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Os desconhecidos casos de crianças e bebês sequestrados na ditadura brasileira | Imagem: reprodução da BBC Brasil/arquivo pessoal do autor

Os desconhecidos casos de crianças e bebês sequestrados na ditadura brasileira

Eduardo Reina*, da BBC Brasil

Há pelo menos uma década, Rosângela Serra Paraná está à procura dos pais biológicos.

Ela é vítima de um crime de Estado pouco conhecido dos brasileiros: o sequestro de bebês e crianças filhos de militantes que faziam oposição ao regime militar nas décadas de 1960, 1970 e 1980.

Rosângela foi apropriada ilegalmente por uma família de militares na década de 1960 e só descobriu sua condição décadas depois, durante uma discussão com familiares.

Onze dos 19 casos conhecidos de sequestros de crianças na ditadura estão ligados à guerrilha do Araguaia, um movimento guerrilheiro de oposição que ocorreu entre o final da década de 1960 e o ano de 1974 na região amazônica, na confluência dos estados do Pará e do atual Tocantins.

Essas 11 vítimas são filhos de guerrilheiros e de camponeses que deram guarida ao movimento.

Os sequestros de crianças foram realizados na primeira metade da década de 1970, durante as gestões dos generais-presidentes Emílio Garrastazu Médici - quando o ministro do Exército era Orlando Geisel, irmão do sucessor de Médici - e de Ernesto Geisel. Era a fase mais grave de repressão da guerrilha do Araguaia.

Os 19 casos são listados no livro reportagem "Cativeiro sem fim", escrito por mim, Eduardo Reina.

Procurados na época da produção do livro, o Ministério da Defesa e os comandos do Exército e da Aeronáutica não responderam os questionamentos. Em entrevista a um livro publicado no ano passado, o general Eduardo Villas Bôas disse que relatos sobre o sequestro de bebês na ditadura "carecem de verossimilhança" (leia mais abaixo).

Em busca dos pais biológicos

"Vivo num pesadelo todo dia, ao pensar que minha mãe pode estar viva, precisando de mim", diz Rosângela Serra Paraná.

"Hoje vivo na angústia de não saber quem eu sou, quantos anos eu tenho, e sequer saber quem foram ou quem são os meus pais", afirma.

Ela foi apropriada por Odyr de Paiva Paraná, integrante de uma família tradicional de militares no Rio de Janeiro.

Mulher com rosto encostado em cachorro preto
Rosângela Serra Paraná em foto atual

Os pais apropriadores de Rosângela Serra Paraná eram Odyr de Paiva Paraná e Nilza da Silva Serra. A família diz que a bebê fora adotada em 1963.

Uma certidão de nascimento dá como dia do nascimento 1º de outubro de 1963. Mas o registro só foi feito em cartório em 22 de setembro de 1967.

No documento elaborado no cartório do Catete, Rio de Janeiro, está registrado que Rosângela é filha ilegítima de Odyr e Nilza. O documento não fornece o nome dos pais biológicos. Nilza, segundo a família, não podia gerar filhos.

Odyr é motorista de profissão. Segundo Rosângela, o pai adotivo trabalhava como motorista para o general Ernesto Geisel. "Ele ficava com um carro preto, grande, que estava sempre limpando", recorda. Ambos frequentavam o sítio do general na cidade de Teresópolis, segundo Rosângela.

A certidão de nascimento de Rosângela dá como local de seu nascimento um imóvel na rua Marquês de Abrantes, 160, Flamengo, Rio de Janeiro. O imóvel pertence à Rio Previdência, entidade dos servidores estaduais, que o comprou em 1958, de acordo com a certidão do imóvel.

A mesma certidão de nascimento possui duas testemunhas. Uma é Alcindo Quintino Ribeiro, proprietário de um prédio onde a família Serra Paraná morou.

A outra é Paulo Cardoso de Oliveira, motorista de profissão, como Odyr. O endereço de residência dessa testemunha, porém, não existe.

O pai de Odyr, Arcy Paraná, era militar. De acordo com o Diário Oficial, ele chegou ao posto de sargento. Na década de 50, foi promovido e começou a trabalhar no setor administrativo do Exército.

Os casos de Juracy e Miracy

Na região da guerrilha do Araguaia, no início da década de 1970, os militares sequestraram dois meninos de uma mesma família.

O primeiro, Juracy Bezerra de Oliveira, é protagonista de um equívoco das forças militares. O alvo seria Giovani, filho de um dos líderes da guerrilha, Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, com uma mulher de nome Maria.

Em 1972 ou 1973, Juracy tinha cerca de sete anos de idade. As forças militares pensavam que ele era o verdadeiro filho do guerrilheiro Osvaldão com Maria Viana da Conceição. Mas a mãe de Juracy era Maria Bezerra de Oliveira, e o pai, Raimundo Mourão de Lira.

Homem com cabelo grisalho sentado em cadeira
José Vieira, filho de um agricultor morto por forças militares na Guerrilha do Araguaia

A confusão no sequestro teria ocorrido porque os soldados estavam à procura de um menino de pele escura, com idade entre seis e oito anos, filho de uma mulher branca, de corpo grande e olhos claros, cujo nome era Maria. Encontraram a mãe de Juracy com as mesmas características e levaram o menino.

Seu destino foi Fortaleza, depois de ter sido torturado e queimado numa fogueira num acampamento militar dentro da selva, após um militar ter sido alvejado durante troca de tiros com os guerrilheiros.

Acabou sendo apropriado pelo tenente do Exército Antônio Essílio Azevedo Costa, que o registrou em cartório como se fosse seu filho legítimo, e conviveu com a família do tenente por muitos anos.

"Um dia chegaram e me levaram. Minha mãe, nem lembro o que ela fez. Eu era um menininho quando Exército me levou. Fiquei 15 dias no meio do mato. Me deram muita peia. Bateram, machucaram", diz a vítima.

O sequestrado ficou com uma das mãos deformada devido às queimaduras que sofreu. Ele conta que os soldados resolveram puni-lo por achar que seu pai havia matado um militar.

Depois, na cidade de Fortaleza, Juracy foi criado pela mãe do tenente Antônio Essílio.

No início dos anos 2000, resolveu retornar à região do Araguaia, ainda pensando que fosse filho de Osvaldão.

Ao chegar, encontrou Antônio Viana da Conceição e descobriu sua verdadeira história. Reencontrou a mãe biológica, Maria Bezerra de Oliveira, quando descobriu que um irmão seu, Miracy, também havia sido levado pelos militares.

Hoje ele vive numa ilha no meio do rio Araguaia.

Irmão de Juracy, Miracy tinha a pele clara e olhos claros, ao contrário do irmão. Foi levado pelo sargento João Lima Filho para a cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, também em 1972 ou 1973.

Anos mais tarde, Juracy e a mãe, Maria Bezerra de Oliveira, foram à procura de Miracy. Mas não encontraram nenhuma pista do sargento que o levou; nem conseguiram informações em quarteis do Exército em Natal sobre o paradeiro do militar.

Giovani

Depois do sequestro equivocado de Juracy, os militares encontraram Giovani, filho de Osvaldão e Maria Viana da Conceição. O garoto tinha entre quatro e cinco anos de idade quando foi levado, segundo conta outro filho de Maria, Antônio Viana da Conceição.

O sequestro ocorreu em 1973, na cidade de Araguaína, atual Tocantins. A existência desse filho do guerrilheiro no Araguaia é revelada também por Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, hoje militar da reserva do Exército e responsável pela caçada aos guerrilheiros do PCdoB a partir de 1973 no Araguaia.

O paradeiro de Giovani é desconhecido.

Ainda no Araguaia foi sequestrada Lia Cecília da Silva Martins, filha do guerrilheiro Antônio Teodoro de Castro, o Raul.

Mulher idosa com homem adulto
Juracy Bezerra de Oliveira com sua mãe biológica, Maria Bezerra de Oliveira

Lia foi levada para um orfanato que pertencia a um tenente da Aeronáutica, em Belém do Pará. Foi adotada por um casal que trabalhava na entidade.

Seis filhos de camponeses também foram tirados de suas famílias biológicas e levados para quarteis do Exército, de onde teriam sido liberados tempos depois. José Vieira; Antônio José da Silva, Antoninho; José Wilson de Brito Feitosa, Zé Wilson; José de Ribamar, Zé Ribamar; Osniel Ferreira da Cruz, Osnil; e Sebastião de Santana, Sebastiãozinho.

Somente José Vieira foi localizado. Ele é filho de Luiz Vieira, um agricultor de subsistência e morador na região de São Domingos do Araguaia. Luiz foi morto pelas forças militares.

"Aquelas pessoas que conheciam o povo da mata (como os guerrilheiros eram chamados) foram atacados pelas tropas. O pessoal que tava no mato foi atacado. Depois me prenderam. Aí, quando eu saí, já fiquei toda vida dentro do Exército", conta José Vieira.

Houve ainda casos de sequestro de bebês e crianças no Paraná, Pernambuco e Mato Grosso.

Respostas militares

Procurados em 2018, quando o livro "Cativeiro sem fim" estava sendo produzido, o Ministério da Defesa, o Exército e a Aeronáutica não responderam aos questionamentos enviados.

O Ministério da Defesa sugeriu que novas solicitações fossem enviadas aos comandos do Exército, da Aeronáutica e da Marinha, alegando que as informações solicitadas estariam custodiadas sob o comando desses órgãos militares.

O Exército respondeu que "a Instituição esclarece que nada tem a informar sobre o assunto".

A Aeronáutica alegou que "em 16 de novembro de 2009, a Procuradoria-Geral de Justiça Militar manifestou interesse na análise dos documentos produzidos e acumulados pelo Comando da Aeronáutica, do período de 1964 a 1985. Nesse sentido, em 3 de fevereiro de 2010, o acervo, contendo 212 caixas com 49.867 documentos, foi recolhido à Coordenação Regional do Arquivo Nacional do Distrito Federal (COREG), onde são de domínio público, onde talvez possa realizar sua pesquisa".

No ano passado, em entrevista publicada no livro "General Villas Bôas - conversa com o comandante", de autoria de Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas, o militar questionou a ocorrência de sequestros de crianças na ditadura.

"Recentemente, alguém ligado aos direitos humanos trouxe à tona um tópico sobre o qual nunca ouvi falar, de que cento e tantas crianças teriam sido sequestradas e afastadas dos pais. Essa e outras narrativas, a exemplo de um suposto massacre de índios, na abertura da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, carecem de verossimilhança e contribuem para a falta de isenção na conclusão das apurações", afirmou Villas Bôas.

*Texto publicado originalmente na BBC Brasil


Dom Odilo P. Scherer: Políticas públicas e fraternidade

Campanha da CNBB é um convite à ação dos cristãs em prol da justiça e paz social

Em geral, as grandes festas das religiões são precedidas por um tempo de preparação com jejuns, peregrinações, ritos de purificação, ações solidárias e caritativas. Para a Igreja Católica e as demais igrejas de origem cristã, em geral, esse tempo corresponde à Quaresma, celebrada como preparação para a Páscoa dos cristãos, que é a mais importante das festas cristãs.

No nosso país, junto com o chamado à oração intensa, o jejum e a penitência para a conversão a Deus, e junto com o incentivo às obras de misericórdia e caridade, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) promove todos os anos a Campanha da Fraternidade (CF), na forma de uma chamada à responsabilidade social e pública dos cristãos. Os temas da CF, em geral, são de cunho social e lembram que a religiosidade cristã verdadeira não deve desvincular o amor a Deus do amor ao próximo. A vivência da fraternidade e o reconhecimento concreto de que o próximo, sem discriminação alguma, é alguém semelhante a nós e partilha conosco a mesma dignidade humana. No cristianismo, o próximo é um filho de Deus e um irmão, membro da mesma família humana que também nos abriga.

Jesus Cristo ensinou que a fé religiosa e o amor a Deus são autênticos somente quando têm como consequência o amor ao próximo, o respeito pela sua dignidade e o justo apreço por toda a obra de Deus. A fé cristã leva necessariamente ao envolvimento com os acontecimentos existenciais da história humana e as situações sociais, econômicas e políticas da comunidade em que vivemos. Longe, portanto, de confirmar a tese marxista de que a religião leva à alienação do mundo e de seus problemas cotidianos, a fé cristã católica requer a participação na edificação de um mundo justo e solidário, bom para todos.

Compreendemos, assim, as frequentes orientações da Doutrina Social da Igreja, explicitadas em numerosas encíclicas pontifícias e em outros documentos, bem como os apelos do Magistério da Igreja em favor da paz, da justiça social e econômica, do respeito à dignidade da pessoa, em favor das populações mais excluídas dos bens da civilização e expostas a todo tipo de riscos e violências. A instituição eclesial, embora sem a pretensão de assumir o exercício do poder político de governo, tem como parte de sua missão encorajar os católicos e quantos queiram ouvir suas diretrizes a abraçarem suas responsabilidades na promoção do bem comum e da ordem social justa e pacífica. O papa Francisco tem repetido com frequência que os católicos, como cidadãos de seus países, devem ser participativos nas responsabilidades sociais e públicas, em benefício da vida dos seus povos e de outros povos também.

O tema da Campanha da Fraternidade deste ano, Políticas públicas e fraternidade, à primeira vista pareceria desvinculado da religiosidade das pessoas. Engana-se quem acha que esse tema nada tem que ver com a fé e a moral religiosas, nem com a missão da Igreja. A vida social, política e econômica oferece o contexto em que a fé deve ser inserida na história, para tornar concreto o nosso amor a Deus e ao próximo. É nesses contextos, entre outros, que devem ser promovidos o respeito pela dignidade humana e a fraternidade entre todas as pessoas.

Políticas públicas voltam-se para a promoção do bem comum, em favor de todos os membros da sociedade, sem distinção, e devem assegurar, por exemplo, o acesso aos bens da saúde, da educação e da segurança para todos. Ao mesmo tempo, devem assegurar oportunidades de trabalho e uma ordem econômica equilibrada e justa, com condições dignas de vida para todos e respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, previstos na Constituição. Por meio de políticas públicas sábias e bem conduzidas se promoverão a equidade social e econômica e as condições para que os mais pobres superem sua vulnerabilidade social e econômica.

A promoção de políticas públicas é da responsabilidade dos governos, em todos os níveis. Mas seria um erro pensar que isso depende apenas dos governos, como pode acontecer em sociedades pouco democráticas e com poderes muito centralizados. Também a sociedade civil organizada precisa participar da elaboração e implementação de políticas públicas. Estas tampouco devem ser ditadas simplesmente pelo mercado, que por si só não consegue estabelecer a ordem social justa e a paz. A promoção adequada de políticas públicas é feita mediante a interação fecunda do Estado com o mercado e a variedade das organizações e expressões da sociedade civil. Isso é possível apenas em regimes democráticos, em que a sociedade civil organizada participa ativamente da vida política com propostas e controles, segundo as necessidades da população.

E aqui reencontramos o significado do tema da CF deste ano. O envolvimento na definição e promoção de políticas públicas também decorre dos ditames da fé em Deus e da moral cristã. Os cristãos devem empenhar-se na promoção de políticas públicas que não estejam atreladas apenas aos interesses de grupos restritos, muitas vezes já favorecidos e poderosos. A justiça e a paz social requerem a definição e a promoção de políticas públicas que não estejam orientadas pela afirmação das vantagens de quem já possui mais do que o necessário. Não devem ser esquecidos os descartados do sistema, os pobres, os idosos, os enfermos e os grupos sociais mais vulneráveis.

É isso que está implicado no tema Políticas públicas e fraternidade. A Campanha da Fraternidade da CNBB é um convite a refletir e a promover, com medidas eficazes, uma sociedade mais justa e equânime no Brasil. Para concretizar a fraternidade e a paz social requerem-se políticas públicas sábias e eficazes, construídas e promovidas mediante um esforço conjugado entre Estado e sociedade civil, em que os cristãos têm muito a contribuir.

*Dom Odilo P. Scherer é cardeal-arcebispo de São Paulo