carnaval
Revista online | Carnaval da democracia
Henrique Brandão*, jornalista, especial para a revista Política Democrática online (52ª edição)
No longínquo ano de 1919, ocorreu no Brasil o primeiro Carnaval após a pandemia da Gripe Espanhola, que, no ano anterior, havia vitimado milhares de pessoas. Pela euforia dominante nas ruas e salões do Rio de Janeiro da época, o Carnaval daquele ano foi considerado o “maior da história”.
Agora, 104 anos depois, em pleno 2023, após dois anos sem folia por conta de outra pandemia, a da covid-19, as ruas voltaram a ser de novo tomadas pelos foliões, ávidos por retomar seu lugar na festa popular. Desta vez, a comemoração foi dupla: além de tirar o atraso carnavalesco causado pelo confinamento, comemorou-se a virada de página política do país, com a derrota do capitão e de seu projeto protofascista. A musiquinha “tá na hora do Jair já ir embora” era cantada por grupos de foliões nas esquinas do Rio de Janeiro.
O Carnaval sempre foi uma manifestação de desafogo para os infortúnios da vida. Contra o cotidiano opressivo, a brincadeira, o escracho e o delírio se transformam em válvula de escape das cruezas do mundo. Nos quatro dias de folia, as ruas receberam o afeto que se encerra no peito juvenil da rapaziada: são abraços, beijos e risos que traduzem o encontro coletivo carregado de alegria.
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A Riotur, empresa que organiza o Carnaval carioca, estima que mais de 400 blocos, bandas e cordões fizeram a festa da galera em todas as regiões da cidade. Essa estimativa é somente para as agremiações oficiais – aquelas que receberam autorização do poder público para pôr o cortejo na rua. Tem ainda um sem-número de blocos que saíram por conta própria, sem carro de som e trajeto definido.
Como amante do Carnaval, todos os anos saio às ruas, não apenas no Simpatia É Quase Amor, bloco do qual sou fundador. Por gosto e diversão, vou a vários desfiles e bailes populares nos quatro dias de folia. Em todos os encontros de que participei este ano, oficiais ou não, pude constatar a felicidade estampada no rosto das pessoas. Um misto de alívio e ânimo novo para a vida recarregou as baterias dos foliões. As fantasias criativas voltaram a ocupar com força as praças e ruas. A purpurina saiu do armário para cintilar nos corpos, o confete e a serpentina deram o ar de sua graça, os transportes públicos ficaram lotados de foliões.
O clima foi de descontração e convivência harmoniosa e até o assédio de playboys, que em outros carnavais incomodava as meninas, em particular, e a todos, em geral – por seu caráter violento, machista e muitas vezes misógino –, foi bem menor, o que ajudou a tornar a festa mais colorida e diversificada. Sem exageros, é possível dizer que a diversidade da comissão que subiu a rampa do Palácio do Planalto na posse de Lula, emocionando o Brasil, pareceu estar representada nas ruas em uma comunhão de alegria e vibração contagiante.
E não foi só o Carnaval de rua que brilhou. Os desfiles na Sapucaí foram excelentes, com uma boa safra de sambas e, principalmente, enredos com temáticas criativas e cada vez menos chapa branca, que buscaram histórias ligadas as raízes das suas comunidades, as temáticas da cultura popular ou até mesmo leituras críticas de datas oficiais, como foi o caso da Beija-Flor, que mostrou na avenida uma versão “ao avesso” do Bicentenário da Independência. A campeã Imperatriz Leopoldinense, com seu belo desfile em homenagem a Lampião, representou bem essa tendência. Aliás, basta olhar para as histórias contadas pelas escolas que voltaram ao Sambódromo no desfile das campeãs para constatar a variedade dos temas apresentados.
Não há dúvida de que o fato de termos nos livrado de um período de trevas, carregado de tristeza e de intolerância, fez a diferença neste Carnaval. Não à toa, em muitos blocos, a folia deste ano foi chamada de “Carnaval da democracia”.
E que continue assim. O Carnaval, a maior manifestação cultural do país, combina com alegria, senso crítico, diversidade e afeto. Coisas que, nos últimos anos, estava em falta no Brasil.
Carnaval e democracia são sinônimos de uma festa onde o povo impera e dá as ordens.
Saia mais sobre o autor
*Henrique Brandão é jornalista e fundador do bloco Simpatia É Quase Amor
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro de 2023 (52ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Nas entrelinhas: A tragédia de São Sebastião e a sagração de Lampião
Luiz Carlos Azedo/Entrelinhas/Correio Braziliense*
A tragédia causada pelas chuvas torrenciais em São Sebastião e adjacências, no litoral norte de São Paulo — provocada pela degradação ambiental nas encostas da Serra do Mar e pelas mudanças climáticas decorrentes do aquecimento global, para o qual contribui fortemente o desmatamento da Amazônia —, foi como uma ducha de água fria em pleno carnaval. Não desanimou os foliões de raça, principalmente nos grandes centros carnavalescos, mas mexeu com quase todos, pelo drama humano que estamos vivendo e a certeza de que o planeta realmente está passando por eventos climáticos desastrosos, que aumentam de escala a cada ano.
O episódio serviu para nos mostrar a grande diferença entre os governos atual e anterior, negacionista do aquecimento global. Ao contrário do comportamento do ex-presidente Jair Bolsonaro durante a tragédia ocorrida em Santa Catarina, em dezembro passado, na segunda-feira de carnaval, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou a base naval de Aratu, na Bahia, onde passava os dias de carnaval, para vistoriar os estragos, confortar a população e coordenar a ação de seu governo junto ao governo paulista e à prefeitura da cidade. Além da empatia com os flagelados, Lula demonstrou disposição de trabalhar com um adversário político, o governador Tarcísio de Freitas (PR), para tratar do que é mais importante: o socorro às vítimas e a recuperação da infraestrutura da região, principalmente a Rio-Santos, cujo tráfego foi interrompido.
Vendo as cenas pela tevê, lembrei-me do último filme de Akira Kurosawa, Depois da chuva, concluído postumamente. Todo o roteiro, a escalação do elenco e pré-produção foram realizados com o diretor em vida. Ao falecer, em setembro de 1998, aos 88 anos, seu filho ofereceria a direção para seu assistente, Takashi Koizumi, que a agarrou com as duas mãos. Ilhei Misawa (Akira Terao) é um ronin em busca de emprego, que vive o dilema de lutar ou não por dinheiro. Ao lado de sua mulher, Tayo Misawa (Yoshiko Miyazaki), é obrigado a parar em uma pequena hospedaria, porque o rio que deveria atravessar transbordou.
A chuva impede que as pessoas saiam para trabalhar, sobretudo carregadores e artistas errantes. Demorará dias até que o leito do rio volte ao normal e seja possível atravessá-lo novamente, o que gera uma crise social, devido à falta de alimentos e aos desentendimentos que surgem quando o egoísmo e o altruísmo estão em confronto aberto diante da escassez. O humanismo de Kurosawa transborda na tela, ao final do filme: quando a chuva passa, o ronin vai às compras e volta com os mantimentos para alimentar os demais abrigados. A comida farta muda da água para o vinho o comportamento das pessoas, que celebram a vida.
A analogia surge por causa das notícias de que, ao lado da grande mobilização dos órgãos públicos e dos voluntários da Defesa Civil, há uma grande demonstração de solidariedade entre os moradores e da população paulista, por meio de doações de água potável, alimentos, roupas, colchões e cobertores para os desabrigados. Infelizmente, também foram registrados saques aos caminhões que transportavam essas doações, talvez por necessidade, muito provavelmente por banditismo mesmo. Vimos também um governo federal preocupado com os mais necessitados, trabalhando de forma coordenada. Ontem mesmo, o presidente Lula já estava em Brasília, liderando seus ministros.
Carnaval da Imperatriz
Mas vamos falar de carnaval. A Imperatriz Leopoldinense venceu o desfile de escolas de samba do Rio de Janeiro pela 10ª vez, depois de um jejum de 22 anos, com o enredo “O Aperreio do Cabra que o Excomungado Tratou com Má-querença e o Santíssimo não Deu Guarida”. Fez um desfile praticamente perfeito, que contou a saga de Lampião no contexto do Nordeste da década de 1920. A Imperatriz trouxe Matheus Nachtergaele e Regina Casé como Lampião e Maria Bonita, respectivamente, mas o grande destaque foi a filha do casal, Expedita Ferreira da Silva, na última alegoria, que celebrava a herança cultural de Lampião. Com 90 anos, também desfilou na Mancha Verde, no domingo, em São Paulo.
Com três mil componentes divididos em 24 alas, com cinco carros alegóricos, a Imperatriz resgatou a vida de Lampião e seu bando no imaginário popular nordestino, com seus beatos, repentistas, cordelistas, carpideiras e mamulengos. O carnavalesco Leandro Vieira desenvolveu um enredo inspirado nas histórias delirantes de cordéis nordestinos, nosso realismo fantástico, que falam da chegada do cangaceiro Lampião ao céu e ao inferno: A Chegada de Lampião no Inferno, O Grande Debate que Teve Lampião com São Pedro e A Chegada de Lampião no Céu.
Lampião é um mítico anti-herói do nosso cangaço. Na década de 1960, o historiador inglês Eric Hobsbawn incluiu Lampião entre um grupo de criminosos “sociais”, porém se baseou mais nas lendas do que nos fatos, como ele próprio admitiu. Para Alberto Passos Guimarães, foi um fenômeno do banditismo das “classes perigosas”. O cangaço serviu de inspiração para obras como Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna; e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha. Produto da miséria, das injustiças sociais e da violência nos sertões nordestinos, Lampião foi glamorizado pela cultura popular, assim como o ronin de Kurosawa.
Não tem como dar zebra
Ivan Alves Filho, historiador
O Jogo do Bicho, tão brasileiro quanto o samba, é hoje uma prática centenária entre nós. E uma prática social que, no plano da música de concerto, ainda não havia recebido nenhuma atenção por parte dos nossos compositores.
O recente trabalho de Luiz Carlos Prestes Filho vem questionar esse estado de coisas, com a gana de quem faz uma fezinha, eu diria até.
O Jogo do Bicho tem tudo que ver com a História do Brasil e do Rio de Janeiro. Nasceu em 1892, em Vila Isabel, que se tornaria o chão mítico de Sinhô e Noel Rosa. Isso, quatro anos depois da Abolição, três da Proclamação República e apenas um ano após a promulgação da Constituição republicana. Um período de turbulências, logo se vê. Uma turbulência como que inscrita no DNA do Jogo do Bicho. Afinal, ele surgiu como resposta, também, à crise econômica que afetava então o país, em particular as atividades comerciais. Os tempos exigiam novas atitudes. E foi para salvar o Jardim Zoológico da bancarrota que o Barão de Drummond inventou o jogo, revertendo a renda das apostas em benefício da entidade.
Logo cedo a cidade adotou e usou o bicho. E até hoje é assim.
Voltando ao trabalho musical do Luiz Carlos Prestes Filho, eu diria que esse é o pano de fundo de sua obra. A sensibilidade musical brasileira, os sons que se afirmavam naquele período, e que vão da polca à marcha e desta ao samba, estão muito bem representados aqui. Isso, para não aludirmos ao próprio Carnaval, indissociável do Jogo do Bicho.
Vale a pena ouvir essa Fantasia Musical Jogo do Bicho. Não tem como dar zebra.
RPD || Lilia Lustosa: É tudo pra ontem, tá ligado?
Dividido em três atos, AmarElo - é tudo pra ontem é uma aula de história da cultura brasileira que é também a própria história da cultura negra, herdeira da escravidão e dos maus-tratos, avalia Lilia Lustosa
O palco é o Theatro Municipal de São Paulo. O ano, 2019. Na programação, nada de óperas, orquestras sinfônicas ou coros líricos … A estrela hoje é o rapper Emicida em seu show de lançamento do disco AmarElo, premiado com o Grammy Latino de melhor disco de rock ou música alternativa em língua portuguesa. Show que virou filme pelas mãos do estreante Fred Ouro Preto e foi lançado recentemente em outro palco de elite: a Netflix.
Dividido em três atos, AmarElo - é tudo pra ontem é uma verdadeira aula de história da cultura brasileira que, como bem deveríamos saber (e não sabemos), é também a própria história da cultura negra, herdeira da escravidão e dos maus-tratos. História de um povo (nosso povo!) que foi apagada de nossos livros didáticos. História de personagens invisibilizados por tantos líderes brancos que ocuparam nossos tronos.
Impossível não nos sentirmos envergonhados de nossas ignorância, impotência e aquiescência diante do que vemos. Sentimentos que se misturam também ao da indignação: como não nos ensinaram tudo isso na escola? Por que não fomos incentivados a ler Lélia Gonzalez? Por que não aprendemos sobre Tebas – escravo que virou arquiteto e que tanto fez pela cidade de São Paulo? Por que não tivemos capítulos em nossos livros dedicados ao Movimento Negro Unificado (MNU) e à sua marcha de 1978? Por que não aprendemos sobre a força dessa gente de pele escura que, em plena ditadura, ousou subir as escadarias desse mesmo Theatro Municipal e fazer dali a tribuna de seu protesto?
AmarElo joga tudo na nossa cara! Mais que isso, esse filme-show-aula-de-história abre as portas do teatro mais importante de São Paulo para o brasileiro comum, para a gente pobre, de classe média baixa, vestida de jeans e camiseta. Gente de cabelo enrolado, liso ou afro, de pele escura, parda, branca, amarela. Uma amostra verdadeira de nosso povo que pode se ver ali enfim representado. Gente que nunca ousou pisar naquele palco, nem ocupar aquele espaço!
O filme ensina, toca, embala, enche nossa alma. Apresenta-nos músicas novas e antigas repaginadas, como a que dá nome ao disco (e ao filme), que tem como sample-base a Sujeito de Sorte (1976), de Belchior, e seu refrão mais que apropriado: “Ano passado eu morri, mas esse ano não morro!” AmarElo mostra-nos ainda variações do rap, gênero de protesto já consolidado no Brasil, mas que segue em eterna (r)evolução. Um rap menos masculizado, híbrido, fluido, que amplia sua área de atuação, fugindo dos padrões de uma arte feita por “machos”, ao incluir as artistas Majur e Pabllo Vittar em seu número principal. O resultado é de arrepiar! A música cola na cabeça, liberta a alma e instiga a criar coragem para fazer a diferença. Emicida impressiona por sua lucidez, seu pensamento filosófico e grandeza de sua arte.
Sem jamais cair no piegas, o filme, conduzido pela voz firme do rapper paulistano, navega por várias cores e texturas, formando uma espécie de colagem com imagens granuladas em preto e branco justapostas a imagens coloridas em alta definição, entremeadas por belas lustrações que se animam e dão cor e leveza à história ali apresentada. Emicida vai mostrando de forma não linear o caminho que o levou até ali, desde sua infância na periferia, passando pela confecção do disco, pelos encontros com personalidades artísticas, até a explosão do show no Municipal. Um caminho alimentado pelo resgate da verdadeira História do Brasil. Dá vontade de continuar assistindo, de descobrir um pouco mais, de puxar aquele novelo e desenrolá-lo por completo.
Só não entendi a menção ao filme Orfeu do Carnaval (1959), do francês Marcel Camus, que, apesar de ter levado a música brasileira mundo afora, mostra uma realidade caricata do Brasil e de suas favelas, pintando nossos negros como os “bons selvagens” de uma terra exótica e feliz. Melhor seria ter citado algum filme de Adélia Sampaio, primeira mulher negra a dirigir um longa em nosso país. Ou obras como Ganza Zumba (1964), de Cacá Diegues, e Barravento(1962), de Glauber Rocha, que inovaram ao dar protagonismo a personagens negros até então relegados à subalternidade.
De toda maneira, o AmarElo de Emicida é um filme urgente para estes tempos tão sombrios, já que traz à tona e põe em xeque temas da ordem do dia: gentrificação, apagamento histórico, masculinidade, racismo estrutural, genocídio negro… Seus densos 89 minutos de duração nos obrigam a olhar para trás e entender que é preciso reescrever nossa história, reparando injustiças e erros cometidos. E é pra ontem!
*Lilia Lustosa é crítica de cinema. Doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).
RPD || Ivan Accioly: O Rio e os cariocas do carnaval da Espanhola ao não carnaval da Covid-19
2021 entra para a história deste século como o inédito ano sem carnaval, à semelhança do que ocorreu na pandemia da gripe espanhola (1918-1920), que infectou um quarto da população mundial na época. Na preservação da vida, foliões de todo o país apostam no futuro da festa em 2022
“Este ano não vai ser igual àquele que passou” e, espero, diferente de qualquer outro que venha no futuro. A vontade imensa de botar o bloco na rua, de fantasiar, de purpurinar e sair por aí ao som de baterias, saxofones, pandeiros, tamborins e similares está represada. A máscara no rosto é apenas uma proteção contra o indesejado vírus Covid-19.
2021 entra para a história como o inédito ano sem carnaval. O ano em que os blocos não tomaram as ruas do Rio de Janeiro, Olinda, Ouro Preto, BH, o país inteiro. As escolas de samba não estão nos sambódromos espalhados pelo Brasil à semelhança do palco original imaginado por Darcy Ribeiro na Marquês de Sapucaí. Portela, Mangueira, Salgueiro, São Clemente, Beija Flor, Vila Isabel. Enfim, todas as escolas estão à espera da hora certa para botar o enredo na avenida.
A folia neste ano de pandemia está improvisada. A aglomeração, a proximidade, a quadra cheia, todo mundo suado, o som potente da bateria que preenche e arrepia, cada poro da pele quando começa a tocar, está mediado pelas telinhas dos computadores. O pouco carnaval vem online. Frustrante, xoxo, mas é o que temos por enquanto.
A população está ainda perplexa com a situação. Os foliões de raiz, ligados às escolas de samba, já sentem a abstinência desde o meio do ano passado, quando as quadras permaneceram fechadas. O pessoal dos blocos de rua igualmente na carência, seus ensaios e escolhas de samba que mobilizam desde a primeira semana de janeiro não ocorreram.
Esses foliões de carteirinha – de forma sábia – apostaram no futuro da festa. Aceitaram o recolhimento momentâneo de olho na preservação da vida e na perspectiva de recuperarem a folia deixada de lado mais à frente. Afinal, todo mundo tem estrada e acúmulo de festa que permite essa pequena pausa.
O carnaval está no DNA da população desde quando o entrudo dava as cartas no século XVI. É uma festa que hoje mobiliza e tira grande parte da população de sua realidade durante alguns dias. É um momento de alegria despreocupada, extravasamento, cantoria brincadeira, ansiosamente esperado. As marchinhas, os sambas, os frevos, os maracatus, os afoxés embalam a folia e são parte do que há de mais original na identidade brasileira.
Mas não é a primeira vez que uma pandemia afeta diretamente nossa festa maior. Há pouco mais de cem anos, em 1918, a gripe espanhola dizimou parte da população mundial e virou destaque na folia do ano seguinte. O vírus matou entre 20 e 30 milhões de pessoas na Europa e um número não conhecido no resto do mundo. No Rio, foram 15 mil mortos e 600 mil doentes, numa população de apenas 910.710 mil pessoas.
A grande forra veio na festa de 1919, quando a população tomou as ruas e fez o que foi considerado o maior carnaval de todos os tempos. Segundo narrou em A menina sem estrela o escritor e jornalista Nelson Rodrigues, que tinha seis anos na época, e foi marcado pela tragédia e pela festa que se seguiu, o povo se soltou:
Desde as primeiras horas de sábado houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade… Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos, cantavam uma modinha tremenda: ‘Na minha casa não racha lenha/ Na minha racha, na minha racha / Na minha casa não há falta de água / Na minha abunda’. As pessoas se esganiçavam nos quatro dias.”
Agora é a nossa vez. Como será 2022? Como faremos a festa? Como curaremos as feridas das centenas de milhares de mortos? Na espanhola, o chá da morte virou música e alegoria. Lá eles também tiveram os negacionistas e aqueles que receitaram a cloroquina da época, que foi o quinino, limão e caldo de galinha. As coitadas das penosas sumiram do mercado.
Vale lembrar que carnaval é resistência e, para desespero das parcelas dos que não sabem lidar com esse aspecto da cultura, a expressa com alegria. Uma alegria e descontração, encaradas pelos os mal-informados como um “descompromisso”. Não entendem nada, o carnaval é crítica. É dedo na ferida dos governantes. É a exposição daquilo que muitos querem esconder. É a festa da carne. São os corpos desnudos que mostram suas presenças e que, no carnaval, são os estandartes principais. Corpos como aqueles ceifados na pandemia e que viraram, para muitos, apenas números para estatísticas,
São esses corpos brincantes que agora estão se preservando e estarão nas ruas em 2022. Que vão mostrar, como disse a Mangueira, “a história que a história não conta. O avesso do mesmo lugar. Pois, com certeza, “na luta é que a gente se encontra”. Até 22 para fazermos o inesquecível melhor carnaval do século. Até agora, claro!
*Ivan Accioly é jornalista, diretor do Bloco Imprensa Que Eu Gamo, e mestrando em Comunicação pela UFRJ. Tem mais de 50 carnavais e entende que a festa acontece na rua, onde cumpre um intenso roteiro blocos e escolas de samba anualmente.
Míriam Leitão: Aos que não brincaram o carnaval
Hoje é terça de carnaval e não haverá blocos com aquela alegria resistente querendo esticar o que já estaria acabando. Não houve desfile no sambódromo, as baterias não tomaram os corações ao passar com seu ritmo e cadência, nem as baianas rodaram sua dança envolvente. As costureiras não bordaram o brilho da avenida. Os foliões que saíram não encontraram respaldo. Não é engraçado vestir-se de alguma paródia, se a morte à espreita na esquina não é uma fantasia.
Houve aglomeração e escutei no domingo a interminável festa de um vizinho, mas mais interessante é o silêncio de quem não foi para a rua, mesmo sendo apaixonado pela folia. Por isso dedico essa coluna aos que não brincaram o carnaval de 2021. É admirável a festa do avesso, da ausência, dos que demonstram respeito ao outro. Cada folião que não saiu, que dispensou a fantasia, que se enfeitou para si mesmo, estava celebrando a vida.
O Rio é do folguedo momesco. Eu admiro essa alegria como parte essencial da natureza do país apesar de me sentir estrangeira às vezes. No Rio, o carnaval de rua renasceu há vários anos em blocos de nomes tradicionais, divertidos e poéticos. Os trios elétricos da Bahia. Os ranchos de Belém. O Largo da Batata, em São Paulo. Metódico, São Paulo tem se esmerado para que o seu sambódromo brilhe mais do que a Sapucaí. Vai vai que consegue. No Recife, o frevo com suas muitas pernas trançantes e suas sombrinhas coloridas avisou ao galo que não cante de madrugada. Em Brasília, o pacotão ficou embrulhado. Em Salvador, o Pelô fez silêncio. Manaus. Manaus é o centro da nossa dor.
Ninguém melhor que Maria Bethânia refletiu o momento ao pedir “vacina, respeito, verdade e misericórdia”, na live em que mostrou a força inteira da sua voz de rainha. Ela reclamou da saudade do público distante, mas esteve tão próxima. Fez o que sempre soube fazer no canto, na poesia, na mensagem direta. Bethânia é opinião. Miguel em queda lembrava o passado que não corrigimos. Cálice parecia ter sido composta na véspera. As raízes do Brasil estavam todas no canto da filha de Dona Canô.
O folião desgarrado que volta pra casa, lúcido e triste, como diria Manuel Bandeira, com sua fantasia um pouco estragada pelos excessos, sempre me pareceu a melhor poesia do carnaval. A alegria se esbaldou, o canto aquietou, os pés já não pulam, o grupo se desfez e essa volta lenta, ainda marcado da festa, é a imagem que sempre prendeu meus olhos quando andei pela cidade, nos carnavais. Hoje, se houver algum folião voltando com restos de festa, não será uma imagem poética. Eu veria, se eu o visse, a pessoa que decidiu que o risco coletivo não é importante.
Eu nasci numa cidade que tem hoje 92 mil habitantes. Com quantas caratingas se conta a dor de hoje do Brasil? Que métrica mediria o que temos vivido? As mortes somadas não informam tudo sobre o sofrimento desse tempo. Houve também as esperas longas e angustiadas por um parente, um amigo, uma pessoa amada, houve a aflição de contar os dias, isolado num quarto, temendo que o ar fugisse dos pulmões e, ainda, a espera ansiosa pelo resultado dos testes. Houve a solidão e a saudade.
Na história dos carnavais haverá a cicatriz de 2021. Esse lapso, intermédio, ausência, parêntesis será o que de melhor teremos a contar nos anos vindouros. A folia recolhida foi o maior presente dado ao outro. Ó abre alas que vamos passar sem o carnaval. Momo foi levado a uma república. Destronou-se. Reinará no futuro, em outros carnavais.
O pior é a festa dos incautos, insensatos e insensíveis, dos que desprezam o risco, não por coragem, mas pela covardia de expor outros ao perigo, dos que por estupidez duvidam da ciência, fruta madura da inteligência humana.
Há muito sobre o que escrever no Brasil, numa coluna de jornal. Temas nunca me faltaram, nos quase 30 anos que aqui pontuo. Hoje a melhor notícia é a festa que não houve, a fantasia não vestida, os foliões que não foram vistos por aí. Aos que se recolheram, mesmo tendo alma carnavalesca, todo o meu respeito nessa terça magra do carnaval de 2021.
Bethânia mistura palavra falada e cantada. Declama e canta. Estilo dela. Opinião. Buscou Cecília Meireles para avisar que “a primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la”.
Ricardo Noblat: Presidente do Senado será testado depois do carnaval da pandemia
CPI é sempre um suplício para qualquer governo
Rodrigo Pacheco, mineiro sem sotaque nascido em Rondônia, há 12 dias presidente do Senado, enfrentará na próxima quinta-feira dois compromissos incômodos. O primeiro: recepcionar seu colega de DEM, o senador Chico Rodrigues, que em outubro passado licenciou-se do mandato por 121 dias. O segundo: decidir se instala ou não a CPI da Pandemia requerida pela oposição.
Será mais fácil para Pacheco riscar de sua agenda o primeiro compromisso do que o segundo. Chico Rodrigues licenciou-se depois de preso pela Polícia Federal escondendo pouco mais de 33 mil reais dentro da cueca – parte deles entre as nádegas, vejam só. A licença serviu para que ele driblasse o risco de ser processado por quebra de decoro parlamentar.
Não era lá um grande risco – os colegas estavam dispostos a protegê-lo e o Conselho de Ética do Senado está desativado há mais de um ano. Mas era aconselhável que ele saísse de cena para esfriar o escândalo. Tudo passa, passará, a memória coletiva é fraca, e são tantos os casos de políticos envolvidos com corrupção que um a mais ou a menos não fará diferença.
Se tivesse dependido unicamente de Rodrigues, não haveria licença. Jurou ser inocente e achou que isso bastava. A haver licença, de início concordou que fosse por 90 dias. Ao descobrir, porém, que o afastamento por até 120 dias dispensa a posse do suplente, licenciou-se por 121 dias – e assim o suplente ocupou seu lugar com direito a salário e tudo mais. O suplente era seu filho.
O segundo compromisso de Pacheco é impostergável. O pedido da CPI da Pandemia foi assinado por 32 senadores – cinco a mais do que o mínimo necessário. Pacheco deu tempo ao governo para convencer quem quisesse a retirar sua assinatura. Aconselhou ao presidente Jair Bolsonaro que mandasse o ministro Eduardo Pazuello, da Saúde, explicar-se em sessão do Senado.
Foi um vexame – para o governo e para o ministro. A sessão durou cinco horas. Pazuello entrou no Senado com um tamanho de médio para baixo e conseguiu sair menor. Em certo momento, chegou a falar grosso como um general a dar ordens a cadetes indisciplinados. Desculpou-se em seguida. Acabou enquadrado por alguns senadores que reduziram a pó suas explicações furadas.
CPI é um caso sério. Políticos experientes costumam repetir que se sabe como começa uma CPI, mas nunca como termina. É por isso que governos de todas as cores pagam caro para abortar CPIs. Pagam pela retirada de assinaturas, pagam para indicar os integrantes da comissão, pagam para que não lhes criem embaraços, pagam por um relatório final que dê em nada.
E mesmo assim, sentem-se inseguros por meses a fio. É um verdadeiro suplício.
Luiz Carlos Azedo: Fogo na camisa amarela
Como brincar carnaval diante de um cenário tão macabro? Ir às ruas para uma festa cujo clima depende de aglomeração seria uma espécie de suicídio coletivo
O carnaval sempre foi um momento de inversão de papéis, de questionamento das normas, de fuga do padrão da vida cotidiana e da libertação da repressão. Neste ano, não. Ainda vamos levar algum tempo para ter a verdadeira dimensão do que está ocorrendo, mas, talvez, o carnaval deste ano seja um momento de choque da dura realidade, que é a crise sanitária pela qual o mundo está passando, agravada pela incompetência e pelo negacionismo do governo. Oxalá, no próximo carnaval, a maioria da população esteja imunizada contra a covid-19.
No começo da pandemia, imaginava-se que o carnaval de 2021 seria um dos maiores de todos os tempos, com a população indo às ruas se divertir, superada a peste. Estaríamos vivendo momentos felizes, de muita contestação aos tabus da nudez e da sensualidade, de ironias e críticas escrachadas aos governantes e, como não poderia deixar de ser, ao presidente Jair Bolsonaro. Feminismo, racismo, diversidade, exclusão, os temas caraterísticos do debate contemporâneo, numa sociedade pluralista e democrática, estariam sendo tratados com bom humor e muita sagacidade pelo povo nas ruas, cantando marchinhas e sambas.
Por incrível que possa parecer, o carnaval — essa festa tão desvairada — também é um momento de conscientização da população. É quase impossível na vida de um brasileiro não ter visto um desfile de escola de samba, não ter saído num bloco ou participado de um baile de carnaval no qual não houvesse ruptura ou transformação de costumes. É uma festa muito ambígua, na qual a fuga da realidade funciona como um espelho da sociedade, quando a velha senhora que passa roupa para fora se veste de luxuosa baiana, a madame vira figurante numa ala de escola de samba, o jovem desempregado brilha na bateria, a socialite leva uma bronca do bombeiro hidráulico por atrasar o desfile e o galã da novela arrisca um desengonçado samba no pé, sendo ele mesmo, e não o seu personagem.
O carnaval substituiu o entrudo, que era uma festa embrutecida, na qual o povo tomava as ruas para jogar farinha, baldes d’água, limões de cheiro e até lama e areia uns nos outros. Ou seja, um avanço civilizatório. Roberto DaMatta, o antropólogo estudioso dos foliões e dos malandros, sempre destacou que o carnaval não é apenas um momento de alienação da realidade, é um espaço de transformação dos padrões da sociedade. O Rio de Janeiro, quanta ironia, teve um prefeito que não gosta de carnaval e não conseguiu se reeleger. Temos um presidente da República que também não gosta e que, talvez, se regozije pelo fato de o povo não ter tomado as ruas para fazer troça das autoridades e de si próprio.
Folião de raça
Um dos maiores carnavais de todos os tempos, segundo os historiadores, foi o de 1919, no Rio de Janeiro, ano de estreia do Cordão do Bola Preta, que havia sido fundado em dezembro do ano anterior e, hoje, é o maior bloco do país, arrastando milhões pelo centro do Rio de Janeiro no sábado de carnaval, o que deveria ter acontecido ontem. Aquele foi um carnaval no qual a população comemorou o fim da gripe espanhola, a epidemia que matou 15 mil pessoas somente no Rio de Janeiro. Neste carnaval, a média de óbitos na cidade está em 158 mortes por dia, sendo 234 óbitos e 5,5 mil casos de contaminação nas últimas 24 horas. Já são 551 mil casos no estado.
Não é privilégio de cariocas e fluminenses. No Distrito Federal, a covid-19 matou 4.198 pessoas, de um total de 247 mil infectados; oito vezes mais do que acidentes e homicídios. Em Belo Horizonte, foram 16,5 mil mortes, de um total de 798 mil infectados. Em São Paulo, 55 mil mortes, com 1,9 milhão de infectados. Na Bahia, 10,6 mil mortos para 623 mil infectados. Em Pernambuco, 10,6 mil mortos para 277 mil infectados; no Amazonas, são 9,7 mil mortos para 292 mil infectados. Estamos vivendo a rebordosa das campanhas eleitorais e das festas de fim de ano.
Como brincar carnaval diante de um cenário tão macabro? Agora, com a segunda onda da pandemia, ir às ruas para uma festa cujo clima depende de aglomeração e contato físico seria uma espécie de suicídio coletivo. Por isso, mesmo que a festa seja em casa e nas redes sociais, neste ano, o carnaval não valeu. Melhor ficar em casa, cantar A Jardineira e pôr fogo na camisa amarela, como aquele folião de raça de Ary e Elizeth, na quarta-feira de cinzas.
PS: até quinta-feira!
Alon Feuerwerker: As fichas vão caindo
E o governo federal vai continuar ajudando as prefeituras em 2021, o segundo ano da pandemia da Covid-19. Foi o que disse hoje o presidente da República (leia). Tem lógica. A doença leva todo o jeito de querer atravessar o ano. A vacina certamente vai ajudar a mitigar, mas é bom ir se habituando à convivência com o vírus até pelo menos 2022.
Outra ficha que já caiu foi a da necessidade de prorrogar o auxílio emergencial, tanto faz se com outro nome, e ainda que falte decidir o valor exato. Os fatos são teimosos. O comércio teve em dezembro a maior retração em duas décadas, mesmo que no acumulado do ano tenha mostrado um pequeno avanço sobre 2019 (leia). Mas o dezembro ruim é prenúncio de números complicados neste começo de 2021.
E chegamos às duas conclusões inescapáveis. A Covid-19 não irá embora tão cedo e o poder público precisará endividar-se para ajudar as pessoas, as famílias e as empresas. E tem uma terceira. Começa a balançar o teto de gastos, previsto para um período de normalidade (ainda que prever 20 anos de normalidade no Brasil tenha sido ousado) e agora confrontado com a vida real.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Adriana Fernandes: Depois do carnaval
Tempo que se perde rodando em círculos significa mais gente passando necessidade em todo País
O recuo de 6,1% das vendas do varejo de novembro para dezembro surpreendeu negativamente e mostrou que a segunda perna da retomada em V da economia está cambaleando. Um carimbo a mais para sinalizar a perspectiva pior para a economia no primeiro trimestre deste ano.
A razão do aumento da pressão pelo retorno auxílio emergencial deriva muito mais desse diagnóstico econômico do que uma preocupação genuína dos parlamentares com a situação de pobreza e dificuldade que passam milhões de brasileiros sem trabalho e renda nessa segunda onda da pandemia, com cepas mais perigosas do vírus, lentidão da vacinação e média móvel de mortes acima de mil pelo 21.º dia seguido.
Fosse o contrário, governo e parlamentares já teriam corrido para dar uma solução para o problema muito antes de o auxílio emergencial acabar. Era tudo previsível. Agora, a solução ficou para depois do carnaval, mesmo após dez dias do resultado das eleições do Congresso. Esse tempo que se perde rodando em círculos significa gente passando necessidade.
Boa parte da pressão a alimentar a movimentação dessa semana pró-auxílio vem de deputados, prefeitos e governadores aliados desesperados por uma injeção de estímulo para a economia. Isso fez o presidente Jair Bolsonaro tirar a fantasia antes mesmo de o carnaval começar e dizer que a medida é para ontem (até então ele se mostrava contrário à prorrogação). O dinheiro do auxílio que foi direto para o consumo sustentou a arrecadação e, agora, a sua redução, a partir do fim do ano, mostra forte impacto econômico.
Todos os políticos que correm agora para defender a urgência do auxílio (parlamentares e administradores públicos de todos os Poderes) deveriam estar preocupados também em reforçar o planejamento das restrições de isolamento para barrar o avanço da covid-19.
Até agora, infelizmente, toda a discussão em torno da prorrogação do auxílio está desconectada de medidas restritivas. Elas só acontecem nos locais quando a situação de colapso e caos se instalou. E mesmo assim meia-boca.
Sem essa conexão, o auxílio, mesmo que necessário e urgente, se revela tão somente como uma medida de transferência de renda aos pobres, que já podia ter sido desenhada desde o ano passado e aprovada pelo Congresso.
Por que não aproveitar as negociações da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de orçamento de guerra, que o ministro Paulo Guedes exige para dar o auxílio, para cobrar dos prefeitos algum tipo de compromisso nessa direção?
Se Bolsonaro é contra, o Congresso poderia assumir essa campanha e responsabilidade. A vacinação deu esperança, mas é lenta e tem servido para mais afrouxamento do já escasso isolamento social. Um plano desse tipo resultaria em menos mortes e, com certeza, em menor custo para o governo. Na Alemanha, o governo anunciou que prorrogará o lockdown em vigor até o dia 7 de março. Um acordo fechado entre a chanceler Angela Merkel e os governadores já prevendo de antemão flexibilizações. Aqui no Brasil, seguimos nesse rastro de insensatez. Até locais com restrições mais sérias, como Belo Horizonte, já flexibilizaram.
Por enquanto, é certo que muitos daqueles que nada fizeram para ampliar o nível de isolamento da população vão bater na porta do Tesouro para pedir mais estímulos. Não vai parar no auxílio. Estão sendo cobradas também a retomada do programa de estímulo ao emprego (BEm), mais crédito subsidiado, suspensão de pagamento de impostos...
O ministro Guedes tem tentado segurar a pressão com medidas de antecipação de recursos, com a antecipação do abono salarial, que injetam recursos na economia. É pouco, mas tenta ganhar tempo.
Depois do auxílio, que já está dado, a queda de braço de fato com o Congresso é que vai começar. O Centrão virá com tudo para cima de Guedes. A votação acachapante do projeto de autonomia do Banco Central mostrou força, mas tem seu preço.
A aprovação da PEC de orçamento de guerra para dar o auxílio é inescapável e vai abrir a porta para mais pedidos de estímulos. O que sabemos de antemão é que a PEC vai ficar só na liberação das regras fiscais para gastar mais fora do teto de gastos. As medidas compensatórias cobradas por Guedes e Roberto Campos Neto, do BC, não vão rolar.
Cacá Diegues: Um prefeito
Zé Pelintra se impôs ao ódio ao carnaval
Temos finalmente um prefeito, coisa que nos faltava há quatro anos. O deputado Pedro Paulo já nos deu más notícias de como vai encontrar as contas da cidade. Mas pelo menos não somos mais obrigados a ver na televisão a cara do bispo tentando iludir não sei quem, com aquela voz e trejeitos de falsa realidade virtual. Seu coração não se partirá mais, o Zé Pelintra se impôs a seu ódio ao carnaval. Agora vamos trabalhar para recuperar a cidade de tanta crueldade com ela e seus (bons) costumes.
As mortes de João Alberto, assassinado num supermercado em Porto Alegre, e de Carlos Eduardo, vítima da tuberculose no chão de uma padaria em Ipanema, bem ilustram a violência brasileira. Não se trata apenas da morte de dois negros. Mas da morte de dois negros pobres que certamente não seriam assassinados, nem deixados sob um plástico às costas de insensíveis, se tivessem algum dinheiro para se virar. Não se trata apenas de racismo, mas de discriminação social agravada pelo racismo. A desigualdade, segundo o Índice Brasileiro de Privação (IBP), um IDH nacional criado pela Fiocruz, responde hoje por 30% da mortalidade de crianças de até 5 anos.
“A cultura é a própria identidade do Rio”, diz o plano do prefeito eleito anunciado antes da eleição. “Ela presta homenagem à memória de nossa cidade.” E ainda é objeto de uma economia bem-sucedida. “Vamos refundar a Riofilme, que voltará a ter um papel de protagonista na produção audiovisual carioca.” Um papel que a produção carioca sempre teve no audiovisual brasileiro, desde sempre. No passado, Eduardo Paes garantiu ao setor 1% do orçamento municipal, o suficiente para manter nossos filmes sendo produzidos com sucesso.
O Brasil é um país múltiplo e diverso, sua melhor tradução pode estar num igarapé amazônico, nas areias de praia baiana, nos Pampas, numa cidade histórica de Minas, na Avenida Paulista. Ou nas favelas do Rio. Cabe aos criadores representá-lo como julgarem mais conveniente, não existe verdadeira cultura brasileira sem diversidade. Com a pandemia, pobreza e desigualdade cresceram, vizinhanças inteiras não têm esgoto, nem acesso à água, não importa se o cara é preto ou branco. Segundo o IBGE, o Brasil é hoje o nono país mais desigual do mundo.
Isso talvez devesse ser tema eleitoral da esquerda. Mas a esquerda preferiu disputar a eleição por hegemonia em seu campo. Se a simpática Benedita, a heroica Martha e Renata, a herdeira de Marielle, tivessem acertado uma aliança, seus votos somados teriam colocado a candidatura de esquerda no segundo turno, em vez da velha direita satânica do doutor Crivella. O vencedor escolheu a concertação, em vez da polarização doutrinária, entendeu que o pessoal está querendo é trabalhar em paz (quando tem emprego e, portanto, trabalho). Agora estão ameaçados de não poder se imunizar, porque o presidente não gosta de vacina. Para ele, já está bom se sobrarmos alguns para levantar a economia até 2022 e para morrer de Covid sem encher a paciência do Estado. E daí? Todo mundo morre, e o presidente não é coveiro.
A maioria desses “invisíveis” é hoje administrada por paramilitares ligados ao tráfico de drogas e às milícias. Desde que passou a ser desrespeitada a decisão do STF determinando que operações policiais em favelas só fossem realizadas em situação excepcional, o Rio conheceu 237 ações nas comunidades, mais de uma por dia. Ao todo, 145 pessoas foram mortas por policiais no mês de outubro, um aumento de 179% em relação a setembro. Entre as vítimas, crianças e adolescentes que não tinham nada a ver com isso.
Nunca se levam em conta experiências como as do Favela-Bairro ou das UPPs, que começaram bem e foram desmobilizadas pela própria polícia, pela corrupção e pelos governantes que não se interessaram em executar a melhor parte dos programas, a montagem nas comunidades de centros urbanos com atividades comerciais, de entretenimento e utilidade pública. Dez anos atrás, em novembro de 2010, os traficantes foram expulsos do Alemão com estardalhaço e show na televisão. Com isso, instalaram-se ali, entre outros serviços, agências de banco, salas de cinema e um teleférico para servir à população obrigada a subir o morro. Quando, pouco depois, os bandidos voltaram, tudo isso foi abandonado por falta de segurança. O teleférico é hoje uma ruína enferrujada, monumento morto à incompetência e ao arranjo.
Bem depois da Abolição, Joaquim Nabuco escreveu: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Não é necessário ler Karl Marx para entendê-lo. Veja como, há um século e meio, a Suécia era muito mais desigual que o Brasil de hoje e, no entanto, deram um jeito nisso, sem gulags nem massacre de milhões. Para ser um bom prefeito, nem precisa saber nada disso. Basta sensatez e, quem sabe, um bom coração.
Luiz Carlos Azedo: Carnaval em Guarujá
“Bolsonaro não gosta de desfiles de escolas de samba, prefere as paradas militares. O carnaval é a negação de tudo o que ele pensa. Deveria, porém, prestar mais atenção ao recado dos foliões”
Existe um dilema na vida nacional que somente a antropologia social dá conta de percebê-lo na sua dimensão cultural: a contradição entre os aspectos autoritários, hierarquizados e violentos da nossa sociedade e a busca de um mundo harmônico, democrático e não conflitivo. O antropólogo Roberto da Matta captou esse dilema no livro Carnavais, Malandros e Heróis, de 1979, um clássico da interpretação do Brasil. Na época, o carnaval de rua não era ainda a grande manifestação de massas que se registra hoje em praticamente todos os estados, porém, os desfiles de escola de samba no Rio de Janeiro já traduziam a alma de um Brasil mais profundo.
Este comentário de Henrique Brandão, jornalista e um dos fundadores do bloco Simpatia é quase amor, me remeteu das redes sociais para a obra de Da Matta: “O que se viu e ouviu no Sambódromo neste carnaval foram enredos criativos e, uma boa parte, autorreferentes. Mangueira, Tuiuti, Ilha e Tijuca usaram as comunidades de origem para contar suas histórias. Outras, falaram de personalidades com forte identificação com as localidades de onde surgiram as escolas, como Joãozinho da Gomeia (Grande Rio) e Elza Soares (Mocidade). O Salgueiro exaltou o primeiro palhaço negro do Brasil. Os indígenas que habitavam o Rio antes da chegada dos portugueses foram cantados pela Portela. As Ganhadeiras de Itapuã, negras de ganho que compravam suas alforrias em Salvador, foi o tema da Viradouro. A criatividade destes enredos se refletiu nos sambas, com uma safra de alto nível. Enfim, mesmo lutando contra a má vontade do poder público — principalmente do prefeito-bispo que demoniza o carnaval — as escolas saíram de suas zonas de conforto e foram buscar em suas raízes a chave para renovarem seus desfiles. Há muito não via um carnaval tão bom na Sapucaí”.
Segundo Da Matta, o lado autoritário e hierarquizado da sociedade brasileira tem três dimensões: uma ordem formal, baseada em posições de status e prestígio social bem definidos, onde não existem conflitos e onde “cada um sabe o seu lugar”; uma oposição sistemática entre o mundo das “pessoas”, socialmente reconhecidas em seus direitos e privilégios, e um universo igualitário dos indivíduos, onde as leis impessoais funcionam como instrumentos de opressão e de controle (“para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”); e o sagrado, onde se opera uma suposta equalização da sociedade, já que todos são filhos de Deus, mas, ao mesmo tempo, são mantidas estruturas claramente hierárquicas de santidade.
Nesses sistemas, se estabelece uma tensão permanente entre a vida doméstica, na qual deve reinar a paz e a harmonia e cada um vale pelo que é, e a vida mundana, onde a batalha cotidiana pela sobrevivência é anônima, dura e impiedosa. Os privilégios da elite do tipo “você sabe com quem está falando” impõem à maioria as relações de mercado e as regras da burocracia, restando ao cidadão comum o velho “jeitinho” para minimizar as agruras da vida banal. É aí que o carnaval subverte tudo, pois é uma manifestação essencialmente igualitária, na qual a transgressão e a liberdade traduzem para as ruas as relações espontâneas. O carnaval de rua cresce, inverte a ordem e mostra que continuamos a ser uma sociedade hierárquica, desigual; na folia, as mulheres, os negros, os pobres e os excluídos assumem o lugar que quase sempre lhes é negado nos demais dias do ano.
Napoleão
Paradas militares, procissões e solenidades oficiais ritualizam e explicitam os aspectos hierárquicos e autoritários da sociedade brasileira; a irreverência dos blocos de rua e os heróis populares das escolas de samba, o seu oposto. O carnaval é essencialmente igualitário e, nos seus quatro dias, dramatiza e transpõe para o mundo da “rua” os ideais das relações espontâneas, afetivas, e essencialmente simétricas que são o outro lado da ordem imposta de cima para baixo.
Na antropologia, a “cultura” é um conceito-chave para a interpretação da vida social, não é uma forma de hierarquizar a sociedade. Não marca uma hierarquia de “civilização”, mas a maneira de viver de um grupo, sociedade, país ou pessoa. É justamente porque compartilham de parcelas importantes desse código (a cultura) que indivíduos com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas transformam-se num grupo e podem viver juntos como parte de uma mesma totalidade. Segundo Da Matta, desenvolvem relações entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos de comportamento diante de certas situações. A cultura não é um código que se escolhe simplesmente. É algo que está dentro e fora de cada um de nós.
O presidente Jair Bolsonaro passou o carnaval em Guarujá, não gosta de desfiles de escolas de samba, prefere as paradas militares. O carnaval é a negação de tudo o que ele pensa. Como primeiro mandatário da nação, porém, deveria prestar mais atenção ao recado dos foliões, compreenderia melhor o nosso povo e suas aspirações mais profundas. Entretanto, enquanto o povo se divertia, endossou pelas redes sociais a convocação de uma manifestação para fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Como quem prepara um “coup d’état”, Bolsonaro testa suas cadeias de comando e capacidade de mobilização, numa afronta à Constituição de 1988. Com todo respeito, nesse “apronto”, vestiu a fantasia de Luís Napoleão.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-carnaval-em-guaruja/