carlos pereira

Carlos Pereira: Inclusão social responsável

Reeleição depende de equilíbrio fiscal e inclusão via aumento de tributos

Na semana passada, o presidente Bolsonaro desistiu, pelo menos no curto prazo, do programa social Renda Brasil ao dizer de forma peremptória: “No meu governo está proibido falar a palavra Renda Brasil. Vamos continuar com o Bolsa Família e ponto final!” Por que o Presidente estaria disposto a arriscar a perder um novo mercado eleitoral recentemente conquistado durante a pandemia com o auxílio emergencial? É bem verdade que o valor transferido com o Renda Brasil seria substancialmente inferior ao do auxílio emergencial. Entretanto, por ser mais vigoroso em valor e escala que o Bolsa Família, teria o potencial de não apenas substituí-lo, mas também de fidelizar esse eleitor de baixa renda ao governo.

Em época de enorme restrição fiscal, a equipe econômica não conseguiu encontrar recursos extras no orçamento para o novo programa de inclusão social. A solução encontrada foi o remanejamento de recursos de outros programas como o abono salarial, o seguro-defeso, salário família, Farmácia Popular etc. O presidente alegou que “jamais iria tirar dinheiro dos pobres para dar para os paupérrimos”

A defesa da manutenção dos benefícios sociais já existentes é apenas uma parte da estória. Por que não mandar as contas públicas às favas e se comportar de forma populista como fizera recentemente outra presidente? Afinal de contas, em um País tão desigual como o Brasil, a inclusão social adquiriu o status de um imperativo político altamente justificável.

Ocorre que, desde o Plano Real, desequilíbrios macroeconômicos que gerem irresponsabilidade fiscal e pressão inflacionária, mesmo quando socialmente justificados, tornaram-se proibitivos. Diante do passado de hiperinflação e da sucessão de planos econômicos que fracassaram em controlá-la de forma sustentável, a sociedade brasileira desenvolveu uma verdadeira aversão à inflação. Presidentes não apenas perdem popularidade quando a inflação sobe, mas também as próprias condições de governabilidade, colocando assim seus mandatos em risco.

Inclusão social responsável se tornou, portanto, a crença dominante entre os atores políticos e agentes econômicos relevantes. Os custos políticos de desvio dessa crença são altos demais. Assim, todas as demais políticas passaram a ser subsidiárias desse equilíbrio dominante.

Para se ter uma ideia, há vários dias o Pantanal queima. O cenário é simplesmente devastador. É estimado que 19% de sua área total já tenha sido destruída pelas chamas. Segundo o Inpe, o número de queimadas no Pantanal aumentou 96% em 2020 em relação ao ano anterior. As queimadas na Amazônia ultrapassam 24 mil incêndios, número 22% maior do que o do ano anterior. O paradoxo é que essas devastações ambientais, embora estejam atraindo olhares críticos no Brasil e ao redor do mundo, parecem não afetar a popularidade do presidente ou suas condições de governabilidade. Proteção ambiental, infelizmente, ainda não faz parte do leque de políticas que afetam o bem-estar presente do brasileiro.

O binômio inclusão social com responsabilidade fiscal vem sendo alcançado por um vigoroso aumento da carga tributária desde o Plano Real, atualmente estimada em mais de 35% do PIB. Essa tem sido a escolha do nosso contrato social, que tem possibilitado ao Brasil alocar em programas sociais mais de 60% de todo gasto governamental, porcentual equivalente ao de países da OCDE.

Com a perda de parcela significativa de eleitores de alta renda, de alta escolaridade e de moradores do Sudeste, se Bolsonaro quiser ser competitivo na sua reeleição, não poderá prescindir desse novo nicho eleitoral propiciado pelo auxílio emergencial. A saída que se avizinha é o aumento da carga tributária.

O dilema para o governo é se tal aumento se dará à “moda antiga”, via impostos difusos como CPMF ou CIDE, ou à “moda nova”, com a imposição de perdas a grupos específicos, via taxação de dividendos e/ou criação de imposto sobre grandes fortunas.

*Cientista político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE)


Carlos Pereira: A Justiça como arma política

A influência do Judiciário na política é fruto da escolha dos próprios políticos

Têm sido cada vez mais frequentes reclamações e críticas acerca da proeminência do Judiciário brasileiro, especialmente da sua Suprema Corte. Muitos afirmam que esta tem extrapolado a sua atuação, não apenas invadindo a seara de outros Poderes, mas também constrangendo de forma exacerbada a atuação dos políticos. Alegam também que a existência de decisões judiciais em direções opostas sobre temas semelhantes, não só proferidas pelo colegiado, mas especialmente de forma monocrática, tem supostamente acarretado insegurança jurídica.

A crescente influência do Judiciário na política não é um fenômeno brasileiro nem tampouco fruto de voluntarismos unilaterais de juízes ou mesmo de jacobinismos. Na realidade, é produto da escolha dos próprios políticos. Ou seja, o espaço que o Judiciário opera é definido politicamente.

De acordo com Ran Hirschl (The Political Origins of Judicial Empowerment Through Constitucionalization: Lessons from Four Constitutional Revolutions, 2000), essa influência é um fenômeno global. Em países cuja constituição garante direitos fundamentais e atribui ao Judiciário o poder de rever a constitucionalidade de atos de outros Poderes, verificou-se um aumento considerável da influência do Judiciário nas prerrogativas do Legislativo e do Executivo. Diante dos riscos de os interesses minoritários serem esmagados por uma maioria episódica, o empoderamento do Judiciário se tornou um imperativo.

O incremento na judicialização de políticas fez com que o jogo democrático dependesse cada vez mais da posição do Judiciário. A Justiça, na realidade, se transformou em uma espécie de arma política utilizada estrategicamente pelos próprios políticos.

José Maria Maravall (The Rule of Law as a Political Weapon, 2003) propõe três condições para que esse fenômeno ocorra. A primeira quando Executivos constitucionalmente fortes são majoritários no Legislativo ou conseguem formar coalizões. Nesse caso, o Parlamento teria poucas condições de responsabilizar e controlar o governo de plantão, tornando-se menos relevante. O confronto político seria assim transferido para o terreno do Judiciário. Haveria incentivos políticos para que a oposição minoritária embarcasse em uma estratégia de judicialização da política.

A segunda condição se daria quando a oposição aceita a derrota nas eleições na expectativa de se tornar governo no futuro próximo, mas novamente é derrotada nas eleições subsequentes. Mesmo com menores esperanças de se tornar vencedora com as regras do jogo atual, a oposição não parte para saídas autoritárias, mas utiliza o ativismo judicial como instrumento de competição política.

A última condição aconteceria quando o governo de plantão é minoritário e vulnerável no âmbito eleitoral. O governo teria assim incentivos para se valer do ativismo judicial para consolidar seu poder e enfraquecer a oposição. A expectativa do governo de ser vitorioso no futuro sob as atuais condições de competição é inferior à de ganhar após a politização do Judiciário. Evidentemente, essa estratégia depende de o governo encontrar apoio dentro do Judiciário.

No Brasil, as condições institucionais para uma maior interferência do Judiciário na política estão presentes desde a Constituição de 1988. Mas foi com a consolidação e amadurecimento de sua democracia que esse fenômeno ganhou maior intensidade e relevância. Pois, como disse Toqueville, “o poder arbitrário de magistrados em regimes democráticos é ainda maior do que a de seus colegas em regimes despóticos”.

Por maior que seja a insatisfação que a interferência do Judiciário na política gere em parte dos políticos e da sociedade, esse fenômeno tem se mostrado extremamente resiliente ou quase irreversível. Apenas em momentos de crise aberta que exigem refundação, mudanças dessa magnitude conseguem ser implementadas. Mas é preciso lembrar que um enfraquecimento do Judiciário também teria consequências negativas e, portanto, que não existe solução ótima.


Carlos Pereira: Só, com o povo ou com os partidos

Pesquisa identifica três estratégias para governos presidencialistas minoritários

Jair Bolsonaro tem sido acusado de trair seus eleitores em função de escolhas inconsistentes na forma de lidar com a condição de governo dividido, situação na qual o partido do presidente não controla a maioria de cadeiras em uma ou nas duas casas legislativas.

O livro The Politics of Divided Government, editado por Gary Cox e Samuel Kernell, é um dos poucos que estudam como governos presidencialistas minoritários se comportam e delineiam os vários caminhos que o presidente pode seguir para lidar com esse desconforto. Os autores identificam três estratégias para presidentes que se deparam com governos divididos.

A primeira é a do “go it alone”; ou seja, quando o Executivo decide não barganhar com os legisladores. Em vez disso, decide usar os recursos constitucionais e legais disponíveis de forma unilateral. A vantagem dessa estratégia é colocar o Legislativo numa posição reativa à iniciativa do presidente como se fosse um fait accompli, o que diminuiria as chances de reversão pelo Legislativo. O perigo associado à estratégia do “eu sozinho” são potenciais impasses e crises políticas com disputas abertas, podendo levar até a conflitos institucionais.

A segunda opção é a do “go public”, quando o presidente faz compromissos diretamente com os eleitores, sem a mediação das instituições e partidos. Nesse caso, o público age como intermediário entre o Executivo e o Legislativo. O objetivo é aumentar os custos de defecção dos legisladores e, assim, fortalecer a sua posição nas negociações com o Legislativo. Essa estratégia, entretanto, produz resultados positivos para o Executivo apenas no curto prazo, pois gera animosidades crescentes entre legisladores que se sentem pressionados e expostos à opinião pública. A qualquer sinal de vulnerabilidade do presidente, os legisladores podem querer dar o troco, não apenas com a imposição de derrotas no Congresso, mas colocando em risco o próprio mandato presidencial.

A terceira estratégia de governos minoritários é a do “bargain within the beltway”; ou seja, acordos em que os principais ganhadores seriam os próprios políticos em oposição aos interesses e prioridades da população em geral. Neste caso, tanto Executivo como Legislativo sabem que precisam negociar e chegar a um acordo. Contudo, nenhum dos dois quer dar o primeiro passo e parecer politicamente fraco.

Portanto, os acordos são adiados até o último minuto, táticas de blefe são adotadas, negociações sobre certas políticas são priorizadas em relação a outras, e assim por diante até uma posição de compromisso ser tenuamente encontrada na última hora e não necessariamente de forma republicana. O risco desta estratégia é que nenhuma aliança substancial e estável tende a ser alcançada. Mesmo quando maiorias são acertadas, tendem a ser cíclicas e episódicas não sendo garantia sólida para o governo governar e de se proteger contra potenciais ameaças de impeachment.

Nesses 20 meses de governo, é possível identificar que Bolsonaro adotou, de forma quase que sequencial, essas três estratégias. Inicialmente, preferiu governar sozinho, renegando os partidos e acusando-os de fazer parte da política tradicional. Quase como um desdobramento complementar da primeira estratégia, também se utilizou fartamente de conexões diretas com o público para pressionar e desgastar o Legislativo e suas lideranças. Ultimamente, no entanto, vem construindo alianças políticas com os partidos do chamado Centrão por meio de barganhas cujos objetivos e termos de troca, até o momento, não são claros nem seguros.

Diante das sucessivas derrotas e desgastes com o Legislativo durante esse período, fica claro que nenhuma dessas três estratégias de governar na condição de minoria está sendo bem-sucedida. Condições institucionais e políticas para a formação de uma coalizão majoritária e estável não faltam no presidencialismo multipartidário brasileiro. Além do mais, a preferência mediana do atual Congresso é muito próxima daquela do presidente. Por que então “trair” seus eleitores apenas pela metade?


Carlos Pereira: Quem está falhando? Governo ou instituições?

Com um governo melhor, o Brasil enfrentaria também melhor o desastre sanitário

Nesse final de semana o noticiário dá conta de que o Brasil ultrapassou a trágica marca de cem mil mortes pelo novo coronavírus. O maior impacto dessa tragédia humanitária tem sido os mais vulneráveis, tanto do ponto de vista das condições de saúde, como socioeconômicas. São pessoas idosas, de classes sociais mais baixas, negros e pardos e portadoras de doenças pré-existentes. A covid-19 expôs de forma cristalina e seletiva a enorme desigualdade social e de renda do país.

Para muitos essa hecatombe sanitária seria evidência de que as instituições brasileiras não apenas não estariam funcionando, mas também de que estariam completamente falidas. Esse diagnóstico, entretanto, peca por atribuir às instituições o que seria consequência das políticas governamentais escolhidas.

Daren Acemoglu e James Robinson argumentam em seu último livro Narrow Corridor: State, Societies, and the Fate of Liberty que desenvolvimento com preservação de liberdades requer equilíbrio entre Estado e a sociedade. O Estado precisa ser forte e poderoso para proteger as pessoas, garantir direitos e proporcionar serviços para seus cidadãos. Mas a sociedade também precisa ser forte, vigilante e atuante, para impedir que o Estado faça mal uso de seus poderes. Para os autores, o “corredor estreito”, gerado pelo equilíbrio dinâmico entre sociedade e Estado, proporcionaria as condições para a emergência virtuosa de uma espécie de “Leviatã algemado”.

O desenho institucional brasileiro que emergiu na Constituição de 1988 criou um Estado forte, dotado de um executivo poderoso, com uma burocracia profissionalizada e meritocrática e organizações de controle (i.e., judiciário, ministério público etc.) independentes. Ao mesmo tempo, preservou um sistema político inclusivo e representativo, capaz de acomodar praticamente todos os interesses da sociedade. Ninguém fica de fora do jogo político no Brasil. Ainda por cima, estimulou o desenvolvimento de uma sociedade livre, complexa e, acima de tudo, vigilante para conter potenciais desvios ou arroubos iliberais de governos de plantão.

O resultante dessa combinação tem sido o desenvolvimento de instituições nitidamente inclusivas, mas não necessariamente eficientes. No livro Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change eu e meus coautores argumentamos que o perfil de inclusão, na realidade, tem sido dissipativo, em que a estabilidade democrática seguida de redistribuição e inclusão social são efetivamente alcançadas, mas também esse processo é acompanhado por distorções e ineficiências. É importante lembrar que esse perfil é o comum em países em desenvolvimento, e não apenas no Brasil.

Mas a existência de dissipação não cancela a natureza transformadora das mudanças que o Brasil tem vivido com o desenho institucional atual. Ou seja, dissipação não significa necessariamente ausência de funcionalidade institucional. Como esse processo ainda está em curso, é muito difícil identificar a parcela que é inclusão efetiva daquela que é dissipação. Depende, essencialmente, do viés da lente do observador. Se favorável ao governo de plantão, enfatizará aspectos que confirmem a inclusão. Já observadores de oposição tenderão a encontrar mais dissipação.

O arcabouço institucional não é uma “camisa de força” que aprisiona os atores políticos. Mas dá os limites. Existe espaço para escolhas de como governar e das políticas que serão implementadas. As dissipações podem ser minoradas ou maximizadas a partir dessas escolhas.

Dizer que as instituições não funcionam é tão ingênuo quanto o seu oposto, ou seja, que as instituições funcionam perfeitamente. As mazelas que o Brasil tem vivido são decorrências de falhas de governo, mas não necessariamente evidenciam uma falha institucional.


Carlos Pereira: O que importa é o gesto, não a intenção

É irrelevante a distinção entre coalizões programáticas e utilitárias

É claramente perceptível uma forte inflexão na estratégia governativa do presidente Jair Bolsonaro. Nos primeiros 18 meses, Bolsonaro se recusou a governar seguindo os incentivos e restrições institucionais do presidencialismo multipartidário e preferiu conduzir o seu governo sem se preocupar em construir uma maioria legislativa estável.

Acreditava que seria capaz de governar e de proteger seu mandato na condição de minoria, especialmente por meio de conexões diretas com os seus eleitores, pressionando assim Congresso e outras instituições a se comportarem de acordo com as preferências do governo. Daí porque empreendeu um perfil polarizado, belicoso e de confronto quase que diário com tudo e com todos.

A estratégia escolhida fracassou. Criou animosidades e conflitos crescentes com os outros Poderes, com a opinião pública e com a própria sociedade. É o governo com maior índice de derrotas no Legislativo e no Judiciário (onde enfrenta dois inquéritos), e com perdas expressivas de popularidade. Ou seja, colocou em risco a própria sobrevivência do governo trazendo uma possibilidade real de perda antecipada do mandato presidencial.

Mesmo que tardiamente e por vias tortas, parece ter havido algum aprendizado decorrente das dificuldades governativas de se “nadar contra a corrente” das regras do jogo. Governar sem uma coalizão majoritária revelou-se um capricho ingênuo do presidente, que finalmente agora corre atrás do prejuízo.

Diferentemente do parlamentarismo, o presidencialismo gera diferenças intrínsecas de preferências entre presidente e legisladores. Enquanto o presidente tem uma base eleitoral nacional, a maioria dos legisladores é eleita por circunscrições eleitorais locais muito reduzidas. O chefe do Executivo é o principal responsável pelo desempenho de políticas nacionais (i.e., desemprego, inflação, combate à pobreza e pandemias etc.). Os legisladores, por outro lado, precisam, fundamentalmente, nutrir suas redes de interesse específicas com políticas locais e/ou que gerem benefícios a certas categorias.

Como o presidencialismo multipartidário brasileiro resolveu esse problema intrínseco de preferências e interesses necessariamente não coincidentes entre presidente e legisladores?

Por meio da institucionalização de mecanismos de “ganhos de troca” no mercado político. Interessa ao presidente o apoio legislativo para aprovar seus programas de governo e para bloquear iniciativas da oposição que visem enfraquecê-lo ou inviabilizá-lo. Por outro lado, interessa aos legisladores acesso a recursos políticos (ministérios, secretarias etc.) e financeiros (execução de emendas ao Orçamento) que gere sobrevivência política e eleitoral de segmentos específicos de eleitores.

A montagem e a gerência de coalizões são os mecanismos que facilitam a coordenação desse jogo de interdependência mútua entre o Executivo e o Legislativo. Sendo as moedas de troca legais e institucionalizadas, o jogo é legítimo. Daí, pouco importa se as coalizões são programáticas ou meramente utilitárias. Afinal de contas, um governo que não sobrevive, não governa.

Pode-se até discordar das intenções ou ter reservas morais dessa forma de se fazer política, mas nada de ilegítimo ou iliberal há aí. O que importa é o gesto. O que importa é a coalizão. A crítica institucional que se pode fazer das barganhas entre o governo Bolsonaro e o Centrão se refere à efetividade da coalizão que daí resultará e se o presidente será capaz de gerenciá-la de forma estável e duradoura. O resto é crítica moral ou preferência eleitoral.


Carlos Pereira: Um MP banguela?

Ao privilegiar sua unidade e hierarquia, Toffoli enfraquece o Ministério Público

O Brasil foi surpreendido com a decisão monocrática do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, proferida durante seu recesso, que concedeu liminar para que as forças-tarefa da Lava Jato de Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro compartilhassem informações e dados sigilosos de suas investigações com a Procuradoria Geral da República (PGR). Os procuradores da Lava Jato haviam se negado a enviar os dados e acusaram a PGR de fazer diligência para recolher, sem autorização judicial, tais informações em Curitiba.

Em sua decisão, Toffoli afirmou que o Ministério Público (MP) “é instituição una, nacional e de essência indivisível e, como tal, conta com órgão central”, que é a PGR, e que “a direção única pertence ao procurador-geral, que hierarquicamente, detém competência administrativa para requisitar o intercâmbio institucional de informações, para bem e fielmente cumprir suas atribuições finalísticas”. Toffoli disse ainda que os procuradores da Lava Jato, ao negar repassar informações ao PGR, cometeram “evidente transgressão”.

Após a liminar de Toffoli, o PGR Augusto Aras declarou que a decisão do presidente do Supremo “reafirma a estrutura e a organização do MP Federal, garantindo a união e as relações que devem nortear os órgãos inferiores em relação aos superiores”.

Esta compreensão de um MP centralizado e hierarquizado, externada tanto na decisão de Toffoli como no pronunciamento de Aras, é radicalmente antagônica à tese largamente aceita de que a Constituição de 1988 constituiu um MP descentralizado, não hierarquizado e com autonomia funcional e administrativa. Esse novo MP teria nascido ancorado na figura do promotor natural, que teria independência de iniciar investigações sem a necessidade de autorizações prévias de superiores hierárquicos.

Na medida em que o PGR é indicado pelo Presidente, a descentralização e a independência constituiriam garantias institucionais de que as ações do MP não fossem instrumentalizadas ou politizadas em favor dos interesses de qualquer governo de plantão.

A escolha do legislador constituinte por um MP descentralizado e independente foi fruto da necessidade de se estabelecer um conjunto vigoroso de organizações capazes de controlar o executivo federal.

Como é sabido, o legislador constituinte também delegou uma ampla gama de poderes constitucionais, orçamentários e de agenda para que o Presidente da República alcançasse condições de governabilidade e de formação de maiorias em ambiente multipartidário. Diante dos riscos de que as organizações legislativas, tais como as Comissões Parlamentares de Inquérito, não fossem capazes de restringir potenciais excessos ou comportamentos desviantes do Presidente, as organizações de controle “externas” à política, dentre elas o MP, seriam fundamentais para proporcionar equilíbrio ao presidencialismo multipartidário.

Ao privilegiar a unidade e a hierarquia do MP enquanto instituição, Toffoli negligenciou a independência funcional do procurador natural, um dos seus pilares constitutivos.

Seria natural esperar dos possíveis prejudicados pelas ações do MP reações negativas em relação a sua suposta “exagerada” autonomia ou potenciais excessos. Entretanto, o que se tem visto é a derrota sistemática de todas as iniciativas legislativas de restrição do MP. Um bom exemplo foi a derrota acachapante da PEC 37, que restringia a competência de investigação criminal do MP.

Se nem os políticos conseguiram ou quiseram arrancar os dentes do MP, como interpretar a decisão do presidente do STF?


Carlos Pereira: Tea Party à brasileira

Perfil similar a movimento dos EUA garante sobrevivência política de Bolsonaro

Diante da avalanche de notícias e eventos ruins que o governo Bolsonaro tem acumulado nas últimas semanas, era de se esperar uma queda mais acentuada da popularidade do presidente e um crescimento mais vigoroso da avaliação negativa do desempenho de seu governo.

Afinal de contas, já são mais de 1,3 milhão de pessoas contaminadas pela covid-19 e mais de 57 mil mortes. Houve redução de aproximadamente 10% da atividade econômica e estima-se que a taxa de desemprego já esteja em torno de 16%.

Para completar a “maré de azar”, o ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro e também amigo de longa data do presidente, Fabrício Queiroz, foi preso enquanto escondido na casa do advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef, sob acusação de ser o operador de um esquema de lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito e formação de quadrilha liderado pelo próprio filho do presidente.

Entretanto, os institutos de pesquisa têm mostrado que a popularidade de Bolsonaro se estabilizou em 30%, o que sugere grande resiliência política do presidente.

Quem seriam os eleitores que continuam apoiando o presidente, mesmo diante de eventos tão negativos?

ctv-vey-captura-de-tela-2020-06-28-as-220848
Figura 1: Expectativa de voto dos eleitores de Direita e Centro-Direita nas eleições à presidência de 2022. Foto: Reprodução

Em pesquisa de opinião desenvolvida com o apoio do Estadão, identificamos que os eleitores que se autodenominam de direita e de centro direita (27% da amostra de 7.020 respondentes) são majoritariamente homens (71%), brancos (73%), acima de 40 anos de idade (67%), possuem renda superior de 5 salários mínimos (70%), são profissionais liberais ou trabalham na iniciativa privada (51%) e dizem possuir alguma religião, notadamente judaica (39%), evangélica (38%) ou católica (33%). Apresentam perfil predominantemente conservador, baseado nos valores morais e da família, e preferem políticas econômicas liberais.

Esse perfil de eleitor brasileiro apresenta grande similaridade com o de eleitores que se identificam como pertencentes ao “Tea Party”, movimento surgido em 2009 nos Estados Unidos em oposição às iniciativas do governo de Barack Obama, especialmente à reforma do sistema de saúde (Obamacare) e ao plano de resgate econômico à crise de 2008. No livro The Tea Party and the Remaking of Republican Conservatism, Theda Scokpol e Vanessa Williamson mostram que os membros do Tea Party tendem a ser republicanos, conservadores, homens, brancos, ter mais de 45 anos, ser de classe média e protestantes evangélicos.

Analisamos como os eleitores brasileiros de direita e de centro direita, que apresentam características sociodemográficas e políticas semelhantes aos simpatizantes do Tea Party americano, se comportariam nas eleições presidenciais de 2022.

A grande maioria dos Tea Party à brasileira reelegeria Bolsonaro ou por forte identidade com o presidente (56%) ou para evitar a vitória de um candidato de esquerda (32%). Apenas uma pequena parcela desse grupo não votaria em Bolsonaro de jeito nenhum (12%). Por outro lado, uma proporção bem menor de eleitores que não compartilham características dos simpatizantes do Tea Party votaria com certeza em Bolsonaro (37%). Um contingente um pouco maior reelegeria o presidente para evitar a vitória da esquerda (41%) e uma parcela não desprezível de “Não Tea Party” não votaria em Bolsonaro de jeito nenhum (23%).

Pesquisa recente do Pew Research Center sugere que os eleitores que pertenceram ao movimento Tea Party apoiariam a reeleição de Donald Trump em 2020. Não seria difícil imaginar qual seria o candidato dos simpatizantes do Tea Party caso eles pudessem votar no Brasil. O inverso também seria de se esperar.


Carlos Pereira: Bolsonaro: fato ou fake?

Atuação de organizações de controle mostram que são falsas as ameaças à democracia

Nesta semana, completo um ano como colunista quinzenal de política do Estadão. Foram 27 colunas, nas quais abordei vários temas relacionados ao desenho institucional e ao funcionamento da democracia brasileira, especialmente as interações e conflitos entre o Executivo, Legislativo, Judiciário e a sociedade. Um dos temas mais recorrentes foi a discussão sobre a solidez/fragilidade de nossa democracia. Procurei me contrapor à interpretação dominante entre os meus colegas cientistas políticos e articulistas que acreditam que a democracia está sob risco iminente com a presidência de Jair Bolsonaro.

Neste primeiro aniversário da coluna, “dobro a aposta”. Afirmo que as ameaças do presidente Bolsonaro à democracia brasileira são falsas. “Não críveis”, como dizemos no jargão da ciência política. Não porque Bolsonaro seja um democrata convicto ou porque não tente, a todo momento, fragilizar as instituições democráticas do País. Bolsonaro já deu inúmeras demonstrações, mesmo antes de ser eleito, do seu pouco apreço pelos procedimentos, ritos e valores democráticos. Nem mesmo aqueles eleitores sem qualquer vínculo identitário com o reacionarismo que Bolsonaro representa podem se sentir enganados pelo presidente. Ou seja, não podem hoje alegar que compraram “gato por lebre”.

Pode parecer paradoxal, mas o funcionamento pleno da democracia não requer de seus cidadãos, e nem tampouco de seus governantes, convicções ou “profissões de fé”, ou mesmo comportamentos consistentes com os valores democráticos. Não resta dúvida que melhor seria se uma parcela cada vez maior de eleitores e de atores políticos acreditasse e confiasse que seus conflitos pudessem ser resolvidos institucionalmente.

Entretanto, a estabilidade e a qualidade da democracia não se medem por convicções, mas pelo respeito aos procedimentos e, especialmente, pela capacidade de reação das instituições democráticas e da sociedade de impor perdas diante de potenciais comportamentos desviantes de seus governantes. Neste quesito particular, o Brasil tem sido um exemplo entre as democracias, inclusive as mais consolidadas.

Mas quando, afinal, populistas eleitos democraticamente são capazes de transformar suas ameaças em fato? A resposta a essa pergunta é clara: quando as instituições e a própria sociedade não apresentam capacidade de resistência e de reação à altura das ações que pretendem subvertê-las. O potencial de populistas, como Bolsonaro, de causar estragos duradouros à democracia está sempre presente. Mas esse potencial é diretamente relacionado a sua capacidade de, por um lado, expandir os seus poderes e, por outro, de enfraquecer os demais. Mas, esse potencial tem sido mitigado, pelo menos até o momento, pela atuação firme das organizações de controle e da vigilância implacável da mídia e da sociedade a qualquer irregularidade ou descaminho seguido pelo governo.

O governo Bolsonaro, na realidade, tem amargado perdas sucessivas tanto no Legislativo como no Judiciário. A avaliação negativa de seu governo não para de subir. Seus vínculos com a sociedade têm se restringido a um núcleo duro cada vez menor de conservadores identitários. O inquérito das fake news no STF tem um potencial devastador sobre o seu governo. Além do mais, estamos testemunhando a ação conjunta de várias lideranças políticas de matizes ideológicas distintas em favor da democracia que não se deixam enganar pala astúcia que espreita sob as bravatas do presidente.

É a atuação das organizações de controle e da sociedade que de fato tem revelado o quanto são falsas as potenciais ameaças de Bolsonaro à democracia.

Bolsonaro é, de fato, fake!


Carlos Pereira: O homem que fala demais

Bolsonaro arrisca os limites institucionais, pois precisa blefar para alimentar seu núcleo duro

A atual composição do Supremo Tribunal Federal é fruto de indicações de seis diferentes presidentes. Este processo gerou uma Corte composta de preferências políticas e ideológicas muito distintas. Apesar dessas diferenças, percebe-se que as últimas decisões da Suprema Corte têm mostrado uma unidade incomum entre seus onze membros, especialmente em se tratando de um plenário tão diverso. Será que as heterogeneidades ideológicas e políticas entre seus membros foram diluídas?

As decisões unânimes da Suprema Corte podem estar diretamente relacionadas com os discursos e ações belicosas do presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores mais fiéis, que têm confrontado de forma polarizada e plebiscitária as instituições democráticas, em especial o próprio Supremo, mas também o Congresso Nacional.

Precisou que o Supremo “pagasse para ver” ao demonstrar seu compromisso firme com a democracia, por meio de decisões consistentemente unânimes e contrárias às preferências do presidente, para que, mesmo timidamente, os céticos e temerosos com a solidez das instituições democráticas brasileiras percebessem que as ameaças autoritárias do presidente Bolsonaro não passam de um blefe.

Se as chances de sucesso da estratégia de confronto com as instituições democráticas são praticamente nulas, por que de Bolsonaro não apenas insiste em utilizá-la, mas também o faz de forma cada vez mais virulenta e ameaçadora?

Bolsonaro blefa porque essa é a uma das poucas armas, talvez a única, que populistas plebiscitários, como ele, dispõem para continuar alimentando seus vínculos políticos e identitários com seu núcleo duro de eleitores. Bolsonaro, na realidade, encontra-se encurralado e, consequentemente, necessita não apenas de conexões identitárias polarizadas, mas da sua utilização com intensidade e frequência cada vez mais alta.

Quando Bolsonaro decidiu governar de forma minoritária, rejeitando a necessidade de construir coalizões legislativas estáveis, ficou cada vez mais dependente destas conexões diretas com seus eleitores para sobreviver, especialmente a partir de apelos de perfil fortemente identitário que funcionam como atalhos cognitivos de proteção para os membros do grupo.

A má gerência da pandemia do novo coronavírus e os riscos decorrentes das investigações em curso pela Polícia Federal e dos inquéritos no Supremo obrigaram Bolsonaro a fazer importantes inflexões no seu governo contrárias aos compromissos assumidos com seus eleitores. A montagem de uma coalizão de sobrevivência com os partidos do Centrão e a intervenção na Polícia Federal, que culminou com a saída de Sérgio Moro, são exemplos que corromperam alguns dos pilares centrais que nutriam as conexões identitárias com seus eleitores.

Sob risco de ver erodir ainda mais as suas conexões identitárias e observar seus eleitores mais fiéis também se desgarrarem, Bolsonaro não pode se dar ao luxo de simplesmente parar de falar. Precisa do confronto polarizado para continuar a existir politicamente.

O presidente, portanto, enfrenta um dilema de difícil solução. Tem que manter seu núcleo duro firme e coeso por meio de apelos identitários cada vez mais inflamados e com alguma coerência, mas, ao mesmo tempo, não pode cruzar os limites institucionais que venham a colocar em risco o seu próprio mandato. Ou seja, precisa dar a impressão que vai para os extremos, mesmo que ele saiba que não pode fazer isso, pois o desfecho final será certamente desfavorável a ele mesmo.


Carlos Pereira: Modo sobrevivência ativado

A ‘maior minoria’ proporcionada pelo Centrão pode ser a ‘vida extra’ do governo Bolsonaro

Quando o modo sobrevivência em um videogame é ativado, não é permitido pausas ao jogador, que deve continuar jogando em uma sessão ininterrupta tentando não morrer. Do contrário, “the game is over”!

Nessa modalidade, o jogo apresenta obstáculos cada vez mais difíceis. Ao tempo em que coloca o jogador contra a parede, o modo sobrevivência funciona como um bônus, dando a ele uma última oportunidade de lambuja para que possa se redimir e aprender com erros antes cometidos e oferecer melhores respostas aos problemas e desafios. Indica, portanto, que nem tudo ainda está perdido, mas as condições de sobrevivência são precárias.

As recentes e radicais inflexões do presidente Bolsonaro sugerem que foi ativado o modo sobrevivência em seu governo. Ora vejamos: até muito pouco tempo atrás, Bolsonaro demonizava o presidencialismo de coalizão argumentando que este era baseado em um jogo sujo de “toma lá, dá cá”.

Queria distância dos partidos políticos e ignorava as lideranças do Congresso Nacional, rotulando-as de representantes da “velha política” e preferindo constrangê-las por meio de conexões diretas com a sociedade. Ao invés de negociar, assumiu uma postura de confronto polarizado com todos aqueles que ofereceram resistência às suas iniciativas.

Entretanto, de uma hora para outra e contrariando tudo aquilo que havia prometido em sua campanha e durante quase 500 dias de seu mandato presidencial, se aproximou de alguns partidos políticos na tentativa tardia de montagem de uma coalizão com o Centrão (bloco informal e heterogêneo de partidos ideologicamente amorfos e não programáticos).

Governar por meio de coalizões majoritárias e estáveis é condição sine qua non em um ambiente institucional multipartidário, especialmente hiperfragmentado como o brasileiro.

Presidentes minoritários tendem a ser malsucedidos no Legislativo e a enfrentar problemas crescentes de governabilidade. Contudo, governar não é o único propósito de se montar coalizões multipartidárias e, em certas ocasiões, nem é o principal objetivo.

Coalizões também são fundamentais para resguardar o presidente de iniciativas que venham a fragilizá-lo. Ou seja, funcionam como um escudo protetor e, quando bem gerenciadas, coalizões ajudam na própria sobrevivência do governo.

Diante de fragilidades crescentes enfrentadas pelo presidente Bolsonaro com a má gerência da pandemia, com os escândalos das tentativas de interferência na Polícia Federal, possivelmente para encobertar possíveis malfeitos de seus filhos, e com a saída de Sérgio Moro do governo, ameaças de impeachment de Bolsonaro se tornaram cada vez mais críveis.

A coalizão com o Centrão, portanto, talvez tenha se tornado o “1-up” do governo Bolsonaro. Ou seja, aquela última chance ou “vida extra” que um jogador recebe quando o modo sobrevivência é ativado. Como se trata de uma coalizão que gera apenas uma “maior minoria”, não deve ser o bastante para proporcionar governabilidade e aprovação de agendas ambiciosas.

Entretanto, pode ser suficiente para proporcionar sobrevivência ao governo, pois impeachments no Brasil necessitam de quórum qualificado de 342 votos e, portanto, uma minoria de 172 deputados pode barrar o processo na Câmara dos Deputados.

A vida extra dada a Bolsonaro pelo Centrão não significa a eliminação completa das dificuldades por ele enfrentadas, mas apenas uma promessa de que, por enquanto, o jogo não acabou.


Carlos Pereira: O presidencialismo de coalizão voltou

Ter ignorado o presidencialismo de coalizão pode custar a sobrevivência do governo

As relações entre instituições políticas, regras do jogo, e escolhas/preferências individuais são muito complexas. Em muitas ocasiões, as regras existentes podem deixar de fazer sentido para algumas pessoas ou mesmo para a própria sociedade. Nessas ocasiões em que as regras em vigor não mais conseguem oferecer os resultados esperados, mudanças institucionais têm maiores chances de acontecer.

O presidente Jair Bolsonaro foi eleito negando as virtudes do presidencialismo de coalizão. Propôs um rompimento com o que chamou de jogo da política tradicional e se comprometeu com a implantação de uma suposta “nova política”. Preencheu as expectativas de uma parcela do eleitorado de “limpeza” da política, construindo uma plataforma essencialmente antipartido, enfatizando a imagem de que todas as siglas e seus membros seriam iguais e fariam parte de uma mesma elite corrupta. Ao associar diretamente o estilo predatório de presidencialismo de coalizão praticado pelos governos do PT à corrupção, Bolsonaro alimentou no eleitorado uma espécie de aversão à própria política.

Uma vez eleito, Bolsonaro se comportou de forma consistente com o que havia prometido durante a campanha. Se negou a montar uma coalizão de governo, acreditando que poderia governar na condição de minoria. Adotou uma estratégia conhecida como presidencialismo plebiscitário, estabelecendo conexões diretas com seus eleitores e ao mesmo tempo negligenciando as instituições numa espécie de cruzada contra todos que lhe oferecessem resistência.

Se estava de fato insatisfeito com o presidencialismo de coalizão, deveria ter aproveitado a força do início de seu governo e ter proposto uma reforma no sistema político. Preferiu nadar individualmente contra a corrente ao invés de propor mudanças institucionais que viessem a reduzir os problemas governativos decorrentes da ausência de uma coalizão majoritária dentro do presidencialismo multipartidário.

Dois choques recentes fragilizaram profundamente o governo Bolsonaro, reduzindo drasticamente seu apoio junto à sociedade, colocando em xeque sua escolha de continuar governando sem uma coalizão: um exógeno, a subestimação dos impactos da pandemia do novo Coronavírus; e outro endógeno, a saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça.

Esses eventos obrigaram Bolsonaro a se voltar para a antes demonizada coalizão como forma de sobrevivência política. Busca apoio do conhecido “Centrão”, formado por partidos políticos heterogêneos, ideologicamente amorfos e não programáticos.

Ao corromper suas promessas de uma “nova política” junto ao seu eleitorado mais cativo, Bolsonaro realiza um dos maiores estelionatos eleitorais da história recente. Substitui legitimidade eleitoral por sobrevivência. Sua conversão tardia ao presidencialismo de coalizão pode ter se dado em condições muito mais adversas que as que teria encontrado se tivesse construído uma coalizão majoritária e estável desde o início do seu governo.

Ainda é cedo para vaticinar o futuro do presidencialismo de coalizão a la Bolsonaro. Afinal de contas, antes tarde do que nunca. Entretanto, será muito difícil que Bolsonaro consiga impedir que os seus novos aliados inflacionem o preço do apoio.

Como esse é um jogo de repetição, é esperado que o Centrão aja de forma estratégica e aumente o valor da contrapartida para o suporte político a cada novo sinal de vulnerabilidade. Afinal de contas, o céu é o limite quando se perceber que o que está a prêmio é a cabeça do presidente.


Carlos Pereira: O ‘cavalo de pau’ do populismo do governo Bolsonaro

Se Bolsonaro sobreviver ao crivo das instituições de controle, terá de também apelar para a população de baixa renda, até então negligenciada

Presidentes minoritários que se recusam a construir coalizões em ambiente multipartidário percebem, cedo ou tarde, que os custos dessa estratégia se tornam proibitivos.

'Imprensa não é fácil', disse Moro a Bolsonaro, ao comentar capa do Estadão

No início do mandato, inebriam-se de sua popularidade alcançada com a vitória eleitoral. Em vez de construírem pontes com os partidos e canais institucionais de representação política, preferem desenvolver conexões diretas e polarizadas com núcleo duro de seus eleitores, numa espécie de campanha perpétua típica de populismos.

Embora no curto prazo essa estratégia possa ser bem-sucedida, ela é muito arriscada, pois tende a desgastar as relações do presidente com os outros Poderes. Ao primeiro sinal de fragilidade do presidente, legisladores tendem a dar o troco, e este pode custar a própria sobrevivência do governo.

Mesmo desgastado, o presidente Bolsonaro vinha sendo capaz de obter apoio político de uma parcela da população. Entretanto, ao dar ênfase aos impactos negativos do isolamento social na economia e, ao mesmo tempo, minimizar os riscos de contágio e gravidade da pandemia, até eleitores congruentes com seu governo decidiram abandoná-lo.

Ao perceber que investigações sobre os organizadores de ato público contra as instituições democráticas poderiam comprometer pessoas do seu governo e familiares, decidiu demitir o diretor da Polícia Federal, batendo assim de frente com o ministro da Justiça, Sérgio Moro, salvaguarda moral do seu governo.

As acusações de Moro apontam para potenciais crimes de responsabilidade. Como tentativa desesperada de proteção, procurará construir, mesmo que de forma tardia e talvez não tão republicana, coalizão no Congresso para evitar um impeachment. Por outro lado, sem Moro, a perspectiva é que uma parcela ainda maior de eleitores, especialmente os que acreditam no combate à corrupção, deixe de apoiar o governo.

Portanto, se Bolsonaro sobreviver ao crivo das instituições de controle, cenário cada vez menos provável, terá de também apelar para a população de baixa renda, até então negligenciada, para ter alguma base social. As transferências emergenciais de recursos por conta da pandemia podem ter criado oportunidade para o “cavalo de pau” do populismo de Bolsonaro.

*PROFESSOR TITULAR DA FGV-EBAPE DO RIO DE JANEIRO