celso lafer
Celso Lafer: ‘Diários da Presidência, 2001-2002’
No errático momento atual do Brasil, a palavra e a sabedoria de FHC merecem atenção
A publicação deste quarto volume finaliza o disciplinado empenho de Fernando Henrique Cardoso em dar acesso ao registro que fez do dia a dia de suas atividades nos oito anos que presidiu o País. É empreitada de largo fôlego, cujo enredo esclarece como caminhou sem perder o rumo no “grande sertão” da política brasileira no democrático exercício das responsabilidades da Presidência.
É uma obra original na sua feitura. Não é um diário na acepção usual da literatura confessional da sensibilidade de estados de espírito. Nada tem que ver com uma burocrática agenda comentada do expediente do dia a dia. Não é uma autobiografia política, mesmo porque o registro feito no calor da hora não permite uma narrativa organizadora, decantada pela memória da experiência, no tempo mais longo da reflexão. Não é igualmente uma discussão elaborada com rigor acadêmico sobre como mesclar pensamento e ação. Essa mescla, no entanto, está presente nos Diários, pois com frequência FHC se posiciona como analista observador da ação, extraindo do cotidiano de sua experiência presidencial o alcance mais amplo dos movimentos das forças sociais e políticas, da lógica política das instituições e das pessoas com quem interagiu.
FHC tem os dotes da facilidade da narrativa. É o que dá sabor aos Diários, nos quais não falta o realismo político da objetividade nem, ocasionalmente, a acrimônia da irritação, sempre permeada pela educada civilidade que caracteriza o seu modo de ser.
Todos os ingredientes dos gêneros acima mencionados têm presença, mas não dão a identidade intelectual dos Diários da Presidência. Trata-se de uma obra singular, única na sua amplitude, no campo da ciência política sobre o que é o processo decisório no ápice do sistema político brasileiro. “Governar é escolher”, afirmou Mendès-France, e os Diários explicitam circunstanciadamente, com a disciplina da responsabilidade, “de dentro”, e não “de fora”, o desafio de conduzir a pauta decisória de um país grande e complexo.
Não são triviais os riscos desses desafios. Passam por não se afogar na avassaladora demanda dos pleitos da vida política, para não reduzir o governo à mera rotina da “politique politicienne” de que falam os franceses. Exige coragem e capacidade de enfrentar os graves riscos do inesperado, que tem o potencial de descarrilar um governo. Disso são exemplos as múltiplas crises financeiras que superou. Não prescinde da aptidão na lida com a resistência que a realidade impõe a uma ação inovadora.
Enfrentar esse desafio requer a qualificada competência de liderança dotada de visão do País baseada na experiência e no conhecimento e com antenas para o movimento das coisas, entrelaçada com o ânimo da “ideia a realizar” dos novos rumos a serem trilhados. Os componentes estratégicos do fim, do caminho e da vontade estão sempre presentes na impregnação dos rumos norteadores do processo decisório que permeia os Diários e no modo como FHC direcionou e acompanhou o trabalho dos seus ministros e colaboradores.
No explicar e compreender, fluem as razões das políticas públicas da gestão da economia e da sua consolidação institucional, da atenção dada às de educação e saúde e ao papel que tiveram no resgate da dívida social do País, das relacionadas à tutela dos direitos humanos e da sustentabilidade ambiental e de uma miríade de medidas voltadas para a melhoria das condições do País, como a elevação generalizada dos indicadores do desenvolvimento humano na sua gestão revela.
Também tem destaque a dedicação a um novo patamar de presença e de credibilidade do Brasil no globalizado mundo contemporâneo, voltado para assegurar a tradução de necessidades internas em possibilidades externas. Nessa matéria os Diários ilustram os méritos e o alcance de uma diplomacia presidencial, conduzida com pleno domínio das prioridades e das relevâncias de quem sabe se orientar no mundo.
É inequívoco o inventário do positivo legado da Presidência FHC. Criou condições de um futuro melhor para o Brasil, governando democraticamente e sem violência, com respeito pelo Estado de Direito, pelas instituições e pelas divergências de opinião.
Na sua pós-Presidência FHC se afastou da militância política diária. Criou com espírito universitário uma reconhecida instituição apartidária de estudo e reflexão e vem participando do debate público. Essa participação está norteada pelas preocupações com a agenda do presente na perspectiva do futuro, permeada pelo tema dos rumos e do sentido de direção que assinalou construtivamente o processo decisório de sua Presidência e que é parte de seu legado de homem público.
É esse lastro que confere autoridade à sua palavra. Autoridade, para me valer das indicações do politólogo Karl Deutsch, traduz-se na prioridade da transmissão de mensagens, na qualidade e na legitimidade do seu conteúdo e da sua relevância para a sociedade.
No errático e desestabilizador momento atual do Brasil, a palavra e a sabedoria acumulada de FHC merecem respeito e atenção.
* Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Celso Lafer: Liberalismo/liberalismos
Entende-se o valor da liberdade quando ela é cerceada pelo arbítrio e pelas intolerâncias
São muitas as referências ao liberalismo na pauta do debate público. Poucas as considerações mais satisfatórias e abrangentes sobre seu alcance, como expôs com densidade José Guilherme Merquior em O Liberalismo - Antigo e Moderno (1991).
Na elucidação conceitual do liberalismo, a primeira observação é a de que não se circunscreve ao catecismo simplificador dos seus críticos, que nele identificam, na atual conjuntura, apenas a defesa do pensamento único da liberdade econômica dos mercados.
São muitos os idiomas do liberalismo e múltiplos e diversificados os temas dos seus patronos intelectuais. Entre eles, Immanuel Kant e Adam Smith, Alexander von Humboldt e Alexis de Tocqueville, Benjamin Constant e John Stuart Mill, Friedrich Hayek e Raymond Aron, Karl Popper e Isaiah Berlin.
Todos esses autores têm afinidades. Resultam de uma compartilhada preocupação com a defesa e a realização da liberdade. Partem de uma visão da sociedade concebida como plural, na qual o ser humano, com a sua dignidade própria, não se dissolve no todo.
Pressupõem que o mundo não é uma realidade determinista, mas um conjunto de probabilidades e possibilidades que estão ao alcance do criativo e inovador exercício das múltiplas dimensões da liberdade.
É esse terreno comum que permite inserir esses grandes nomes e suas reflexões no âmbito do liberalismo. Caracterizam-se, no entanto, por diferenças apreciáveis. É por isso que cabe falar em liberalismos, no plural, e pontuar que em contraste com a tradição socialista, na qual avulta a hegemonia de Karl Marx, o panteão do liberalismo, desde as suas origens e nos seus desdobramentos, é plural. Não é por acaso que a palavra liberal, como adjetivo, designa a postura de um espírito aberto e não dogmático.
A dimensão plural do liberalismo provém do fato de que a liberdade não é una, mas múltipla, e passa pela política, pela cultura, pelo social e pelo econômico.
Possui, não obstante suas diversas camadas de significado, uma força de atração motivadora, que Cecília Meirelles ilumina no Romanceiro da Inconfidência: “Liberdade – essa palavra/ que o sonho humano alimenta/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda”.
Entende-se o valor da liberdade, que alimenta o sonho humano, quando ela é cerceada ou corre o risco de ser cerceada pelo arbítrio da coerção e da prepotência e pelas intolerâncias discriminatórias.
Foi numa época de avassaladora denegação da liberdade que Franklin D. Roosevelt, em 1941, enunciou a importância do alcance de quatro liberdades essenciais: da palavra e expressão, de crença, de viver sem o império da necessidade e de viver sem medo.
A manifestação de Roosevelt sobre as quatro liberdades foi uma das fontes inspiradoras da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que conferiu dimensão normativa à agenda internacional e consagrou múltiplas dimensões de liberdade: de ordem pessoal (artigos 3.º a 11); dos direitos do indivíduo no seu relacionamento com os grupos a que pertence e às coisas do mundo exterior (artigos 12 e 17); das faculdades espirituais, das liberdades públicas e dos direitos fundamentais (artigos 18 a 22); dos direitos econômicos, sociais e culturais (artigos 22 e 27).
Explicita assim tanto a liberdade como espaço próprio delimitador do grau de interferência na vida das pessoas quanto a de participação na vida pública, um dos componentes da democracia.
É a preocupação com as múltiplas dimensões de liberdade que faz com que os pensadores dos liberalismos tenham como um dos seus temas o papel das instituições que a preservam dos que a denegam política, econômica e culturalmente. Anoto, a propósito de liberdade econômica, que os mercados não operam no vazio; por isso o bom funcionamento da economia requer instituições, como aponta, entre outros, Douglass North.
O liberalismo está na origem do constitucionalismo, da divisão de Poderes, do Estado de Direito e da tutela dos direitos humanos. Daí a relevante permanência do seu legado.
Michael Walzer, que enfrentou as múltiplas dimensões da justiça elaborando seu grande livro sobre as distintas esferas da justiça, também deu estimulante contribuição à preservação institucional das liberdades, considerando o liberalismo como a arte da separação. Assim, a separação Igreja-Estado preserva a liberdade religiosa; a do público e privado preserva da interferência estatal a família e o indivíduo e também abre espaço para a liberdade econômica de empreender. A arte da separação enseja a liberdade acadêmica, do ensino e da pesquisa, que sustenta a autonomia universitária, assim como a da cultura e da criação artística. A arte da separação assegura o antidogmatismo que permite a procura da verdade sem o arbítrio da censura e da imposição de uma “verdade oficial”.
Em síntese, velar e combater pela arte institucional da separação, inerente aos idiomas dos liberalismos, é o que nos cabe fazer, com a preocupação do futuro, na atual conjuntura caracterizada por riscos, internos e externos, aos cerceamentos da liberdade.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Celso Lafer: Os discursos do Brasil na ONU
O discurso na ONU é uma importante oportunidade de contribuir para a definição da agenda global e, nesse âmbito, formular como ela enseja a tradução das necessidades internas em possibilidades externas
A ONU é a grande expressão do multilateralismo. O multilateralismo começou a tomar forma no início do século 20. Resultou da dinâmica das transformações que unificaram a humanidade, para o bem e para o mal, tornando o mundo finito e interdependente.
Foi o que passou a exigir mecanismos institucionalizados de cooperação entre os Estados por meio de organizações internacionais. Estas criam tabuleiros diplomáticos que geram normas e pautas de conduta, elaboradas coletivamente pelos Estados para regerem suas recíprocas relações. Essas pautas e normas expressam em distintas conjunturas o possível da cooperação e do entendimento internacional. São sempre uma contínua, porém esquiva, conquista da razão política.
O Brasil participou dos momentos inaugurais da diplomacia multilateral: a Conferência de Paz de Haia em 1907 e a Conferência de Paris de 1919, a qual, ao término da 1.ª Guerra Mundial, levou à criação da Sociedade das Nações. A partir dessas experiências, o pensamento diplomático brasileiro identificou no multilateralismo um dos caminhos para a ação da política externa do País. Avaliou que um país como o nosso, de escala continental, sem “excedentes de poder” – como dizia o chanceler Saraiva Guerreiro –, mas com “interesses gerais” na dinâmica de funcionamento do mundo que o afeta, é nos tabuleiros do multilateralismo que sua voz encontra espaço para efetiva articulação.
No âmbito da ONU, o momento de maior significado da articulação da voz do Brasil é o discurso de abertura dos debates anuais da Assembleia-Geral. A prática consolidou a tradição de que cabe ao Brasil esse discurso. É o que vem sendo feito desde 1946.
A oportunidade de ser o primeiro a falar nos debates da Assembleia-Geral fez com que os chefes das delegações do Brasil na ONU – fossem embaixadores credenciados, ministros das Relações Exteriores ou os próprios presidentes da República – pronunciassem um discurso abrangente. Na avaliação de Luiz Felipe de Seixas Corrêa, que superiormente organizou a publicação desses discursos, antecedendo-os de uma esclarecedora análise de seus contextos internos e externos, o que os caracteriza é uma apreciação da situação internacional que é a moldura para a enunciação da visão brasileira do mundo e para a subsequente apreciação das principais questões internacionais. É o que os diferencia “da grande maioria das delegações que intervêm no debate geral, mais preocupadas com questões tópicas” (A Palavra do Brasil nas Nações Unidas – 1946-2011, 3.ª edição).
É considerável o desafio envolvido na elaboração desse tipo de discurso. Requer um olhar sempre atualizado sobre as mudanças da realidade internacional e, para ser devidamente abrangente, a capacidade de captar o que acontece no nosso contexto regional. O discurso na ONU é uma importante oportunidade de contribuir para a definição da agenda global e, nesse âmbito, formular como ela enseja a tradução das necessidades internas em possibilidades externas.
O histórico dos discursos deixa entrever, como aponta Seixas Correa, algumas dicotomias que caracterizam a formulação da política externa brasileira. Expressam as complexas dimensões do nosso país. Entre elas: realismo/idealismo, reivindicação/invenção, ocidentalismo/terceiro-mundismo, democracia/autoritarismo, continuidade/mudança.
Apesar disso, não obstante mudanças de ênfase e orientações, que provêm de distintas conjunturas internas e internacionais, há uma constante estável que tem sua origem na singularidade do lugar que o Brasil ocupa no mundo. No espaço de permissibilidade que o mundo nos oferece, o caminho trilhado pelo Brasil na explicitação da sua voz está alinhado com as formulações de Rui Barbosa em Haia: contrapor-se ao exclusivismo do poder das grandes potências e atuar no concerto das nações não com o peso de suas armas ou com eventuais ambições de potência, mas com a força de suas razões e a ascendência do seu Direito.
É por isso que esses discursos se têm oposto ao unilateralismo, sustentando os méritos do multilateralismo, e articulado a importância da paz, da cooperação e da solução pacífica de controvérsias. Reconhecem a heterogeneidade do sistema internacional e seu consequente pluralismo ideológico. Por isso, sem espírito de cruzada advogam o papel das negociações. Nas palavras do chanceler Horácio Lafer – de grande atualidade num mundo multipolar e permeado por tensões –, no seu discurso na ONU em 1960: “Face à inadmissibilidade de soluções bélicas, o mundo se acha confrontado com a necessidade de ajustar, por negociação as diferenças que separam as nações. O caminho em busca de soluções para os problemas do nosso tempo é a negociação permanente, o propósito de sempre negociar”.
Os discursos do Brasil na ONU têm sido enunciados numa linguagem apropriadamente diplomática. É o que confere qualidade à sua voz e ao estilo de sua visão do mundo, que agrega substância à reputação do nosso país. No ensinamento de Rui: “Hoje, com efeito, mais do que nunca, a vida assim moral como econômica das nações é cada vez mais internacional. Mais do que nunca, em nossos dias, os povos subsistem de sua reputação no exterior”.
A História não parte do zero a cada período presidencial. Por isso, no processo de redação do discurso da ONU, usualmente se leva em conta o que foi dito na abertura dos debates da Assembleia-Geral de 1946 até agora e o papel das forças internas e externas que modularam a voz do Brasil. É o que lhe dá, em distintas conjunturas, coerência, elemento da reputação internacional e de credibilidade.
Esse é o pano de fundo que permeia o peso da responsabilidade que deve ter o próximo discurso do Brasil na ONU, este mês. Uma de suas exigências é preservar no âmbito mundial a reputação internacional do nosso país.
*Professor emérito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002). Nessa condição pronunciou o discurso do Brasil na ONU em 1992 e 2002
Celso Lafer || Critérios para a indicação de embaixador
O afeto e a confiança paterna não bastam para habilitar o deputado Eduardo Bolsonaro
O presidente Bolsonaro almeja nomear seu filho Eduardo embaixador do Brasil em Washington. Seu propósito tem suscitado muita polêmica, que passo a examinar.
Nos casos de chefia de uma missão diplomática, a indicação não se circunscreve à esfera do Executivo. Em função da divisão de Poderes, ela só se efetiva com a aprovação do Senado, após arguição do indicado. É de praxe nessa arguição uma exposição das diretrizes que nortearão a atuação do futuro embaixador. Supõe-se que a exposição seja de qualidade e dê conta da multiplicidade das tarefas inerentes ao cargo.
Cabe ex officio ao chanceler dar conhecimento circunstanciado ao presidente das características do seu ministério. Em duas ocasiões no exercício dessa responsabilidade, procurei sempre agregar subsídios sobre o Itamaraty, úteis também em matéria de critérios de acreditação de representantes diplomáticos.
Realcei que o Itamaraty é uma instituição de qualidade da administração federal. Seus quadros ingressam na carreira pelo sistema de mérito. Têm formação profissional que se inicia com o curso no Instituto Rio Branco, aprimorada pela experiência profissional e por vários cursos necessários para galgar postos na carreira.
Por isso os quadros do Itamaraty têm um repertório de conhecimentos e, por obra de sua atividade profissional, detêm a memória da contribuição da política externa para a construção do Brasil. Compartilham um estilo de atuação, assinalador de recursos de competência, que tendem a reforçar a política internacional do País. É um estilo que busca dar vida à síntese formulada pelo Conselho de Estado do Império: “Diplomacia inteligente sem vaidade, franca sem indiscrição, enérgica sem arrogância”. É o que credencia os quadros da carreira para o exercício profissional da função diplomática. Por isso, ainda que a chefia de uma missão diplomática possa ser atribuída a não integrantes do Itamaraty, meu conselho como ministro foi dar prioridade a seus membros, pois no amplo espectro de uma carreira baseada no mérito se encontrariam profissionais qualificados para as diversificadas responsabilidades da função.
A indicação de embaixador de fora da carreira diplomática tem sido exceção. No caso, cabe levar em conta o histórico dos que foram embaixadores em Washington, a começar por Joaquim Nabuco, e recordar os méritos dos não integrantes da carreira diplomática. Entre eles, em distintos contextos, Oswaldo Aranha, Walther Moreira Salles, Amaral Peixoto, Juracy Magalhães. Por isso a indicação de embaixador nos EUA deve recair, e muito especialmente nos que não integram a carreira diplomática, em alguém “que se distinga – no Brasil e no exterior – como uma figura importante da cultura, da economia ou da política brasileira”, como apontou Marcílio Marques Moreira em entrevista a este jornal (16/7), com o saber de quem foi embaixador em Washington e ministro da Economia.
Essa avaliação tem pleno respaldo jurídico, pois o embaixador não é um representante pessoal do presidente. Não é seu preposto. Nos termos da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, válida no Brasil, ele é um representante do Estado. Por isso como dizia o clássico Vattel no seu Direito das Gentes, um embaixador deve conhecer o seu país e contribuir para o principal objetivo de um bom governo, que é o de prover as necessidades da nação.
Na avaliação dos critérios de designação de um embaixador me guiei pelo que estabelece a Convenção de Viena, que codificou o essencial das funções de um chefe de missão diplomática. A primeira, e a mais tradicional, é a da representação do Estado. Esta se desdobra numa representação política e jurídica, tem a dimensão de representação simbólica e aponta que um embaixador deve saber exprimir o que seu país, num sentido abrangente, significa para o Estado para o qual foi acreditado.
A segunda é informar apropriadamente ao seu governo o que se passa no país em que está acreditado. Isso requer ir além do que é do conhecimento generalizado e ter relações fluidas com o Executivo. Numa democracia pluralista e federalista como são os EUA, é necessário interagir com o Congresso e os partidos, com os Estados da Federação, com as universidades, a mídia, as ONGs, os think tanks, como esclarece, com o lastro da experiência, Rubens Barbosa em artigo nesta página (23/7).
Churchill observou que a eficiência da informação se mede pela qualidade, não pela quantidade. Exige discernimento. Não deve incidir no pecado mortal da prática diplomática de relatar apenas o que um embaixador julga que o seu governo gostaria de ouvir. São também suas funções a capacidade de negociar, a promoção das relações econômicas, culturais e científicas – o que exige a capacidade de iniciativa e impulsão –, a proteção dos interesses de seu Estado e de seus nacionais.
Não é do conhecimento do País de que maneira o percurso do deputado Eduardo Bolsonaro o habilita profissionalmente para ser embaixador em Washington. Daí a polêmica em torno de seu nome, cabendo ressaltar que o afeto e a confiança paterna não são suficientes para atender aos critérios apontados neste artigo. A isso agrego que não há maior informação sobre como o deputado interpreta os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil. Entre eles, o da prevalência dos direitos humanos.
A desejável aproximação com os EUA, que ele patrocinaria por seus vínculos de proximidade e afinidade ideológicas com a diplomacia de combate do America First do presidente Trump, tem limite. Foi explicitado por Rui Barbosa, que sempre defendeu a amizade e a colaboração leal com os EUA na política do mundo. Em A Imprensa e o Dever da Verdade (1920), o estadista da República afirmou: “Não quero, nem querereis nenhum de vós, que o Brasil viesse a ser o símio, o servo, ou a sombra dos EUA”.
*Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Celso Lafer: O Brasil e o multilateralismo
Não é o que está ao alcance com a crítica ao ‘globalismo’ e seletivas preferências ideológicas
O multilateralismo começou a tomar forma no século 20. Este se caracterizou pela unidade do campo diplomático-estratégico resultante dos processos técnicos, econômicos e intelectuais que unificaram, para o bem e para o mal, a humanidade, tornando o mundo finito. Foi o que passou a exigir mecanismos de cooperação entre os Estados.
Foram momentos inaugurais da diplomacia multilateral a Segunda Conferência de Paz de Haia, de 1907, e a Conferência de Paris, de 1919, que ao fim da 1.ª Guerra Mundial levou à criação da Sociedade das Nações. De ambas o Brasil participou, nelas identificando caminhos para a ação diplomática nacional, tendo em vista também as experiências do regionalismo multilateral interamericano.
Assim, nosso país mesclou, com consistência e os ajustes necessários provenientes das mudanças de circunstâncias, bilateralismo e multilateralismo na sua política externa. Essa mescla, favorecida pelo bom trânsito do Brasil no mundo, integrou a perspectiva organizadora da nossa inserção internacional na lida com a agenda de temas de interesse nacional, e no trato das simetrias e assimetrias do poder prevalecentes na ordem mundial.
É a importância dessa tradição que quero destacar aqui, fazendo um contraponto à diplomacia da Presidência Bolsonaro. Esta a ela se opõe. Parte do princípio de que a História começa do zero. Por isso se assume como uma discutível ruptura com o que veio antes, movida por seletivas e autorreferidas preferências axiológicas, desconhecedoras tanto da complexidade do mundo contemporâneo quanto das “forças profundas”, históricas e geográficas que têm caracterizado o modo de ser da diplomacia brasileira.
O multilateralismo se diferencia do bilateralismo e do unilateralismo. Nas relações bilaterais cada Estado negocia, à luz da lógica da reciprocidade específica dos seus interesses, com cada um dos seus parceiros, um a um. É um ingrediente indispensável da política externa de um Estado, à luz dos seus objetivos particulares, que favorecem em maior ou menor grau a tradução de necessidades internas em possibilidades externas. Por maior que seja a rede de relações bilaterais de um país, elas nunca dão conta dos desafios de sua inserção num mundo finito e de interdependências. É, evidentemente, o caso de um país complexo, de escala continental, situado na América do Sul e com múltiplos interesses como o Brasil.
No unilateralismo, um Estado conduz a sua política externa afastando-se das instâncias de concertação e desconsiderando o ponto de vista de outros Estados. A ação unilateral põe em questão, no sistema internacional, a função estabilizadora das normas do Direito Internacional, criadas no seu âmbito, que informa sobre os ingredientes da previsibilidade da conduta estatal e o padrão de legitimidade do aceitável.
O unilateralismo como prática esbarra na resistência que outros Estados são capazes de oferecer à sua ação. Depende, em distintos conjunturas e temas, dos recursos de poder de um Estado. Não é uma opção desejável nem viável para um país como o Brasil, que não possui “excedentes de poder”, como dizia o chanceler Saraiva Guerreiro. Mas é sempre uma tentação de grandes potências. É o caso, no momento atual, que não é unipolar, dos EUA na Presidência Trump pelo bullying unilateral das sanções econômicas, da elevação das tarifas e das ameaças militares. Daí os cuidados que cabe ter com o imprevisível do America first.
O multilateralismo não é a expressão ideológica de um “globalismo”. É a procura de soluções para a convivência internacional. Objetiva a elaboração e a aplicação de normas e pautas de conduta, elaboradas coletivamente pelos Estados para reger suas recíprocas relações num mundo interdependente. Cria, no âmbito institucional de múltiplas organizações internacionais, que operam, como um terceiro entre as partes, tabuleiros diplomáticos. Estes são um espaço para o potencial de articulação interestatal necessária para lidar com os desafios da sociedade internacional contemporânea, que alcança a todos na era digital.
O que sustenta a manutenção no tempo desses tabuleiros, como os da ONU e da OMC, é uma reciprocidade difusa, voltada para trabalhar, em distintos contextos e matérias, o possível da cooperação internacional, em muitas questões do interesse dos países e de suas sociedades.
É no âmbito de tabuleiros multilaterais que se torna viável dar sequência aos princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil (artigo 4.º da Constituição). Entre eles destaco a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos, a prevalência dos direitos humanos, o repúdio ao terrorismo e ao racismo, a cercania com as nações latino-americanas; e também a efetivação do direito a um meio ambiente equilibrado e sustentável, contemplado no artigo 225 da Carta Magna.
Uma das características da vida internacional é a distribuição individual, mas desigual, do poder entre os Estados. É por conta dessas desigualdades que as grandes potências tendem a atribuir-se um papel de gestão de ordem mundial.
No multilateralismo, a situação do poder “de fora” pesa, mas não se transfere automaticamente para o seu âmbito interno. É o que dá espaço para um país como o Brasil articular os seus válidos interesses gerais na gestão e dinâmica, que o afeta, do funcionamento do sistema internacional. É o que enseja a presença da voz do Brasil no mundo.
Para a efetividade dessa voz, que se lastreia no bom trânsito do Brasil, é preciso que seja consistente, universalizadora e tenha alcance geral. Não é o que está ao alcance da imprevisível intransitividade solipsista da crítica ao “globalismo” e de seletivas preferências ideológicas. Dizia o padre Antonio Vieira, “perdem-se as repúblicas porque os seus olhos veem o que não é, não veem o que é”.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Celso Lafer: A democracia e a nossa conjuntura
O forte facciosismo do governo no trato da sua inserção com a sociedade divide o País
Ao longo dos anos 1980, um abrangente consenso em torno da democracia uniu todas as vertentes da oposição ao regime autoritário-militar, favorecendo a redemocratização por meio de uma ação política que se valeu de brechas institucionais existentes. A Constituição de 1988 é expressão do consenso em torno da democracia, e a Constituinte, da qual emanou, traduziu em normas a imaginação e os sentimentos que impulsionaram o esforço coletivo abrangente de uma cidadania, que se tornou ativa no seu empenho em prol da redemocratização.
A Constituição de 1988 foi a moldura e o parâmetro no âmbito do qual transcorreu a vida política do país da Presidência Sarney à de Temer. Teve resiliência institucional para permitir que o País lidasse, em consonância com as regras da democracia, com uma complexa pauta e muitas tensões políticas.
Nesse contexto é importante realçar que a democracia é um método de convivência civil e pacífica, uma prática de aprendizagem permanente. Por isso pressupõe, como ensina Bobbio, confiança – “a confiança recíproca entre os cidadãos e dos cidadãos nas instituições”, que postula também a confiança no diálogo democrático, ou seja, o reconhecimento do Outro como adversário, e não como inimigo a ser dizimado, o que a convulsão dos sectarismos não favorece. Sectarismos excludentes e populismos de vários tipos são um dos dados que, em vários países, vêm levando à degeneração do poder democrático e à autocracias eletivas.
Os laços de confiança entre governos e governados foram se esgarçando em nosso país. Para isso contribuiu a revelação da corrupção. A corrupção, como dizia Políbio, é um tenaz agente da cupinização das instituições políticas. Daí a percepção de que a gestão da res publica estava se transformando na administração dos particularismos da res privata. No início, isso alcançou o PT e suas redes, porém nos desdobramentos impactou todo o espectro dos atores políticos.
A semente da desconfiança permeou as eleições de 2018. Todos os partidos que atuaram no pós-redemocratização foram derrotados. Padeceram a erosão de sua capacidade de vincular o indivíduo ao coletivo, PT incluído. Na dinâmica eleitoral, Bolsonaro soube valer-se das novas mídias da era digital, que diminuíram a prévia relevância da mídia tradicional no processo eleitoral. Catalisou um forte e significativo sentimento anti-PT existente na sociedade, para o qual contribuiu a inépcia da gestão do segundo mandato de Dilma. A isso se somaram no ano eleitoral a preocupação com a segurança e a violência, o desemprego e a falta de oportunidades.
Foi nesse caldo de sensibilidades que Bolsonaro, até então figura periférica e solitária na vida política, se viu catapultado para o âmago bem-sucedido das eleições. No Congresso, como deputado em várias legislaturas, não se destacou. Manifestou em suas intervenções grande simpatia pelo regime militar, foi muito crítico dos direitos humanos, altamente conservador em matéria de costumes, no que se viu respaldado pela visão e força política dos evangélicos, encontrando eco na sociedade.
Na campanha e nas constantes manifestações na Presidência, na qual se vale, como Trump, da preferência pelo sintético-não-argumentado do Twitter, tem arguido que ele e seu governo representam uma nova política. Esta, no seu tom e estridência, é uma contestação, para me valer de formulação de Fernando Henrique Cardoso, “ao terreno comum, público e privado, no qual o interesse das pessoas se encontram e em nome do qual um país cria um destino nacional”.
Esse terreno comum foi dado pela moldura da Constituição de 1988 e seus adquiridos axiológicos. A “nova política” questiona esse terreno comum e a respeitabilidade dos seus valores. É um deslocamento de paradigma do funcionamento da vida política brasileira, que, com todas as dificuldades e todos os conflitos, sustentou a democracia em nosso país.
A “nova política” poderá assegurar o bom governo? A dicotomia bom governo/mau governo é um dos temas clássicos da teoria política. Passa pelo “governo das leis” e pelo exercício do poder em prol de um ideal e de uma prática voltada para o bem comum. Um dos ingredientes que desde os gregos e de toda a literatura subsequente leva à desagregação do bom governo, como lembra Bobbio, é a prevalência da formação de facções e o estímulo à discórdia.
Uma das características da presidência de Bolsonaro é a formação de facções dentro de seu próprio governo, que nas suas discórdias fragmentam a nitidez dos rumos governamentais.
O espírito de facção inspira o cerne ideológico do governo, que, alinhado com o perfil do presidente, anima a sua comunicação com o País. Esta alimenta o núcleo duro dos seus seguidores, que é minoritário, mas afasta a maioria remanescente dos seus eleitores e também o vasto grupo de brasileiros que tiveram, no início, uma certa boa vontade com o “novo” que encarnava. Em síntese, o forte facciosismo do governo no trato da sua inserção com a sociedade divide o País e não contribui para a reconstituição dos laços de confiança entre governo e governados. Sustenta-se na ideia de que existem inimigos e conspirações no Brasil e no mundo que cabe combater com vocação de cruzados, que desconhecem a distinção entre fatos e ficção e os critérios do pensamento na lida com o verdadeiro e o falso.
Hobbes, no De Cive (XII, 13), analisa os riscos da multiplicação de facções dentro do Estado e da sociedade para a boa governança. Ilustra a questão com uma narrativa mítica. As filhas de Peleu, rei de Tessália, inspiradas pelo conselho de Medeia, cortaram o velho rei em pedacinhos, cozinharam-no no fogo, esperando, inutilmente, que ressuscitasse com o pleno vigor da juventude. Assim também, continua Hobbes, é a estultice das facções, que na sua conduta querem renovar o velho abrasando o governo, em vez de reformulá-lo. Esta cozinha do abrasar generalizado da “nova política” é um dos riscos da degeneração do poder democrático.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Celso Lafer: Sobre a identidade internacional do Brasil
Manifestações iniciais do governo Bolsonaro revelam dificuldade em orientar o País no mundo
O tema da identidade é parte da pauta da política externa dos países. Diz respeito à relação de continuidade e mudança, seja por razões internas ou externas, da sua ação diplomática. Busca esclarecer, como observa Karl W. Deutsch, em que medida as transformações da conduta externa mantêm o fio da continuidade que permite falar em identidade internacional.
No trato da identidade internacional do Brasil, tenho utilizado a lógica organizadora do que Renouvin e Duroselle denominam “forças profundas”. São explicativas dos elementos históricos da continuidade de nossa política externa desde a independência que mantêm uma coerência, de duração longa, não obstante as mudanças compreensíveis e as incoerências conjunturais, provenientes das contradições da vida e das ações políticas. É essa dimensão de coerência que esclarece, como mostrou Rubens Ricupero, o relevante papel da diplomacia na construção do Brasil, incluída a constituição mais pacífica da nossa escala continental, uma singularidade que nos diferencia de outros países de escala continental, como EUA e Rússia.
A política externa e a atividade diplomática têm como item permanente da agenda defender os interesses de um país no plano internacional. Identificar esses interesses para traduzir necessidades internas em possibilidades externas, diferenciando-os dos interesses e perspectivas dos demais atores que operam na vida internacional, é um exercício diário de representação da identidade internacional de um país.
Ortega y Gasset realçava que a perspectiva organiza a realidade. Nesse contexto, numa acepção mais abrangente, a política externa articula a expressão de um ponto de vista de um país sobre o mundo e seu funcionamento. No caso do Brasil, os fatores de persistência esclarecem a dimensão da continuidade deste ponto de vista que resulta da memória de uma tradição diplomática que o Itamaraty preserva.
San Tiago Dantas esclarecia que a continuidade é um requisito da política externa, observando que isto não acontece da mesma maneira em relação aos problemas administrativos do país, no âmbito dos quais mudanças de rumo não têm os mesmos inconvenientes do que ocorre em matéria de ação exterior do Estado: é fundamental “que a projeção da conduta do Estado no seio da sociedade internacional revele um alto grau de estabilidade e assegure crédito aos compromissos assumidos”.
Essa dimensão de continuidade, estabilidade e coerência está sendo posta em questão pelas manifestações diplomáticas do governo Bolsonaro e do seu chanceler, com impacto na credibilidade internacional do nosso país.
Observo, em primeiro lugar, a inserção da religião e seus desdobramentos na pauta da agenda diplomática. O Brasil não é um Estado confessional. É, desde a República, um Estado laico. A Constituição veda à União estabelecer cultos religiosos ou igrejas e manter com eles ou seus representantes relação de dependência ou aliança. Não é do interesse público da política externa suscitar, de maneira inédita, o tema da religião na vida internacional, posto que contribui para as tensões da intolerância da geografia das paixões religiosas, inserindo o nosso país numa problemática em que não precisa se envolver. É uma visão equivocada do papel do campo dos valores na ação diplomática.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de titularidade coletiva do povo brasileiro, e cabe ao poder público defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, nos termos da Constituição (artigo 225). Meio ambiente é indivisível, por isso é internacional. Afeta todos os que vivem na Terra. A sustentabilidade é uma exigência de uma economia internacionalmente competitiva, necessária para o comércio internacional dos produtos, incluídos os agrícolas, já que o acesso a mercado de outros países passa crescentemente por produtos e processos que atendam a requisitos de sustentabilidade ambiental.
O Brasil tem desde a Rio-92 uma construtiva e ativa participação na agenda internacional do meio ambiente, que se tornou um ingrediente de continuidade e coerência da política externa brasileira. As manifestações de recuo nessa matéria do governo Bolsonaro comprometem a projeção do Brasil na sociedade internacional e põem em questão compromissos assumidos. Isso não atende aos interesses nacionais.
Vivemos num mundo interdependente, que se globaliza no ciberespaço da era digital, que acentua a porosidade das fronteiras e propaga tensões difusas em todas as esferas. Para lidar com os desafios inerentes a essas tensões pelo caminho da efetivação dos princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil - entre eles a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (Constituição, artigo 4, IX) - é preciso participar do mundo e de suas instâncias intergovernamentais, no âmbito das quais o Brasil sempre atuou, atento à relevância do multilateralismo para os interesses da ação diplomática brasileira. Recuar dessa participação a partir da rejeição autocentrada do “globalismo” ignora, como dizia Hannah Arendt, que somos do mundo e não apenas estamos no mundo, mesmo em matéria de atualidade dos problemas dos refugiados e de correntes migratórias. Isso, aliás, contrasta com o princípio da prevalência dos direitos humanos e da abertura à concessão de asilo político, diretrizes constitucionais da política externa.
Em síntese, esses exemplos, entre muitos outros, são indicações de que as manifestações iniciais do governo Bolsonaro e do seu chanceler revelam uma dificuldade na capacidade de orientar o Brasil no mundo. É de esperar que no confronto com a realidade interna e externa essas manifestações sejam ajustadas para, sem rupturas inadequadas, levar em conta a coerência da política externa brasileira em linha com a sua identidade internacional.
* Celso Lafer, professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Celso Lafer: A Declaração Universal aos 70 anos
No momento atual do mundo, os direitos humanos estão fragilizados
Retomo o tema da importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos no seu septuagenário para reiterar que ela tem a característica de um evento inaugural. Assemelha-se à passagem do dever dos súditos para o direito dos cidadãos que assinala a Declaração de Direitos de 1789, da Revolução Francesa, na lição de Bobbio.
A Declaração não é uma soma aperfeiçoada de declarações nacionais. Parte do princípio da igualdade – e seu corolário lógico, a não discriminação (artigos 1.º e 2.º) – contempla de maneira articulada os direitos civis e políticos e os econômicos e sociais e culturais, mas inova ao formular, como pontua René Cassin, um dos seus redatores, direitos fora do alcance das jurisdições nacionais. É por isso que a Declaração aponta o caminho para o que Hannah Arendt denominou o direito a ter direitos, para atribuir “a todos os membros da família humana” os benefícios do princípio da legalidade, que é uma qualidade do exercício do poder que circunscreve o arbítrio dos governantes.
Destaco o direito de toda a pessoa ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei (artigo 6.º), que se contrapõe ao aniquilamento jurídico da pessoa humana, característica da dominação totalitária. Anoto, por exemplo, o artigo 13, que trata da liberdade de locomoção de todas as pessoas dentro e fora das fronteiras do seu Estado, e o 14, que afirma o direito da pessoa vítima de perseguição de procurar e gozar asilo em outro país. Esses dois artigos inovadoramente postulam a livre circulação das pessoas e o 14 traduz a aspiração a um kantiano direito à hospitalidade universal.
A Declaração é um desdobramento da Carta da ONU, que considera entre os seus propósitos “promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Introduz, dessa maneira, a “ideia a realizar” não apenas da paz, da segurança, da solução pacífica de conflitos, da cooperação entre Estados igualmente soberanos, mas de indivíduos livres e iguais, inserindo assim uma abrangente agenda normativa na pauta internacional.
A Declaração traduz a “ideia a realizar” de “um ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações”. É um marco histórico, afirmador da plataforma emancipatória representada pela promoção dos direitos humanos como critério organizador e harmonizador da vida coletiva não só no plano dos Estados, mas em escala planetária.
Ela tem como antecedente conceitual a conjectura kantiana de um direito cosmopolita, cujo objeto não seriam apenas as relações interestatais, mas os seres humanos.
A sensibilidade generalizada em relação à violação dos direitos humanos aflorou com as atrocidades do século 20, com os campos de concentração, o genocídio, a descartabilidade em larga escala dos seres humanos e os sofrimentos dos flagelos da guerra.
Essas são as fontes materiais que inseriram os direitos humanos nos propósitos da ONU. A Declaração é uma resposta ao problema do mal ativo da prepotência sem limites dos governantes e do mal passivo de suas incontáveis vítimas que sofreram uma pena sem culpa, para valer-me da formulação de Bobbio. Esse mal se agravou com a dissociação entre os direitos dos povos e os direitos humanos que redundou num inédito número de expulsos da trindade Estado-povo-território, os refugiados, os deslocados no mundo, que não tiveram como recorrer aos direitos humanos por não terem acesso aos benefícios da legalidade, como expôs Arendt em As Origens do Totalitarismo.
A internacionalização abrangente dos direitos humanos tem início com a Declaração, que está redigida na perspectiva dos seres humanos que precisam da tutela do direito a ter direitos. Tem como pressuposto que a igualdade em dignidade e direitos, base dos direitos humanos, não é um dado, mas um construído de convivência coletiva baseada na pluralidade dos seres humanos que compartilham a Terra com os outros seres humanos.
A Declaração aponta para um novo nomos da Terra, que transita pela garantia de mútuos acordos da comitas gentium. Tem a sua razão de ser quando se deseja que a nova vizinhança internacional trazida pelo processo de unificação do mundo seja algo mais promissor do que o aumento do ódio mútuo e da irritabilidade de todos contra todos, na lição de Arendt.
A relevância desse nomos é destacada no artigo 28, que postula o direito de todas as pessoas a uma ordem internacional em que os direitos e liberdades nela estabelecidos possam ser plenamente realizados. A nossa Constituição está em sintonia com ele ao estabelecer, entre os princípios que regem as relações internacionais, a prevalência dos direitos humanos.
O reconhecimento e a positivação dos direitos humanos, tanto no plano interno quanto no internacional, são uma expressão da integração histórica de valores de convivência humana. Valores, como destaca Miguel Reale, são um bem cultural. Têm um suporte na realidade, que é a sua capacidade de efetivar-se na prática. Referem-se assim à realidade, mas a ela não se reduzem pois apontam igualmente para uma direção de dever ser – sempre podem ser aprofundados. Ser e dever ser coexistem numa dialética de mútua implicação e polaridade. Nessa interação, os direitos humanos, como um adquirido axiológico, podem se adensar ou se fragilizar. No momento atual do mundo eles estão fragilizados.
A afirmação dos direitos humanos não é nem uma marcha triunfal nem uma causa perdida, como lembra Danièle Lochack. É um combate na lida com os contextos e as circunstâncias. Continua prioritariamente na ordem do dia para quem vive a crença no valor da dignidade humana e tem na Declaração uma fonte de inspiração permeada pelo alcance da sua plataforma emancipatória.
* Celso Lafer é professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Celso Lafer: A política externa e seus desafios
Cabe ao Brasil se orientar na diplomacia pelos princípios consagrados na Carta
Discuti neste espaço em 19/2 a relevância da política externa como política pública. Sublinhei que ela tem como nota identificadora avaliar a abrangência das necessidades internas do País e ponderar quais as possibilidades externas de torná-las efetivas. Pontuei que a conversão de necessidades em possibilidades requer um apropriado juízo diplomático que leve em conta os ativos e as especificidades do País e saiba orientar-se num mundo com as características do atual, dentro do qual se dá a inserção internacional do Brasil. Vale a pena retomar a discussão nesta antevéspera da posse do presidente Bolsonaro.
Destaco inicialmente que o novo governo partirá de um meritório reposicionamento da política externa empreendido no governo Temer pelos chanceleres José Serra e Aloysio Nunes Ferreira, que se dedicaram a conduzi-la como política de Estado. Deixaram de lado, num movimento que o resultado das eleições endossou, uma preponderante política de governo, inspirada pela visão circunscrita de um partido e seus interesses.
Aponto, por exemplo, o resgate da válida vocação original do Mercosul como expressão de regionalismo aberto, empenhado no livre-comércio, devidamente escoimado das distorções provenientes das preferências político-ideológicas.
A tarefa de damage control proveniente da erosão do soft power do País deverá ser uma faceta da condução da política externa. Trata-se de um dado das percepções, repercutidas na mídia internacional, que resultam de manifestações do presidente na campanha eleitoral em matéria de direitos humanos e convivência democrática. Para a erosão acima mencionada tem também contribuído a ideológica irradiação externa em circuitos de esquerda de uma autocentrada “narrativa” petista.
A agenda diplomática do próximo governo lidará, respaldada pela qualificada competência dos quadros do Itamaraty, com alguns significativos campos de atuação da política externa de um país.
Passo a comentá-los na sua abrangência, lembrando, como dizia Hannah Arendt, que somos do mundo, e não apenas estamos no mundo.
O primeiro campo é o estratégico. Diz respeito aos riscos de guerra que permeiam a vida internacional e o que um país pode significar para outros como aliado, protetor ou inimigo. No mundo atual, caracterizado por tensões difusas que exacerbam os conflitos e instigam a geografia das paixões, magnificando a insegurança internacional, esse é um campo relevante. Tem peso maior ou menor tendo em vista a lógica própria das regiões que compõem, com sua especificidade, a arquitetura do sistema internacional. É um tema forte da agenda do Oriente Médio, da Ásia e de países como EUA, China, Índia ou Rússia. É menos premente para o Brasil, em paz com seus vizinhos desde o fim do século 19, empenhado em fazer de suas divisas fronteiras de cooperação, e que sempre esteve mais distante dos focos de tensão da vida internacional. A menor premência não exclui, no entanto, a relevância.
O campo dos valores diz respeito às afinidades e dissonâncias que resultam de distintas formas de conceber a vida em sociedade. As dissonâncias, hoje em dia, num sistema internacional heterogêneo e fragmentário são consideráveis. Estão comprometendo a universalidade da agenda normativa, propiciando a intensidade das aspirações de identidade e reconhecimento, que obedece ao ímpeto centrífugo de sublevação dos particularismos, e revigorando o zelotismo dos fundamentalismos religiosos e políticos. Essa é uma das causas do drama de escala planetária dos refugiados que também nos afeta por causa dos desmandos autoritários da Venezuela de Maduro.
No contexto dessa Torre de Babel, cabe ao Brasil, na especificidade das conjunturas, orientar-se nas suas posições diplomáticas pelos princípios que regem as relações internacionais do País, consagradas na Constituição (artigo 4.º).
O campo das relações econômicas internacionais é prioritário para o Brasil. Explicita a importância de outras economias num mundo interdependente e globalizado, conferindo significado aos mercados, para importações e exportações, obtenção de financiamentos, atração de investimentos e de inovações.
No mundo contemporâneo isto tem como pano de fundo as novas tecnologias, que vêm levando à reorganização dos modos de interagir e produzir, de que é exemplo o papel das cadeias globais de valor da produção e da comercialização. Tem também como pano de fundo uma multipolaridade econômica não regida por um abrangente multilateralismo comercial de que são amostras o unilateralismo das guerras comerciais em andamento e as ameaças que pairam sobre a OMC.
É nesse contexto que o próximo governo deverá buscar convergências na diversidade na lida com as parcerias econômicas do País, incluídas as de nossa região, com acordos comerciais, e com os temas da liberalização comercial. Estes passam pelos desafios do acesso a mercados, dificultados por barreiras não tarifárias, por obstáculos em matéria de convergências regulatórias e por protecionismos, em especial de produtos agrícolas.
Finalizo com a agenda do meio ambiente, campo inter-relacionado com o dos valores e o das exigências de uma economia internacionalmente competitiva. Lembro que o acesso a mercados de outros países passa crescentemente por produtos e processos que atendam a requisitos de sustentabilidade ambiental. Meio ambiente sob a égide do conceito de desenvolvimento sustentável consagrado na Rio-92 insere os custos da sustentabilidade do meio ambiente nos processos decisórios públicos e privados. Meio ambiente é indivisível, por isso é internacional. Afeta a todos – as gerações presentes e futuras. Basta pensar no impacto das mudanças climáticas. Daí a relevância no plano interno da transição para uma economia de baixo carbono e de energias renováveis e limpas na matriz energética e de dar sequência aos compromissos internacionais de redução de emissões do Acordo de Paris.
✽ Celso Lafer é professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)