celso ming
Celso Ming: Umas e outras maldades de uma nova CPMF
Quanto mais se examinam as distorções que esse tributo pode trazer, mais ele se torna inaceitável
Dia após dia, vão aparecendo novas maldades embutidas no projeto da nova taxa sobre movimentações financeiras, cujo nome, sobrenome e sigla seriam Imposto sobre Transações Financeiras, ITF.
Na última quarta-feira, a assessora especial do Ministério da Economia, Vanessa Canado, confirmou que esse novo tributo não se restringiria apenas a operações digitais, como tantas vezes afirmara o ministro Paulo Guedes. Mas, como disse ela, alcançará “todas as transações da economia”.
Também não é verdade que se trata de uma alíquota baixa, de apenas 0,2%. Ela incidirá sobre as duas pontas de cada transação, tanto sobre quem paga quanto sobre quem recebe. Ou seja, a alíquota verdadeira é 0,4%, mais alta do que o 0,38% cobrado pela antiga CPMF, que atingia apenas a ponta do pagamento.
Isso significa muita coisa. Recolherá o ITF tanto quem estiver pagando pelo pãozinho com cartão de crédito como também o padeiro. Significa, também, que o contribuinte brasileiro pagará também pelo consumo no exterior. Se ele liquidar sua conta com cartão de crédito, terá de recolher automaticamente os 6% do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre câmbio (conversão da moeda estrangeira em reais), mais o 0,2% dessa nova taxa. O turista estrangeiro que quitar suas contas no Brasil com cartão de crédito não estará sujeito ao imposto, mas quem dele receber terá de recolher sua parte.
Se o que a assessora especial Vanessa Canado está dizendo for confirmado e se todas as transações financeiras estiverem sujeitas a esse tributo, então teremos uma penca de distorções no sistema financeiro do País.
A primeira delas está na Bolsa. Pagar mais 0,4% por compra e venda de ações pode comer um pedaço importante do retorno da operação. Os negócios day trade, por exemplo, poderiam ficar inviabilizados. O mercado secundário perderá liquidez, com prejuízo para todo o mercado de capitais.
E vejam a situação da caderneta de poupança. Hoje, o rendimento mensal não passa de 0,125%. Se o depósito já comerá 0,2%, porque será preciso transferir da conta corrente para a conta de poupança, e se a retirada comerá outro 0,2%, então, só esse imposto estará queimando mais de três meses de rentabilidade.
Impacto semelhante acontecerá sobre os fundos de investimento que já estão sujeitos ao Imposto de Renda e à taxa de administração – e, com o novo imposto, terão sua rentabilidade corroída por mais 0,2% no momento da aplicação e outro 0,2% no momento da retirada. Ou seja, o estrago desse imposto sobre o rendimento do mercado financeiro, num ambiente de juros reais quase negativos, será substancialmente maior do que no tempo da CPMF, quando os juros básicos eram superiores a 10% ao ano.
Se esse ITF for aprovado, outra distorção será a enorme propensão ao uso de dinheiro vivo para pagamento de contas, que seria para fugir pelo menos de uma perna do imposto. O padeiro, acima citado, por exemplo, preferirá receber em dinheiro. E o mesmo acontecerá com outros recebedores de pagamentos: o feirante, o médico, a escola, o dentista… Por aí se vê que a demanda por papel-moeda tenderá a se multiplicar a ponto de não haver lobo-guará que dê conta do serviço.
Para evitar pagamentos em moeda, o governo parece propenso a adotar os dispositivos do efeito Ives Gandra. Explicação: o tributarista Ives Gandra Martins, nesse episódio mui amigo do contribuinte, sugeriu ao governo que um grande número de “pagamentos por fora”, feitos com o objetivo de fugir ao ITF, poderia ser evitado se a PEC do novo tributo incluísse cláusula que torna inválidas transações cuja taxa não tivesse sido recolhida.
Assim, negócios com imóveis, com veículos e outras operações que exijam registro em cartório ou equivalente perderiam validade caso o interessado não apresentasse algum comprovante do devido recolhimento do tributo.
Nas últimas semanas, apareceram mais análises que diziam mais ou menos o seguinte: esse novo imposto é mesmo perverso, mas é melhor engolir essas perversidades e garantir as receitas necessárias para a recuperação da atividade econômica do que continuar no sufoco em que estamos.
Mas quanto mais se examinam as distorções que esse tributo poderá trazer, mais ele se torna inaceitável.
Celso Ming: O desemprego vai aumentar
Mesmos fatores que impediram queda acentuada da desocupação agora devem agir em sentido contrário
Os números do mercado de trabalho que fazem parte do “prontuário” levantado pela Pnad Contínua, do IBGE, pioraram no trimestre móvel abril-maio-junho em relação aos três meses anteriores. Mas são melhores do que os esperados pelos analistas.
A situação só não foi pior graças aos estímulos do governo. A Medida Provisória 936/2020, por exemplo, permitiu por quatro meses redução de salários a partir de 25% com cláusula de seis meses de estabilidade no período, o que evitou maior aumento do desemprego. A reclusão imposta pela política de controle da pandemia manteve muita gente em casa e, portanto, incapacitada de procurar emprego.
O auxílio emergencial, lançado em abril, contribuiu para que muitos adiassem a procura do que fazer.
Os mesmos fatores que impediram a queda mais acentuada da desocupação devem agora agir em sentido contrário. A força da MP, agora convertida em lei com vigência até dezembro, começa a se esgotar; os auxílios emergenciais chegaram ao limite da capacidade fiscal do governo. As pessoas estão se cansando da reclusão e vêm se aventurando em busca de uma ocupação qualquer, apesar do recorde de infectados e da marca de quase 100 mil mortes pelo novo coronavírus no País. Isso sugere que a desocupação deverá aumentar no segundo semestre, mesmo com certo aumento da atividade econômica.
O setor de serviços continua desempregando. O comércio varejista, por exemplo, verificou que o fraco movimento quase não justifica a abertura de lojas e, portanto, pressiona por mais dispensas de pessoal. Se antes da pandemia o empresário ainda não estava convencido de que devesse apelar para a automação e para os aplicativos, altamente poupadores de mão de obra, agora entendeu que esse caminho, além de promissor, é irreversível.
A perspectiva de maior deterioração do mercado de trabalho sugere que a demanda por mercadorias e serviços também seguirá frouxa. É fator que aponta para mais lenta recuperação da economia e para a continuação de uma política de dinheiro farto, ou de juros persistentemente baixos.
O comunicado da reunião do Copom da quarta-feira mostrou que o Banco Central gostaria de admitir o fim do ciclo de baixa dos juros. Mas a demanda fraca, a grande capacidade ociosa das empresas e a perspectiva de novas quedas da inflação o obrigaram a deixar aberta a possibilidade de novo corte dos juros. As próximas semanas darão ideia melhor do que virá.
Celso Ming: O governo quer taxar o comércio eletrônico
Esse novo imposto digital será fonte de enormes encrencas
O ministro da Economia, Paulo Guedes, nunca escondeu, e agora menos ainda, que prepara a criação de um novo imposto, que não seria mais a volta da CPMF, motivo de repulsa instantânea do Congresso e da sociedade, mas o que chama de taxação do “comércio eletrônico”.
Para dar a essa nova garfada uma embalagem aceitável e não mais a de um imposto em cascata, que é proibido pela Constituição, avisa que não haverá aumento da carga tributária, mas apenas a substituição dos encargos sociais sobre a folha de pagamentos (desoneração) por um tributo de base mais ampla, com o objetivo de criar os empregos que estão desaparecendo pelos altos custos trabalhistas.
E, como a enfermeira que tenta encorajar uma criança apavorada pela injeção iminente, o ministro adianta que é uma picadinha de nada: “É só uma alíquota pequenininha, de apenas 0,2%”. A gente já conhece essa história de alíquota pequenininha que, lá pelas tantas, vira grandona, como com a CPMF. Independentemente do tamanho da picadinha, o ministro reconhece que seu potencial arrecadador é enorme: mais de R$ 100 bilhões por ano. (Só para comparar, a CPMF arrecadava pouco mais de R$ 40 bilhões.)
Até agora, ninguém fora da equipe econômica sabe o que seria esse novo imposto. Não foi divulgado nenhum anteprojeto. As declarações fragmentadas de Paulo Guedes sobre o assunto escondem até mesmo o principal.
O comércio eletrônico, que cresce ano a ano, como mostra o gráfico, e deve crescer ainda mais neste ano, já é submetido à taxação. Quem compra por via digital uma TV na Magalu ou uma impressora na Kalunga paga o mesmo ICMS que pagaria se a compra for feita diretamente nas lojas. Então, se for para sobretaxar o comércio eletrônico, esse novo imposto estaria encarecendo o produto comprado pela internet e, assim, desestimulando o comércio eletrônico, que é o sistema mais moderno e de menor custo do varejo. E, como vem advertindo o tributarista Bernard Appy, estaria empurrando o consumidor de volta para as lojas, num momento em que ele deve se defender da pandemia, tanto do surto atual como dos que ainda podem eventualmente acontecer.
Se a ideia é taxar tanto o comércio internacional promovido por grandes potências eletrônicas tipo Amazon e Alibaba como serviços digitais, como filmes fornecidos pela Netflix, músicas pelo Spotify ou programas de computador da Microsoft, então o governo estaria ignorando os debates e os projetos em estudo no âmbito da OCDE e do Grupo dos 20, que pretendem taxar não o comércio digital, mas a parcela do lucro das Big Techs, que hoje escapa de qualquer tributação.
Também fica difícil saber como o governo cobrará impostos sobre operações pagas pelo cartão de crédito ou por meio dos novos aplicativos acionados pelo celular que nem passarão pelos bancos, como o PagSeguro ou o PIX, em preparação pelo Banco Central. Como isentar nessas operações o que é fornecimento de um serviço, de uma compra online de supermercado ou de um delivery de restaurante, já normalmente taxados?
E as despesas no exterior que se quitam eletronicamente, como diárias de hotel ou de hospedagem pelo Airbnb, passagens aéreas ou ferroviárias, visitas a museus, aluguéis de veículos? O governo pretende taxar aqui dentro o que já é taxado lá fora?
Ao pretender criar um imposto sobre o varejo eletrônico, o governo federal mostra que pretende invadir o domínio tributário de Estados e municípios, que arrecadam o ICMS e o Imposto sobre Serviços calculado sobre o mesmo fato gerador. Assim, pode mexer com o pacto federativo.
O potencial de confusão é tão grande que até mesmo o governo não parece saber o que realmente quer e sobre que bases operacionais construir para a arrecadação desse imposto.
Para a tributarista Elisabeth Libertucci, sob os disfarces já conhecidos e sob novo rótulo, o ministro Guedes quer mesmo é um imposto fácil de arrecadar que, na prática, acabará por aumentar a carga tributária.
Por outro lado, facilidade é o que o governo menos terá. Mesmo não se conhecendo os termos da proposta, já se sabe o suficiente sobre ela. Se for aprovado, esse imposto será uma enorme fonte de encrencas.
Celso Ming: Medo da segunda onda da pandemia
Aumentaram as evidências de um rebote global do novo coronavírus, justamente quando a atividade econômica começava a ser retomada
Os mercados globais desabaram nesta quinta-feira (veja o gráfico) porque aumentaram as evidências de que uma segunda onda do coronavírus já está atuando globalmente, justamente quando a atividade econômica começava a ser retomada – e não só nos países avançados, mas também no País.
Pelo feriado de Corpus Christi, no Brasil, o impacto sobre os mercados internos só ficará claro nesta sexta-feira. O número de mortos por aqui já ultrapassa os 40 mil e o de infectados, mais de 790 mil.
As grandes aglomerações que aconteceram na Europa e nos Estados Unidos, nos protestos contra a escalada no racismo, realizadas sem a observância mínima de cuidados, são a hipótese com maior probabilidade de se confirmar como o fator disparador mais importante desse novo agravamento. Mas não é a única. A abertura gradual e possivelmente prematura do comércio, das atividades escolares e da convivência social em alguns países também levanta suspeição.
Antes das manifestações, os epidemiologistas dos Estados Unidos e da Europa temiam possível segunda onda apenas lá por setembro ou outubro. Mas à medida que os protestos tomaram corpo, eles passaram a disparar novos sinais amarelos. Nesta quinta-feira, novas projeções da Universidade de Washington apontam o novo pico de uma nova onda na segunda semana de setembro e um total de 170 mil mortes nos Estados Unidos até 1.º de outubro.
No Brasil, onde também houve manifestações contra e a favor do governo – e menos contra o racismo –, também poderá haver novo alastramento dos casos em consequência do afrouxamento do distanciamento social. Até o fim deste mês, poderão ser contabilizadas mais de 60 mil mortes. As autoridades operaram no escuro quando exigiram a quarentena e continuam a operar no escuro com o relativo afrouxamento. O que poderia mudar essa situação seria a aplicação maciça de testes, de maneira a apenas isolar os infectados. Mas, apesar das promessas, não há esses testes.
No Hemisfério Norte, aumentaram as pressões pela flexibilização do distanciamento social e pela reabertura gradual dos negócios como condição necessária para aproveitar o início da temporada de verão.
Se esse rebote do vírus for confirmado, já se podem prever mais prejuízos para o comércio, para o setor produtivo, para o consumo de petróleo e de energia, para o turismo e para as viagens internacionais, para as competições esportivas e, certamente, novo impacto sobre o PIB global. Nesta quinta-feira, os preços do petróleo tipo Brent para entrega em agosto mergulharam nada menos que 3,4%.
É a essa lógica que os mercados passaram a responder. Na semana passada, o presidente Trump havia manifestado euforia com a criação de 2,5 milhões de empregos em maio: “É mais do que uma recuperação em V”, disse ele. Infelizmente, essa é mais uma impressão ameaçada agora de desmanche. Os analistas voltaram a prever novo agravamento do desemprego no mercado americano.
O Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) já havia avisado na última quarta-feira que os juros se manteriam muito perto de zero por cento ao ano, de modo a atender às necessidades de liquidez da economia. A pandemia continua solapando a reeleição do presidente Trump para um segundo mandato nas eleições de novembro.
Ninguém tem noção sobre as proporções dessa agora mais provável segunda onda da pandemia. Em parte, vai depender da capacidade dos governos de conseguir a observância do distanciamento social. Mas podem surgir novos fatores-surpresa, uma vez que muitos desdobramentos da atuação do coronavírus são desconhecidos e uma vacina eficaz ainda parece muito distante.
No Brasil, a flexibilização da quarentena sofre um duro golpe. Governadores e prefeitos podem se sentir obrigados a um recuo estratégico e voltar a urgir o recolhimento social. A conferir.
Celso Ming: Mais um mês de inflação negativa
Inflação em queda e política monetária expansiva produzirão consequências para o País
Mais um mês de inflação negativa: menos 0,38% em maio, depois do menos 0,31% de abril. Os analistas esperavam queda mais acentuada (para menos 0,46%), que, no entanto, não se confirmou em razão do reajuste dos combustíveis.
No período de 12 meses terminados em maio, a inflação é de apenas 1,8%. Como o Banco Central tem de buscar em 2020 a meta de 4,0%, é provável que os juros básicos (Selic) tenham de cair para abaixo do nível de 2,15% ao ano previamente anunciado pelo Banco Central. A próxima reunião do Copom, agendada para 17 de junho, pode não ser a última do ciclo de baixa. Como exposto abaixo, tanto a inflação em queda quanto a política monetária mais expansiva produzirão consequências.
Inflação tão baixa é fato inédito por aqui. Houve meses em que o índice estava mais baixo, mas foi o resultado de pauladas de estabilização, época dos grandes planos econômicos dos anos 80 e início dos 90. A inflação de agora não leva tabelamentos nem outros artificialismos. O mergulho do custo de vida é o resultado do colapso da demanda neste período de isolamento social, pelo fechamento do comércio e pela queda do poder aquisitivo – e não do saneamento fiscal e monetário.
Nada menos que cinco entre os nove grupos de despesa que integram a cesta de consumo do IPCA registraram queda de preços em maio. Um dos efeitos negativos de um período de deflação relativamente longo é o recuo também constante da demanda. Se a percepção do consumidor é de que, dentro de alguns meses, os preços ficarão mais baixos, seja porque estão naturalmente em queda, seja porque o comércio venderá com descontos, a tendência é o adiamento do consumo. É o que já acontece nos países mais avançados.
Apesar disso, para os próximos meses, deve-se esperar por certo avanço da inflação, não só porque o comércio começa a reabrir, o que deve reativar a demanda, mas também porque os reajustes dos preços dos combustíveis devem liderar a alta. Também é de prever algum impacto do encarecimento do dólar sobre os preços dos importados.
Como já foi mencionado acima, fica reforçada a expectativa de que o Banco Central derrube os juros a níveis mais baixos do que os previstos na reunião do Copom de 6 de maio. São dois os argumentos para isso: a inflação em 12 meses cairá mais do que o previsto – o mercado projeta 1,53% e não mais o 1,76% de cinco semanas atrás; e a deterioração da economia é maior do que há um mês e exige mais irrigação monetária do que a antes estipulada.
É preciso prever mais duas consequências. Juros mais baixos empurram os devedores para renegociação dos seus passivos. Não é uma tratativa que os bancos apreciam, mas acabarão por entender como inevitável.
O outro impacto é sobre o mercado financeiro. Juros cada vez mais baixos derrubam patrimônio do aplicador. Daí a maior propensão a diversificar seus investimentos para a área de risco. O maior afluxo de pessoas físicas para a Bolsa é indicação disso.
Combustível
Reajuste nos preços dos combustíveis impediu que a deflação de maio fosse mais acentuada Foto: Tiago Queiroz/Estadão
» Abaixo estas estátuas
A Europa está derrubando estátuas de escravocratas. Mas até onde devem ir os movimentos revisionistas? Se for aplicada a mesma lógica que está atingindo os traficantes de escravos, não seria preciso banir também o Infante Dom Henrique, Colombo, Cortez e Pizarro?
» E os bandeirantes?
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Celso Ming: O que não será como antes
Certos comportamentos econômicos devem mudar ainda mais depois de ultrapassadas as agruras da hora
Depois que tudo tiver passado, nada será como antes. Será?
Na TV, nas redes sociais e nas outras mídias, veem-se os apelos para mudança, radical e definitiva, dos padrões de consumo e de conduta, em direção ao mais simples, à revalorização do natural, da amizade, da ternura e da compaixão.
Tantas e tantas vezes no passado o mundo atravessou grandes turbulências, até mais dolorosas do que as de agora. A cada período de guerra prolongada, a cada devastação produzida pela peste ou pelo cholera morbus, a cada grande catástrofe, o propósito geral também foi esse, o de que, uma vez enterrados os mortos e cicatrizadas as feridas, as mudanças seriam inevitáveis e para sempre.
Alguma coisa pode de fato ter mudado nessas ocasiões, mas, passada a abominação da desolação, tudo o que era antes tendeu a se repetir, como se sabe desde os tempos do Êxodo e da caminhada pelo deserto, quando os hebreus repentinamente se esqueceram do valor da liberdade, voltaram a adorar o bezerro de ouro e sentiram saudades das cebolas do Egito.
Mas o esquecimento dos propósitos de superação e a volta ao barro de onde viemos não é tudo. Muita coisa vem mudando, um tanto lentamente, mas vem mudando, até para melhor. No tempo da peste, por exemplo, que exterminou metade da população da Europa, nem mesmo os estudiosos sabiam o que era aquilo. Há apenas 116 anos, o Rio esteve entregue à Revolta da Vacina, porque ninguém aceitava o tratamento proposto por Oswaldo Cruz para erradicar a febre amarela.
E, hoje, a população corre atrás de vacinas contra a gripe comum. Há cem anos, atacadas pela gripe espanhola, 50 milhões de pessoas morreram no mundo, mais do que na 1.ª Grande Guerra, sem ter como se defender do flagelo. Agora, em questão de semanas, os biólogos sequenciaram o genoma do novo coronavírus.
Independentemente desses progressos, certos comportamentos econômicos que já vinham mudando antes da pandemia devem acentuar a mudança depois de ultrapassadas as agruras da hora. Um deles tem a ver com o uso do dinheiro. Notas de papel-moeda e moedas de metal propriamente dito parecem com seus dias contados, não apenas porque são veículos de transmissão de vírus, bactérias e imundícies variadas, não passíveis de ser desinfetadas, mas porque a substituição das moedas físicas por moedas digitais já vem ocorrendo.
O país mais adiantado nesse movimento é a China, que já avançou na adoção de blockchain, nos pagamentos e nas transferências de recursos por aplicativos que dispensam até mesmo a exigência de contas bancárias. Não está longe o dia em que até mesmo esmolas se darão por meio de operações com aplicativos.
As compras online são outra área em transformação. O isolamento a que se viu obrigado o consumidor mostrou ao comércio varejista no Brasil e no mundo que as empresas despreparadas para as vendas online ficaram para trás e agora terão de recuperar o tempo perdido. Não se trata apenas de continuar fisgando o consumidor nas horas de reclusão inevitável, como agora, mas de reduzir substancialmente os custos com estocagem e com logística, como estão fazendo as empresas que já têm boa quilometragem rodada no sistema, como Magazine Luiza, Lojas Americanas e Ponto Frio.
E há a não novidade do home office, ou seja, do trabalho preferencialmente em casa. Um bom serviço de internet e acesso aos arquivos e aos sistemas da empresa são quase tudo o que é necessário para dispensar rotineiras viagens de ida e volta aos escritórios e ou às sedes das empresas, com a vantagem adicional para o empregado de não ter de trabalhar sob o crivo direto do chefe. Mas, convenhamos, esse modelo não serve para tudo, não serve para ser adotado no chão de fábrica, nas linhas de montagem, nos canteiros de obras e na maioria dos serviços pessoais. Apenas parcialmente, pode funcionar no ensino e no treinamento de pessoal.
Essas e eventualmente outras mudanças que agora se acentuam talvez não definam o mundo novo em formação. Mas dão uma ideia do que poderão vir a ser certas relações de trabalho.
Infelizmente, ainda não dá para contar com as tão necessárias mudanças na área ambiental. Imagens de satélite mostraram como melhoraram as condições atmosféricas nesses tempos de reclusão e de carros recolhidos às garagens. Mas essa ainda não parece demonstração capaz de mudar sistemas e de apressar a adoção de políticas destinadas a reverter o aquecimento global. O lucro fácil continua tendo a última palavra.
Apesar do avanço da ciência e do aumento da previsibilidade, uma coisa não muda. Não muda o medo, essa emoção primária que está dentro de cada um de nós.
Celso Ming: A nova CPMF produziu a primeira vítima
Parece mais difícil a volta do imposto sobre pagamentos e transferências, extinto em 2007
A insistência na recriação da CPMF produziu a demissão do seu maior defensor dentro do governo, o secretário Especial da Receita Federal, Marcos Cintra. Mas não resolveu os problemas por trás da tentativa de trazer de volta esse imposto.
Há pelo menos 30 anos, o professor Marcos Cintra tem uma obsessão, que encontra paralelo com a do ex-senador Eduardo Suplicy e a criação de um projeto de renda mínima para todo brasileiro. Cintra quer eliminar todos os impostos e contribuições da economia e substituí-los pelo Imposto Único, que incidiria sobre pagamentos e transferências, mais ou menos nos moldes da velha CPMF, extinta em 2007.
Com alguns ajustes, a ideia foi comprada por um grupo de empresários reunidos no Instituto Brasil 200, sob a justificativa de que seria o único recurso que enquadraria tanto a economia informal quanto novas formas de transação envolvidas na tecnologia digital, que fogem ao pagamento de impostos.
Viesse com o nome que fosse, a CPMF causaria enormes distorções. Mesmo com uma inflação bem mais alta, de 5% a 8% ao ano e juros básicos de 11,0% a 13,0% ao ano, a CPMF apresentou no passado uma fieira de problemas. Sobrecarregou a cadeia produtiva com um imposto cumulativo (imposto sobre imposto) que incidia em cada fase da produção e distribuição. Tirou força das exportações, uma vez que ficou impossível extrair o imposto dos preços do produto exportável. E produziu desbancarização, porque empresas e pessoas físicas trataram de fugir do imposto por meio de operações com dinheiro vivo ou com outros mecanismos de pagamento.
Agora que a inflação vai para 3,5% ao ano e os juros cairão para algo em torno dos 5,0% ano, o peso do imposto a uma alíquota de 0,4% em cada ponta da transação ficou alto demais. Imagine-se, por exemplo, uma empresa que precisasse levantar capital de giro num banco pelo período de três ou quatro dias: o que pagaria pela CPMF seria mais do que o custo do empréstimo bancário.
A ideia do agora ex-secretário Marcos Cintra seria trazer de volta a CPMF com uma alíquota sujeita a aumentos, tão logo sua arrecadação se mostrasse insuficiente. Aí pelo menos houve mais honestidade. Quando foi criada em 1997, a garantia foi de que a alíquota não seria elevada. Mas foi. Nessa matéria, quase não há limites. A voracidade fiscal é sempre maior do que o tamanho da alíquota.
Se agora ficou admitido que a alíquota pode subir, perde validade o argumento de que a nova CPMF viria apenas para substituir outros impostos ou outras contribuições – e não para aumentar a carga tributária.
Não ficou claro se a demissão de Marcos Cintra aconteceu porque divulgou a proposta da criação de um imposto sem autorização prévia dos chefes, ministro Paulo Guedes e presidente Bolsonaro, ou se foi demitido porque o governo não quer o imposto.
Mais de uma vez, Paulo Guedes defendeu a nova CPMF com o argumento de que é preciso reduzir os custos de contratação de mão de obra. E há o problemão original: o de que não há recursos e que é preciso inventar o que está mais à mão.
De todo modo, a demissão de Marcos Cintra torna mais difícil o retorno da CPMF, sob qualquer nome.
Celso Ming: A Embrapa envelhecida
Muita coisa no setor público lembra um verso de Belchior cantado por Elis Regina: “O passado é uma roupa que não nos serve mais”. É, por exemplo, o caso da Embrapa.
Criada em 1973, a Embrapa cresceu, virou referência em pesquisa agropecuária e ganhou posição de destaque na consolidação do agronegócio brasileiro. Escreveu uma história de orgulho, mas agora está fragilizada porque se nega a admitir que não é mais a mesma.
No último dia 5, o sociólogo Zander Navarro, ainda como pesquisador da Embrapa, fez críticas aos rumos da empresa, em artigo no Estadão. Apontou excessos, de burocracia e de pesquisas em desenvolvimento, mais de 1,1 mil. Dias depois, foi demitido, sem justificativa pública. Entre os gestores da estatal, circulou documento em que o presidente da Embrapa, Maurício Lopes, alegou “comportamento irresponsável e destrutivo” por parte de Navarro.
Desde o tempo dos profetas do Antigo Testamento sabe-se que o corporativismo não gosta de críticas e quase sempre se defende com atitudes autoritárias. O vice-presidente da Sociedade Rural Brasileira, Pedro de Camargo Neto, é um dos que denunciam o comportamento: “A Embrapa, tão elogiada no passado, agora acha que não deve prestar contas para a sociedade”. Para ele, o artigo teve o mérito de expor graves problemas.
Já havia sinais de alguns desses problemas por aí. Em entrevistas recentes, o próprio presidente da Embrapa admitiu que o desenvolvimento da pesquisa agropecuária do Brasil ficara para trás e recomendou que a empresa encontre novas fontes de financiamento para não depender só de verbas públicas. O orçamento da empresa, de R$ 3,3 bilhões por ano, provém do Tesouro. Hoje, cerca de 70% da receita vai para o pagamento dos funcionários, dos quais apenas 45% são pesquisadores e técnicos.
Especialista na área agro, o economista José Roberto Mendonça de Barros adverte que as críticas de Navarro têm grande importância, ainda que possam ter fugido do tom. E acrescenta que o maior problema da Embrapa é de governança. “A empresa tem história respeitável, mas precisa assumir novas prioridades. Mantém número excessivo de trabalhos teóricos, que deveriam ser das universidades, mas se afasta das pesquisas aplicadas, seu verdadeiro objetivo. É preciso repensar o incentivo aos pesquisadores.”
O professor da Faculdade de Economia da USP Decio Zylbersztajn admite que a Embrapa já não é a mesma, mas não pode ser apontada como origem dos males da pesquisa no agronegócio brasileiro. Para ele, a Embrapa é vítima de problema mais amplo: a falta de uma política nacional de incentivo à pesquisa. Essa é a principal razão pela qual a rede pública de ensino superior não produz estudos convergentes que tenham alguma relevância internacional.
O ex-ministro da Agricultura Alysson Paolinelli, um dos criadores da Embrapa, não quer acirrar os ânimos: “Sou bombeiro, que procura apagar o incêndio antes que se espalhe”. Para ele, as críticas podem restringir o fôlego de que a empresa precisa para avançar.
Resta saber se evitar o debate e punir autoritariamente os críticos não produzem efeito contrário: em vez de acabar com os focos de fogo, jogam mais lenha na fogueira.