capacetes azuis
O Estado de S. Paulo: Generais descrevem atuação em missões de paz: 'Não há rotina'
Carlos Alberto Santos Cruz e João Carlos Vilela Morgero, que comandaram tropas brasileiras na missão de paz no Haiti, narram experiências das Forças Armadas no exterior - da relação com a população local à boa imagem do futebol brasileiro
Marcelo Godoy e Paulo Beraldo, O Estado de S.Paulo
Assim como os contra-almirantes Eduardo Wieland e Sérgio Berna Salgueirinho (veja mais), os generais Carlos Alberto dos Santos Cruz e João Carlos Vilela Morgero comandaram contingentes brasileiros em tropas de paz.
Santos Cruz comandou a força de paz no Haiti por dois anos e três meses e depois a força para imposição da paz na República Democrática do Congo, enquanto Morgero liderou o contingente brasileiro no Haiti em 2005, e participou de algumas das principais crises que marcaram o início da presença brasileira na força de paz das Nações Unidas.
Quais as principais mudanças trazidas pela participação em forças de paz e missões individuais para o Exército brasileiro?
Não é só o Exército e as Forças Armadas que aprenderam. O próprio governo percebeu que, para utilizar as Forças Armadas como instrumento de projeção externa, ele tinha de aplicar recursos em preparação e equipamentos e isso foi feito. Durante todo o período do Haiti os recursos extraorçamentários que saíram do governo para as Forças Armadas foram muito bons e permitiram fazer uma preparação excelente.
O governo teve consciência de que tinha de fazer isso para ter uma representação boa no exterior. Dentro do Exército, a conscientização foi de treinamento e preparação. Você não pode ir para uma tarefa sem estar preparado. O investimento que já existia no Exército foi muito reforçado assim como a seleção de pessoal. Houve um aprofundamento da cultura da preparação para desempenhar bem e não fazer besteira, dos técnicos aos combatentes.
A logística mudou muito?
Nossa logística era toda baseada em meios militares e ali aprendemos a envolver civis na logística operacional. Por exemplo, se você quiser um equipamento no Haiti, você contrata uma empresa civil e ela vai colocar o material em 30 dias dentro da base e faz o desembaraço alfandegário, faz tudo. O uso de empresas civis na logística foi um avanço.
O senhor esteve em dois tipos de missões: de manutenção da paz e de imposição da paz. Do ponto de vista de regras de engajamento, o que os militares aprenderam?
Você precisa ter regras bem definidas e praticar as regras exaustivamente em treinamento. Do quartel à prática tem uma distância grande. Dizer que você só pode usar a arma com efeito letal quando se sentir em perigo de vida, isso é um princípio. Mas, na prática, que momento é esse na cabeça de cada pessoa, não é fácil. Você só resolve isso com treinamento exaustivo das diversas situações com características práticas para que aquele conceito se fixe e faça o sujeito desenvolver reflexos de acordo com ele.
Qual o papel da liderança do oficial nessa hora?
O papel do oficial em missão de paz é sempre o mesmo. Ele tem de estar junto com a tropa e participar de tudo. Não pode se distanciar do pessoal. Eu nunca servi na tropa brasileira. Meu caso era diferente, como force commander. Até um nível de batalhão você tem de estar junto.Como force commander você tem de estar junto porque na ONU tem diversos países e diversas culturas com interesses diferentes. Só a liderança pessoal consegue puxar todo mundo.General Carlos Alberto Santos Cruz
Como foi seu primeiro dia no Haiti?
Cheguei em uma sexta-feira, final do dia e vindo de Miami para o Haiti e no outro dia era a solenidade de passagem de função. Logo após a cerimônia, houve uma recepção na casa do embaixador brasileiro. Depois do almoço, eu estava desarrumando a mala e tocou o telefone disseram que tinha havido um tiroteio. Perguntei: Morreu alguém? Não. Então continuei desarrumando a mala. Vai fazer o quê? Você tem de ter calma e tranquilidade.
Quando o senhor chegou estava começando o processo de pacificação de Cité Soleil?
De 2004 a 2005, o trabalho foi em Bel Air. Em 2006, foi em Cité Militaire. Em 2007, era Cité Soleil. O destino me reservou Cité Soleil. Com toda a limpeza feita nas duas comunidades anteriores, as gangues se concentraram em Cité Soleil.
Perdeu alguém em razão do confronto armado?
Não, mas teve gente ferida. teve acidentes, mas não por ação violenta.
Como se faz para controlar as comunicações de uma tropa com aparelhos celulares e câmaras, quando isso é necessário por razões de segurança e sigilo de operações?
É uma coisa incontrolável. Tem de haver a proibição de certas divulgações para não prejudicar o sigilo, mas é muito difícil manter 100%. Tudo pode ser filmado e gravado e transmitido online. O único jeito é fazer tudo certo e corretamente. Isso é bom até, pois não deixa haver deslize e tudo mundo se cuida. Há o problema do sigilo, que, às vezes, é necessário do ponto de vista operacional para preservar a vida de quem está na ação. O sigilo é somente necessidade operacional; fazer o certo é obrigação.
Entre a Haiti e o Congo, o senhor voltou ao Brasil. Pôde verificar o impacto da presença no Haiti em ações do Exército?
O que acho que acrescentou foi a validade do treinamento e da preparação. O elemento tem de ser bem preparado. Ele não pode entrar em certas situações sem ter um mínimo de experiência. Por exemplo, no Haiti, iam só soldados, cabos ou sargentos temporários que tivessem mais de dois anos de trabalho. Não ia o recruta.
Como era a comunicação dos militares com as populações do Haiti e do Congo?
A população toda do Haiti fala o crioulo, que se originou do francês. O francês é falado só pela população de nível melhor. No Congo, há 250 dialetos. Há línguas estruturadas, como o suahili e o zingala. São línguas oficiais do país, sendo o francês uma delas. É fácil falar em francês com uma autoridade, mas quando você vai para o terreno, você precisa de um tradutor, pois as pessoas falam outro idioma.É preciso contratar intérpretes, pois as patrulhas têm de sair com intérprete. Sem eles, você não sabe o que está acontecendo. Tem de contratar cem, 200, 400 em uma missão.General Carlos Alberto Santos Cruz
O senhor foi procurado pela ONU quando o M-23 ocupou a cidade de Goma?
Sim. Era o Ban Ki-moon o secretário-geral. Em abril, fizeram o contato comigo por telefone. Eles me consultaram. Eu recebi o convite e não gastei mais de cinco segundo para aceitar. Se você é do ramo, você gasta dois, três segundos para decidir. Se você não é do ramo ou tem algum problema gasta mais tempo. Se não, perguntou, tá resolvido. Depois de aceitar, teve trâmite de documentação, que passa pelo Itamaraty, Ministério da Defesa, exame médico e essa burocracia dura 30 dias. Mas a decisão é na hora.
A primeira missão do senhor lá foi organizar a retomada da Goma?
Sim. Era o ponto-chave da coisa, uma cidade de um milhão de habitantes cercada. Foram oito dias de combate. O M-23 recuou 25 quilômetros ao norte de Goma e teve um movimento para frente, onde eles ficaram em dois lugarejos juntos, onde houve novo embate em outubro. E dali eles saíram e foram para a fronteira com Uganda, a cerca de 40 quilômetros dali. Na fronteira,, perderam a última batalha para gente. Os remanescentes quando estavam a sete quilômetros da fronteira entraram na vegetação e foram embora para Uganda. Restaram bandos armados menores.
O senhor esteve sob fogo no Congo?
Sim, em diversas ocasiões. Havia fogo de artilharia, katiushas e outros lançadores múltiplos. Eles tinham artilharia, eles desertaram do exército do Congo e levaram muita munição e equipamento. A brigada da ONU tinha infantaria, artilharia e forças especiais e mecanizadas e helicópteros de ataque.
Há três anos se discute a participação de tropas brasileiras em missão na República Centro-Africana? Qual sua avaliação?
Tem de ver o que o país politicamente quer com participação na República Centro-Africana, pois não tem relações comerciais e culturais. A primeira coisa a definir é por que iria. No Haiti era mais fácil enxergar a presença regional. A primeira visão disso tem de ser política, tem de ser o poder político e o Itamaraty. É preciso definir o que se quer politicamente com a participação.
O que agregou em termos de projeção do poder brasileiro as missões do Haiti e do Congo?
Respeito, profissionalismo do nosso pessoal, respeito pelo País. Enxerga-se o País com Forças Armadas responsáveis e com uma sociedade responsável. Essa imagem positiva traz respeito em todos os foros internacionais.
Confira, agora, a entrevista com o general João Carlos Vilela Morgero
Morgero comandou o contingente brasileiro no Haiti em 2005, e participou de algumas das principais crises que marcaram o início da presença brasileira na força de paz da ONU.
Qual era a rotina do senhor durante o comando no Haiti?
Não havia uma rotina diária, pois sempre havia ocorrências que exigiam medidas e ações, algumas vezes preventivas, outras vezes dissuasórias. De qualquer modo, realizávamos uma série de atividades para manter a auto estima e elevar o moral da tropa. O planejamento para as operações se baseava em um trabalho minucioso de inteligência realizado pela tropa, e em dados obtidos junto aos demais contingentes e do próprio estado-maior do force commander. Para manter a tropa em condições físicas, morais e psicológicas capaz de enfrentar as dificuldades inerentes à missão, realizávamos treinamento físico, reuniões para atualização dos acontecimentos, com a finalidade de explorar alguma ação importante, destacar acertos e erros; além das reuniões sociais pelo menos uma por semana.
Nosso dia começava as seis da manhã. Porém, eu acordava às 5h15, fazia uma corrida ou caminhada durante esse tempo. As 6h15 todos deveriam estar prontos para o treinamento físico, exceto os militares que estivessem de serviço ou em patrulhas. As 7h15 já estávamos tomando o café da manhã. As 8h, nos reuníamos para repassar as ocorrências do dia e da anterior, e as atividades planejadas para aquele dia. A partir daí, nos deslocávamos para cumprir as diversas missões; patrulhamento, presença nas áreas de atuação, contato com a população, tropas vizinhas de outros países. Por volta das 14h, tínhamos percorrido toda nossa área de atuação e retornávamos à base, quando as ruas estivessem tranquilas, do contrário permanecíamos nas ruas até a solução dos conflitos.
Quais as principais operações que o contingente brasileiro participou sob o seu comando? Qual a mais desafiadora delas?
Foram realizadas várias operações. Na apresentação que fizemos ao encerramento da missão do segundo contingente estão detalhadas todas as operações. A mais desafiadora foi a retomada da casa do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, ocupada por quase sessenta rebeldes, ex-militares armados, que haviam sido expulsos do Exército.
Quais os principais desafios o senhor e sua tropa enfrentavam no dia a dia relacionados à logística, ao clima e à comunicação com a população?
Relacionados a logística, podemos dizer que recebemos do Exército um bom armamento, equipamentos novos, coletes e capacetes balísticos, munição, viaturas mecanizadas Urutu, viaturas sobre rodas (caminhões, viaturas médias) em número suficiente para cumprir as diversas missões. Além disso, recebemos algumas viaturas tipo Land Rover das Nações Unidas. O clima do período do segundo contingente era mais quente, porem não nos trazia grandes transtornos. Isso porque, em Porto Príncipe sempre soprava uma brisa marítima que amenizava a temperatura. O equipamento que utilizávamos era bastante pesado (colete e capacete balístico, colete tático individual, onde levávamos, pistola carregada, dois carregadores e cantil, além do fuzil parafal). A segurança dos militares sempre foi prioridade máxima.
Como era a relação com a população local?
O contato com a população era constante e foi melhorando a cada dia. Em uma das nossas primeiras operações, eu me recordo de levarmos para o centro de Bel Air, assistência médica e odontológica, distribuição de medicamentos, cestas básicas, corte de cabelo, apresentação de vídeos das Forças Armadas, distribuição de folders e revistas, figurinhas da seleção brasileira. Aliás, uma das mais solicitadas era de Ronaldo e de Ronaldinho Gaúcho. Foi tão grande o sucesso com a população que passamos a realizar em todas as operações.
Com evoluiu a relação com a polícia haitiana?
Demorou um pouco, pois percebemos que eles tinham um grande ressentimento em relação à população que apoiava o ex-presidente. Depois de dois meses, já fazíamos operações com eles, a confiança foi sendo conquistada dia a dia. Aos poucos, a polícia do Haiti foi percebendo que a nossa missão era ajudá-los a reerguer o país do caos que se encontrava.
Como era a relação da tropa brasileira com outros contingentes da ONU no Haiti. Algum contingente em específico demonstrava maior ou melhor relacionamento com o brasileiro?
O relacionamento com os outros contingentes era excelente, sempre buscávamos interação trocando informações, recebendo-os na base brasileira para confraternizações. Um fator que facilitava muito esse relacionamento era o force commander da Minustah ser brasileiro. Creio que o relacionamento mais difícil foi com o contingente jordaniano, mas aos poucos fomos conseguindo ganhar a confiança deles e executarmos ações juntos.
Qual a importância da presença brasileira no Haiti para a formação dos oficiais brasileiros, desde os comandantes de pequenas frações de tropa até para os generais que passaram pelo país?
Com certeza, a participação dos militares brasileiros no Haiti, trouxe um amadurecimento profissional desde o soldado até o general, principalmente para os militares mais novos. A participação nessa missão real nos trouxe experiência e fortaleceu o espírito de corpo, colaboração, companheirismo, autoestima e responsabilidade, atributos que sempre cultuamos em nossa profissão, mas que foram ressaltados em todas as operações de que participávamos. Considero que esses aspectos contribuíram para uma maior aproximação entre os militares de todos os postos e graduações, criando um excelente espírito de corpo.
Qual o impacto da presença no Haiti nos procedimentos operacionais e regras de engajamento da tropa adotados pelo Exército? Houve alteração de ações em operações de Garantia de Lei e Ordem que o senhor se recorde após seu retorno ao Brasil?
Houve uma grande evolução e aperfeiçoamento dos procedimentos operacionais, após o emprego no Haiti. Nesse período o Exército já tinha em sua constituição uma Organização Militar, denominado Centro de Avaliação e Adestramento do Exército, que fazia a avaliação anual das organizações militares operacionais, onde eram verificados os padrões de adestramento, assim como as regras de engajamento. Isso eu pude comprovar quando comandei a segunda Divisão de Exército e, posteriormente, o Comando Militar do Sudeste.
A cada emprego operacional fazemos uma APA (Análise pós Ação), seguindo um protocolo do nosso Sistema de Lições Aprendidas, por meio do qual todos os erros e acertos percebidos durante uma determinada operação ou exercício, são discutidos e analisados, de forma a se estabelecer um padrão adequado de conduta para a tropa. Com certeza, muitos dos ensinamentos colhidos nas operações no Haiti servem de base, até os dias atuais nas Operações de Garantia da Lei e da Ordem, com os devidos aperfeiçoamentos necessários.
Pode-se dizer que o crime organizado haitiano era a principal força adversa enfrentada pela Minustah?
No período de atuação do segundo contingente, não havia um crime organizado, mas, sim, atuação de gangues, uma polícia haitiana despreparada e os ex-militares, grupo de rebeldes que com a extinção das Forças Armadas, ficaram desempregados, sem comando. Os ex-militares que foram presos, por ocasião da retomada da casa do ex-presidente Aristides, nos deram muito trabalho, devido à morosidade do governo em solucionar a situação dos mesmos.
O contingente brasileiro sob seu comando sofreu baixas?
Felizmente, não sofremos nenhuma baixa de gravidade. Foram muitos poucos, sem grandes gravidades, em razão dos enfrentamentos que tivemos.
O senhor, depois que retornou ao Brasil, passou pela 2.ª DE e pelo CMSE. Em ambos os comandos, havia unidades que tinham ou tiveram contingentes deslocados para o Haiti. Como o senhor percebia o impacto da experiência haitiana nos militares que voltavam da ilha?
Os militares que voltavam do Haiti traziam uma experiência que poderia dizer de veteranos. No período que exerci o comando da 2.ª Divisão de Exército, participamos de duas grandes operações: a visita do presidente dos EUA e a visita do papa Bento XVI, em ambas operações a participação dos militares que passaram pelo Haiti foi um fator determinante para o sucesso.Era nítido o grau de adestramento e autoconfiança na atuação dos militares que estiveram no Haiti. Essa experiência passava do mais antigo para os mais novos. Eu mesmo apliquei muito da experiência obtida naquela missão.General João Carlos Vilela Mogero
O senhor se recorda como foi o seu primeiro dia no Haiti?
O meu primeiro dia foi longo demais. Depois da solenidade de assunção do comando, na parte da manhã, após levar as autoridades para o aeroporto de Porto Príncipe, inclusive o comandante militar do Sudeste, general Sérgio Pereira Mariano Cordeiro, o meu antecessor e grande amigo general Américo Salvador de Oliveira, comandante do primeiro contingente, quando retornava do aeroporto para a Base da Brigada, fomos surpreendidos com a invasão da casa do ex-presidente Aristides pelos ex-militares, considerados rebeldes pelo governo haitiano. Foram dois dias e duas noites de intensas negociações, inclusive com a presença do general Augusto Heleno, force commander da missão.
A ordem que recebemos foi de retomar a casa, confiscar todas as armas e conduzir os militares presos à magistratura de polícia. Essa, na minha opinião, foi uma das operações mais tensas e demoradas, que exigiu muita serenidade, paciência e bom senso, pois qualquer deslize poderia ter resultado numa grande tragédia. O bom senso, o treinamento da tropa e a ação de comando dos militares em função de comandantes prevaleceu e conseguimos cumprir a missão sem disparar um tiro sequer. Essa operação foi determinante para isolar o segmento dos ex-militares.
E seu último dia, como foi?
O último dia, quando acabei de passar o comando para o coronel Adilson Mangiavacchi foi uma sensação enorme do dever cumprido e a missão concluída com êxito. A substituição era feita por escalões. Eu e meu estado-maior fomos os últimos do segundo contingente a deixar a ilha. Se não me falha a memória, isso ocorreu em 15 de junho de 2005.Tudo o que sabemos sobre:Exército BrasileiroHaiti [América Central]
Conteúdo Completo:
- Generais descrevem atuação em missões de paz: 'Não há rotina'
- Contra-almirantes narram participação do Brasil em forças de paz: 'Sem descanso'
O Estado de S. Paulo: Número de brasileiros em missões de paz cai 72% em 2020
País ainda mantém 77 homens em oito missões; presença do país entre os capacetes azuis é consenso entre os militares
Marcelo Godoy e Paulo Beraldo, O Estado de S.Paulo
O Brasil vai terminar o ano de 2020 com 77 homens em oito forças de paz das Nações Unidas. É o menor número de militares em missões de paz desde que 51 homens da Polícia do Exército chegaram ao Timor Leste em 1999. A participação brasileira caiu 72% com a retirada de 200 homens que serviam na fragata Independência na força de paz marítima do Líbano, a Unifil, ocorrida em 2 de dezembro.
O Ministério da Defesa e a gestão do governo de Jair Bolsonaro negam que a redução seja uma mudança de política do País, associada à gestão do atual chanceler Ernesto Araújo e alegam que a decisão de deixar a Unifil foi tomada em 2019, por motivos operacionais, logísticos e estratégicos, relativos ao Atlântico Sul. A atual gestão também não estabeleceu planos para participar de nenhuma outra força de paz. A Defesa ainda afirma que o País mantém seu compromisso com o sistema de paz da ONU.
A falta da participação do País com contingentes contrasta com a política de dois vizinhos: o Uruguai e a Argentina. Esta última mantém tropa na força de paz no Chipre, ao lado do Reino Unido e da Eslováquia. É em Chipre que o Brasil mantém seu último homem que faz parte de um contingente – na ilha do Mediterrâneo, um capitão do Exército atua agregado à tropa argentina na força de paz da ilha dividida entre a comunidade grega e a turca.
O Brasil mantém ali também um observador militar. O major Fernando Ferreira Manhães esteve lá em 2018. O brasileiro fez parte do Estado-Maior da missão. “O nível de tensão ali é muito baixo. A gente sente uma segurança muito grande no país. Eu costumava brincar que tinha uma sensação de insegurança maior no Rio do que lá”, disse. O major explica que registrava apenas provocações entre as duas forças armadas. A maioria dos incidentes ali era causado por civis que entravam na zona neutra. “A missão está há quase 50 anos e a paz não chegou ainda.”
Outro vizinho do Brasil, o Uruguai, mantém um batalhão com 906 homens na Monusco, a força de paz que atua na República Democrática do Congo (RDC). Comandada por um general brasileiro - Ricardo Augusto Ferreira Costa Neves -, a Monusco abriga hoje 21 brasileiros, a maioria é formada por um grupo de instrutores de guerra na selva que estão treinando o exército da RDC. Trata-se de uma das forças com maior presença de brasileiros no exterior. Já o Uruguai mantém ainda outros 210 militares na Undof, a força de paz mantida pela ONU nas colinas de Golã, entre Síria e Israel.
O Brasil tem 22 militares na Unifil, no Líbano, mas esse número deve diminuir quando o País deixar o comando da força, que deve ser assumido pela Alemanha em janeiro. Abaixo da Unifil, a força de paz que conta com mais brasileiros, segundo dados da ONU, é a mantida pela organização no Sudão do Sul, a Unmiss. Tanto lá quanto no Líbano, os brasileiros estão lá desde 2011. Atualmente, 13 militares e policiais brasileiros estão no país africano – havia 24 no começo do ano.
O coronel Taylor de Carvalho Neto era um dos 14,9 mil militares de 63 países que estavam na Unmiss em janeiro. Ali presenciou três combates entre integrantes das forças do governo e grupos armados que atuam na região. “O país possui inúmeras etnias com costumes e tendências belicosas, cujas ações, muitas vezes, colocam o acordo de paz em risco. Por este motivo, é comum escutarmos, durante as avaliações da conjuntura, a seguinte frase: ‘a situação é calma, porém imprevisível’.”
Para Taylor, apesar de o país não ter contingente na Unmiss, os oficiais enviados à operação passaram “por um rigoroso processo de seleção, cujo reflexo está na qualidade do trabalho realizado”. Para ele, “esses oficiais estabelecem contato com pessoas dos mais diferentes países e passam uma imagem muito positiva de nosso Exército e de nosso País.” Taylor conclui que essa é “uma forma de projeção do poder: mostrar ao mundo que o Brasil possui um grande Exército, com profissionais competentes e dedicados e que são a exata expressão do povo brasileiro”.
Ainda na África, o Brasil mantém nove militares na Minurso, a força de paz do Saara Ocidental, e outros sete na Minurca, a força que atua na República Centro-Africana. O coronel Rodrigo Santos Boueri, que esteve na força, descreve a situação enfrentada pelos brasileiros no país. “A situação é de incerteza. Os grupos armados agem frequentemente para conquistarem novas áreas, especialmente de exploração mineral ou de pastagens. Entre outubro de 2018 e outubro de 2019, houve vários combates entre os grupos armados e destes contra tropas da ONU, incluindo emboscadas de comboios com mortes de capacetes azuis.”
Para Boueri, mesmo com os riscos das missões, trabalhar em operações de paz “é fundamental para a projeção de poder”. “Não participar desse ambiente é abrir mão da responsabilidade de cada país de intervir em nome da paz internacional, o que coloca um país na condição de ator medíocre no concerto das nações.” Segundo o coronel, a missão em que ele serviu é de “suma importância, pois, graças à Minusca, há ajuda humanitária chegando a milhares de pessoas e redução da violência em algumas áreas antes dominadas por grupos armados”.
Consenso
As declarações dos militares, de diplomatas e do Ministério da Defesa mostram a existência de um consenso em torno da importância para o País e para suas Forças Armadas na participação nessas missões. Para o professor Guilherme Dias, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), o fato de o Brasil estar no quarto force commander na RDC (o comandante da Minusco, o general Costa Neves) mostra que o Brasil tem “algo a oferecer em termos de missão de paz, que respaldam e dão legitimidade”. “Quando olhamos a participação do Brasil no Haiti, a repercussão e os ganhos políticos em termos de projeção são flagrante.” De acordo com ele, 23 dos 140 alunos da Eceme estudam atualmente missões de paz.
Para o coronel Carlos Eduardo de Franciscis Ramos, o aprendizado do Exército em missões no exterior ajudou a consolidar o interesse pelo estudo dessas operações no País. “A perspectiva de um oficial aluno com experiência de observador militar ou como tropa no Haiti é muito rica.” O Haiti foi a última operação com tropa do Exército no exterior. Ao todo, mais de 37,3 mil militares brasileiros estiveram na ilha caribenha, onde trabalharam estabilizando o país e mantendo a ordem. “Há semelhanças e diferenças entre GLO (Garantia da Lei e Ordem) no Brasil e no Haiti e na África. Aqui estamos tratando de crime, atividade criminosa e lá estamos tratando de gangues opressoras”, afirmou o coronel.
Seu colega de ECEME, o coronel Flávio Roberto Bezerra Morgado destacou a situação jurídica como a principal diferença das ações de GLO e as missões de paz da ONU. “O que muda é o seu amparo jurídico, a liberdade de ação para fazer determinadas coisas. E aí que eu acho que é a grande virtude das tropas brasileiras: é a inteligência cultural. GLO é diferente da missão de paz. E o soldado brasileiro tem capacidade para entender isso. Ele entende a diferença do povo haitiano e do brasileiro, as culturas diferentes”, afirmou. Para ele, outra herança das missões de paz são o aprendizado da tropa. “Como organizar, equipar e como combater. Se pegar a estrutura inicial de nossas forças no Haiti era uma. E, no fim, era totalmente diferente por causa da evolução doutrinária que foi acontecendo. São as lições aprendidas.”
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As histórias desconhecidas dos militares brasileiros da ONU
Textos e dados: Marcelo Godoy e Paulo Beraldo / Design: Vitor Fontes
Fabiano foi ao Timor Leste e viu cabeças cortadas, foi cercado por guerrilheiros e salvou a vida de Xanana Gusmão, o líder da independência do País. Leonel foi feito refém para ser usado como moeda de troca entre os sérvios e as Nações Unidas. Bruno viu aldeões serem caçados por um leão enquanto milicianos hutus massacravam a minoria tutsi em Ruanda. Romeu, que combateu os comunistas no Brasil, tornou-se amigo dos guerrilheiros esquerdistas de El Salvador. A história desses homens ajuda a contar passagens desconhecidas da presença de militares brasileiros em áreas de conflito ao redor do mundo.
ENTREVISTA GENERAL SANTOS CRUZ
Desde que, em 1989, voltou a estar presente em forças de paz, o Brasil enviou homens em missões individuais ou contingentes de tropa para 50 missões em todos os continentes. Ao todo, cerca de 48 mil militares enfrentaram desafios tão distintos quanto leões das colinas de Ruanda ou um cativeiro na Bósnia enquanto seus colegas eram transformados em escudos humanos. A linha que divide a paz e a guerra nem sempre era clara nas missões dos capacetes azuis. Ou por ação dos beligerantes, ainda incapazes de fazer as armas calarem, ou porque a própria missão dos homens das Nações Unidas previa a possibilidade de se usar a força para manter a ordem ou estabilizar uma região.
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Essa é uma história de indivíduos diante de crises que marcaram o fim do século passado e o começo deste. É possível considerar suas histórias como típicas de um fenômeno que uniu as Forças Armadas ao Itamaraty: a decisão de fazer da presença desses militares um dos principais instrumentos da diplomacia do País que buscava um lugar ao sol para o Brasil entre as nações após o término da Guerra Fria. É o que diz o general Adhemar da Costa Machado Filho, que esteve em Angola comandando os homens da força de paz Unavem 3.
“O Brasil acertadamente aceitou participar da missão, pois essa postura muito contribuiu para nos inserir entre os grandes ‘players’ das missões de paz.” Com ele concorda o ex-chanceler Celso Lafer: “Essa participação é uma combinação do soft power da presença com essa dimensão do papel das Forças Armadas que, sem entrar em conflito, contribuem para a manutenção da paz. É um custo que vem junto com as aspirações de uma presença do Brasil no plano internacional.”
Neste ano, o País ficou pela primeira vez em 21 anos, desde a missão no Timor Leste, sem contingente de tropa entre os capacetes azuis. Isso ocorreu por causa da retirada da fragata Independência da força de paz do Líbano, a Unifil. A embarcação chegou no sábado, dia 26, ao Brasil. O Ministério da Defesa alega que a saída ocorreu porque a Marinha decidiu concentrar seus recursos na defesa e na segurança do Atlântico Sul. A decisão não impede que os militares do País voltem no futuro a atuar com tropa entre os capacetes azuis.
As histórias desses militares nas missões permitem jogar luz sobre o processo de pacificação da América Central e a influência de seu modelo nas sucessivas tentativas de paz na antiga África portuguesa. Ou acompanhar o impacto das crise em Ruanda e na Bósnia sobre os capacetes azuis, que levaria à mudança do formato das forças da ONU. O fim da Guerra Fria impulsionara ainda a criação de novos Estados nacionais, como a Eritreia, e viu o temor de uma pandemia mortal, com o surto de ebola na África Ocidental, substituir o medo do holocausto nuclear. “As evidências demonstram que a ONU estava melhor organizada e preparada para atuar no Timor Leste do que na ex-Iugoslávia. A atuação no Timor Leste é considerada um caso de sucesso”, afirmou o general João Batista Bezerra Leonel Filho.
Os militares voltaram ao País marcados pelas missões. O general Adhemar lembra que passou a “dar valor às coisas simples, deixando o ranço burocrático de lado”. O paraquedista Franklimberg de Freitas, que comandou em Moçambique a primeira tropa brasileira a atuar no exterior desde 1967, inaugurou uma prática que seria comum nos anos seguintes: o uso dessa experiência em Operações de Garantia da Lei e Ordem (GLO) no Brasil. Seus homens voltaram direto para a Operação Rio, em 1994, participando do combate ao narcotráfico em morros e comunidades cariocas. Mais tarde, seriam os veteranos do Haiti.
“O próprio governo percebeu que, para utilizar Forças Armadas como um veículo de projeção externa, tinha que aplicar recursos em treinamento, preparação e equipamentos básicos. E isso foi feito durante todo o período do Haiti. Os recursos foram muito bons. Deu para fazer uma preparação excelente”, disse o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que comandara os brasileiros no Haiti e a brigada de intervenção da ONU, no Congo. “A cultura da preparação que já existia ficou muito reforçada e todos tiveram suas especialidades aperfeiçoadas”. Depois, ele se tornaria ministro de Jair Bolsonaro, como tantos outros que estiveram nessas missões.
Por fim, o historiador francês Marc Ferro escreveu que as pessoas passam pela história ao mesmo tempo em que a história compõe com elas o seu drama. “Alguém pode se prevenir contra o roubo e o incêndio, mas não pode fazer o mesmo com a história.” Foi isso o que esses militares descobriram em suas missões.
EXPEDIENTE
Editor executivo multimídia: Fabio Sales / Editora de infografia multimídia: Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia: Adriano Araujo, Carlos Marin, Glauco Lara e William Mariotto / Designer multimídia: Vitor Fontes / Infografia multimídia: Diogo Shiraiwa / Editor-coordenador de Política e Internacional: Eduardo Kattah / Editores de Política: Tiago Dantas e Marta Cury / Editor assistente de Política: Vítor Marques / Reportagem: Marcelo Godoy e Paulo Beraldo / Edição: Marcelo Godoy (textos), Cláudio da Luz (áudio e vídeo) e Ricardo Nascimento (vídeo) / Foto de abertura: Marcos Michael/JC Imagem
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