celso rocha de barros
Celso Rocha de Barros: Bolsonaro vence em Brasília, perde no Brasil
Resta saber se o presidente e seus aliados têm outros projetos em comum além de fugir de impeachment, cassação e cadeia
Na semana passada, políticos que deveriam ser presos por seus crimes durante a pandemia e políticos que deveriam ser presos por corrupção livraram uns aos outros de impeachment, cassação e cadeia.
Na segunda-feira (1º), Bolsonaro elegeu Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara. Com isso, caiu a probabilidade de impeachment. O impeachment seria o começo da responsabilização do presidente da República pelos crimes que cometeu durante a pandemia. O passo seguinte seria sua prisão. Isso teria sido a lei sendo aplicada, as instituições funcionando.
Mas a frente ampla contra o bolsonarismo, representada pela candidatura de Baleia Rossi (MDB-SP), levou uma surra. Houve traições à esquerda, mas ficou claro que Rossi perdeu porque a centro-direita desertou. Doria conseguiu evitar um espetáculo mais vergonhoso no PSDB, mas o DEM, o partido do próprio Rodrigo Maia, vendeu-se para o Planalto na frente de todo mundo.
Na prática, o DEM dissolveu-se no “arenão”, como o jornalista José Roberto de Toledo gosta de chamar o centrão. Na época da ditadura, dizia-se que a Arena era “a filha da UDN que caiu na zona”. Na última segunda-feira, o cafetão que levou o DEM de volta para a zona foi Jair Bolsonaro. O DEM aceitou de Bolsonaro as verbas e os cargos que o PFL, seu antecessor, não aceitou da ditadura no colégio eleitoral em 1985.
Mas não é só dinheiro que segura Bolsonaro no cargo. Na eleição da Câmara, Bolsonaro contava com a popularidade da grande realização de seu governo: o acordão que melou a Lava Jato. Em um eleitorado de 500 deputados em que predomina o arenão, matar a Lava Jato vale como uma mistura do que o Plano Real, o Bolsa Família, crescimento chinês por 20 anos e a realização das promessas daqueles emails “enlarge your penis” juntos valeriam para o público em geral.
Poucos dias depois da eleição na Câmara, Bolsonaro ofereceu o que havia sobrado da Lava Jato como sobremesa para Brasília. O procurador-geral da República de Bolsonaro dissolveu a força-tarefa de Curitiba. A força-tarefa da Lava Jato de São Paulo, é bom lembrar, já tinha renunciado coletivamente em protesto pela intervenção do mesmo procurador-geral, sempre a mando de Bolsonaro.
Não, companheiro, a Lava Jato não foi extinta porque sacaneou o Lula. Nem o Bolsonaro nem ninguém na direita parou e pensou, “pô, realmente, sacaneamos o Lula, terrível esse escândalo da Vaza Jato, vamos reestabelecer os ritos jurídicos apropriados”. As denúncias da Vaza Jato são mesmo gravíssimas, Lula foi mesmo sacaneado, mas a Lava Jato acabou porque era a hora de prender a direita.
Vários analistas viram no engajamento de Bolsonaro na eleição da Câmara um sinal de moderação, de aceitação das regras do jogo. Não há nenhum gesto de Bolsonaro que justifique essa hipótese.
Nas duas pautas que mais exigem governança racional —economia e combate à pandemia— Rodrigo Maia nunca colocou qualquer obstáculo para Bolsonaro, muito pelo contrário. Se o presidente topou gastar tanto para eleger Lira, é porque suas pautas são outras.
No momento em que perde popularidade no Brasil, Bolsonaro venceu em Brasília. Resta saber se o presidente e seus novos aliados parlamentares têm outros projetos em comum além de fugir de impeachment, cassação e cadeia.
Celso Rocha de Barros: O Congresso se vende nesta segunda-feira?
Se a eleição de Arthur Lira se confirmar, Bolsonaro terá três vitórias
Hoje acontece a eleição para presidente da Câmara dos Deputados. De um lado, concorre Baleia Rossi (MDB-SP), representando uma frente ampla com forças de esquerda e de direita. Do outro lado, Arthur Lira (PP-AL), representando o direito de Jair Bolsonaro pisar no tubo de oxigênio de 220 mil brasileiros que morreram asfixiados durante a pandemia. Lira é favorito.
Se a vitória de Lira se confirmar, Bolsonaro terá três vitórias.
A vitória menor será a eleição de Arthur Lira. Com um aliado seu na presidência da Câmara, Bolsonaro terá mais chances de colocar em votação suas pautas autoritárias. Se entregar cargos conversíveis em dinheiro for suficiente para eleger Lira, talvez também seja suficiente para aprová-las.
Com todas as suas imperfeições, Rodrigo Maia foi um limite para o autoritarismo de Bolsonaro. Lira parece ter menos disposição para sê-lo.
Até outro dia, diziam que o centrão de Lira havia moderado Bolsonaro. Da próxima vez, sugiro que a democracia brasileira não se defenda com um exército mercenário. O leilão do mercenário está sempre em aberto.
Mas, até por isso, mesmo, a vitória de Lira pode não ser uma vitória tão grande para Bolsonaro.
Se a maré virar contra o presidente, como parece estar virando, essa turma toda vai embora em cinco minutos, carregando até o material de escritório da Esplanada. E a munição usada para eleger Lira já está gasta; não haverá mais tantos cargos nem tantas verbas para distribuir na próxima disputa.
Mesmo assim, faz diferença. Em uma disputa apertada pelo impeachment, um presidente da Câmara que vacile por, digamos, dois meses a mais para ouvir a insatisfação popular pode ser decisivo. A mobilização pode arrefecer nesse período, a próxima eleição pode começar a ficar perto demais.
É bom lembrar que o presidente mais impopular de todos os tempos, Michel Temer, escapou do impeachment de manobra em manobra. Todas foram do tipo que Bolsonaro está fazendo agora.
Mas a vitória de Lira daria a Bolsonaro outras duas vitórias, talvez mais importantes.
A primeira é um novo salto na desmoralização do Congresso. Se, depois dos 220 mil mortos e da tentativa de autogolpe de 2020, o Congresso se vender para quem até outro dia queria fechá-lo, haverá menos gente para defendê-lo na próxima ameaça autoritária.
Tem gente no centrão que diz que parou o golpismo de Bolsonaro em 2020 sozinho, mas é mentira: havia uma resistência ao autoritarismo na opinião pública e o centrão entrou como mediador.
Se Lira vencer e fizer o que o bolsonarismo quiser, o centrão não será mais mediador de nada. Terá lado na disputa e mãos manchadas de sangue.
Além disso, se Lira vencer, a frente ampla terá fracassado de novo, depois da vez em que ela mais importava —o segundo turno de 2018— e daquela movimentação tímida de 2020.
Nesse caso, da próxima vez que a direita disser “nós votamos Bolsonaro porque do outro lado era o PT” bastará responder “meu amigo, vocês votaram no Bolsonaro quando do outro lado era o Baleia Rossi”.
Enfim, é hora do Congresso decidir o quanto os democratas brasileiros podem contar com ele. Gostaria de ter argumentos que convencessem os eleitores de Arthur Lira a mudar de ideia. Mas acho que acabaria gastando-os para comprar o Messi para o Flamengo.
Celso Rocha de Barros: A vacina deu a medida de Bolsonaro
Governo é o único do mundo que viu no início da vacinação como uma crise
O início da vacinação no mundo deu ao público brasileiro algo que ele ainda não tinha: uma medida precisa de como a atuação de Jair Bolsonaro no combate à pandemia de Covid-19 foi pior do que a dos outros governantes.
Por maiores que fossem os números de mortos brasileiros, não era fácil para boa parte do público compará-los com os de outros países, quanto mais relacioná-los às políticas de combate à pandemia adotadas em cada um deles. O desastre nos Estados Unidos, de longe o país estrangeiro sobre o qual os brasileiros têm mais informação, permitia aos bolsonaristas mentir que a tragédia brasileira era inevitável. Quantos brasileiros sabem que a bem governada Nova Zelândia voltou à vida normal antes da vacina por ter feito o exato contrário do que fez Bolsonaro?
A vacina mudou tudo isso. É muito fácil saber que países vacinaram e que países não vacinaram. As imagens das pessoas sendo vacinadas nos fazem, imediatamente, voltar a imaginar uma vida sem o vírus, e, nesse momento, intuitivamente, se entende o que os especialistas dizem desde o começo, contra Bolsonaro, contra Paulo Guedes, contra a burguesia da morte que apoia o governo: a vida normal só voltará com a vacina, só voltará quando o vírus tiver sido derrotado.
E o fato de haver vacinas disponíveis ao redor do mundo nos faz perguntar: por que não há vacinas no Brasil? Por que a Índia, um país muito mais pobre do que nós, não só tem vacina como produz e vende vacinas? Por que vizinhos nossos como a Argentina já estão vacinando há várias semanas? O fato de o governador de São Paulo ter conseguido comprar vacinas prova irrefutavelmente que o governo federal poderia ter comprado vacinas.
Bolsonaro não comprou vacinas. Bolsonaro fez campanha contra as vacinas. Bolsonaro torceu contra a “vacina chinesa” e negou uma oferta da Pfizer que já nos teria garantido dois milhões de doses para agora. Para puxar o saco de Trump, Bolsonaro fez com que o Brasil fosse o único país em desenvolvimento que se opôs à Índia em uma discussão sobre patentes de, acredite se quiser, vacinas; agora temos que mendigar vacinas na Índia, e estamos no fim da fila. Os bolsonaristas fazem campanha diária contra a China, um parceiro comercial com quem não temos qualquer disputa estratégica; agora precisamos mendigar vacinas e ingredientes para fazer vacinas na China, e estamos no fim da fila.
O governo brasileiro é o único do mundo que viu o início da vacinação como uma crise, e respondeu como sempre responde a crises: com ameaça de golpe de Estado e aparelhamento. O procurador-geral Augusto Aras lançou a ameaça de estado de defesa. Ao mesmo tempo, segundo reportagem do Correio Braziliense, Bolsonaro planeja retaliações contra Doria. Por vacinar gente.
Enquanto isso, os ventos da economia internacional começam a soprar a favor do crescimento. Quem vai aproveitar melhor essa maré favorável será quem puder botar gente vacinada na rua para trabalhar e consumir. Se qualquer outro idiota tivesse vencido a eleição de 2018, seríamos nós. Entretanto, no que depender de Bolsonaro, passaremos a próxima alta das commodities doentes em casa, ou nos matando uns aos outros na sucessão de crises políticas cada vez piores que o presidente contrata diariamente.
Celso Rocha de Barros: Golpismo de Trump animou Bolsonaro
Os dois deveriam ser presos por tentativa de golpe de Estado
A invasão do Congresso americano por extremistas de direita inspirou uma nova onda de entusiasmo golpista entre os bolsonaristas, que nunca deixaram de ser inimigos da liberdade por terem se vendido ao centrão.
Jair Bolsonaro foi o único chefe de Estado do mundo que apoiou a invasão liderada por milícias racistas, neonazistas e/ou adeptas da teoria da conspiração QAnon. Bolsonaro foi o único chefe de Estado do mundo que apoiou uma manifestação de gente vestindo a camiseta “Camp Auschwitz”. Enquanto a invasão acontecia, Bolsonaro disse que houve fraude na eleição americana (é mentira) e declarou que “se nós não tivermos o voto impresso em 2022, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”.
As instituições deles são mais fortes do que as nossas. Alguns dias antes da tentativa de golpe, os últimos dez secretários de Defesa americanos (tanto republicanos quanto democratas) assinaram um artigo dizendo que “Os militares americanos não têm nenhum papel na determinação do resultado das eleições americanas”. Nenhum foi ao Twitter reclamar do julgamento do Lula, nenhum virou assessor de Toffoli durante a campanha eleitoral. E sem apoio de militar ou policial, cachorrinho de Olavo não se cria.
Ainda não sabemos se a invasão do Congresso americano foi o início de um novo movimento golpista ou o fim do último. A invasão provou que a democracia americana esteve sob ameaça durante o governo Trump e certamente estaria sob grave ameaça se Trump tivesse sido reeleito. Mas ainda não sabemos se o extremismo reacionário sobreviverá bem sem bons resultados eleitorais.
Por um lado, o extremismo racista de Trump ajudou a energizar a base eleitoral democrata e a fez comparecer em massa para eleger os dois novos senadores do estado da Geórgia. Não foram quaisquer dois senadores. Foram os dois que faltavam para que os democratas ganhassem a maioria no Senado. Muita gente no Partido Republicano vai perder a tolerância contra os extremistas de Trump agora que eles começaram a custar votos.
Por outro lado, o momento trumpista deixou um legado de degeneração moral no Partido Republicano. A invasão do Capitólio seria um episódio isolado de violência, facilmente rechaçável por, digamos, a torcida organizada do Volta Redonda, se não tivesse tido apoio de republicanos poderosos antes e depois da ofensiva.
O próprio presidente da República incentivou a radicalização para tentar fraudar a eleição. E, o que é ainda mais incrível, depois da invasão, 139 deputados e 8 senadores republicanos votaram a favor de moções que contestavam a vitória de Biden, sabendo que mentiam. Não há diferença importante entre Trump e os invasores, ou entre esses 147 e os invasores. O que faz de 6 de janeiro uma tentativa de golpe não foi a invasão do Capitólio, foi o fortíssimo encorajamento institucional que os fascistas tiveram.
Se Obama tentasse o que Trump tentou, dormiria em Guantánamo no mesmo dia. Se Lula chamasse o golpe como Bolsonaro chamou, o Exército o enforcaria na Praça dos Três Poderes. Tanto Trump quanto Bolsonaro precisam ser presos por tentativa de golpe de Estado. As Forças Armadas brasileiras precisam denunciar o golpismo de Jair Bolsonaro. Isso, sim, seriam instituições funcionando.
*Celso Rocha de Barros, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Celso Rocha de Barros: Bolsonaro precisa explicar sua aparente tentativa de chantagem e intimidação contra o MP
Nenhum presidente brasileiro, até hoje, fez algo parecido
No dia 31 de dezembro, em sua última live de 2020, o presidente Jair Bolsonaro reclamou da atenção que a mídia dá ao caso Queiroz. Até aí, tudo normal. É o tipo de coisa que o presidente faz em vez de trabalhar para comprar vacina.Mas Bolsonaro resolveu dar um passo a mais, e acrescentou, no minuto 34 do vídeo:"Agora, o MP do Rio, presta bem atenção aqui: imagine se um dos filhos de autoridade do MP do Rio fosse acusado de tráfico internacional de drogas. O que aconteceria, MP do Rio de Janeiro? Vocês aprofundariam a investigação ou mandariam o filho dessa autoridade pra fora do Brasil e procuraria uma maneira de arquivar esse inquérito? Um caso hipotético, falando de um caso hipotético. (...) Caso um filho de uma autoridade do Ministério Público do Rio de Janeiro entrasse no inquérito da Polícia Civil do Rio e ali um delator tivesse falado que ele participava de tráfico internacional de drogas. Fica com a palavra as autoridades do Ministério Público do Rio de Janeiro".
Parece bem grave. Parece que o presidente da República tentou chantagear e intimidar o Ministério Público do Rio de Janeiro. O Ministério Público do Rio de Janeiro investiga o filho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro.
Se algum bolsonarista ou alguém da turma do "não é tão ruim assim" tiver outra hipótese para explicar o que o presidente da República disse em sua live de 31 de dezembro, por favor, enviem-na para a Folha. Todos queremos ouvi-la. Mesmo eu, que penso as piores coisas de Jair Bolsonaro, tive dificuldade de acreditar no que estava ouvindo. Novamente: se alguém do governo tiver uma outra explicação, será um prazer discuti-la. Ministro da Justiça? Procurador-geral da República? Deputada Janaina Paschoal? Wassef?
Quanto à acusação feita pelo presidente, de duas, uma. Se ela for verdadeira, Bolsonaro vazou dados sigilosos de uma investigação da Polícia Civil que obteve ilegalmente. Se ela for falsa, Bolsonaro caluniou tanto o Ministério Público quanto a Polícia Civil.
A propósito, se Bolsonaro tiver aparelhado a polícia a ponto de vazar a acusação, pode perfeitamente tê-la aparelhado a ponto de forjá-la.
E, presidente, se usar "hipoteticamente" nesses contextos livrasse alguém das consequências jurídicas do que diz, o senhor mal imagina o que seriam minhas colunas sobre seu governo hipotético.
Talvez Bolsonaro tenha dito o que disse justamente para provocar um escândalo e difamar o Ministério Público no meio da confusão resultante. Seria uma conduta típica da máquina de ódio bolsonarista. Se for o caso, talvez esta coluna esteja fazendo o jogo de Bolsonaro ao divulgar suas acusações. É um risco.
Mas se o que o presidente da República fez no dia 31 de dezembro for o que parece ser, trata-se de coisa grave demais para não ser denunciada. Seria crime muito mais pesado do que tráfico de drogas ou, aliás, do que "rachadinha". Nenhum presidente brasileiro, até hoje, fez algo parecido.
O Ministério Público do Rio continuará com as investigações, sem se intimidar. O episódio não deve influenciar a escolha do novo procurador-geral de Justiça. Mas enquanto o presidente da República for capaz de fazer o que parece ter feito no dia 31 de dezembro de 2020 sem sofrer consequências, ainda estaremos longe da normalidade institucional.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Celso Rocha de Barros: Em ano trágico, livros sobre política foram ótimos
Ano teve competidores nacionais excelentes; lista não tem estrangeiros
Minha lista anual nunca incluiu reedições de clássicos, mas a coletânea “Por um Feminismo Afro-latino-americano”, que reúne textos da historiadora e filósofa negra Lélia Gonzalez editados por Flávia Rios e Márcia Lima, tem que ser citada porque grande parte do público ainda não sabe que a autora é clássica.
“Raça e Eleições no Brasil”, de Luiz Augusto Campos e Carlos Machado, é um trabalho muito inteligente de ciência política sobre as dificuldades de inserção dos negros no sistema eleitoral brasileiro, um tema cada vez mais quente.
“Mãe Pátria”, de Paula Ramón, é um belo relato, em tom pessoal, sobre a tragédia venezuelana recente. Não é antiesquerdismo, é só uma história real que a esquerda deveria levar a sério.
“A Bailarina da Morte”, de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, fala da pandemia de gripe espanhola do início do século 20 e sugere semelhanças assustadoras com a tragédia brasileira atual. Tive a impressão, entretanto, que mesmo as autoridades incompetentes da República Velha teriam comprado vacina para os brasileiros, se ela existisse na época.
Por algum motivo inexplicável, desde 2018 cresceu o interesse dos autores brasileiros pela história do Integralismo, a versão brasileira do fascismo nos anos 30. “Fascismo à Brasileira”, de Pedro Doria, conta a história do movimento com foco na trajetória de seu fundador, Plínio Salgado. “O Fascismo em Camisas Verdes”, de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, se destaca pela história da apropriação do legado dos integralistas até o dia de hoje.
“A República das Milícias”, de Bruno Paes Manso, é o estudo mais amplo e detalhado já publicado sobre essa forma de domínio territorial criminoso e suas ramificações políticas.
Mudando completamente de assunto, “O Brasil Dobrou à Direita”, de Jairo Nicolau, analisa detalhadamente dados sobre a eleição presidencial de 2018.
“A Máquina do Ódio”, de Patrícia Campos Mello, é o primeiro grande registro histórico da ofensiva autoritária pós-2018, lá onde ela já está avançada: na guerra à imprensa livre, realizada por campanhas de ódio e tentativas de estrangulamento financeiro.
“Ponto-final”, de Marcos Nobre, é uma análise do Bolsonarismo na pandemia, escrita “à quente”, no meio do ano. O argumento sobreviveu bem aos meses seguintes.
“As Políticas da Política”, organizado por Marta Arretche, Eduardo Marques e Carlos Aurélio Pimenta de Faria, reúne estudos que comparam políticas públicas dos governos tucanos e petistas. O livro gerou bons debates e, em 2020, deu saudade de dois momentos em que o Brasil teve governo.
“The Volatility Curse” (“A Maldição da Volatilidade”), de Daniela Campello e Cesar Zucco, mostrou como os resultados eleitorais brasileiros são correlacionados com os ciclos e choques da economia internacional e como isso pode prejudicar a capacidade dos eleitores avaliarem bem os governantes.
Em um ano de competidores nacionais excelentes, a ponto de não haver nenhum estrangeiro na lista, o melhor livro de política foi “A Organização”, de Malu Gaspar, que conta a história política da empreiteira Odebrecht. Um estudo de caso detalhado e, às vezes, chocante, sobre economia política brasileira, corrupção e os desafios da reforma de nossa democracia.
*Celso Rocha de Barros, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra)
Celso Rocha de Barros: Apoio da esquerda ao grupo de Maia foi uma decisão acertada
Aliança multipartidária é reação correta à escalada autoritária bolsonarista
Os partidos de esquerda estão de parabéns por terem decidido apoiar o grupo de Rodrigo Maia na eleição para presidente da Câmara dos Deputados. A aliança recebeu o nome de União da Democracia e da Liberdade.
A esquerda brasileira tem diferenças legítimas com o centro e a direita. Os últimos cinco anos, em especial, causaram feridas profundas, que vão exigir tempo e diálogo para cicatrizar.
Mas a esquerda não é mais o PT dos anos 1980, uma voz de protesto sem acesso ao poder. Depois de 13 anos na Presidência, a esquerda é um dos pilares da democracia brasileira, uma das forças responsáveis por sua preservação.
Tem grandes partidos, grandes lideranças, um legado —do SUS ao Bolsa Família, passando pelos direitos LGBT e pelas cotas para negros e negras nas universidades, da preservação da Amazônia aos sucessos educacionais de Ceará e Pernambuco.
A esquerda é grande o suficiente para fazer diferença na hora de recolocar a democracia de pé. É do interesse dos trabalhadores que ela seja recolocada de pé.
E o outro cara é o Jair.
O Jair é o Brasil sem vacina, com 180 mil famílias brasileiras de luto. É o risco permanente de golpe, é a guerra contra a liberdade, é o ódio às mulheres, aos negros e aos LGBT, é o elogio a Ustra no dia do impeachment, é o palhaço da Fundação Palmares ofendendo Zumbi, Marina e Benedita, é o cara que demitiu dois ministros da Saúde durante a pandemia, que desmoralizou os militares, que fez do Brasil um pária entre as nações.
As diferenças programáticas entre os membros da aliança continuam existindo, mas atenção: deixar Bolsonaro vencer no Congresso não trancará as pautas econômicas liberais, mas destrancará as autoritárias.
A aliança é a reação correta à escalada autoritária bolsonarista, ao contrário da manobra desastrada para permitir a reeleição de Maia e Alcolumbre, felizmente derrotada.
Nos dois casos, a preocupação era a mesma: a certeza generalizada de que Jair é golpista. A turma pode fingir que não, mas todo mundo viu Bolsonaro tentando o autogolpe em 2020. Mesmo assim, driblar a Constituição teria sido fazer o jogo de Bolsonaro.
Reunir os democratas, por outro lado, é injetar na democracia brasileira a marra de que ela anda precisando.
Resta saber o que os bolsonaristas vão fazer diante da nova frente. A única certeza é que, seja o que for que fizerem, vai ser sujo. Nos próximos meses, o Orçamento público será para o centrão como água benta da porta da igreja: quem for chegando, vai passando a mão.
Bolsonaro também deve ressuscitar a retórica do “eu contra o sistema” para reagir à união dos democratas. Era mais fácil quando não era “eu e o centrão contra o sistema”, mas talvez alguém acredite.
Também deve atacar a turma do Maia por se aliar à esquerda, deve chamar todos os homens de pedófilos, todas as mulheres de putas, aquele stand up que bolsonarista faz em vez de comprar vacina.
A aliança formada para a eleição da Câmara será permanente? Não. Tem chances de se converter em aliança eleitoral em primeiro turno em 2022? Não. Isso importa? Não. A luta programática continuará daí em diante, cada um do seu lado, democraticamente.
Por outro lado, a aliança aumenta a probabilidade de Bolsonaro perder a eleição no segundo turno em 2022? Sim. Repita esse “sim” em voz alta para você ver que beleza, que coisa linda.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Celso Rocha de Barros: Partido Novo tem que escolher entre ser um partido liberal ou um partido de ricos
Potencial político que a direita construiu pode ter sido desperdiçado
Na semana passada, o Partido Novo votou contra a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, alegando que ela abria as portas para cotas raciais no Parlamento. Poucos dias depois, o Novo também aprovou uma emenda que permite usar dinheiro do Fundeb para pagar funcionários de escolas privadas.
São posições que reforçam a ideia de que o liberalismo é só uma racionalização dos interesses dos ricos, inteiramente confortável com a mais extrema desigualdade e com a perpetuação de injustiças históricas, sempre pronto a acomodar o fascismo quando a esquerda se fortalece.
Aparentemente, os caras foram pesquisar o que é liberalismo no livro do Losurdo.
Há mesmo uma certa intersecção entre o interesse dos ricos e o liberalismo. Os ricos querem o máximo de limites para a ação do Estado, que é mais poderoso do que eles. E querem o mínimo de regulação do contrato de trabalho, porque são mais poderosos do que seus empregados. Olhando de longe, depois de umas cachaças, dá pra confundir isso com liberalismo.
Mas liberalismo deveria ser mais do que isso. Deveria ser uma defesa da liberdade das minorias contra as maiorias, de um país em que o mais humilde brasileiro não precise temer abusos da polícia, da etnia dominante ou de pessoas com crenças religiosas diferentes.
Os liberais não deveriam tratar com leveza violações históricas da liberdade individual. Os liberais deveriam defender os direitos humanos, porque os direitos humanos são o liberalismo político.[ x ]
A diferença entre partido liberal e partido de rico fica clara diante da evidente simpatia de grande parte do Partido Novo pelo governo Bolsonaro.
Um partido liberal consistente jamais apoiaria Bolsonaro, apologista da ditadura e da tortura que tentou um autogolpe em 2020. Bolsonaro está, neste exato momento, manipulando verbas publicitárias públicas para reprimir a mídia crítica ao governo.
Bolsonaro aparelha as instituições como ninguém nunca aparelhou. Bolsonaro sabotou o pacto federativo repetidas vezes durante a pandemia. Bolsonaro é inimigo jurado das liberdades da população LGBT.
Se Adam Smith aparecesse no Brasil de 2020, estapearia o Jean Wyllys para furar a fila da cusparada em Bolsonaro.
Agora, se o Novo quiser ser só um partido de rico, vá em frente, filho, lambe com força esse coturno. Os desmatadores da Amazônia são ricos, os milicianos são ricos, quem pode contratar miliciano como segurança particular é rico, os lobbies que capturam o Orçamento público são ricos, a turma do Guedes é rica, o centrão é rico, e os ricos, de fato, às vezes ganham mais dinheiro nas ditaduras do que nas democracias.
O Novo vai ter que escolher entre ser partido liberal ou partido de rico. O dilema mostra que o potencial político que a direita construiu durante os anos de oposição ao PT pode ter sido desperdiçado.
Por volta de 2005, 2006, as pessoas voltaram a ter coragem de dizer que eram de direita, embora normalmente acrescentassem “não a direita da ditadura, é direita de ideias”.
Pois bem: a direita de ideias apoiou o impeachment, e Temer foi um fracasso; a direita de ideias apoiou a direita da ditadura em 2018 e agora corre o risco de ser engolida por ela.
Não é à toa que todo mundo voltou a dizer que é de centro.Celso Rocha de Barros
*Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Celso Rocha de Barros: Centro-direita terá que escolher entre ser adulto responsável pelo Jair ou seu rival
Um clima de conflito generalizado pode favorecer o projeto autoritário do presidente
Desde janeiro de 2019, estabeleceu-se uma divisão do trabalho entre o governo Bolsonaro e a maioria de centro-direita no Congresso.
Do seu lado, o Congresso governa por Bolsonaro: faz reforma da Previdência, marco do saneamento, auxílio emergencial (com ajuda da esquerda). Do outro lado, Bolsonaro tenta fechar o Congresso.
Veja bem, eu não disse que era um relacionamento saudável.
Esse arranjo deve entrar em crise agora que as eleições de 2020 deram esperança de vitória presidencial para a centro-direita. Em todos os casos anteriores, Bolsonaro colheu os frutos de popularidade e/ou apoio das elites gerados pelo trabalho do Congresso.
Se a centro-direita tiver seu próprio candidato em 2022, não é provável que continue governando por Bolsonaro.
Mas abandonar Bolsonaro à maldição bíblica de ter que ganhar o pão com o suor do próprio rosto também pode ter custos. Ano que vem a crise vai ser feia. Isso pode mudar o humor do eleitorado, no momento favorável a candidatos moderados.
Em janeiro o auxílio emergencial acaba. Daí em diante, as projeções são muito ruins.
A renda dos pobres vai cair muito, a desigualdade deve disparar, o desemprego deve aumentar, e aquele efeito multiplicador do auxílio —mais gente consumindo porque tem mais gente com dinheiro na mão— vai se reverter.
O custo do auxílio foi alto: a situação fiscal é muito ruim.
Por incompetência de Bolsonaro, e só por isso, o Brasil será vacinado por último. Não há qualquer iniciativa do governo em curso para lidar com nada disso.
Se os piores cenários projetados para 2021 se confirmarem, o eleitorado pode sair do estado de espírito zen, moderado, centrista, “quero-um-gestor” da eleição de 2020.
Uma grave crise social pode acirrar de novo a disputa política. Talvez isso favoreça a esquerda, que é mais combativa contra Bolsonaro.
Talvez um clima de conflito generalizado favoreça o projeto autoritário de Bolsonaro, que nunca deixou de ser seu plano A.
De qualquer forma, no pior cenário para 2021, o centro pode deixar de ser o melhor canal para exprimir o sentimento popular.
Ou seja, se o centro continuar trabalhando para Bolsonaro, arrisca fortalecer o presidente contra um candidato centrista em 2022.
Mas, se parar de trabalhar para Bolsonaro, a crise pode ser grave o suficiente para virar o humor centrista do eleitorado.
Vejam o caso da reforma tributária. Há uma proposta de reforma no Congresso, baseada nas ideias do economista Bernard Appy, que conta com base de apoio bastante razoável.
Todos os principais candidatos a presidente em 2018, à exceção de Bolsonaro, sinalizaram que a teriam implementado.
Mas as notícias são de que Bolsonaro sabota a tributária para enfraquecer Maia (uma espécie de Cunha reverso).
Guedes quer a idiotice da CPMF. O ministro das Comunicações, Fábio Faria, reclamou que o aumento de impostos sobre ricos seria “socialismo”. Ou seja, se deixar na mão dessa turma, a reforma não sai.
A centro-direita no Congresso deve tocar a reforma por sua própria conta, sabendo que eventuais frutos eleitorais do crescimento econômico serão colhidos por Bolsonaro? Ou deve abandonar a tributária, arriscando uma crise econômica mais grave e a volta da polarização?
Não vai ser fácil ser o adulto responsável pelo Jair e o rival do Jair ao mesmo tempo.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Celso Rocha de Barros: Bolsonaro perdeu nas urnas e nas ideias
Quem tentou ganhar cidade grande com discurso bolsonarista morreu pendurado na mamadeira
Foi uma eleição de continuidade administrativa e de um início de virada no debate de ideias. A centro-direita, que era situação em quase toda parte desde 2016, foi a grande vencedora das urnas, e a esquerda foi bem onde já tinha boa reputação de administração competente. Mas a grande notícia é que ninguém ganhou cidade grande com discurso bolsonarista. Quem tentou morreu pendurado na mamadeira.
A vitória de Bruno Covas em São Paulo não foi nenhuma surpresa. Foi uma eleição de continuidade e de reeleições, com viés de centro-direita. O perfil de Covas é semelhante ao de Eduardo Paes (DEM), Alexandre Kalil (PSD) ou Bruno Reis (DEM), todos eleitos com votações expressivas, os dois últimos vencedores em primeiro turno. Boa sorte para o novo prefeito.
O que é impressionante é que um sujeito com “Covas” no nome, concorrendo pelo PSDB em São Paulo, chegue aos últimos dias da campanha desesperado para ganhar do candidato do PSOL.
A campanha de Boulos e Erundina foi brilhante, e toda a esquerda faria bem em aprender com ela. Chapa bem escolhida, linguagem ágil, bom uso das redes. Ajudou a esclarecer a população sobre a luta dos sem-teto e sobre a necessidade de regularização fundiária. As propostas do programa eram boas, embora realmente não custasse nada a campanha dizer “Vamos cumprir a lei de responsabilidade fiscal” –era óbvio que ia, é a lei, Erundina foi um exemplo notável de responsabilidade fiscal quando foi prefeita, Boulos não é maluco.
Foi um grande salto de qualidade com relação às candidaturas de esquerda recentes. Boulos e Erundina tiveram um resultado tão bom que a gente nem precisa se consolar com aquelas conversas de “não queria estar do lado dos que venceram”, “quem estava comigo nas trincheiras”, enfim. Isso tudo é pra quando você perde feio, aí vai fazer o quê? Faz poema, é o que sobrou. Perder acumulando forças, gerando ideias e dando a direção das próximas disputas não gera esse trauma todo, não.
O que deve preocupar a centro-direita é que Boulos e Erundina encontraram receptividade com gente de centro, gente com quem os tucanos, até 2018, poderiam contar em um segundo turno contra o PSOL.
A candidata da Rede Sustentabilidade, Marina Helou, em quem muitos de meus amigos liberais votaram, fechou com Boulos no segundo turno. A deputada Tabata Amaral (PDT), que sempre atraiu grande simpatia do centro, apoiou Boulos. Não é que esses apoios tenham custado muitos votos para Covas, é que essas pessoas são participantes ativas do debate de ideias, e o debate de ideias parece ter se tornado muito, muito menos hostil à esquerda do que era até 2018.
Mas é aquilo, né, amigos da centro-direita? Vocês esperam ter a mesma reputação apoiando Bolsonaro que tinham quando apoiavam Fernando Henrique Cardoso? Quando o avô do prefeito eleito apoiava a então petista Marta Suplicy contra Maluf? Não dá. Vão ganhar debate de ideias representados pelo Guedes? Sustentando o sujeito que colocou aquele idiota dirigindo a Fundação Palmares?
É sempre difícil interpretar o que as eleições municipais dizem sobre a eleição presidencial seguinte. Em 2016, o PSDB foi o grande vencedor, mas o recado não era esse; já se via a antipolítica e a virada à direita. Em 2020, a antipolítica foi fragorosamente derrotada. E as ideias novas que apareceram não são de direita.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Celso Rocha de Barros: Esquerda entrou fragmentada no Rio e em São Paulo, com resultados diferentes
Sobrou para a carioca, em 2020, fazer campanha para o DEM no 2º turno
Em um episódio recente do podcast Foro de Teresina, o jornalista José Roberto de Toledo chamou atenção para a semelhança das estratégias da esquerda no Rio e em São Paulo. Em nenhum dos dois lugares a esquerda entrou unida no primeiro turno.
Em São Paulo, foi ao segundo turno e faz uma bela campanha. No Rio de Janeiro, ficou fora do segundo turno, mesmo tendo uma boa votação na soma das candidaturas.
Comparar os dois casos pode ser um exercício interessante. Quando a fragmentação da esquerda no primeiro turno é administrável (como em São Paulo) e quando não é (como no Rio)? A pergunta tem implicações óbvias para a eleição presidencial de 2022.
Não há dúvida de que grande parte do sucesso da chapa Boulos/Erundina se deve à qualidade dos candidatos e da campanha. O ativismo social de Boulos e a reputação de competência e honestidade de Erundina são exatamente o que o eleitorado paulistano viu no PT quando lhe deu a prefeitura por três vezes.
A campanha foi ágil e inovadora. Todos os partidos de esquerda têm que aprender alguma coisa com a campanha do PSOL de São Paulo.
Mas no Rio as campanhas de Benedita da Silva (PT), Marta Rocha (PDT) e Renata Souza (PSOL) também foram bonitas, cada uma no seu nicho. A de Boulos foi melhor, mas não acho que o suficiente para explicar a diferença de desempenho.
Há uma outra diferença entre as duas eleições que me parece importante para pensar 2022. Nos dois casos, a direita tinha entre os concorrentes um centro-direitista bem avaliado e uma mediocridade bolsonarista. Mas só a mediocridade bolsonarista do Rio concorria à reeleição. Crivella tinha a máquina na mão, Russomanno não.
A máquina funciona melhor na mão de quem é bem avaliado, como Bruno Covas, do que na do sujeito que tem 62% de rejeição e é o pior prefeito da história da cidade, como Marcelo Crivella. Mas mesmo Crivella conseguiu a chance de ir ao segundo turno tomar a surra de escangalhar o cabra que se anuncia para semana que vem.
Na campanha presidencial de 2022, Bolsonaro também concorrerá à reeleição. Se chegará como favorito depende da gestão da crise de 2021, que vai ser feia. Mas é mais seguro apostar que em 2022 ter a máquina ainda será uma vantagem, nem que seja para dar a Bolsonaro o direito de apanhar no segundo turno.
Os desafiantes de Bolsonaro pela direita e centro-direita em 2022 —Doria, Huck, Moro etc.— serão mais parecidos com Eduardo Paes ou com Celso Russomanno? Ainda não sabemos. Vai depender, inclusive, do quanto a crise de 2021 vai virar o eixo ideológico da discussão para um lado ou para outro.
Talvez Bolsonaro desmoralize a direita a ponto de derrubar seus concorrentes moderados. É mais prudente que a esquerda se prepare para o pior cenário. Se o cenário em 2022 estiver com mais cara de Rio 2020 do que de São Paulo 2020, a esquerda vai ter que pensar a sério na possibilidade de fazer o máximo possível de alianças no primeiro turno.
Não é realista imaginar uma candidatura única, mas, se houver fragmentação demais, é bom que todos se conformem com a sorte da esquerda carioca neste ano: fazer campanha para o DEM no segundo turno. O fato é que a propaganda de Boulos com Ciro, Lula, Marina e Flávio Dino foram os segundos de TV aberta que mais emocionaram os progressistas brasileiros em muito tempo.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Celso Rocha de Barros: São Paulo deixou Bolsonaro sem teto
Reorganização da esquerda pode ser sintoma da volta da política brasileira ao normal
Com a passagem de Guilherme Boulos (PSOL-SP) para o segundo turno da eleição em São Paulo, Jair Bolsonaro tornou-se um sem-teto na política paulistana. Bruno Covas (PSDB-SP), que terminou em primeiro e disputará a prefeitura com Boulos, também é adversário do governo federal. O candidato de Bolsonaro, Celso Russomanno, tornou-se um sem-piso depois de receber o apoio presidencial.
O líder sem-teto realizou um feito notável. Sem o apoio do PT –cujo candidato, Jilmar Tatto, teve 8% dos votos válidos na boca de urna Boulos conseguiu atrair a maior parte dos eleitores que deram a Prefeitura de São Paulo à esquerda em três oportunidades. A campanha de Boulos foi eficiente em linguagem e proposta, e a escolha de Luiza Erundina como vice não poderia ter sido melhor: acrescentou experiência administrativa à candidatura e fez o aceno certo ao eleitorado petista.
Boulos foi o mais surpreendente dos "meteoros vermelhos", expressão criada por Vinícius Torres Freire para descrever os candidatos fortes de esquerda em uma eleição dominada pela centro-direita. O outro, que se saiu melhor do que Boulos, inclusive, mas tinha apoio do PT, foi Manuela D’Ávila (PC do B-RS), candidata a vice-presidente na chapa de Fernando Haddad em 2018. Manuela deve ir ao segundo turno em Porto Alegre com impressionantes 40% dos votos válidos.
Os meteoros vermelhos parecem dignos de nota porque 2018 foi uma grande vitória da extrema-direita. Mas a reorganização da esquerda, que ainda está em sua fase inicial, pode ser só mais um sintoma da volta da política brasileira ao normal depois do surto de 2018. Esquerda no segundo turno em Porto Alegre, Recife, Belém, São Paulo, nada disso é novidades histórica.
No geral, a eleição foi o oposto da anterior, em que o Brasil elegeu o extremista Jair Bolsonaro. Desta vez, os outsiders ficaram mesmo outside. Boulos e Manuela, João Campos e Marilia Arraes, ACM Neto e Bruno Covas, Alexandre Kalil e Eduardo Paes, representam a renovação em seus respectivos campos democráticos. Não são outsiders como o paulista Mamãe Falei ou os cariocas Mamãe Nadei e Mamãe Sofri Impeachment. Só o candidato Mamãe Fui no Motim na Polícia segue com chances em Fortaleza.
No geral, o eleitorado votou com a memória da competência passada, o que deve se confirmar quando Eduardo Paes derrotar Crivella no segundo turno do Rio de Janeiro. Mesmo onde os “meteoros vermelhos” foram bem, há memórias de boas administrações progressistas.
De qualquer forma, ficou claro que o eleitorado de esquerda ainda está aí, esperando que as lideranças e partidos se reorganizem para oferecer-lhe candidaturas competitivas. Não é nada estranho em um sistema multipartidário, nem um pouco estranho no pós-Lava Jato. Como o exemplo da eleição carioca mostrou, é um processo difícil e cheio de arestas. Mas é muito improvável que a reorganização pós-Lava Jato da esquerda termine tão mal como a da direita, que nos deu Bolsonaro em 2018.
A eleição para vereadores talvez mostre padrões mais claros de renovação, em especial pelos novos vereadores e vereadoras negras. Se mais gente com cara de Marielle e menos gente com cara de seus assassinos sair forte esse ano, 2018 terá mesmo ficado para trás.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).