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Bernardo Mello Franco: Cheiro de pólvora no ar
A Polícia Militar do Ceará voltou às ruas, mas deixou um cheiro de pólvora no ar. O motim expôs a cumplicidade do Planalto com a agitação nos quartéis. Isso pode servir de incentivo a novos levantes armados pelo país.
No sábado, o ministro Sergio Moro admitiu que a greve era proibida, mas afirmou que os policiais amotinados não eram criminosos. Isso equivale a dizer que nenhum brasileiro está autorizado a afrontar a Constituição, exceto aqueles que vestem farda da PM.
No domingo, o diretor da Força Nacional chamou os policiais que cruzaram os braços de “gigantes” e “corajosos”. “Só os fortes conseguem atingir seus objetivos”, elogiou o coronel Antônio Aginaldo de Oliveira. Ele é casado com a deputada bolsonarista Carla Zambelli, e Moro foi padrinho do enlace.
Não houve gigantismo nem coragem no motim da PM cearense. Os grevistas aterrorizaram a população desarmada, que permaneceu nove dias como refém. Em algumas cidades, policiais adotaram práticas do tráfico e saíram encapuzados para ordenar o fechamento do comércio.
O motim deixou um saldo de 241 mortos em nove dias. Um senador tentou avançar contra os grevistas e foi baleado no peito, mas Moro declarou que “prevaleceu o bom senso, sem radicalismos”.
No Congresso, circulam duas explicações para o corpo mole do Planalto. Jair Bolsonaro sabe que os líderes do movimento são seus eleitores, e preferiu compactuar com a desordem a perder votos. Ao mesmo tempo, o presidente farejou uma nova oportunidade para enfraquecer os governos estaduais.
A oposição acredita que o capitão também aproveitou o episódio para mostrar força. Depois de se cercar de generais, o presidente indicou que conta com o apoio de escalões inferiores da PM na hipótese de uma crise que ameace seu mandato.
O fato positivo do motim foi a articulação dos governadores de diferentes partidos para socorrer o petista Camilo Santana quando Bolsonaro ameaçou retirar as tropas federais. Sem isso, o Planalto poderia ter abandonado os cearenses à própria sorte.
Marcelo Tognozzi: Uma lição não aprendida
Brasil repete era de violência extrema. O senador Cid Gomes invadiu uma manifestação da PM no Ceará com uma retroescavadeira e levou 2 tiros durante o protesto
Misturar política com forças de segurança sempre acaba em tiro, sangue e porrada. A cena dantesca do senador Cid Gomes partindo para cima de uma multidão de PMs grevistas nos remete ao Brasil de 98 anos atrás, quando o mineiro Artur Bernardes se elegeu presidente da República no dia 1º de março de 1922. Os anos Bernardes (1922 – 1926) foram ofuscados pela era Vargas. Representam um momento de grande ruptura política e confronto violento, num Brasil tão efervescente quanto o de hoje.
A começar pelas fake news. Bernardes recebeu o mais duro ataque da campanha através de duas cartas com sua assinatura falsificada, contendo duras críticas aos militares e publicadas pelo Correio da Manhã, então principal jornal da capital Rio de Janeiro. Elas foram meticulosamente preparadas por 3 partidários do Marechal Hermes da Fonseca que, antes de vende-las ao senador antibernardista Irineu Machado, procuraram o próprio Artur Bernardes pedindo 30 mil contos em troca delas. Bernardes mandou-os pentear macacos e achou que não teriam coragem de ir além.
Ledo engano. Machado entregou-as ao Correio. E aí vemos a história se repetir nos detalhes, quase que por inteiro 1 século depois, quando o vale-tudo de reportagens mal apuradas e erros grosseiros acabam sendo transformados em verdade, denegrindo a reputação da imprensa enquanto instituição. Naquele 1921, o Correio até tentou reconhecer a firma de Bernardes, mas o tabelião Djalma Fonseca Hermes recusou, porque a considerou incompatível com a assinatura arquivada no cartório.
Mesmo assim o Correio da Manhã insistiu na fake news. A primeira carta foi publicada na edição do dia 21 de outubro de 1921. O jornal atacou duramente o candidato do Partido Republicano Mineiro. Edmundo Bittencourt, dono do jornal, foi para a Europa em janeiro de 1922 tentar arranjar um perito que confirmasse a autenticidade das cartas e da assinatura. Conseguiu um francês para atestar a autenticidade.
Em fevereiro, o lendário Virgílio de Melo Franco –um dos artífices do Manifesto dos Mineiros 21 anos depois– zarpou para a Itália, mostrou as cartas a peritos da Faculdade de Direito de Roma e, depois, a especialistas do Instituto de Ciências Políticas de Lausanne, na Suíça, comprovando a falsidade das 2 cartas e enchendo de água o chope de Bittencourt.
Mesmo com a recusa do tabelião em reconhecer a firma de Bernardes e as perícias de italianos e suíços, as cartas falsas continuaram repercutindo e incendiando. Serviram de estopim para a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, em 5 de julho de 1922, quatro meses depois da eleição de Artur Bernardes, na primeira ação do que veio a se tornar conhecido como Movimento Tenentista.
Empossado em 15 de novembro de 1922, o 12º presidente do Brasil formou um gabinete de 9 ministros e governou um país conflagrado pela violência, mantendo o Estado de sítio durante todo o mandato. Em 1923 explodiu no Rio Grande do Sul a guerra entre os ximangos liderados por Borges de Medeiros e os maragatos de Assis Brasil.
Uma guerra famosa pela degola, daí o lenço vermelho usado pelos maragatos. Em 5 de julho de 1924, estourou a revolução em São Paulo liderada pelo general Isidoro Dias Lopes, guerreiro da Revolução Federalista gaúcha de 1893 contra Floriano Peixoto, o que lhe valeu uma temporada de exílio em Paris. Anistiado pelo presidente Prudente de Morais, voltou ao Exército. Em 1924, Isidoro conspirou com Miguel Costa, então comandante da Força Pública Paulista, equivalente à PM de hoje em dia.
A mistura venenosa de fake news, agitadores militares e membros da Força Pública rendeu uma revolução curta e sangrenta. São Paulo foi bombardeada inúmeras vezes durante os 23 dias da revolta pelas aeronaves Morane Salnier e Nieuport 21E1, ambas de 80HP, soltando bombas de 60 kg, além de artilharia de 75, 105 e 155mm. Havia gente morta e despedaçada pelas ruas, especialmente na Mooca e regiões operárias, prédios desmoronados, incêndios e nem o Palácio dos Campos Elíseos, sede do governo paulista, escapou das bombas. A população se escondia como podia, muitos fugiram e São Paulo viveu uma onda de saques e estupros.
O governo de Bernardes ganhou esta guerra, mas uma outra começou em seguida com o surgimento da Coluna Prestes-Miguel Costa, mostrando que o conflito viera para ficar. Em 1930, Washington Luís, sucessor de Bernardes, foi derrubado por uma revolução apoiada pelos tenentes e a burguesia. A pacificação só aconteceria 10 anos depois, em 1932, quando Getúlio Vargas sufocou a Revolução Constitucionalista de São Paulo, desta vez sem bombardear a capital dos paulistas, mas castigando especialmente cidades do Vale do Paraíba e Campinas, em operações comandadas pelo então major Eduardo Gomes a bordo do seu vermelhinho, como eram conhecidos os aviões Waco do governo. Os aviões paulistas eram os gaviões de penacho, comandados pelo major Ivo Borges.
Quase 1 século depois da violência e do extremismo dos anos 1920, assistimos à repetição da explosiva combinação de política com forças de segurança no Ceará. O ex-governador Paulo Hartung sabe muito bem o que é isso. Em 2017, 217 pessoas morreram durante a greve da PM iniciada em 4 de fevereiro. A reivindicação era a mesma de sempre: melhores salários.
O caos se instalou no Espírito Santo durante 20 dias até que Hartung conseguiu negociar a paz. Com o movimento do Ceará sendo tratado a golpes de retroescavadeira, o Brasil dá uma marcha à ré rumo a uma era de violência extrema, um trauma não superado e uma lição da história até hoje não aprendida.
Luiz Carlos Azedo: Moro e Doria pagam pra ver
“A ‘convivência pacífica’ entre polícia e bandido nos presídio estava possibilitando, frequentes ameaças a promotores e juízes por homicidas confessos, em audiências e julgamentos”
O ministro da Justiça, Sergio Moro, e o governador de São Paulo, João Doria, pagaram para ver a reação do Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior facção criminosa do país, ao transferir Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, e mais 21 chefões do tráfico de drogas das penitenciárias estaduais de Presidente Venceslau e de Presidente Bernardes, no interior do estado, para os presídios federais de Mossoró (RN), Porto Velho (RO) e Brasília (DF), recém-inaugurado na Papuda. Não existe superlotação nem registro de fugas nesses presídios.
Efetivamente, essa é a primeira ação disruptiva de Moro nos presídios, em comum acordo com o governador João Doria, que alfinetou os antecessores ao dizer que esse tipo de medida já poderia ter sido tomada. Segundo o governo paulista, Marcola e seus comparsas estavam planejando uma fuga do presídio, em razão das propostas de endurecimento de penas e do regime carcerário.
A decisão é muito emblemática por causa da crise ocorrida no Ceará, após a transferência dos chefões do crime organizado dos presídios daquele estado para presídios federais — há mais dois: um em Campo Grande (MS) e outro em Catanduvas (PR) —, que são reservados para presos de alta periculosidade e líderes de facções criminosas.
A transferência da alçada estadual para a federal muda o status quo do tráfico de drogas em São Paulo, porque haverá uma desconexão entre os líderes históricos da PCC e toda a poderosa rede de tráfico de drogas, inclusive para o exterior, existente no estado. Além disso, põe fim à “convivência pacífica” entre polícia e bandido nos presídios, que estava possibilitando, inclusive, frequentes ameaças a promotores e juízes criminais de primeira instância por homicidas confessos, em audiências e julgamentos.
Plano de fuga
Segundo relatório dos serviços de inteligência da Secretaria de Segurança de São Paulo, os chefões do tráfico estavam preparando uma fuga espetacular, com utilização de aeronaves, veículos blindados, armamento pesado e homens treinados na Bolívia, inclusive estrangeiros, o que foi determinante para a transferência de Marcola e mais 15 chefões. Outros sete foram transferidos porque comandavam as conexões do PCC em 18 estados e outros países, conforme operação realizada no ano passado. Como houve retaliações do tráfico de drogas às medidas anteriormente tomadas pelo governo paulista para isolar os chefões nos presídios de segurança máxima estaduais, a segurança dos presídios federais para os quais estão sendo transferidos também foi reforçada.
A avaliação das autoridades paulistas é de que o PCC não tentará repetir em São Paulo o que houve no Ceará, porque foram pegos de surpresa, estão sem comunicação com os demais integrantes da organização e também enfrentam disputas com outras facções no Rio de Janeiro, no Norte e no Nordeste, não podendo, por isso, se enfraquecer em São Paulo, num confronto direto com as forças de segurança. Ou seja, Moro e Doria apostaram no enfrentamento da maior e mais poderosa facção do tráfico organizado como passo inicial da política de combate à violência e à criminalidade, sem se deixar intimidar por ameaças.
Ordem unida
De volta a Brasília, a primeira tarefa de Jair Bolsonaro no Congresso será restabelecer a ordem na sua tropa de choque. Além do “barata voa” na bancada de deputados federais, que não se entende, o filho caçula do presidente da República, o vereador carioca Carlos Bolsonaro, resolveu desmentir publicamente o secretário-geral da Presidência, Gustavo Bebianno, que disse, em entrevista, ter conversado três vezes com seu pai sobre o caso da candidata laranja do PSL em Pernambuco, Maria de Lourdes Paixão, que recebeu R$ 400 mil da legenda sem fazer campanha.
Aparentemente, Bolsonaro deu aval ao filho, mas a turma do deixa-disso tenta pôr panos quentes e trata o assunto como coisa banal na política. Não é: trata-se do filho do presidente da República desautorizando publicamente um ministro com assento no Palácio do Planalto. Bolsonaro endossou o filho nas redes sociais e mandou investigar Bebianno.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-moro-e-doria-pagam-pra-ver/
Fernando Gabeira: Lições do terror
No fundo, a simples enumeração de ataques é, de forma involuntária, o jogo que interessa aos líderes de facções criminosas
Calor absurdo aqui no interior do Mato Grosso do Sul. Coisas do marxismo internacional. Acabo de ler o livro de Afonso Arinos, graças às longas viagens de avião: 1.780 páginas.
De tantos pedaços da história, discursos internacionais, personalidades, tenho espaço apenas para destacar uma frase da neta de Arinos. A mulher dele disse que ele andava triste. A menina resolveu consolá-lo:
— Vovô, não fique triste, o senhor tem sua casa, seus filhos, a sua bengala…
Livros como o de Arinos e Joaquim Nabuco me reconciliam com o Brasil. Fico orgulhoso de me dedicar ao estudo do país.
Em Fortaleza, vi um homem com um carrinho de pequenas frutas amarelas ao longe e disse: seriguelas. O homem se aproximou e, ao passar por nós, perguntei: que fruta é essa? Seriguelas, respondeu.
Fiquei feliz como um menino que passa na prova. Deveria ser um pouco mais sério porque estava cobrindo precisamente a onda de ataques no Ceará.
Acontece que estou reavaliando um pouco minha noção de jornalismo. Nossa tendência é dramatizar ataques, cortar as imagens de forma que o fogo e a destruição se destaquem.
Quando examino mais de perto, os ataques, na verdade, são feitos em lugares desertos e em altas horas da noite. Um exemplo disso foi a dinamite que apareceu no metrô. Não tinha detonante, seu objetivo era assustar.
Não quero dizer que o tema não seja grave. As cadeias estão superlotadas. As organizações criminosas cresceram muito, não apenas no Ceará. E um grande número de jovens sem emprego ou escola é atraído para as facções.
Há alguns anos li um livro sobre um congresso ligado à ONU cujo tema era diplomacia preventiva — como atuar para evitar conflitos, sobretudo aqueles que realmente podem ser evitados.
Na época, falou-se também rapidamente no jornalismo preventivo. Nos anos 1960, tínhamos cadernos teóricos e talvez me dedicasse a escrever sobre essa nova forma de jornalismo.
Mas, como as tarefas aumentaram, resta-me tentar aplicar a ideia na prática. Os puristas podem objetar: prevenir? O jornalismo não previne, não evita, nem provoca: apenas informa.
Mas é de informação de que se trata. Informar significa também colocar num contexto um pouco mais amplo.
Um pouco de estudo militar mostra que ofensivas são um momento delicado: os atacantes se expõem e costumam sofrer grandes perdas.
Com quase 4 00 pessoas presas, parece que aconteceu com as organizações criminosas do Ceará.
Em Fortaleza, há agora um centro de inteligência para todo o Nordeste. Eu visitei o centro, mas não pude entrar porque precisava de licença especial, essas coisas. Imagino que tenham aproveitado esse momento de ofensiva e muitas prisões para entender um pouco mais das organizações criminosas.
O que torna o problema do Ceará mais sério ainda é o fato de que muitas de suas coordenadas estão presentes em outros estados.
A simples enumeração de ataques, grande parte deles em lugares remotos e escuros, no fundo, é, involuntariamente, o jogo que interessa aos líderes das organizações criminosas.
Eles precisam de um tipo de cobertura para difundir o medo. Mas chega um momento, e isso vale também para o terror político, que é preciso vencer o medo coletivo e encarar a vida com normalidade, mostrar que as coisas seguem, apesar deles.
Artistas locais fizeram uma campanha intitulada Quero Meu Ceará de Volta, evocando todas as coisas boas numa cidade tão simpática como Fortaleza: andar nas ruas, ter cadeiras na frente de casa.
A ideia, creio eu, estava numa direção correta. Mas era preciso mais que isso: era preciso retomar as ruas com firmeza. Isso seria também uma tarefa para políticos. Mas eles andam meio escondidos. Exceto os que têm de tratar diretamente do tema pela responsabilidade de governo, os outros são muito discretos, para usar um termo leve.
De qualquer forma, creio que os episódios do Ceará surgiram e sumiram sem que houvesse uma discussão mais detalhada sobre eles.
Minha impressão é que já é tempo de avaliarmos as relações de jornalismo e terror. Minha sugestão não é, absolutamente, a de omitir episódios atemorizantes.
Em muitos casos, informar com mais profundidade e exatidão pode abrir caminho para que a sociedade compreenda o que se passa e retome as rédeas de seu cotidiano.