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Bolsonaro acusa Fux de 'desinformado' por cancelar reunião dos chefes dos Poderes

Presidente se diz perseguido e afirma que querem tirá-lo do cargo na 'canetada'

Evandro Éboli / O Globo

BRASÍLIA — O presidente Jair Bolsonaro voltou a fazer ataques a ministros do STF, mas evitou duras críticas ao presidente do tribunal, Luiz Fux, que anunciou mais cedo a suspensão da reunião dos chefes dos três poderes. O motivo desse cancelamento foram as declarações de Bolsonaro contra Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, que voltaram a ser alvos do presidente em live na noite desta quinta.

Bolsonaro disse que Fux cancelou o encontro sem comunicar a ele. Na parte da manhã, o presidente acusou as cortes superiores de agirem como uma "ditadura de toga".

— O Fux, é direito dele fazer a nota (pronunciamento).  Ele me convidou para a reunião dos chefes de poderes e, sem falar comigo, cancelou. Não teve ataque ao STF. Zero. Se não tem ninguém para te informar, lamento — afirmou Bolsonaro.PUBLICIDADE

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Em outro momento, o presidente disse que Fux se baseou em noticiário da imprensa para cancelar a reunião e acusou

— Aí vem a imprensa, né? Imprensa essa que lamentavelmente o ministro Fux se alimenta dela para fazer uma nota (pronunciamento). Como diz a nota do ministro Fux 'contudo, como tem noticiado a imprensa brasileira'. Ora,  prezado ministro Fux, se o senhor se informar na imprensa brasileira, o senhor está desinformado — afirmou.

Bolsonaro acenou, a seu modo, com novo encontro entre os chefes dos Poderes e falou em "armistício". O presidente afirmou que está aberto ao diálogo, com algumas condições.

— Ministro (FUX), só nós dois. Podemos convidar o Rodrigo Pacheco e o Arthur Lira. Nós quatro, para rasgar o verbo, mas com o compromisso de sair dali e não tagarelar para a imprensa. Meu dever é trazer felicidade para o povo e não medir força com o Supremo.

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Barroso e Moraes voltaram a ser criticado por Bolsonaro, que voltou a defender o voto impresso e acusou o presidente do TSE de não querer transparência na votação. E atacou também Moraes, que o incluiu como investigado no inquérito das fake news.

— Estão juntando acusações para usar no futuro, quando eu deixar a Presidência. Qual meu futuro com um ministro que age dessa maneira?

Segundo o presidente, querem tirá-lo do Palácio do Planalto na "canetada" e torná-lo inelegível.

— Tudo que faço, satanizam, debocham. Não posso defender nada. Por que esse ódio em cima de mim? Querem me tirar daqui com uma canetada. Querem me tornar inelegível na canetada. Isso é jogar dentro das quatro linhas da Constituição. Onde está meu ataque ao STF ou ao TSE?


Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-acusa-fux-de-desinformado-por-cancelar-reuniao-dos-chefes-de-poderes-25143094


Demétrio Magnoli: Eu acuso!

Primeiro dever do historiador é fugir da armadilha do anacronismo

Na Califórnia, o Conselho de Educação de São Francisco mudou os nomes de 44 escolas, varrendo figuras racistas do passado e, de passagem, também Abraham Lincoln. Na Folha (19/1), Marcelo Coelho reativou a campanha pelo cancelamento de Monteiro Lobato, rotulando-o como um “racista delirante”. Ezra Klein tem razão ao concluir que, por essas vias, transforma-se a política mais em estética que em programa (Folha, 12/2).

Cada geração tende a reinventar a história à sua imagem, atribuindo aos personagens do passado as virtudes ou pecados que tocam nas sensibilidades do presente. O Lincoln oficial é Grande Emancipador; o dos dirigentes escolares de São Francisco é o político que se opunha tenazmente ao exercício do sufrágio pelos negros. Depois de cancelar os líderes da Confederação, a esquerda identitária americana precisa seguir adiante, condenando ao opróbrio todos os que não abraçam seus valores. O primeiro dever do historiador é fugir da armadilha do anacronismo, inscrevendo os personagens que estuda na moldura de sua própria época. Mas o anacronismo constitui a ferramenta imprescindível dos emissários da atual política simbólica.

Lincoln simplesmente compartilhava as ideias predominantes no seu tempo. Lobato debatia-se com as encruzilhadas reais ou imaginárias da metade inicial do século 20. O método de pinçar frases racistas em suas obras ou cartas pessoais serve, exclusivamente, para obter aplausos da plateia cúmplice que milita no identitarismo acadêmico.

Que tal democratizar o anacronismo? Eu acuso W.E.B. Du Bois, “pai fundador” do movimento negro americano, de nutrir certas simpatias pelo nazismo. Acuso Abdias do Nascimento, prócer do moderno movimento negro brasileiro, de propagar as ideias fascistas da Ação Integralista Brasileira. E acuso milhares de negros do Brasil do século 19 de terem sido proprietários de escravos. Minhas cápsulas de verdades fora de contexto, artimanhas no palco do ilusionismo, esclarecem tanto quanto a sentença inquisitorial lançada contra Lobato.

As musas da Sorbonne costumavam soprar nos ouvidos dos intelectuais brasileiros. Não mais. Hoje, os cavaleiros andantes da política identitária seguem gurus americanos –e querem que o Brasil seja os EUA. O problema é que, quando se trata de nação e raças, a América Latina tomou rumo diferente.

Enquanto os EUA praticavam a segregação racial oficial, o mexicano José Vasconcelos (1882-1959) e o brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987) enalteciam a miscigenação. Lobato não adotou nenhum dos dois polos, ensaiando um raciocínio inclinado à conciliação de raças. Os três, porém, pisavam um chão ladrilhado por conceitos raciais que só seriam superados na metade final do século 20. A acusação a Lobato nada diz sobre o escritor, mas pinta um retrato preciso de seus acusadores.

A crítica literária Ana Lúcia Brandão recolocou o debate sobre Lobato no seu devido lugar (Folha, 15/2), descortinando amplos horizontes para divergências civilizadas. Vã esperança: Coelho retrucou comparando-a aos terraplanistas. Se não rezam pela cartilha de Bolsonaro, são comunistas; se contestam o manual de cancelamento da política identitária, serão terraplanistas. Vamos mal.

A política estetizada ignora os dilemas que interessam às pessoas comuns. As escolas de São Francisco permanecem fechadas –mas seus nomes foram devidamente sanitizados. O Pisa revela que o ensino público brasileiro continua a sonegar o direito à educação aos filhos de famílias de baixa renda de todas as cores –mas temos cotas raciais nas universidades e cercaremos com bandeiras de alerta as frases suspeitas de Lobato. São Paulo empurra seus pobres a periferias cada vez mais distantes –mas logo removerá a Estátua do Empurra da entrada do Ibirapuera.

A estética nos consome: lancetamos símbolos. Sorte da direita populista.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Pedro Doria: A febre

Cancelamentos são uma febre, um dos muitos sinais de que o debate público quebrou

Por conta do Big Brother, cancelamentos voltaram ao debate. Mas, como tudo no ambiente de polarização, não conversamos o suficiente sobre eles. Sobre como a dinâmica de redes sociais e algoritmos os tornam mais agressivos e, por vezes, inevitáveis. Vai além: como focamos demais naqueles cancelamentos promovidos por militantes identitários, com frequência não percebemos que seu impacto é mais amplo e tem um custo muito alto para o debate público. Em todas as correntes políticas, as conversas estão travadas.

É só prestar atenção: quando é que, no meio de uma conversa, somos surpreendidos por um argumento novo? É cada vez mais raro. As identidades ideológicas se cristalizaram. Desta forma, se uma deputada ligada à esquerda considera necessária uma reforma da Previdência, ela é imediatamente atacada pelos seus próprios. Se uma militante trans se declara liberal é também atacada pelos seus. Como o conservador favorável a educação sexual na escola pública é de presto lapidado nas redes. São, todos, exemplos reais.

A cristalização das identidades transforma o debate político num pacote fechado. Quem carrega uma determinada etiqueta ideológica deve, quando conversando sobre política nas redes, repetir todas as opiniões pré-formatadas sob o risco de cancelamento. Mudar de opinião é, igualmente, um risco.

O fenômeno não é natural — é construído. Faz parte da transformação de política em tribalismo e tem duas origens. Começa nos algoritmos — o software que decide aquilo que aparecerá para nós no Twitter, no Face, no YouTube. Como o objetivo desta inteligência artificial é que fiquemos a maior quantidade de tempo na plataforma, ela mostra aquilo que, acredita, vai nos deixar ligados. Sempre acerta.

Na sequência há nossa interação com o software. Como buscamos likes, como buscamos atenção, aprendemos que tipo de mensagem devemos escrever para levantar a onda.

O resultado final é pasteurização. E à pasteurização dos argumentos no debate público se segue a intolerância com qualquer desvio. Daí a patrulha ideológica.

Mas esta não é aquela patrulha ideológica dos anos 1970 — é nova. Funciona como pegar uma onda no mar. Vemos uma, duas, três pessoas atacando uma quarta. Os argumentos para o ataque — sempre os mesmos. E, claro, o crime costuma ser de desvio ideológico. É ver que a onda está crescendo. No quinto ataque, fica óbvio que basta se juntar àquelas vozes e muita gente lerá seu tuíte, dará um like. É pegar a onda.

Com frequência, muitos argumentam que são só ‘críticas’. É um ‘debate’ ocorrendo. Não é. Há uma moeda corrente nas redes sociais que é a do like, dos curtires diversos, o polegar para cima, o coração clicado. Ícones positivos, muitas vezes, para simbolizar a aprovação a uma torrente que expressa emocionalmente raiva ou ódio. Aquela curtida vale muito psicologicamente, assim como a pedra lançada na forma de tuíte — ou vídeo, ou post — sinaliza outra coisa muito importante. Sinaliza, para quem é do grupo, que quem apedrejou subscreve os argumentos congelados e imutáveis. Sinaliza virtude.

Não é debate por um motivo muito simples. Quem é cancelado não vê argumentos. Vê, isto sim, num longo deslizar do dedo contra a tela uma lista infindável de ataques. Não dá pra ler. E não há chance de uma resposta agradar. Ou ajoelha no milho ou se cala e espera passar. Não houve um convite à reflexão, não há a possibilidade de diálogo.

Acontece todos os dias. Cancelamentos são uma febre, um dos muitos sinais de que o debate público quebrou. Estamos nos transformando numa sociedade movida pela pulsão de morte e incapaz de se fascinar com novas ideias.


Ricardo Noblat: Como não pode demiti-lo, Bolsonaro cancela Mourão

À procura de um vice que diga apenas "sim, senhor"!

Sem poder demiti-lo porque foi eleito junto com ele, sem poder fazer de conta que ele simplesmente inexiste, o presidente Jair Bolsonaro decidiu cancelar o vice-presidente Hamilton Mourão.

Faz tempo que já não conversa com ele, mas, ontem, foi muito além: excluiu-o de uma reunião ministerial no Palácio do Planalto. Compareceram 22 ministros. O único que faltou estava viajando.

 “Não fui convidado, não fui chamado. Então, acredito que o presidente julgou que era desnecessária a minha presença”, disse o  general que faz parte do Conselho de Governo.

Mourão deixou passar algumas horas e deu o troco: embora convidado, não foi à cerimônia de lançamento de um programa destinado a atrair investimentos privados para a Amazônia.

A cerimônia contou com a presença de Bolsonaro e de outros ministros. Perguntando por que não foi, Mourão respondeu: “Estava trabalhando, tinha outras coisas para fazer”.

Mourão foi escolhido por Bolsonaro para ser vice na última hora. E mesmo assim porque outros nomes convidados para a função alegaram variados motivos para não ocupá-la.

Bolsonaro queria um vice que não lhe fizesse sombra. Mourão desejava ser um vice com atribuições executivas. Bolsonaro queria um vice que não falasse. Mourão não se faz de mudo.

O presidente é capaz de dizer os maiores absurdos do mundo, mesmo os que o prejudicam. Mourão tentou ser a voz da sensatez e, em alguns casos, o tradutor de Bolsonaro.

Apesar dos desencontros, fingiram dar-se bem até recentemente. Nada pior do que um vice decorativo. Bolsonaro nomeou Mourão para presidir o Conselho Nacional da Amazônia. Não adiantou.

A gota d’água que entornou o copo foi uma troca de mensagens entre um assessor de Mourão e um assessor de um deputado sobre um eventual processo de impeachment contra Bolsonaro.

Mourão só soube das mensagens pela imprensa. No mesmo dia, demitiu o assessor. Com mania de perseguição, Bolsonaro acha que o vice conspira contra ele, e ninguém o convence do contrário.

Daí o cancelamento de Mourão. Que poderá não ser definitivo porque Bolsonaro não tem compromisso com o que diz e faz. Não desqualificava as vacinas? Agora, não as recomenda?

Bolsonaro se comporta na presidência como se fosse um general dentro do quartel. Ninguém pode pensar diferente dele. Ordem dada é para ser cumprida sem maiores discussões.

Há militares que o servem, como os generais Luiz Eduardo Ramos (Secretaria do Governo) e Eduardo Pazuello (Ministério da Saúde), que batem continência e dizem “sim, senhor”.

Mourão bate continência, mas nem sempre diz “sim, senhor”. É por isso que Bolsonaro procura um novo vice para a eleição do ano que vem. O Centrão topa indicar. O Centrão topa tudo.

Um general que se sente à vontade na companhia do Centrão

“Brasil acima de tudo” (grito de guerra da Infantaria Paraquedista)

Se o presidente Jair Bolsonaro está à procura de um vice que lhe diga amém, que em eventos eleitorais saiba manter-se à distância para não lhe fazer sombra, e que ainda por cima possa ajudá-lo a atrair apoios políticos, por que não o general Luiz Eduardo Ramos, atual ministro da Secretaria de Governo?

Ramos entende do riscado. Uma foto que mostrou Bolsonaro disparado, quase sem fôlego, em uma pista de corrida, mostrou também o general tentando imitá-lo, mas bem atrás, sem o risco de ultrapassá-lo. Ramos tem uma sincera admiração pelo presidente. Os dois foram paraquedistas e ainda são bons amigos.

De resto, ao contrário de muitos, militares ou não, que fazem cara feia para o Centrão, Ramos não faz, e orgulha-se de ter servido de ponte entre o grupo e Bolsonaro. Criticado por um general da reserva por andar com más companhias, Ramos respondeu: “Não me envergonho. Não tenho vergonha nenhuma”.

E justificou-se: “Tomei uma atitude coerente. Meu desprendimento de ter aberto mão da minha carreira no Exército mostra que estou a serviço do Brasil. O governo hoje é do Bolsonaro, mas é do Brasil”. Em 2018, Ramos foi uma voz isolada em defesa de Bolsonaro dentro do Estado Maior do Exército.

Até que todos, finalmente, acabaram lhe dando razão. Era preciso evitar a volta da esquerda ao poder. Brasil acima de tudo!


Demétrio Magnoli: Progressistas que celebram cancelamento da conta de Trump buscam pacto com plutocratas da internet

É hora de derrubar a muralha do privilégio, submetendo as mídias sociais às mesmas regras de responsabilidade da imprensa

 “Não me diga que ele foi banido por violar as regras do Twitter”, tuitou o opositor russo Alexey Navalny sobre Trump, “eu recebo aqui ameaças de morte todos os dias, há anos, e o Twitter não bane ninguém (não que eu peça isso)”. Twitter, Facebook e congêneres são veículos de crimes contra a humanidade. Em Mianmar, serviram à campanha de limpeza étnica dos militares contra a minoria rohingya e, na Índia, à operação oficial de anulação da cidadania dos muçulmanos de Assam. Os progressistas que celebram o cancelamento da conta de Trump buscam uma aliança faustiana com os plutocratas da internet.

Navalny erra apenas ao definir como censura o gesto do Twitter. Censura é, sempre, um ato estatal contra a liberdade de expressão. O princípio da liberdade de expressão abrange também o direito de empresas privadas de se dissociar de discursos que consideram intoleráveis. Mas que ninguém se engane: no caso das plataformas globais de mídias sociais, os banimentos seletivos não derivam de padrões éticos mas de cálculos de negócio.

O ato extremo do Twitter, bem como a suspensão temporária imposta a Trump pelo Facebook, inscrevem-se numa estratégia defensiva.

Nos EUA, por razões distintas, as gigantes das mídias sociais entraram na mira de democratas e republicanos. No horizonte, encontra-se a hipótese de fragmentação legal dos oligopólios da internet. O “cancelamento” do presidente que termina seu mandato à sombra da invasão do Capitólio destina-se a lustrar a imagem das big techs perante o novo governo democrata e sua maioria parlamentar.

Um jorro celebratório acompanhou o banimento de Trump —e não só nos EUA. Os progressistas brasileiros não ocultaram suas esperanças de que o cancelamento virtual siga seu curso até Bolsonaro. No fundo, acalenta-se a perspectiva de grande barganha: vocês excluem as vozes odientas da direita nacionalista; nós evitamos a derrubada da muralha que protege o vosso castelo.

O nome da muralha é impunidade, o privilégio que separa as big techs dos veículos tradicionais de imprensa. As empresas jornalísticas estão sujeitas à responsabilização judicial pelos discursos que publicam. Se, nesta coluna, calunio ou difamo alguém, a Folha compartilha a responsabilidade pelo discurso criminoso —e, por isso, um editor supervisiona meu texto. Twitter, Facebook et caterva, pelo contrário, não devem explicação alguma sobre as mensagens difundidas por seus usuários. São, portanto, livres para auferir lucros de campanhas de ódio movidas por governantes, partidos, igrejas ou organizações extremistas. Para eles, o crime compensa.

O privilégio da impunidade ancora-se na alegação de que as empresas de mídias sociais não exercem funções editoriais: suas páginas eletrônicas seriam folhas em branco preenchidas por usuários soberanos. Desde sempre, as regras de uso sinalizaram a falsidade. Há um “editor oculto”, um software, que demarca os limites da palavra permitida. Mas o banimento de Trump escancarou a paisagem. As big techs fazem curadoria de conteúdo, de acordo com critérios políticos de conveniência. No império de Putin, ninguém bloqueia as ameaças à vida de Navalny; nos EUA do triunfo democrata, cancela-se a conta do presidente em desgraça.

Jack Dorsey, do Twitter, e Mark Zuckerberg, do Facebook, os Editores Supremos, deixaram impressões digitais na escrivaninha, na tela, nas paredes e no teto.

É hora de derrubar a muralha do privilégio, submetendo-os ao mesmo universo de regras de responsabilidade que regula a imprensa. Ah, isso implodiria o modelo de negócio dos gigolôs da xenofobia e do extremismo? Que pena...

Desconfio, porém, que os progressistas preferem a aliança faustiana. Quem liga para Navalny, os rohingya ou os muçulmanos de Assam? Eles são, afinal, um preço baixo a pagar pela exclusão de Trump e Bolsonaro.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Eugênio Bucci: O ‘cancelamento’ estatal e o Estado ‘lacrador’

O problema do presidente e asseclas nem é ideológico, é da ordem da cognição

Tem sido comum ouvirmos queixas sobre a prática do “cancelamento”. São procedentes. Na etiqueta sem etiqueta das redes sociais, o “cancelamento” consiste numa avalanche de turbas virtuais que, em questão de horas, derruba a lista de seguidores de uma pessoa e acaba com seu prestígio digital. Basta uma opinião fora da ortodoxia das turbas para o sujeito se expor ao “cancelamento”. Há exemplos diários. O “cancelado” é banido. Os que eram seus admiradores se convertem em seus “detratores” (guardemos essa palavra, pois ela vai nos pegar de tocaia alguns parágrafos adiante).

Trata-se de uma pena afetiva: “Ei, nós não gostamos mais de você, ponha-se daqui para fora!”. Podem sobrevir repercussões políticas e econômicas. Políticas porque o “cancelamento” destrói os laços virtuais pegajosos que davam popularidade à infeliz criatura “cancelada”, que se vê de repente degredada, como se tivesse sido expulsa do partido. As pessoas entram em depressão. E econômicas porque os influencers (e eu que achava que nunca escreveria tal barbarismo), que ganham dinheiro com o número de likes, engajamentos, retuítes e coraçõezinhos piscantes, perdem faturamento. As pessoas entram em inadimplência.

Estamos falando de um flagelo cultural. Escritores e intelectuais são vítimas desse empastelamento simbólico perpetrado por maiorias barulhentas, intolerantes e implacáveis.

Mas não se trata propriamente de uma novidade tecnológica. Parecerá incrível, mas Alexis de Tocqueville, que morreu em 1859, sem desfrutar os prodígios gozosos dos smartphones, anotou o germe de tudo isso em seu Democracia na América: “A maioria traça um círculo formidável em torno do pensamento. Dentro desses limites o escritor é livre, mas ai dele se ousar sair!”.

Portanto, a moda do “cancelamento” nada mais faz do que trazer a máxima de Tocqueville para os dispositivos interconectados que funcionam na velocidade da luz. Nos nossos dias, a tal América ocupa o epicentro dessa prática nefasta, seguida de perto pelo Brasil. Aqui, no entanto, além das pessoas físicas – de carne, osso, mas sem muita massa cinzenta –, a própria máquina de governo decidiu ingressar com estardalhaço no esporte de “cancelar” a reputação de cidadãos honestos.

Agora, nesta semana, o jornalista Rubens Valente, do UOL, descobriu e noticiou que uma agência de comunicação, a pedido do governo federal, preparou uma lista de 77 influencers (reincidi), entre os quais aparecem 44 jornalistas, e os dividiu em três grupos: os “detratores” (eis a palavra), que criticam o governo, os “neutros” e os “favoráveis” (que los hay, los hay). Pela legislação ordinária e pelos princípios constitucionais, o governo não pode discriminar cidadãos pela opinião que emitam, mas, como o atual governo não liga para a lei, promove discriminações a toda hora. A lista sugere que as autoridades adotem condutas diferentes para falar com uns e outros. Uns merecem “parcerias”. Quanto aos demais, bem, um pouco de “cancelamento” estatal talvez ajude.

Esse pessoal na Esplanada dos Ministérios não tem modos? Aliás, será que ninguém ali pensa? Aliás, de novo, o problema do presidente da República e de seus asseclas mais próximos não é nem ideológico – é da ordem da cognição. Há sentidos que eles não apreendem, independentemente de concordarem ou não com o postulado. Que conduzam os negócios públicos como se fizessem arruaça em redes sociais é apenas mais um sintoma da limitação cognitiva profunda.

O “cancelamento” estatal vem junto com o Estado “lacrador”. Expliquemos o adjetivo. Entre os adictos das redes, o termo “lacração” se refere àquele post ou àquela atitude performática que “causa”, mas “causa” muito, tipo “causa” assim demais, cara, você não tem ideia, e fere outras pessoas, mas, tipo assim, tudo bem. E daí? (Essa interrogação cairia bem de epitáfio.) O que conta é “lacrar”, tá ligado? O Estado “lacrador”, pilotado por “lacradores”, desconhece a diferença entre “curti” e “voto aprovado”. Lacra. Cancela.

Falando em diferenças não percebidas, o presidente não capta a que existe entre um gabinete clandestino que distribui calúnias anônimas e um órgão de imprensa registrado em cartório, que recolhe impostos, tem endereço certo e um diretor de redação com nome e CPF. Não é que, por motivações ideológicas, ele negue a distinção. Ele simplesmente não a alcança.

Em 28 de maio de 2020, na entrada do Palácio da Alvorada, quando protestou contra o inquérito do Supremo Tribunal Federal que desbaratou uma indústria ilegal de fake news e discursos de ódio, o presidente, sem querer, confessou que não tem ideia dessa diferença essencial para a democracia: “Querem acabar com a mídia que tenho a meu favor!”.

O governante brasileiro acha que as fake news são uma “mídia” como qualquer outra – e como usa as palavras “mídia” e “imprensa” como sinônimas, fica evidente: não consegue distinguir entre a mentira e a verdade factual, assim como não aprendeu o que separa a ditadura da democracia. Para ele, só o que conta é a histeria das redes e suas milícias digitais. Adeus, República. #cancelamentoestatal.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Demétrio Magnoli: O lado bom do cancelamento

Separando as redes, deflagra-se uma experiência social e intelectual

Na Ilustríssima, Rosane Borges cancelou pela milésima vez Lilia Schwarcz, num artigo caudaloso, balofo, que classifica o texto da cancelada como “ruim” mas jamais consegue preencher o qualificativo com um mísero argumento.

O texto é ruim porque Borges diz que é, do alto do seu pódio autoconstruído do “lugar de fala”. Wilson Gomes, na mesma Ilustríssima (16/8), explicou o mecanismo inteiro. Assim, adiciono apenas uma proposta dirigida às plataformas virtuais: dividam as redes em dois setores, separados pela fronteira da prática do cancelamento.

A dinâmica do cancelamento, destinada a produzir uma reserva de mercado, segue as lógicas sectárias típicas das cisões e expurgos dos partidos marxistas. Borges mirou a já canceladérrima Lilia para cancelá-la “melhor”, assegurando um lugar na dianteira da fila dos arautos da Verdade Identitária. Os canceladores, explicou Gomes, só cancelam eficientemente camaradas canceladores —ou seja, aqueles que comungam a mesma religião e, como Lilia, prestam-se ao papel de beijar os pés dos seus algozes.

Mas o “lugar de fala” não perdoa: é preciso pedalar sempre, como fazem os ciclistas. A prática tem que ser reiterada até o infinito, por meio de sucessivos cancelamentos voltados para eliminar concorrentes num mercado altamente competitivo. Como a seita de canceladores não controla um aparato estatal totalitário, a mera humilhação em rede substitui, teatralmente, os campos de trabalho forçado, as torturas e os fuzilamentos.

Aí, surge minha única divergência com Gomes, que declara-se triste diante do espetáculo. Acho, pelo contrário, que a pantomima tem o potencial de divertir os que não pertencem à seita. É como assistir aos folguedos de crianças no recreio. Pode ser intrigante, com a condição de que não percamos muito tempo.

Em vista disso, sugiro às plataformas a seleção prévia dos participantes de redes sociais baseada na auto-descrição. Os aderentes à prática canceladora ficam em redes exclusivas; os demais, que a rejeitam, inscrevem-se em redes assentadas no princípio da divergência civilizada. Desse modo, os adultos podem debater sem ruídos incômodos, enquanto as crianças brincam com seus pares.

Sofistico a sugestão: todos os participantes teriam o direito de visualizar passivamente o que acontece na rede à qual não pertencem. O recurso ofereceria aos adultos uma janela de entretenimento. Mas, sobretudo, daria às crianças canceladoras uma oportunidade de descobrir os benefícios do intercâmbio democrático de pontos de vista. Otimista, aposto na conversão de uma fração estatisticamente significativa dos canceladores.

Há que distinguir os fenômenos. A política identitária racialista, com seu cortejo de leis raciais e “racismo reverso”, é coisa séria. O rastro que ela forma envenena a luta antirracista, avoluma a onda de ressentimentos que nutre o racismo tradicional, ergue o picadeiro ocupado pelos Sérgio Camargos, alarga o eleitorado da extrema-direita. Já o cancelamento identitário em rede social não passa de uma ramificação periférica, uma disputa menor por prestígio, convites e financiamentos.

Os rituais de cancelamento só provocam prejuízos sociais quando escapam à esfera das redes, restringindo o debate plural na imprensa, no meio editorial ou nas universidades. Isso existe, extensivamente, nos EUA —e começa a se manifestar, ainda de forma embrionária, no Brasil.

A carta aberta publicada pela Harper’s, que reuniu figuras ideologicamente tão distantes quanto Salman Rushdie, Noam Chomsky, Wynton Marsalis e J. K. Rowling, alerta para esse perigo real.

Minha proposta contribui para minimizá-lo. Separando as redes, deflagra-se uma experiência social e intelectual. Todos poderão cotejar os debates travados entre não-canceladores com as exibições purificadoras dos canceladores profissionais. Que tal?

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.