pela de pré-candidato à procura de um partido? Ademais ele já faz parte de um, cujo rumo em 2022 é incerto e influenciável pela paciência. Visitar a planície do mercado partidário agora não parece ser caminho para que ele contribua efetivamente ao debate nacional em momento de emergência sanitária.  

O diálogo com parlamentares e partidos pode correr frouxo e a eles poderá retornar sempre, amarrando as coisas no devido tempo e com suficiente familiaridade porque outsider não é e possui, além do mais, posição ideológica clara, que costuma declarar. Sem ser de esquerda e jamais cogitar sê-lo, pode com ela dialogar e pontualmente convergir. Sendo da centro-direita e sem deixar de sê-lo, pode, dentro dela, divergir e levá-la a viagens mais interessantes do que as cercanias do palácio. Se nada disso ocorrer, mais uma vez, paciência. Terá travado o bom combate, numa emergência.

*Cientista político e professor da UFBa


Luiz Sérgio Henriques: Antagonismos em equilíbrio

Um ambiente plural e diversificado é o único antídoto contra aspirantes a ditador

No momento em que somos tentados a fazer o balanço de perdas e danos, lamentando, depois de 30 e poucos anos, as ilusões precocemente perdidas, convém lembrar os bons pressupostos e o início auspicioso deste período mais recente da nossa História política. A impressão generalizada em seguida ao regime militar era de que o País estava finalmente pronto para integrar, de corpo e alma, o grupo de nações que conseguem conjugar, com um grau mínimo de coerência, capitalismo e democracia, economia de mercado e integração social. Um grupo relativamente reduzido, é certo, mas habituado a sinalizar rumos e a atrair a esperança de quem vive sob regimes fechados mundo afora.

Na verdade, essa não era uma ideia surgida aleatoriamente na acidentada trajetória de modernização por que passamos. Na saída de uma dessas ditaduras que conformaram duradouramente as relações entre Estado e sociedade, a ditadura do Estado Novo, um grande conservador como Gilberto Freyre chamava a atenção para a plasticidade da formação social brasileira. Segundo ele, tal plasticidade, própria de um exuberante povo em formação, seria até capaz de irradiar para outras latitudes o amor à diferença, o propósito de conciliar elementos heterogêneos, étnicos ou culturais que fossem.

Freyre, no texto a que aludimos (A Nação e o Exército, de 1948), fechava os olhos para os aspectos novamente repressivos do governo da época, imerso na guerra fria e mecanicamente alinhado a um dos seus polos. Nada desprezível o impacto que teriam em futuros eventos a ilegalização do Partido Comunista e as intervenções arbitrárias no movimento sindical. Não era esse o caminho do Ocidente político que aspirávamos a ser, como o demonstravam, na mesma altura, os casos exemplares de França e Itália. Mesmo assim, o sociólogo nos descrevia como um país cujo destino tinha raízes na capacidade de manter o equilíbrio de antagonismos ou, o que assegurava ser a mesma coisa, a tolerância entre contrários.

Ocidente político não é nenhuma expressão cifrada, ainda que exija rigor conceitual e adesão consciente. Trata-se de uma situação, descrita classicamente por Gramsci, em que entre sociedade política e sociedade civil há um saudável equilíbrio. A primeira não esmaga a segunda nem tolhe arbitrariamente seus movimentos. Partidos, ONGs, imprensa, vida sindical, associativismo popular, tudo isso compõe um ambiente plural e diversificado, que, na verdade, é o único antídoto contra a permanente insídia dos autoritários e aspirantes a ditador. Para falar a verdade, é o anticorpo infalível contra a repetição das experiências totalitárias do século 20, entre as quais, ao lado dos fascismos, cabem muito bem o comunismo stalinista e suas derivações.

Freyre, apesar do tempo transcorrido entre o seu e o nosso tempo, estava bem consciente desse requisito “ocidental”. Um Estado “organizado” – particularmente o Exército, a instituição da força por excelência – e uma sociedade “desorganizada” caracterizam estruturas politicamente subdesenvolvidas, fadadas a sofrer periódicas recaídas autoritárias e recorrentes candidatos a Bonaparte. E foi essa lição decisiva que liberais, progressistas e até ampla parte da esquerda incorporaram como patrimônio na saída da segunda experiência de governo “forte” da modernização, entre 1964 e 1985. Um patrimônio que, como é de conhecimento público, tomou corpo na Carta de 1988, que passou a ser desde então a linha discriminatória entre democratas e não democratas.

Nem sempre os governos de esquerda estiveram à altura da ideia democrática rigorosamente concebida. Não me refiro só ao desvirtuamento do Parlamento ou a práticas de loteamento de estatais poderosas, mas também, e talvez principalmente, a orientações anacrônicas de valor, como concessões ao horizonte da “revolução” que se tentava reatualizar em outros contextos. Mas é forçoso admitir que hoje as democracias de tipo ocidental, entre as quais obstinadamente nos queremos incluir, estão sob evidente ameaça da extrema direita arregimentada sob a bandeira do nacional-populismo. Como em tempos sombrios do século passado, essa direita não democrática mimetiza o gesto revolucionário, produzindo paródias grotescas de assalto aos palácios de poder, como a vista no 6 de janeiro norte-americano. Efeito paródico que também se sente quando, por aqui, setores desgarrados do establishment desenham planos e balbuciam palavras de ordem antiestablishment, como se jacobinos fossem.

A democracia de 1946 durou menos de duas décadas e, no fim, não teve quem a defendesse, dada a variedade de atores que apostavam no confronto. Nada consolador o fato de que o regime nascido desse confronto viria a ser desenvolvimentista, remodelando a sociedade no sentido de “mais capitalismo”. A conta apareceu na forma de incultura cívica, menoridade intelectual e atraso político, que agora voltam a se manifestar como negação da tolerância e do equilíbrio de antagonismos. Um preço alto demais que, estejamos à direita ou à esquerda, devemos rejeitar com convicção.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Alon Feuerwerker: Como anda a luta pelo poder

Os dois principais acontecimentos políticos ao longo da semana ajudaram a sedimentar a configuração de poder em Brasília a esta altura do agitado mandato presidencial. O desenho passa, naturalmente, pelo presidente da República; pela relação cada vez mais estreita dele com os oficiais-generais da reserva que as crises vão aspirando para a máquina; e pelo domínio que hoje se pode chamar de absoluto dos partidos do dito centrão sobre o Congresso Nacional, especialmente sobre a Câmara.

O episódio do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) vem sendo exemplar. O parlamentar entrou numa briga que não era dele, com o objetivo de catapultar musculatura política. Deu tudo errado. Acabou oferecendo ao antes acossado Supremo Tribunal Federal a oportunidade de um contra-ataque no ponto mais vulnerável do front adversário, o Legislativo. Mas isso abriu para o presidente da Câmara uma via rápida de cristalização da autoridade sobre os pares. 

E atraiu para ele a simpatia de um setor da opinião pública que o via com um pé atrás. Ou, pelo menos, tirou-o momentaneamente da linha de tiro.

O segundo fato, a mudança no comando da Petrobras, ainda em curso, traz ao presidente da República a brecha para, finalmente, colocar uma cunha na, lá atrás, toda poderosa equipe econômica. Erros têm consequências, e a insensibilidade da petroleira diante da possibilidade de sua política de preços provocar uma greve nacional de caminhoneiros acabou custando a cabeça do presidente da estatal. Trocado convenientemente por um general, ex-ministro da Defesa e atual presidente de Itaipu.

Uma greve de caminhoneiros em meio às seriíssimas dificuldades provocadas pela pandemia teria forte potencial de desestabilização. É natural que os adversários desejem e estimulem. E é esperado que o Planalto procure evitar.

Vida que segue. Se tudo se passar como habitual no Brasil, haverá ainda alguma turbulência nos dois casos, mas rapidamente o mundo político-jornalístico retornará para o infindável debate sobre as vacinas da Covid-19 e sobre o novo auxílio emergencial, com que nome for. E o Congresso, agora mais arrumado politicamente, não deixará fechar a janela das reformas. Que precisarão ser negociadas, claro, mas cuja esperança de aprovação é o respirador a manter acesas duas luzes: a tranquilidade do Legislativo e o protagonismo do ministro da Economia.

Tudo pode desandar, dar errado para o Planalto? Sempre pode, mas a impressão de momento é as melancias continuarem se ajeitando na carroceria do caminhão conforme os solavancos da estrada. Um problema é o encolhimento da popularidade presidencial, causado pela atitude diante da pandemia e pela parada nas medidas de apoio emergencial. Mas em alguns meses estão previstas vacinas abundantes, da Fiocruz e do Butantan. E o Congresso vai acabar dando um jeito no socorro econômico. 

E quedas de popularidade, algo sempre arriscado no Brasil, podem ser mais confortavelmente administradas quando há aliados comandando as casas congressuais.

Para o projeto de Bolsonaro, o prestígio dele só precisa estar tinindo daqui a um ano e meio. O risco da popularidade baixa no meio do mandato é atiçar os apetites pelo impeachment. Isso está, no momento, muito distante depois das eleições no Legislativo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Adriana Fernandes: Discurso de Bolsonaro de que não haveria intervenção na Petrobrás cai por terra

Que país quebrado pode abdicar desse dinheiro e com tanto a fazer na pandemia?

Foi pelo Facebook que o presidente Jair Bolsonaro demitiu Roberto Castello Branco do comando da Petrobrás, com a indicação do general Joaquim Silva e Luna como novo presidente da companhia.

A troca abre mais uma crise e consolida um movimento de forte intervenção do presidente na estatal para segurar, na marra, o preço dos combustíveis. Reforça também a política de populismo fiscal para a qual seu governo caminha a passos largos, para garantir a sua reeleição em 2022.

O discurso do presidente de que não haveria intervenção nos preços da Petrobrás, feito há uma semana, quando anunciou um projeto de lei para alterar a tributação do ICMS dos governadores e que tanto agradou o mercado financeiro, cai por terra.

De forma traumática, o ministro da EconomiaPaulo Guedes, perde mais um expoente do grupo que arregimentou e que estava ao seu lado durante a eleição do presidente e na transição de governo no final de 2018. Castello Branco foi indicação do ministro, de quem é amigo de décadas.

O ministro perde Castello Branco na equipe e perde também mais um alicerce da política econômica que se comprometeu a fazer e que previa carta branca para a companhia atuar, sem intervenção nos preços, prática que Guedes tanto condenou no governo Dilma Rousseff.

A decisão do presidente de zerar os tributos federais no diesel e levar a Receita Federal a perder mais de R$ 3 bilhões de arrecadação em apenas dois meses desmonta também a bandeira de ajuste fiscal de Guedes pregada no Congresso.

A equipe econômica exige corte de despesas como contrapartida para renovar o auxílio emergencial nessa nova fase mais aguda da pandemia da covid-19. Enquanto o presidente, na base da canetada, mandou reduzir a tributação do diesel e quer segurar na marra o preço do combustível pela via das contas públicas para atender os caminhoneiros.

Se já estava muito difícil conseguir aprovar no Congresso uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) com essas contrapartidas fiscais, agora o cenário fica mais turvo.

Que país quebrado, como assim classificou o próprio presidente, pode abdicar desse dinheiro em apenas 60 dias e com tanto a fazer na pandemia? Não faz nenhum sentido o acordo do ministro com o presidente diante desse cenário atual de negociação no Congresso. Não há coerência. 

O mais complicado é o governo permanecer calado, sem apontar o caminho de como implementará a medida. Não respondeu à mais simples das perguntas: afinal, quem pagará a conta?

Não há detalhes porque, a depender da vontade do presidente, a desoneração de tributos pode ser feita passando um trator por cima da Lei de Responsabilidade Fiscal, que exige compensação para a perda de arrecadação, via aumento de impostos ou corte de despesas. Tratorar a LRF é o que quer o presidente.

A área jurídica está quebrando a cabeça para entregar esse modelito ao presidente. E os técnicos do Ministério da Economia tentando encontrar um jeito para atender Bolsonaro sem ferir a LRF. Ou seja, fazendo a compensação.

Se não fizer essa compensação e passar por cima da LRF, Guedes vai perder integrantes da sua própria equipe no Ministério da Economia.

O problema da alta dos preços dos combustíveis que tanto incomoda o presidente Bolsonaro não é muito diferente do enfrentado pelos últimos presidentes. 

Em artigo recente, o economista Manoel Pires, do Ibre,  aponta que a elevada volatilidade do preço internacional do petróleo desde 2008 acentuou o problema. Pires ressalta que, com a elevada volatilidade, o governo Dilma 2011 iniciou uma política discricionária de reajustes e, em 2012, zerou a Cide Combustíveis para reduzir a defasagem do preço. A desoneração custou R$ 5 bilhões por ano.

O pacote dos caminhoneiros de Temer teve um custo total de R$ 13,5 bilhões. Houve ainda uma tentativa frustrada de tabelar o valor do frete que parou no Supremo.

"O que esses episódios estão mostrando é que esse problema virou um tema de política econômica e deve ser tratado como tal", diz o economista do Ibre. Não cabe mais improviso toda hora que os caminhoneiros ameaçam parar o País, boa parte deles apoiadores de Bolsonaro.


Bolívar Lamounier: Tentando enxergar o que está à vista

E o que está à vista não é o Jardim do Éden, mas a guerra de todos contra todos de ‘O Leviatã’

Onde estarão dentro de 25 anos os meninos que vão nascer na presente década? É cabível supor que muitas delas vão se conhecer revirando lixo em algum aterro. Algumas estarão distribuindo drogas nos bairros ricos, a serviço de traficantes. Muitas estarão cometendo assaltos e outras tantas estarão atrás das grades.

Projeções macabras fazem mal tanto à alma de quem as escreve como à de quem as lê. Mas são úteis como alerta, sobretudo quando o alerta de que se trata diz respeito simplesmente à necessidade de tentarmos enxergar o que está à nossa volta.

É bem singela a constatação que me leva a aborrecer os leitores com essa previsão macabra. Não, caro leitor, não vou falar da pandemia; a realidade que tenho em mente estava aqui muito antes dela. Somos, como os economistas não se cansam de repetir, um país aprisionado na chamada “armadilha da renda média”. Chegamos até com certa facilidade a uma renda per capita de US$ 10 mil por ano, mas quem afirmar que conseguiremos dobrá-la num horizonte de 20 a 30 anos o faz por sua conta e risco. E não nos esqueçamos de que esse será ainda um resultado medíocre. A renda per capita, como todos sabemos, é apenas uma fórmula, um resumo aritmético de uma infinidade de condições sociais. Neste ano da graça de 2021, há na área educacional uma experiência bem simples que o leitor pode fazer sem grande esforço. Vá a uma escola da periferia e convide a garotada a fazer alguns exercícios de tabuada. No trajeto de volta ao centro, ligue o rádio e tente se informar sobre o que o Ministério da Educação anda fazendo. Ou pelo menos adivinhar o nome do atual ministro. Seja paciente.

Se 60% ou 70% dos nossos jovens se deparam com dificuldades quase insuperáveis nas matemáticas, nas ciências e até no simples manejo do idioma, é forçoso inferir que, hoje, muitos deles já são fortes candidatos ao desemprego e à pobreza. Não resvalar para o crime já é um belo feito. No mundo quase totalmente urbano e crescentemente automatizado em que estamos entrando, cuja agricultura já quase não cria empregos, o que está à nossa vista não é o Jardim do Éden. É muito mais um cenário como o pintado por Thomas Hobbes em O Leviatã (1651): uma “guerra de todos contra todos”. Mas eis aqui um possível paradoxo. Hobbes ao menos discernia a possibilidade de alguma ordem se todos se submetessem a uma autocracia férrea, no pressuposto de que preservar a vida, sob quaisquer condições, seria um quadro aceitável em comparação com a guerra generalizada. Viver sob ditaduras será, então, a nossa salvação? Dobrando ou não a nossa anêmica renda per capita, viveremos sob uma robusta segurança garantida pelo Estado, vale dizer, por aqueles, anjos ou bandidos, que o controlarão?

Suscitar essa indagação no presente momento é a pior ideia que nos poderia ocorrer. Hoje o inquilino do Planalto é simplesmente o mais despreparado dos presidentes que nos foi dado ter desde o marechal Deodoro. Jair Bolsonaro não é apenas iletrado, é irascível e ignorante. Deixemos de lado sua atuação no combate à pandemia, sabidamente insensível e irresponsável, levando a extremos inconcebíveis suas chances de sabotar o trabalho dos agentes de saúde. Se Sua Excelência compreendesse que sua missão só pode ser sanar as cicatrizes da eleição de 2018, buscando a convergência e a pacificação, já seria alguma coisa. Mas, para o capitão presidente, seu papel deve ser justamente o oposto disso. Seu objetivo é a reeleição em 2022, e salta aos olhos que ele a vê como favas contadas, bastando-lhe para tanto manter e estimular a radicalização.

Claro, não creio que Jair Bolsonaro tenha poderes demiúrgicos. Sozinho, não é capaz de produzir nem o bem nem o mal em escala superlativa. Vez por outra deixa escapar uma aspiração ditatorial, mas ditadura, sobretudo num país populoso e diversificado como o Brasil, só existe com a colaboração das Forças Armadas, e estas servem ao Estado, não a um caudilho qualquer – missão que começaram a definir já nos anos 1930, sob a influência predominante do general Góes Monteiro. Seus timoneiros nem sempre acertaram o curso, mas a identidade da organização militar é essa.

Derrocamento dessa ordem, nem os outros dois Poderes me parecem capazes de causar. O que eles podem fazer – e inequivocamente insistem em fazer – é dificultar as reformas sem as quais permaneceremos por 30 anos ou mais no sufoco da “renda média”. Na Câmara, por exemplo, os óbices chegam ao disparate de às vezes se tentar desfazer alguns avanços que a duras penas logramos implantar na esfera da reforma política – entre os quais devemos destacar o fim das coligações partidárias nas eleições legislativas. Dias atrás o novo presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), manifestou a intenção de restaurar aquela excrescência, responsável direta pela cacofonia partidária em que temos vivido.

Eis aí uma clara ilustração de que nosso problema como país ainda não é tentar enxergar mais longe. É tentar enxergar o que nos queima diariamente os olhos.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultora, é membro das academias paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Hélio Schwartsman: O caso Silveira

Se esses grupos são um perigo, o STF erra por ainda não tê-los desmantelado

"Eu desaprovo o que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo". A frase é creditada a Voltaire, mas ele nunca a escreveu. O aforismo, porém, resume o pensamento do filósofo em relação à liberdade de expressão: ela precisa valer independentemente de concordarmos com o conteúdo do que é dito.

Eu discordo de cada palavra proferida pelo deputado federal Daniel Silveira e não tenho dúvida de que, ao atacar os ministros do STF, ele cometeu crimes contra a honra dos magistrados (se está coberto pela imunidade parlamentar é uma bela discussão jurídica).

Silveira pode também ter comedido delitos mais graves, tipificados na famigerada Lei de Segurança Nacional, mas é aí que a porca torce o rabo. Penso que não basta falar mal da democracia e das instituições para caracterizar esses crimes. Se bastasse, teríamos de banir Platão das bibliotecas. Para que uma fala antidemocrática constitua ilícito, é preciso que ela ocorra em um contexto em que ponha a democracia em risco real e iminente.

Se esses grupos ultrabolsonaristas são um perigo, o STF erra por ainda não tê-los desmantelado. Se não são, as sandices proferidas por Silveira não constituem razão suficiente para a cadeia.

Até entendo a reação dos ministros ao ver alguns de seus membros sordidamente xingados e ameaçados, mas, se há alguma instituição que precisa ser capaz de despir-se do "esprit de corps" e agir tecnicamente, é a corte suprema. As controvérsias jurídicas em torno da prisão não são pequenas e, fosse a vítima do ataque qualquer outra que não próprio tribunal, dificilmente veríamos um placar de 11 a 0 pelo encarceramento.

Quanto a Bolsonaro, seu silêncio sobre o caso completa o "grand slam" das traições a seu eleitorado mais fiel. Numa metáfora castrense, ele abandonou ao inimigo um companheiro ferido, o que, na ética militar, é a coisa mais vil e covarde que alguém pode fazer.