carrefour

‘Racismo é prejuízo para toda a sociedade, não só para os negros’, diz Zulu Araújo

Em artigo na revista da FAP de dezembro, militante do movimento negro explica caminho para enfrentar racismo estrutural no Brasil

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“No Brasil, não só existe racismo, como ele é estrutural, condiciona e normatiza praticamente todas as relações no país, de caráter interpessoal, econômico, social, político, cultural e religioso”. O alerta é do diretor-geral da Fundação Pedro Calmon, vinculada à Secretária da Cultura da Bahia, Zulu Araújo, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro. “O racismo é um prejuízo para toda a sociedade, não só para os negros”, diz, em outro trecho.

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Todos os conteúdos da publicação mensal, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Em seu artigo, ele lembra a barbaridade do assassinato de João Alberto Silveira Freitas, espancado e morto por seguranças em uma loja do Carrefour na zona norte de Porto Alegre, em 19 de novembro. A Polícia Civil do Rio Grande do Sul indiciou seis pessoas pelo crime.

“A barbaridade da qual foi vítima o cidadão João Alberto Silveira Freitas, no estacionamento do supermercado Carrefour em Porto Alegre, que resultou na sua morte, foi um catalizador sem precedentes da indignação que paira no Brasil, de há muito, no tocante a violência racial e o racismo, contra a comunidade negra brasileira”, lamenta o autor, que é ex-presidente da Fundação Palmares e militante do Movimento Negro. “Naquelas cenas brutais que o Brasil inteiro presenciou, estava simbolizado, em estado bruto, aquilo que os intelectuais chamam de racismo estrutural”, afirma.  

Na avaliação de Araújo, que também é arquiteto, gestor cultural e mestre em Cultura e Sociedade, o Brasil não terá sucesso na promoção da igualdade racial nem a plenitude democrática, se não reconhecer a existência do racismo e, por consequência, não gerar políticas públicas que tanto combatam o racismo como promovam a igualdade.     

De acordo com o autor, ainda bem que parcela significativa da sociedade brasileira tem não só se manifestado de forma indignada ante o atual quadro de desigualdades no país, mas também começa a se mobilizar para sua superação. “E, neste sentido, o movimento negro brasileiro precisa liderar este processo e estabelecer uma agenda política que, além da mobilização da comunidade negra, crie mecanismos de incorporação e participação dos não negros nessa luta”, assevera.

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RPD || Zulu Araújo: Entre daltônicos, pessoas de cor e o racismo

Jovens representam 77% dos 33 mil negros mortos anualmente no Brasil. Cobranças de medidas efetivas para dar um basta na tragédia que é o racismo estrutural brasileiro ganham força em todo o país

A barbaridade da qual foi vítima o cidadão João Alberto Silveira Freitas, no estacionamento do supermercado Carrefour em Porto Alegre, que resultou na sua morte, foi um catalisador sem precedentes da indignação que paira no Brasil, de há muito, no tocante à violência racial e ao racismo contra a comunidade negra brasileira. Naquelas cenas brutais que o Brasil inteiro presenciou, estava simbolizado, em estado bruto, aquilo que os intelectuais chamam de Racismo Estrutural.  

As denúncias sobre o recrudescimento do racismo no país vêm de longe e têm funcionado quase como um mantra no movimento negro brasileiro, embora boa parte da sociedade faça ouvidos de mercador para essa tragédia. Até mesmo importantes setores do Executivo, Legislativo e Judiciário que deveriam combater essas mazelas terminam estimulando-as por omissão. Mas os fatos estão ficando tão escandalosos que não dá mais para esconder, nem deixar de se indignar.  

Até porque as causas do racismo e da discriminação no país não são episódicas, mas históricas. Ignorar os efeitos nefastos que mais de 350 anos de escravidão produziu não é uma opção política, é uma estupidez. Estupidez essa que não só possibilita a exclusão de milhões de pessoas do exercício da sua cidadania plena, bem como tem ceifado a vida de outros milhares.  

“No Brasil, não só existe racismo, como ele é estrutural; condiciona, e normatiza praticamente todas as relações no país, sejam elas de caráter interpessoal, econômica, social, política, cultural ou religiosa”
Zulu Araújo

Não surpreende mais ninguém que a juventude negra brasileira tem sido o alvo preferencial dos aparatos de segurança pública e privada, assim como de gangues e milícias que proliferam país afora. Os números do Atlas da Violência falam por si só: essa juventude representa 77% dos jovens assassinados no país, algo em torno de 33 mil jovens mortos anualmente. Até mesmo organismos internacionais, como Unesco, Anistia Internacional e Unicef têm-se mobilizado por meios de campanhas, alertando o governo brasileiro para a gravidade da situação.  

Autoridades, instituições públicas e privadas e até mesmo a imprensa, quase sempre complacente com estes episódios, se indignaram e estão cobrando medidas efetivas para que possamos dar um basta nessa tragédia que é o racismo estrutural brasileiro. O fato soou como um alerta, ou melhor, como um recado de que o ocorrido nos Estados Unidos com o afrodescendente americano George Floyd não era exclusividade de lá, como muitos por aqui tentam insinuar, e que por isto mesmo a sociedade brasileira precisava reagir.      

Mas, apesar de toda a comoção, as declarações de duas principais autoridades públicas do país foram decepcionantes. Uma afirmou que era daltônico e, portanto, não se manifestaria sobre o assunto; e a outra desconheceu a existência do racismo em nosso país, fazendo uso de uma expressão racista: “no Brasil, o que existe são pessoas de cor em situação de desigualdade”.  

Lamentavelmente, essas declarações terminam por funcionar quase como um passaporte para impunidade, tanto no que diz respeito à violência praticada no país, desde sempre, como para a reparação histórica, tão importante para nosso povo. E, em grande medida, são autoexplicativas para a gravidade do problema racial no Brasil.  

Afinal, um país que viveu um dos mais longos períodos escravistas da história da humanidade e que tem a maioria de sua população de origem africana vivendo em condições sub-humanas – submetidas a toda sorte de violência, nos mais baixos extratos sociais em quaisquer itens que são pesquisados, como educação, saúde, moradia, emprego e renda – não pode ter essa realidade desconhecida.  

Em verdade, no Brasil, não só existe racismo, como ele é estrutural, condiciona, e normatiza praticamente todas as relações no país, sejam elas de caráter interpessoal, econômica, social, política, cultural ou religiosa. E não obteremos sucesso na promoção da igualdade racial, nem a plenitude democrática, se não reconhecermos a existência do racismo e, daí, não gerarmos políticas públicas que tanto o combatam como promovam a igualdade.    

Ainda bem que parcela significativa da sociedade brasileira tem não só se manifestado de forma indignada ante o atual quadro de desigualdades no país, mas também começa a se mobilizar para sua superação. E, neste sentido, o movimento negro brasileiro precisa liderar este processo e estabelecer uma agenda política que, além da mobilização da comunidade negra, crie mecanismos de incorporação e participação dos não negros nessa luta, visto que o racismo constitui um prejuízo para toda a sociedade e não só para os negros.  

Toca a zabumba que a terra é nossa!

(*) Zulu Araújo é Arquiteto, Gestor Cultural, Mestre em Cultura e Sociedade, Ex-Presidente da Fundação Palmares, Diretor Geral da Fundação Pedro Calmon/Secult/Ba. e militante do Movimento Negro Brasileiro.


João Gabriel de Lima: O telefonema de Kennedy e os tuítes do Carrefour

O crime recente envolvendo racismo no Brasil poderá influenciar pleitos municipais?

Uma história envolvendo racismo mudou uma eleição e, no longo prazo, toda a política americana. No dia 19 de outubro de 1960, três semanas antes do pleito presidencial que opôs John Kennedy a Richard Nixon, um grupo de ativistas negros invadiu uma loja de departamentos no sul dos Estados Unidos. Era um protesto contra a segregação racial no restaurante da loja.

Todos foram presos e soltos em seguida. Menos um: o reverendo Martin Luther King Jr., maior ativista de direitos civis da história americana. Dias mais tarde, ele seria transferido para uma prisão de segurança máxima. Coretta, mulher de Luther King, entrou em desespero. Temia que o marido fosse vítima de violência dentro da cadeia. Ela ligou para Harris Wofford, conselheiro da campanha de Kennedy. Wofford – que narra o fato num episódio da série Race for The White House, produzida pela CNN – disse que ia ver o que poderia fazer.

Em 1960, o partido mais próximo do movimento dos direitos civis era o Republicano. Os democratas eram identificados com movimentos racistas do sul, entre eles a Ku Klux Klan. Nixon conhecia Luther King pessoalmente, e ligou para a Casa Branca pedindo que intercedessem pelo ativista. Não foi atendido. Nixon ficou em silêncio – não quis fazer uma declaração pública sobre um assunto tão delicado. Bob Kennedy, irmão de John e coordenador de sua campanha, defendia que os democratas também deveriam guardar silêncio para não afastar os eleitores do sul. Wofford sabia disso. Fez com que a informação sobre Coretta chegasse a John por meio de um assessor, sem que Bob soubesse.

Num misto de impulso e cálculo político, John ligou para Coretta e apresentou sua solidariedade. A imprensa noticiou o fato, e Bob ficou irado, achando que o gesto custaria a eleição do irmão. Pouco depois, percebeu que havia ali uma oportunidade. Passou ele próprio a defender Luther King. O ativista foi solto, e o voto dos negros americanos acabou sendo decisivo para que Kennedy ganhasse uma eleição apertada contra Nixon. Os democratas, que tinham a pecha de racistas, viram seu partido se tornar, aos poucos, o campeão dos direitos civis.

Mudanças de trajetória em partidos políticos são comuns nas democracias, já que eles existem para representar tendências e ideias que surgem na sociedade. No minipodcast da semana, o cientista político português António Costa Pinto fala sobre o assunto. Conhecedor da vida americana – ele lecionou em Stanford e Berkeley – Costa Pinto aponta os novos desafios dos democratas. No século 21, o partido deu outra virada, tornando-se a sigla da nova economia e dos jovens urbanos. No caminho, perdeu os operários e a classe média dos rincões. Precisa recuperá-los na guerra contra o derrotado (mas ainda bem vivo) Donald Trump

Em tempos de eleições, o telefonema de Kennedy deixa uma pergunta no ar. O episódio recente envolvendo racismo no Brasil – o crime do Carrefour – poderá influenciar os pleitos municipais? A resposta, ao que tudo indica, é negativa. O País não se dividiu. A imensa maioria dos candidatos, da esquerda à direita, de Sebastião Melo a Manuela D’Ávila, de Guilherme Boulos a Bruno Covas, tuitou contra o crime bárbaro e nomeou sua motivação: racismo. Sessenta anos se passaram entre o telefonema de Kennedy e os tuítes do Carrefour. O racismo não morreu, mas algo mudou na política. Uma vitória do movimento dos direitos civis.


Cristiano Romero: Luta contra racismo é a reforma mais importante

Brasil nunca dará certo se combate ao racismo não for 1º item da agenda

O enfrentamento do racismo é muito mais urgente do que a aprovação de qualquer reforma no Brasil. Nada funcionará se o combate institucional ao racismo não se tornar o primeiro item da agenda do Estado brasileiro, sua missão precípua, independentemente do governo do momento.

A adoção de medidas de reparação à população negra (56% dos habitantes deste país) devido à infâmia dos 400 anos de escravidão e dos 120 subsequentes em sua versão 2.0 (dissimulada, covarde e violenta) deveria ser uma rubrica inviolável dos orçamentos públicos. Políticas afirmativas - mais amplas e efetivas que as já previstas em lei - precisariam ser implantadas enquanto, paralelamente, o Estado, em todos os seus níveis, ocupar-se-ia da batalha diuturna e incessante contra a discriminação racial e todas as outras formas de discriminação.

Olhadas de perto, as outras formas de discriminação também derivam dos hábitos e costumes da sociedade escravagista que predominou entre nós (e ainda predomina para a maioria dos brasileiros). A Ilha de Vera Cruz jamais será uma nação se seus habitantes não se reconhecerem no outro, independentemente da origem étnica de cada um. A terrível chaga da escravidão - usada como fator de acumulação de capital desde a chegada dos portugueses - impediu que o país com maior diversidade étnica do planeta criasse uma nação justa, igualitária, pacífica, um “povo novo” na acepção de Darcy Ribeiro e o “país do futuro”, na de Stephan Zweig.

É de um cinismo atroz justificar, com argumentos econômicos, a necessidade de se colocar o racismo no topo da agenda nacional. O que está em discussão são direitos e garantias fundamentais de 109 milhões de brasileiros (56,10% da população, segundo a pesquisa Pnad do IBGE). De toda forma, é de se esperar que, após alguns anos de enfrentamento radical, institucional, do racismo, os índices médios de escolaridade da população cresceriam e a consequência disso na economia seria a elevação da produtividade da economia.

Combater o racismo deveria tornar-se a rotina de todos os cidadãos brasileiros, mesmo que uns não queiram fazer isso. Muitos formadores de opinião, integrantes das elites do Brasil (empresarial, financeira, política, cultural, sindical, da máquina administrativa e estatal), não percebem que o que está em jogo é a sobrevivência da democracia e, portanto (atenção, “farialimers”), da economia de mercado.

Democracia prescinde de igualdade de oportunidades, assim como economias de mercado, de concorrência entre as empresas. Neste imenso país, a população negra e pobre não chega nem ao ponto de avistar oportunidades - sua ambição, antes de mais nada, é viver, existir, sair cedo de casa e voltar vivo. Não há regime democrático, República, portanto, economia saudável, que sobreviva a essa tragédia ad infinitum. Basta ver o desafio pelo qual nossa jovem democracia passa neste momento.

Para quem considera uma mistificação, seguem alguns dados aterradores sobre o extermínio cotidiano a que estão submetidos os negros no Brasil, principalmente, os jovens entre 15 e 24 anos (os dados são do Atlas da Violência, elaborado anualmente pelo Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública

  1. Em 2018 (último dado disponível), 57.956 brasileiros foram assassinados;
  2. do total das vítimas, 75,7% eram negras;
  3. o risco de a vítima ser um negro, na pesquisa de 2018, foi 74% maior para homens negros e 64,4% maior para as negras;
  4. do total de mortos, 30.873 (53,3% do total) eram jovens (atenção, economistas que se debruçam sobre os baixos índices de produtividade da economia brasileira!); o país assiste, passivamente, ao “assassinato” de seu futuro;
  5. em 2018, homicídio respondeu por 55,6% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos; 52,2% na faixa entre 20 e 24 anos; e 43,7% das mortes os jovens entre 25 e 29 anos.

O Estado brasileiro, evidentemente, precisa ser reformado para cumprir a Constituição, que, admitamos, encerra um projeto de nação. Todos sabemos que, mesmo tornando o enfrentamento do racismo a prioridade do país por décadas, levaremos gerações até chegar a um lugar menos injusto.

O desafio é enorme, mas tudo indica que a pandemia, ao escancarar o racismo, as desigualdades sociais, a inaceitável concentração de renda, acordou parte da sociedade. Não as elites, com raras exceções. O que se vê por parte de muitas empresas, ainda que se reconheça o aumento da filantropia nesta terrível crise sanitária, são ações marcadas por estratégias de marketing, destinadas, portanto, a valorizar as marcas das empresas num momento de perda e dor para milhares de famílias. Isto, sem mencionar o sofrimento decorrente do empobrecimento brutal provocado pela recessão na qual a pandemia jogou o PIB.

Filantropia deveria ser uma virtude realizada em silêncio, do contrário, soa a oportunismo. Ademais, as doações não deveriam ser abatidas do Imposto de Renda das companhias. Mas, filantropia no momento em que vivemos é muito pouco perto da crise social vivida pela maioria dos brasileiros.

Quem está acordando para a dura realidade é a periferia das grandes cidades, habitantes de Estados de exceção, governados por milicianos e o crime organizado. Em oportuno artigo intitulado “É preciso derrubar o apartheid brasileiro”, Paulo Sérgio Pinheiro indaga: “Por que se sucedem esses horrores em supermercados e shoppings? Porque a instituição da democracia, em trinta anos de plena constitucionalidade, não conseguiu debelar, apesar de políticas afirmativas e quotas raciais, o apartheid que prevalece em todos espaços da vida da população negra, agora maioria de 56% no Brasil”, disse ele. “Não pode haver democracia consolidada com negras e negros sendo executados nas periferias das metrópoles pelas PMs e torturados nas prisões; ausentes de todos os lugares de poder, como o executivo, o legislativo, judiciário, o ministério público; recebendo salários inferiores aos brancos; sendo alvos de racismo no quotidiano.”


Pablo Ortellado: Racismo no Carrefour

Conservadores dizem que alegação de racismo em agressão em Porto Alegre é prematura. Estatísticas sugerem racismo estrutural

Até mesmo o torpe assassinato de Beto Freitas em um supermercado em Porto Alegre foi capturado pelas guerras culturais, com vozes conservadoras acusando os progressistas de enxergar racismo onde não havia e dividir uma sociedade racialmente integrada.

A principal crítica desses conservadores tem sido quanto ao emprego do conceito de racismo estrutural. Para eles, o racismo se restringiria apenas àqueles episódios de preconceito e intolerância com motivação racista manifesta.

Seria preciso, então, entender as circunstâncias que levaram à morte de Beto Freitas: se havia algum fato anterior que pudesse justificar o uso excessivo de força e se haveria evidência de motivação racista, como alguma injúria racial que tivesse sido proferida. Sem esses elementos, a alegação de racismo seria prematura e injustificada e mostraria apenas um esforço da esquerda em promover a divisão em uma sociedade conhecida por ter uma integração racial bem-sucedida.

Não é, no entanto, o que dizem as estatísticas. Raça é importante, mesmo quando comparamos índices dentro de uma mesma classe de renda. Entre negros de baixa renda, por exemplo, 42% relatam terem sido desrespeitados pela polícia (contra 34% dos brancos de baixa renda): 35% já receberam agressões verbais e 18% sofreram agressões físicas (contra 27% e 12% dos brancos de baixa renda).

Enquanto 56% da população brasileira é negra ou parda, negros e pardos são 67% dos encarcerados e 76% das vítimas de homicídio. Esses não são números de uma sociedade não racista.

Independentemente das circunstâncias que levaram os seguranças a agredir Beto Freitas, é incontestável que houve uso excessivo de força, já que as agressões foram desproporcionais e não cessaram quando ele foi rendido.

O uso da força pelos seguranças teria chegado a esse grau de excesso e violência se Beto Freitas fosse branco? Quinze pessoas assistiriam passivamente um homem branco ser covardemente espancado e asfixiado por seguranças sem tentar impedi-los? Provavelmente não.

É esse racismo insidioso, não explícito e não manifesto que condiciona as ações individuais e o funcionamento das instituições que vemos atuar em casos como esse. É ele que anui, que consente o exercício de uma violência brutal contra um homem negro que dificilmente seria autorizada contra um homem branco.

É esse racismo furtivo, enfim, que faz com que negros sejam mais interpelados pela polícia, sejam mais encarcerados, sejam mais agredidos e sejam mais assassinados. As estatísticas não são fruto do acaso.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Ruy Castro: O crime com vídeo e áudio

Os gritos de dor de Beto Freitas são a trilha sonora de um filme que muitos fingem não ver

O assassinato de Beto Freitas no estacionamento do Carrefour, em Porto Alegre, na quinta-feira (19), foi gravado pela câmera afixada de frente para a porta, com visão total da cena. É uma sequência de 17’09’’, com começo, meio e fim. Mostra o cenário vazio, a chegada dos personagens —o homem negro, os dois seguranças e a fiscal do supermercado— e o que aconteceu em seguida.

Vê-se quando, ao entrar detido, Beto reage por algum motivo a um deles, desprende-se e tenta agredi-lo. Os dois, em total vantagem, o seguram, e, com ele já contido, o espancam. Durante dois minutos aplicam-lhe chutes, socos e joelhadas no rosto, cabeça e costelas, até abatê-lo no chão.

A fiscal parece filmar tudo com um celular. Pessoas se aproximam. Ela os afasta e ameaça alguém que também tentava filmar. Uma senhora pede clemência, em vão. Um careca, de terno, pisa no homem caído e vai embora. Outras 15 pessoas entram e saem do quadro, com maior ou menor interesse, mas a tempo de ver o homem ser brutalmente imobilizado, com um dos seguranças pressionando um joelho sobre suas costas. Beto só tem agora pequenos lampejos de movimento com os pés. Aos 4’30’’ do vídeo, deixa de se mover por completo. Já não reage, mas, pelos dez minutos seguintes, o segurança continua com todo seu peso sobre ele, como para certificar-se de que não sairá vivo dali. Conseguiu. Beto morreu por asfixia.

Homens e mulheres negros são vítimas diárias de toda espécie de violência, mas esse crime é um divisor de águas. Foi filmado, tem dezenas de testemunhas e não há atenuante possível. Mais vídeos surgirão, de novos ângulos, com os gritos de dor de Beto Freitas. Mais do que o choro, o samba ou o funk, esses gritos são a verdadeira trilha sonora dos negros brasileiros.

Para Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão, presidente e vice, não há racismo aqui. Escutamos isso e sentimos nojo deles e de nós mesmos.


Dorrit Harazim: O Brasil tem caráter?

De início, Carrefour decretou o fechamento da unidade por um dia em respeito ao morto. Não parece ter entendido o tamanho do estrago

"Quando crimes se empilham, eles se tornam invisíveis", escreveu Bertolt Brecht às vésperas da Segunda Guerra. O dramaturgo alemão referia-se a crimes do Terceiro Reich que apenas pressentia. A extensão do horror só ficou explicitada quando os campos de concentração foram escancarados. E fotografados. Naquele tempo, 75 anos atrás, o telefone celular ainda estava longe de fazer parte da mão humana. Hoje tornou-se extensão do nosso existir, e a realidade parece só existir se houver seu comprovante instantâneo, de preferência com imagem em movimento. Um grande salto de engenhosidade, progresso tecnológico, totem de um futuro sem fronteiras. Ficou faltando aprimorar o essencial: o próprio bípede humano, ainda tão imperfeito e cego.

O assassinato do cidadão negro João Alberto Silveira Freitas na garagem de um supermercado Carrefour gaúcho, à noite, tinha tudo para permanecer obscurecido. Só deixou de depender de versões dissonantes, querelas circunstanciais ou imprecisas, porque alguém gravou a cena esclarecendo a natureza do crime pelo celular. Assistimos assim a um assassinato a sangue quente, primitivo, sem a intermediação sequer de uma arma. O homem negro já subjugado foi espancado na cabeça e rosto até lhe faltar vida. Sua morte teve por testemunha a esposa impedida de socorrê-lo, uma penca de seguranças e funcionários do Carrefour, além da plateia global que foi se inteirando do fato. No chão da garagem respingada de sangue, sobrou de João Alberto um solitário chinelo de dedo.

Não foi, portanto, um crime invisível. Ou será que foi? Na pergunta está embutido o horror maior: apesar de saberem que estavam sendo filmados, os dois matadores profissionais (um PM e um segurança, ambos brancos) não interromperam o ato. “Quando crimes se empilham, eles se tornam invisíveis”, repetiria Brecht sobre o crime contra a raça negra que, de tanto sustentar a construção do Brasil, se tornou invisível — mesmo quando visível.

O Brasil acabou com a escravidão e adentrou a pós-abolição sem criar leis claramente segregacionistas. Mas encontrou formas igualmente perversas de lidar com os negros, contou em entrevista à BBC, anos atrás, a historiadora Luciana Brito, da Universidade Federal do Recôncavo Baiano. Segundo a professora, “a educação para sobreviver numa sociedade racista a partir do não dito tornou mais difícil para pessoas negras se organizarem em torno de um inimigo visível… Você entra numa loja e não é expulso, mas a vendedora a ignora. Quem não a ignora é o segurança. Até o policial negro é treinado pelo Estado para achar que todas as pessoas que se parecem com ele são criminosas. Quando está de farda, ele perde a identidade racial. Ganha uma espécie de selo de qualidade. Vira o ‘negro de bem’ ”.

As primeiras reações do Brasil oficial que despertou na sexta feira para a morte do soldador João Alberto foram as esperadas. Era o Dia da Consciência Negra, e o presidente da República estreou logo cedo elogiando Pelé. Silenciou sobre o crime que, no final da tarde, levaria o Brasil real às ruas. A Brigada Militar informou que o policial assassino é apenas “PM temporário” e que a corporação é “uma instituição dedicada à proteção e à segurança de toda a sociedade”; para Roberta Bertoldo, delegada do caso no 2º Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) de Porto Alegre, “não há indícios de racismo até o momento”. Para o vice Hamilton Mourão, “no Brasil, não existe racismo”.

O Carrefour se manifestou já de madrugada, até porque não poderia continuar dormindo. Tem no currículo, em dobradinha com os serviços de segurança que contrata, o espancamento de um deficiente físico e de outro cliente negro suspeito de estar assaltando o próprio carro, além de controlar a ida ao banheiro de funcionárias, e de ter mantido encoberto por guarda-sóis e caixotes, durante quatro horas, o corpo de um promotor que morrera numa unidade do Recife. Em nota, a empresa garantiu adotar “as medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos neste ato criminoso” e, de início, decretou o fechamento da unidade de Porto Alegre por um dia em respeito ao morto. Não parece ter entendido o tamanho do estrago.

O repórter Matheus Prado, do CNN Brasil Business, ouviu dois analistas do mercado, e nenhum deles acreditava que o caso teria impacto duradouro no preço das ações do Carrefour. “Uma revolta a curto prazo, talvez”, resumiu um deles, da Guide. Bom teste para o Brasil.

Caráter, ou a disposição de aceitar responsabilidade pela própria vida, é a fonte da autoestima, escreveu Joan Didion num de seus notáveis ensaios. Se o conceito for aplicado também a países e suas sociedades, fica a pergunta: o Brasil tem caráter?


Janio de Freitas: 'No Brasil não existe racismo', fala de Mourão, é a mais racista das frases

Considerar que inexiste racismo é dizer que discriminação compõe tratamento correto aplicado pelos brancos e merecido pelos negros

“No Brasil não existe racismo.” Essa é a mais racista das frases entre nós. Seu autor é um general, um dia eleito presidente do Clube Militar como reconhecimento às suas manifestações extremistas. Com a elevação à liderança do radicalismo de direita, no mesmo ano foi indicado pelo comando do Exército para completar a candidatura de Jair Bolsonaro, assim chegando à mais alta condição atual de um militar brasileiro —general-vice-presidente da República.

Considerar que inexiste racismo no Brasil é dizer que toda a discriminação social sofrida pela negritude, sua desvalorização remuneratória, a maior vitimação nas ações policiais, a proporção maior na pobreza, e tanto mais, compõem um tratamento correto aplicado pelos brancos e merecido pelos negros. Em tal caso, o que é racismo, raiz da violência mais disseminada no tempo e no planeta, seria considerado o humanamente normal e o legalmente adequado para os negros. É o que a sentença do general-vice proclama.​

Nos últimos anos, temos convivido com uma forma de poder em que se combinam a anti-ideia, a obturação dos canais da percepção, a disfunção da experiência, a recusa ao conhecimento e à compreensão. Não é exclusividade do Brasil, Trump e metade dos Estados Unidos mostram-se com autenticidade, para engasgo dos que jamais quiseram vê-los como são. Aqui, porém, chega a parecer que os últimos anos cumprem programas perversos para exibir as cruezas da realidade.

É o que faz o batalhão de generais na ativa do governo e adjacências. Caso houvesse um programa para arruinarem a imagem do Exército, não seria diferente do que nos mostram. O Exército que chegou ao governo Bolsonaro era um, outro é o que a opinião pública vê. Bolsonaro, até na volta ao “capitão”, e Exército se entrelaçam. A noção, entre militares, desse dano institucional ficou perceptível em referências à desvinculação entre Exército e governo. Embora sem efeito, que palavras não desfazem esse nó muito cego.

Ao contrário, a coisa até se complica. Como as eleições de agora insinuam. Os resultados suscitam muitas interpretações diferentes, mesmo opostas, e ainda assim não desprezíveis. Está visto que o centrão e a direita tiveram segmentos de ganho, o status do DEM elevou-se e fortaleceu-o bastante. Mas Boulos, Manuela D’Ávila e Marília Arraes, entre outros, revelam recuperação de saúde surpreendente, e promissora, da esquerda. É muito e não é tudo. Só com o segundo turno haverá maior nitidez da nova disposição de forças. Exceto em um caso, que dispensa a espera.

Bolsonaro é o derrotado. O importante, no entanto, é não se tratar só dele, em pessoa. É o dispositivo de que ele é o ativador, nem sabe por quê. O crescimento de partidos como o PSL, o PP e o PSD é de correntes que, apesar de identificações ideológicas, são caras e inconfiáveis. Dos candidatos que apresentaram o sobrenome Bolsonaro, só o filho Carlos se elegeu, em devastadora perda de energia do símbolo no eleitorado. Perdas e inseguranças assim são numerosas.

E outras serão decorrentes.

As perspectivas para 2021 não são simpáticas a soluções dos problemas que crescem. Não o são também, portanto, à rejeição a Bolsonaro, já em 50% em São Paulo, e ao derrotado dispositivo. Lembra o lugar-comum que Bolsonaro passa e o Exército fica. Caso não haja mesmo a recuperação, as perdas não serão iguais para as duas partes enlaçadas. Daí que Exército não deva se ligar a governo, sendo instituição do Estado. Ideia clássica e lembrada agora, com muito aplauso na imprensa, pelo comandante do Exército. Mas não foi na história do Brasil que o general Edson Pujol se baseou.

CO-AUTORIA

O governo do Rio Grande do Sul também é responsável pela monstruosidade que assassinou João Alberto Silveira Freitas. Policial militar temporário é excrescência. Inconstitucional e já repudiada pelo Supremo. Apesar disso, mantida pelo governador Eduardo Leite, para ver agora, na pessoa de um temporário assassino, o resultado de sua própria excrescência.


Elio Gaspari: Há racismo e também demofobia

Desigualdade não explica assassinato de Beto Freitas em Porto Alegre

Só na semana que vem será possível medir o impacto eleitoral do assassinato de João Alberto Silveira Freitas pela milícia formalizada da rede francesa Carrefour em Porto Alegre. No dia 9 de novembro de 1988 uma tropa do Exército matou três operários que ocupavam a usina de Volta Redonda. Seis dias depois, para surpresa geral, a petista Luiza Erundina foi eleita para a Prefeitura de São Paulo.

Como disse o vice-presidente, Hamilton Mourão, João Alberto, o Beto, era uma “pessoa de cor”. Seu assassinato aconteceu no mesmo dia em que o Carrefour anunciava na França sua disposição de boicotar os produtos brasileiros vindos de áreas desmatadas do cerrado. Beleza, em Paris milita-se na defesa das árvores enquanto em Porto Alegre mata-se gente.

Esse tipo de comportamento é velho e disseminado. Em 2001 a milícia formalizada da rede Carrefour prendeu duas mulheres no Rio de Janeiro e entregou-as à milícia informal de traficantes de Cidade de Deus. Foram espancadas, mas os bandidos não cumpriram a ameaça de queimá-las vivas. Quando o caso foi denunciado, o embaixador francês era o professor Alain Rouquié, um conhecido intelectual parisiense. Ele foi ao governador Anthony Garotinho e reclamou do noticiário que prejudicava a imagem internacional do Carrefour.

Pelos critérios americanos do século 19 e sul-africanos do 20, Mourão é uma “pessoa de cor”. A escrava de Thomas Jefferson com quem ele se acasalava era mais branca que o general.

Segundo o vice-presidente e muita gente boa, no Brasil não existe racismo, existe desigualdade. O que pretende ser uma explicação é um agravo. Desigualdade não explica esse tipo de assassinato. Eles são produto da demofobia, onde o racismo tem um papel funcional, pois a cor identifica as pessoas sem direitos. Se Mourão tivesse razão, a coisa funcionaria assim: se você é pobre, ferra-se, se ainda por cima é negro, dana-se. Pelo menos um dos três mortos de Volta Redonda era branco.

Brincando com computadores

O presidente do Conselho Nacional de Justiça, ministro Luiz Fux, anunciou que “nós precisamos nos aprimorar em aspectos tecnológicos, principalmente porque estamos lançando, pelo CNJ, o Juízo 100% Digital.”

Atrás desse nome bonito está a ideia de colocar todos os processos do país numa rede de computadores. Coisa de sonho. Como ensina a cartilha do CNJ: “Os magistrados poderão dar vista às partes para que digam se concordam com a tramitação de ação já distribuída de acordo com o rito do ‘Juízo 100% Digital”.

Entre a ficção de Brasília e a realidade de Pindorama, o projeto perfilhado por Fux equivale a uma cerimônia na qual o prefeito de Macapá anuncia um novo sistema de iluminação pública para a cidade.

O sistema foi exaltado durante a primeira reunião do Comitê de Segurança Cibernética do Poder Judiciário, criado do dia 11 de novembro. A porta havia sido arrombada uma semana antes, quando a rede do Superior Tribunal de Justiça foi invadida e a corte ficou vários dias fora do ar. Quatro dias depois o computador do Tribunal Superior Eleitoral engasgou, atrasando por algumas horas o resultado da eleição de domingo.

O problema seria despiciendo se não tivesse sido precedido por promessas megalomaníacas de pontualidade que chamavam o equipamento de “supercomputador”. Investigado, o acidente revelou-se consequência de um atraso na entrega de máquinas que deveriam ter chegado em março e só vieram em agosto.

Um Judiciário 100% digital é boa ideia, mas precisa de muita transparência e pouca pressa. Essa panela está no fogão do CNJ desde o ano passado e começou a andar depressa em julho, no meio da pandemia.

A iniciativa depende da utilização de um programa de integração das varas, criando um padrão que deverá ser seguido por todos os tribunais. Não se conhece o detalhamento da demanda. É coisa grande e tramita no sistema de reuniões virtuais dos ministros. Felizmente, a ministra Maria Thereza Assis Moura, corregedora nacional de Justiça, pediu que assunto fosse discutido numa reunião presencial. Ela deve se realizar na terça-feira (24).

O escurinho de Brasília já produziu um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que pretendia torrar R$ 3 bilhões comprando computadores, laptops e notebooks para os alunos da rede pública. A Advocacia-Geral da União mostrou que a licitação estava viciada e que os 255 alunos de uma escola mineira receberiam 30.030 laptops. Até hoje não se sabe quem botou esse jabuti na árvore.

O “Juízo 100% Digital” precisará de software. Sem ameaçar a segurança da rede, o CNJ tem meios para divulgar as exigências técnicas para equipá-lo. Além disso, está embutida na ideia um discutível encanto pelo trabalho remoto.

Fux tem toda razão quando diz que “precisamos nos aprimorar em aspectos tecnológicos”. Quem já comprou um computador ou já contratou um serviço sabe que a melhor maneira para fazer isso é estudar direito as propostas, para cantar vitória depois. Em Brasília cultiva-se outro modelo: havendo um problema, lança-se um novo projeto.

Até tu, OAB?

A Ordem dos Advogados do Brasil se mete em tudo. Agora a Operação Biltre da Polícia Federal bateu em doutores que mexiam com processos do Tribunal de Ética e Disciplina da sua seccional paulista. Segundo as denúncias, a tarifa era de R$ 250 mil.

Diante dos mandados de busca e apreensão a seccional informou que “em razão da investigação a que tivemos notícia nesta data foi determinada a imediata apuração interna sendo que a OAB e o seu Tribunal de Ética e Disciplina estão cooperando com as autoridades competentes”.

Ótimo, mas o uso da expressão “está cooperando” tornou-se uma girafa desde quando foi usada pela Odebrecht.

No caso da Odebrecht, como se viu, o problema estava no fato de que a colaboração só começou quando chegaram os homens da Federal.

Para o bem de todos, a OAB de Raymundo Faoro não deixará essa história sair a preço de custo.

MADAME NATASHA

Natasha não perde uma fala de Bolsonaro e acredita que ele merece uma sugestão astroidiomática. A senhora acredita que deve pensar duas vezes antes de usar diminutivos.

Na metade de março, quando a Covid havia matado menos de dez pessoas, ele falou em “gripezinha” e “resfriadinho”. Na sexta-feira, 13, quando já haviam morrido mais de 160 mil pessoas, ele disse que “agora tem essa conversinha de segunda onda”. Na véspera a pandemia teve um pico, com 908 mortes.

Natasha é supersticiosa e suspeita que os diminutivos do capitão chamam desgraças.


Cristina Serra: O racismo nosso de cada dia

Mal celebramos o avanço da diversidade (ainda que insuficiente) nas eleições de 2020, vem o cotidiano violento do Brasil e nos dá um soco no estômago com o assassinato de João Alberto Freitas por dois seguranças brancos a serviço do Carrefour, em Porto Alegre. O sangue no chão, os gritos da vítima e a sequência de agressões nos lembram que ter a pele negra, no Brasil, é uma sentença de morte.

Todos os componentes da cena mostram o quanto o racismo está entranhado na medula da nossa sociedade. Uma funcionária filma o assassinato com naturalidade e tenta impedir que outra pessoa continue gravando. Em off, dá para ouvir vozes justificando o espancamento. Nada justifica o assassinato de João a sangue frio. Aceitar a lei da selva nos dilacera como sociedade e é um atestado do nosso fracasso civilizatório.

O assassinato de João está permeado de ironias amargas. Foi na capital gaúcha que, nos anos 1970, o movimento negro se articulou para instituir o Dia da Consciência Negra em 20 de novembro, data da morte de Zumbi, em 1695, líder da resistência no quilombo de Palmares.

O crime ocorreu na loja de uma corporação global que, no Brasil, é reincidente em casos semelhantes de violência contra negros. Mais uma ironia é que a rede tenha planejado lançar uma campanha manifestando o “orgulho” de ter clientes “de todas as raças e etnias”. Será que a matriz, na França, tem algo a dizer sobre o tratamento aos clientes no Brasil? Em episódios anteriores, a rede rompeu o contrato com a empresa de segurança em questão e/ou demitiu funcionários e ficou por isso mesmo. Não basta. A rede e as empresas de segurança são co-responsáveis por esses crimes. É a impunidade que reproduz o ciclo de violência.

Mais de um século após a abolição, a primeira vereadora negra eleita em Joinville (SC), Ana Lúcia Martins, recebeu ameaças de morte. Ela respondeu com a determinação que deve nos guiar no combate ao racismo: “Nós iremos até o fim. Ninguém vai nos impedir de ocupar esse lugar”.


Míriam Leitão: O futuro chega muito devagar

O sangue de João Alberto ficou no chão do supermercado e ele sem vida já não gritava. Essa foi a cena final. Aos 40 anos, Beto foi morto por asfixia, depois de espancamento. Como na escravidão. Foi em Porto Alegre, horas antes do dia da Consciência Negra. O racismo é o nosso pior defeito. Quando a gente pensa que o país está evoluindo, vem um soco no estômago. O Carrefour repudiou o ato, mas os funcionários da empresa terceirizada se sentiram autorizados a espancar uma pessoa até a morte, em cena pública.

Há fatos a comemorar nos últimos tempos. Mulheres negras foram eleitas para diversas câmaras de vereadores. Empresários e executivos negros, novas formas de contratação, começam a mudar o mundo corporativo. A propaganda, a moda passaram a ter vergonha de ter apenas modelos brancos. Há duas histórias para contar no Brasil, a dos crimes do racismo estrutural, a da resistência antirracista. Dias atrás, nas ruas de Curitiba, uma jovem candidata a vereadora era saudada com gritos:

— Carol, vamos fazer história!

Carol Dartora (PT) começou sua campanha para a Câmara Municipal com o lema: “Curitiba nunca teve uma vereadora negra, não reproduza essa história.” Por isso alguns curitibanos que cruzavam com a candidata nos dias finais da campanha davam esse grito de esperança. Ela foi eleita. Conversei na última quinta-feira com uma radiante Carol e pedi que ela me contasse sua história. No relato, há as agressões, a consciência, a militância. A vereadora assumirá com a pauta extensa de mudanças com as quais sonha, que vão da passagem dos ônibus aos crimes contra os negros:

— Temos que discutir a passagem de ônibus, muito cara para a comunidade negra que foi empurrada para a periferia e que tem que pagar duas a três passagens. Temos que olhar para o extermínio da juventude negra. Trago comigo o feminismo e o feminismo negro. Como historiadora, quero discutir o passado. Como professora, a educação pública de qualidade.

Assim, cheia de sonhos, Carol se prepara para assumir. Horas depois, em Porto Alegre, João Alberto seria agredido até a morte. O racismo usa todas as formas, até o assassinato, para dizer ao negro que ele não pertence ao lugar onde merece estar. Seja num supermercado, seja numa escola.

Carol estudou em boas escolas públicas. O pai era servidor do Tribunal de Justiça, a mãe, professora:

— Eu sou preta, preta retinta. E pobre. Mas o Brasil é tão desigual que o pouco que tínhamos acabou me levando a estar sempre onde havia poucos negros. Estudei em boas escolas públicas, mesmo sendo públicas, havia principalmente brancos.

Estudiosa, ela tirava notas boas. Certa vez, uma professora mostrou o quanto isso a incomodava.

— Ela me disse: ‘você tirou nove?’ E me separou de minhas amigas, mandando eu sentar na última carteira.

Um dia, o pai comprou para ela uma bicicleta nova e ela foi para a escola com a sua bicicleta:

— Fui hostilizada a tarde inteira, pelos meninos e meninas. Era como se eu, preta, não pudesse ter uma bicicleta novinha. Quando eu estava saindo para voltar para casa, umas crianças me perseguiram, me xingando e chutando a bicicleta. Eu cheguei em casa transtornada, chorando muito. Minha mãe foi à escola, um professor disse que viu. Viu e nada fez.

Ela se formou em História disposta a entender o passado, foi dar aula numa escola pública central e renomada. Reviu, numa aluna negra, a mesma história de injúria racial que viveu. Resolveu pesquisar o cotidiano dos alunos. Seu mestrado foi sobre as adolescentes negras da escola pública em Curitiba:

—Tudo foi se juntando. Curitiba é uma cidade que se proclama como europeia, que dá aos negros a sensação de não pertencimento. A vivência das mulheres e das mulheres negras, a luta pela educação de qualidade. Eu fui consolidando o entendimento. O muro é muito alto — nunca houve uma vereadora negra em Curitiba — mas decidi escalar. Era sonho e dava medo.

Ela realizou. Há outras vitoriosas. Ana Lúcia Martins (PT) foi eleita a primeira vereadora negra de Joinville. Foi ameaçada de morte. O Brasil muda devagar. Antes de terminar, Carol quis dar um último recado:

— As pessoas me perguntam se eu acho possível superar o racismo. Eu digo que obviamente sim, porque se ele foi criado, foi inventado, foi construído, pode ser desconstruído.

Que o sonho de Carol chegue logo. Já nos atrasamos muito.