Cândido Mendes
Candido Mendes: O Brasil viúvo da esquerda
A desaparição das esquerdas no Brasil só ecoa uma perspectiva global dos nossos dias. É só deparar a ruína do socialismo francês, despencado para o quinto lugar nas opções eleitorais do país, ou o esvaziamento espanhol e a agregação à chanceler Merkel dos contingentes restantes do que poderia ser a sua contraposição na Alemanha.
Verificamos, ao contrário, esta cumulação das direitas em superdireitas, e toda a série de novos extremos partidários ao redor do mundo. É o que leva, inclusive, em tal radicalização, a confundir estabilidade com mudança, e à confusão de programas como o do governo Bolsonaro. Só deparamos o entulho do setor público, ao se cogitar, hoje, da sua privatização. Claro, como já viram os especialistas, ela envolve uma primeira desconcentração dessas atividades e, por força, a gradação dos setores a virem ao domínio particular. Não tem o governo ainda a noção da escalada desestatizante, e dos seus círculos viciosos, senão de seus bloqueios. Além disso, o Executivo não se decidiu ainda sobre a entrada, ou não, do capital estrangeiro nessa nova frente, e do volume e impacto de seu aporte.
Ressente-se de qualquer novo protagonismo de esquerda nessa alternativa, tanto se depara a evanescência do PT e de seu corpo político. Só se multiplicam os donatários das antigas siglas, ciosos da sua independência, e hoje prisioneiros de um irredutível divisionismo programático. Fica a interrogação sobre Ciro Gomes, na expectativa de seu retorno, na retirada siberiana a que se voltou. Mas expõe-se a um protagonismo obsoleto, numa torna descompassada.
Nenhuma nova liderança emerge para polarizar o desempenho que Lula encarnou, e agora vemos o abate do personagem, mas a deixar intactos a relevância de seu papel na história brasileira e seu carisma incontornável. O quadro é implacável para que nele se possam arriscar novas ambições políticas. E é sobre esse cenário falseado que Bolsonaro pode —até quando? —desfrutar de uma imunidade histórica.
*Candido Mendes é membro do Conselho das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações
Cristovam Buarque: Jovens nonagenários
A melhor palavra para definir cada um desses três nonagenários exigiria reunir os conceitos de incansável-estimulante-antecipador-professor — homem de ação — estadista de ideias
Entre 27/5 e 1º/8 de 1928, nasceram três brasileiros que marcariam a história do Brasil na área do ensino superior e do pensamento nacional: José Goldemberg, filho de imigrantes judeus vindos da Rússia; Cândido Mendes, filho da aristocracia católica do Rio de Janeiro; e Heitor Gurgulino, filho de um comerciante cearense e uma jovem alemã recém-chegada. Apesar de uma idade ligeiramente menor que a deles, tenho o privilégio de pertencer à mesma geração e ter convivido com os três.
Fui reitor da UnB em período coincidente com Goldemberg, na USP. Fizemos parte do primeiro grupo de reitores posteriores ao regime militar, quando a comunidade acadêmica se deslumbrava com a democracia e caía na tentação de pôr em oposição Liberdade e Mérito. Fizemos parte dos que não abriam mão da busca de mérito na instituição acadêmica. Defendemos a importância da estrutura multidisciplinar no ensino superior, iniciamos a revolução da internet, promovemos o desenvolvimento da pesquisa tecnológica, em cooperação com o setor produtivo. Esta convivência me passou admiração pelo homem público, estadista da ciência e do ensino universitário, cientista e professor.
Tomei conhecimento de Cândido Mendes nos anos 60, quando eu ainda jovem e ele já era um acadêmico ativo na formulação do pensamento brasileiro que serviu de base à formação intelectual de minha geração. Nos últimos anos, convivi pessoalmente com ele em visitas à Universidade Cândido Mendes e durante os seminários que organiza sob o título de Islam et Latinité, buscando construir diálogo entre os mundos Islâmico e Cristão. Estes seminários fazem parte do patrimônio mundial na busca do diálogo inter-religioso e do entendimento dos problemas contemporâneos. Filho da aristocracia católica, Cândido fez uma opção pelos pobres e optou pela racionalidade sem preconceito contra qualquer credo; humanista cosmopolita é um vigoroso nacionalista. Dele reconheço, sobretudo, a generosidade com que se entrega aos amigos que faz e às causas que defende.
Heitor Gurgulino é um jovem nonagenário que tem uma bicicleta em cada um dos seus endereços. Quando lhe perguntei sobre as dificuldades no tratamento de um câncer, reclamou do trânsito que lhe tomava muito tempo nos trajetos entre a casa e o hospital. Heitor foi professor assistente de física na criação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA); fundador e primeiro reitor da Universidade Federal de São Carlos. Por 10 anos, ficou à frente da reitoria da Universidade das Nações Unidas e construiu o Câmpus da UNU, em um majestoso prédio, em uma das mais refinadas áreas da capital japonesa. Ocupou também o cargo de Subsecretário Geral das Nações Unidas e participou das mais importantes conferências da ONU. Aos1990 anos, é presidente da Academia Mundial de Arte e Ciência. Por tudo isso e por sua intensa atividade em dezenas de órgãos internacionais relacionados com educação, ciência, tecnologia, cultura, ele é o mais bem-sucedido brasileiro no cenário mundial da gestão acadêmica e da promoção de ciência.
A melhor palavra para definir cada um desses três nonagenários exigiria reunir os conceitos de incansável-estimulante-antecipador-professor — homem de ação — estadista de ideias. Os três fazem parte do seleto grupo de seres humanos que, ao longo do século 20 e início do 21, estiveram à frente de seu tempo, refletindo sobre a crise e propondo alternativas para a civilização, na encruzilhada que atravessamos: véspera de catástrofes ou de utopias. Deles tenho a imagem da juventude permanente: todos continuam em plena atividade intelectual, instigando, criando, contestando.Em um país que insiste em se manter como um dos piores do mundo na qualidade e na distribuição da educação para sua população, é surpreendente e animador que tenhamos três personalidades, nascidas ao mesmo tempo, que deram contribuições intelectuais e políticas tão elevadas ao mundo. E que não se cansam, não perdem a crença no futuro da humanidade e não param de lutar por ela.
Um dia, anos atrás, eu disse: “Quando crescer quero ser Darcy Ribeiro”; daqui a alguns poucos anos, gostaria de ser um nonagenário como algum desses três. Há duas semanas, tivemos o primeiro dia de Brasília sem Ari Cunha. Aos 91 anos, nos deixou o jornalista que nos informava e inspirava desde a inauguração de nossa cidade. Ele também foi um jovem nonagenário.