câmara dos deputados

Folha de São Paulo: A agonia de Temer

Editorial

Se não acrescentou ao caso elementos essenciais que já não pertencessem ao conhecimento público, a denúncia formulada contra o presidente Michel Temer (PMDB) ampara-se em fatos graves o bastante para desacreditar o governo.

A peça acusatória, apresentada pela Procuradoria-Geral da República, descreve um roteiro plausível para o crime de corrupção passiva no exercício do mandato.

Parte-se do fatídico encontro entre Temer e Joesley Batista, da JBS, em 7 de março. Em trecho truncado da gravação do diálogo, o presidente indica ao empresário um auxiliar de confiança, Rodrigo Rocha Loures; este, em 28 de abril, foi flagrado recebendo de um emissário da JBS mala com R$ 500 mil.

Entre uma data e outra, Loures assumiu um mandato de deputado federal (era suplente), manteve contatos com Batista e, conforme apuração policial, procurou ao menos um órgão público para tratar de interesses do frigorífico.

Embora não haja comprovação cabal de que Loures agia com conhecimento —e, mais ainda, em benefício— do presidente, a desenvoltura do ex-assessor do Planalto, registrada em conversas gravadas, em nada se assemelha à de alguém com mero acesso formal ao chefe.

A despeito de pronunciamentos veementes, Temer até agora não ofereceu explicações satisfatórias para os episódios. Nesta terça (27), voltou-se contra seu acusador, Rodrigo Janot, mencionando um procurador que deixou o posto para atuar em escritório de advocacia contratado pela JBS.

Na situação inédita de um presidente acusado formalmente de corrupção no exercício do cargo, o país está mergulhado em impasse de desfecho imprevisível.

Esta Folha já havia proposto a renúncia conjunta de Dilma Rousseff (PT) e Temer, seguida de eleições diretas, como solução adequada para devolver legitimidade ao governo. Mais recentemente, defendeu-se aqui a cassação daquela chapa, diante das múltiplas evidências de abuso de poder econômico no pleito de 2014.

As melhores oportunidades para a superação da crise, infelizmente, ficaram para trás. Resta agora avaliar de maneira realista o panorama que se descortina.

Há dúvidas políticas e jurídicas em torno de um eventual processo por crime comum. Nem mesmo existe certeza se o prazo constitucional de seis meses é suficiente para um julgamento pelo Supremo Tribunal Federal —em caso contrário, ocorreria um retorno vexatório do acusado ao posto.

A aceitação da denúncia pela Câmara dos Deputados, de todo modo, mostra-se a hipótese menos provável hoje. Ao presidente basta evitar que se forme uma esmagadora maioria de dois terços da Casa legislativa contra si.

O núcleo palaciano tentará demonstrar a capacidade de gerir a economia e aprovar reformas mesmo sob denúncias, suspeitas e impopularidade acachapante —cenário no qual se apresentaria como uma espécie de mal menor.

Tal aposta, de fato a única restante a Temer, dificilmente evitará, entretanto, que o governo se arraste como um morto-vivo pelos 18 longos meses ainda pela frente.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2017/06/1896588-a-agonia-de-temer.shtml

 


Luiz Werneck Vianna: O caminho difícil para 2018

Publicado no Estado de S. Paulo em 05/02/2016

Nesse ano temos um encontro com o destino e não se deve chegar a ele de mãos vazias

No ano de 2018, ainda tão distante de nós, temos um encontro marcado com o destino, e não se deve chegar a ele de mãos vazias. O tempo não para, advertia o bardo, e se o futuro a Deus pertence, a ação da providência não nos subtrai a liberdade, na primorosa argumentação de Giorgio Agamben no capítulo final deO Reino e a Glória. Como o autor procura demonstrar, “liberdade ( livre-arbítrio) e servidão ( necessidade) se esfumam uma na outra”, tal como na metáfora famosa de Adam Smith sobre a ação de uma mão invisível que atuaria sobre o mercado de modo benfazejo, mas se suportaria na livre atividade dos homens. Tocqueville, por sua vez, tratou do avanço dos valores e instituições da igualdade como um movimento irresistível guiado providencialmente, cabendo aos contemporâneos, pela ação consciente, torná-la compatível com os valores da liberdade, que somente poderiam subsistir se ancorados em instituições que os defendam.

Naquele ano deveremos comemorar 30 anos da Carta de 1988 – a mais longeva da nossa História republicana, o que não é pouco para um país com nossas tradições – e a agenda política do País prevê a abertura do processo de sucessão presidencial, para não falar da Copa do Mundo na Rússia, quando teremos a oportunidade de um acerto de contas com o fiasco da Copa que sediamos. Tirante esta última, até aqui bem encaminhada, sobre as outras, vitais para a democracia brasileira, sobram dúvidas, como se estivéssemos sendo arrastados por processos irrefreáveis para uma convulsão política e social que nos levaria à interrupção da ordem constitucional com que nos desprendemos, nos idos dos anos 1980, a partir das ações de movimentos sociais e de uma ampla coalizão política, da cultura e das instituições autoritárias então dominantes.

Com efeito, temos vivido sob o império da necessidade, entregues ao protagonismo dos fatos. Entre nós, o ator como que se retirou da cena e, sem partidos e lideranças políticas que se façam ouvir, os debates migraram para balbúrdia das redes sociais, que se têm mostrado impermeáveis ao diálogo, empenhadas em lutas de guerrilha estéreis em que a expressão de opiniões mais se apresenta como manifestações narcísicas do que tentativas de busca da persuasão.

O clima de balbúrdia instalou-se também na vida institucional, pondo em risco o equilíbrio entre os Poderes republicanos, evidente nas sucessivas intervenções do Poder Judicial de todas as instâncias em matérias afetas aos demais Poderes – casos mais recentes, a decisão de um juiz, felizmente já revogada, de uma vara federal de Brasília sobre o processo sucessório da presidência da Câmara dos Deputados, lugar de manifestação da soberania popular, e a pretensão de uma entidade da vida corporativa de magistrados de submeter uma lista tríplice à Presidência da República para ocupar a vaga aberta com o trágico falecimento do ministro Teori Zavascki, cuja indicação é prerrogativa constitucional do chefe do Executivo.

Se é verdade, como sustenta Mauro Cappelletti, autor de obra justamente cultuada não apenas por juristas, que o Poder Judiciário se elevou em nosso tempo à posição de Terceiro Gigante na ordem republicana, tal processo veio na esteira de contínuos avanços democráticos a fim de garantir princípios e valores da cidadania respaldados pela ação do Poder Legislativo. Disso são exemplares, entre outros casos, a Carta de 1988 e toda a criação de direitos que se seguiu a ela, inclusive essa figura inédita de um Ministério Público autônomo, dotado da capacidade de provocar o Judiciário em defesa dos direitos por ela criados.

Dessa forma, não responde à verdade efetiva das coisas supor que a crescente presença dos juízes na esfera política se deva unicamente a seu ativismo. Aqui e alhures, tal como Dieter Grimm, ex-presidente da Corte Federal da Alemanha, pontuou em seminário de notáveis especialistas sobre o tema das relações entre o Judiciário e a política no Ocidente. Segundo esse reputado jurista, “na origem, a decisão de autorizar o Poder Judiciário a resolver conflitos” – de natureza política – “não foi devida ao juiz, mas ao poder político. Sem a vontade do político de delegar a resolução de tais conflitos ao juiz, o ativismo judiciário se encontraria destituído de fundamento institucional” (em Les Entretiens de Provence, R. Badinter e S. Breyer, orgs., Fayard, 2003, pag. 24; há versão em inglês).

Os direitos que hoje amparam os brasileiros, principalmente os mais vulneráveis, são obra do Poder Legislativo, ora exposto a injusta execração pública. Decerto que muitos dos seus membros, em cumplicidade com autoridades do Executivo, se deixaram enlaçar por interesses espúrios e praticaram delitos. Tais delitos, contudo, envolvem pessoas singulares e estão sendo objeto de apuração na chamada Operação Lava Jato e julgados pelos tribunais. Mais do que a revelação da prática de crimes, o processo que a desencadeou pôs a nu a má arquitetura de nossas instituições políticas, que somente, aliás, a ação do Legislador pode vir a corrigir.

A balbúrdia de tempos recentes, que já nos acenava para a convulsão social e política, foi dramatizada pela infausta morte do relator do processo da Lava Jato no STF, ministro Teori Zavascki, que detinha em si a confiança generalizada de que esse caso tormentoso encontraria em sua decisão uma solução justa. Tragédia que nos acontece em meio à revelação da barbárie imperante no nosso sistema penitenciário. Estaria aí o momento da agonia final da democracia do regime de 88?

A estridência dos sinais de alarme trouxe de volta a presença do ator. Os vértices do Executivo e do Judiciário passaram a agir de modo a convergir em busca de soluções – caso forte, a recente substituição do relator da Lava Jato –, evitando impasses institucionais.

Ainda não é o caminho de Damasco para 2018, mas já se tem a convicção de que há quem o procure.

* Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-Rio


Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-caminho-dificil-para-2018,70001653359


Valdo Cruz: Teto dos gastos públicos acaba com a era da fantasia

BRASÍLIA – Logo depois de ser aprovado em primeiro turno na Câmara dos Deputados, o teto dos gastos públicos foi alvo de nova onda de críticas, principalmente de defensores da saúde e educação, acuando mais uma vez o governo Temer.

A sensação é que, de repente, estava sendo revelado o lado perverso do mecanismo que limita o crescimento das despesas públicas à inflação do ano anterior. Seria mais uma invenção técnica e fria de economistas que não pensam no social.

Tal discurso é fácil de pegar. Afinal, ninguém pode ser a favor de corte de verbas em saúde e educação, num país com elevado deficit nessas áreas. Basta circular por hospitais e escolas públicas para checar a situação de emergência deles.

Os críticos do teto passaram a divulgar números, para todos os gastos, de perdas milionárias que as duas áreas sofrerão nos próximos anos. O governo sustenta que saúde e educação terão suas verbas preservadas e podem até subir mais.

Não vou entrar na guerra dos números. Foco outra questão. O país precisa, sim, aumentar a verba da área social. Congelá-la não é o melhor caminho. Mas, para isto, precisamos fazer escolhas. Cortar em outras áreas ou aumentar impostos.

A segunda opção não é defendida por quase ninguém. A primeira, por todos, mas desde que o corte não atinja o seu bolso. Aí começa a guerra das corporações, uma minoria barulhenta que prevalece sobre os interesses da maioria.

O teto dos gastos públicos, aprovado, forçará este debate no país. É bom lembrar que o Congresso não está impedido de, no Orçamento, elevar as verbas de saúde e educação. Mas terá de tirar de outras áreas para respeitar o teto geral de gastos.

A medida acaba com a era da fantasia, em que se elevava artificialmente as receitas para bancar toda sorte de despesas a fim de beneficiar certos grupos. A conta não fechava e era jogada nas costas de todos os brasileiros. Vamos cair na real. (Folha de S. Paulo)


Fonte:


Luiz Werneck Vianna: De quando é bom ter uma pinguela segura

Agora não resta solução senão a de atravessar, pé ante pé, essa estreita que se tem à frente...

Para um observador desavisado, inexperiente de como aqui se vivem as coisas da política, diante do cenário que aí está, nada de estapafúrdio que se lhe dê na telha a ideia de estarmos na iminência de uma revolução.

Nas salas de aula das universidades os estudantes exibem adesivos estampando um “fora Temer”, professores das escolas de ensino médio cumprimentam seus alunos com o mesmo bordão, artistas e cantores populares não começam seus espetáculos sem ele, também presente nas salas de cinema e nos teatros. Uma ex-presidente da República que teve seu mandato cassado, num trâmite que passou pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, que decretou o seu impeachment, em julgamento presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, participa de comícios eleitorais de candidatos às eleições municipais, quando se declara vítima de um golpe, todos são sinais que levam nosso observador a ruminar suas impressões.

Contudo se ele resolver testá-las, levantando a vista para a sociedade inteira, logo reconhecerá o despropósito da sua fabulação. No Congresso, em suas duas Casas, o governo detém folgada maioria, couraça sem a qual não há Executivo que se mantenha, fato ilustrado pela nossa experiência, contundentemente confirmada por recentes episódios. Nas chamadas classes fundamentais, fora a agitação de sempre que lhes é própria, não se percebem outras movimentações que não sejam as da defesa de seus interesses e direitos. No mundo agrário, tradicional calcanhar de Aquiles da política brasileira, sopram os mesmos ventos.

Faltaria, ainda, consultar o que se passa nas eleições municipais, termômetro confiável para o registro dos sentimentos da população, e nos quartéis, cuja importância na tradição republicana brasileira dispensa comentários. Nestes últimos reina, há tempos, a reverência ao culto constitucional e ao exercício dos seus papéis profissionais; nas eleições, que transcorrem em clima morno, se valem as pesquisas – e tudo indica que valem –, as candidaturas que se deixaram embair pelo bordão “fora Temer”, principalmente nas grandes capitais, estão longe de obter votações que as levem à vitória. E, como sempre entre nós, não há melhor detergente em horas de crise política do que um processo eleitoral.

Feito esse balanço, nosso observador admite que se equivocou no diagnóstico. Mas se não é de revolução, do que se trata, que bicho é esse que nos aturde com sua presença? A frase é velha, mas nem por isso perde validade: o passado não mais ilumina o futuro, que ainda não começou a nascer. A hora é de transição, de lusco-fusco, não é mais noite e o dia tarda a aparecer, mas a sociedade se inquieta e começa despertar sem saber o que a espera em meio às ruínas que sobraram dos partidos e, em geral, das nossas instituições políticas.

Ela mudou em meio às poderosas transformações demográficas, sociais e ocupacionais que desfiguraram a paisagem reinante em meados do século passado. Encontramo-nos em terra nova, como se estrangeiros a ela, agarrados a um passado que nos foi familiar, com as relações entre gerações, entre gêneros, sobretudo entre as classes sociais e sistema de crenças girando em gonzos fora do nosso controle e da nossa imediata percepção. A sociedade modernizou-se por cima, sujeita a experimentos saídos das pranchetas de uma tecnocracia ilustrada, impostos a ferro e fogo – exemplo mais recente, o da colonização da Amazônia.

Entre nós, a obra dessa modernização persistiu por décadas, ora por vias duramente repressivas, como no Estado Novo de Vargas e no regime militar, ora de forma doce, como nos governos de Juscelino – que criou no centro geográfico do Brasil, nos ermos do Cerrado, uma nova capital para o País – e nos de Lula e Dilma.

Fora de dúvidas que tais esforços em favor da aceleração da modernização foram bem-sucedidos, em que pesem os altos custos políticos e sociais envolvidos, não só pelo aprofundamento das desigualdades já existentes, como pela condenação da sociedade a um estatuto de minoridade sobre a qual deveria incidir a ação modernizadora do Estado. Não à toa as lutas pela democratização do País trouxeram consigo a denúncia dessa modelagem, filha de nossa longa tradição de autoritarismo político, do que foi exemplar a publicação de São Paulo 1975 – Crescimento e Pobreza, sob a iniciativa do cardeal Paulo Evaristo Arns, obra coordenada por Lucio Kovarick e Vinicius Caldeira Brant.

Essa nova agenda, nos anos 1980, encontrou no PT uma de suas mais importantes vocalizações. Com efeito, dele vieram críticas contundentes ao nacional-desenvolvimentismo e à cultura política que enlaçava a sociedade civil ao Estado e às suas agências, como no caso do sindicalismo, objeto de feroz crítica das emergentes lideranças sindicais dos metalúrgicos do ABC, Lula à frente, como seu principal porta-voz. O PT nasceu e cresceu em nome de uma representação da sociedade civil que aspirava por autonomia diante da onipotência de um Estado que fazia dela base passiva para sua manipulação.

Como se sabe, esse partido, por fas ou nefas, se converteu às práticas que combatia; e levou-as à exaustão depois de um curto período de fastígio no seu uso, culminando no episódio melancólico do impeachment do mandato presidencial de Dilma Rousseff sob a acusação de ter atentado contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, cuja inspiração oculta, ao impor limites ao decisionismo do Executivo, consistiu precisamente em interditar caminhos ao processo de modernização autoritária vigente por décadas no País.

Agora, não resta outra solução que não a de atravessar, pé ante pé, a pinguela estreita que se tem à frente, de que falou em entrevista o ex-presidente Fernando Henrique, travessia perigosa que, para ser segura, está a exigir outra bibliografia e uma imaginação bem diversa da que nos trouxe até aqui.

Luiz Werneck Vianna: Sociólogo, PUC-RJ


Fonte: opiniao.estadao.com.br


Luiz Werneck Vianna*: Retomar o moderno, retomar a modernização

Não sairemos desta barafunda infernal com os apertados nós que nos atam ao passado

O denso nevoeiro que até há pouco tempo embaçava a linha do horizonte e nos interditava prever o dia de amanhã começa a desanuviar. Passada a borrasca já se podem contar os perdidos e os salvados, mesmo que os mais estropiados dentre esses não devam esperar uma sobrevida sem sobressaltos. A Olimpíada está conosco e espanta os maus presságios com a festa de confraternização entre povos, que traz consigo o espírito de concórdia de que tanto estamos precisados.

O processo eleitoral se anuncia – esse santo remédio de eficácia comprovada em nossas crises políticas –, e com ele o retorno da política, da discussão sobre que rumos devem ser empreendidos na administração de nossas cidades, que valores e princípios queremos para nortear nossa vida em comum, hora da persuasão de eleitores e de alianças entre os afins. E, quando couber, até entre contrários, do que a eleição para a presidência da Câmara dos Deputados consistiu num auspicioso primeiro sinal.

Velhos timoneiros de volta a seus postos de comando entoam o velho lema de que navegar é preciso e, lentamente, ainda com destino incerto, tateia-se em busca de uma saída desta barafunda infernal em que fomos envolvidos. Não sairemos dela, contudo, enquanto estivermos prisioneiros dos apertados nós que nos atam ao passado.

O mundo mudou e nós mudamos com ele, e não há caminho fácil pela frente neste século 21 que resiste em começar, como neste episódio regressivo do Brexit, com a maré montante da direita e a ressurgência dos temas da xenofobia, do nacionalismo autárquico e a candidatura presidencial de Donald Trump nos EUA no surrado estilo populista de um Mussolini, inventário de horrores que nos vem do que houve de pior no século passado.

Para o começo do alívio desses nós torna-se necessário reafirmar a velha lição de que somos parte do Ocidente, um outro Ocidente, na caracterização de José Guilherme Merquior em belo ensaio esquecido (Revista Presença, n.º 15, 1988), e de que não devemos cultivar ressentimentos em razão do nosso atraso porque seríamos, de fato, “uma modificação e uma modulação original e vasta da cultura ocidental”. Uma das marcas da nossa originalidade residiria no fato de não termos compartilhado com os europeus o etos da antimodernidade quando a História moderna foi vista como um pesadelo por muitos dos seus intelectuais. Ao contrário, segundo Merquior, o modernismo brasileiro foi percebido em chave otimista, longe da Kulturpessimismus europeia, como um “modernismo da modernização”, tal como presente em Mario de Andrade e confirmada com a ascensão de Juscelino Kubitschek – da prefeitura de Belo Horizonte com a obra da Pampulha à Presidência da República com a criação de Brasília –, quando as agendas do moderno e da modernização caminharam juntas.

O golpe militar interrompeu esse processo benfazejo. Com o novo regime a modernização apartou-se do moderno, que passou a ser reprimido com a intensificação da tutela estatal sobre os sindicatos, com o abafamento das tendências que se vinham acumulando em favor da auto-organização da vida social e com as severas limitações impostas à criação cultural e artística no País, cujos altos preços ainda pagamos. A democratização do País, consolidada com a Carta de 88, concedeu alento ao moderno, mas, a essa altura sem o embalo dos trilhos que antes percorria, ele não teria como se reencontrar com a modernização em razão da pesada herança de desacertos econômicos deixada pelo regime militar.

Sanear a economia foi obra do Plano Real e caberia ao governo do PT levar à frente a agenda do moderno presente nas suas lutas de fundação, respaldadas por importantes intelectuais críticos da modernização autoritária com que se tinha imposto o capitalismo no País, como, entre tantos, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro e Florestan Fernandes. Partido com origem na moderna sociedade civil brasileira, ao se tornar governo, de modo surpreendente e sem apresentar suas razões, o PT logo se converteu em partido de Estado.

Essa conversão coincidiu com a adoção da obra do marxista italiano Antonio Gramsci – desde os anos 1960, influente em círculos da esquerda – como referência por alguns dos seus quadros dirigentes, embora numa versão antípoda das suas concepções originais, ironicamente caracterizada pelo sociólogo Francisco de Oliveira como hegemonia às avessas. Ao invés de os partidos e movimentos sociais dos seres subalternos buscarem a conquista da hegemonia na sociedade civil em nome de suas concepções políticas e ético-morais, credenciando-se assim ao exercício de papéis dirigentes, pela prática levada a efeito pelas lideranças do PT caberia ao Estado (às avessas) instituí-la por cima.

Nessa reviravolta, mais do que abdicar da agenda do moderno, que pressupõe a autonomia dos seres sociais e de suas organizações, o PT alinhou-se sem alarde à tradição da modernização pelo alto que nos vinha da era Vargas, reanimada pelo ciclo do regime militar, em especial sob o governo Geisel, com as escoras do tipo de presidencialismo de coalizão bastarda que praticava e de suas políticas de cooptação dos movimentos sociais.

Sob a presidência de Dilma Rousseff, menos por sua imperícia nas coisas da política, mais pela exaustão da modelagem herdada do seu antecessor, tanto a agenda do moderno se rebelou contra ela – como se constatou nas manifestações massivas de junho de 2013 em favor da autonomia do social – como se lhe escapou das mãos a da modernização com a economia do País parando de crescer.

Estamos não num fim de caminho, mas no da sua retomada. Se o direito ao moderno não pode mais ser arrebatado da animosa sociedade brasileira de hoje, temos também um compromisso inarredável com a modernização que faz parte do nosso DNA.


*Luiz Werneck Vianna: *SOCIÓLOGO, PUC-RIO

Fonte: estadao.com.br


Brasilio Sallum Jr.*: Collor e Dilma – abuso de poder e voluntarismo

Confirmando-se em agosto o impedimento de Dilma Rousseff, o Brasil terá experimentado dois impeachments em 28 anos da democracia. O número é elevado: dois em sete períodos de governo.

Mas não há que ver nisso sinal de fragilidade do regime de 1988. Ao contrário, nos dois casos o Congresso interrompeu o mandato de presidentes que abusaram do poder que lhes foi concedido pelas urnas. No caso de Fernando Collor de Mello o estopim foi a acusação de corrupção, de ter recebido recursos das operações suspeitas de PC Farias, tesoureiro de sua campanha. Este teria usado seu vínculo com o presidente para tomar dinheiro de empresas que dependiam de decisões do governo. No caso de Dilma Rousseff, as “pedaladas” de que é acusada constituíram abuso do poder que o Executivo tem sobre os bancos públicos, obrigando-os a conceder à União empréstimos disfarçados para gastar mais do podia. Assim, de uma ou de outra forma, os dois abusaram do poder, cometendo crime de responsabilidade. A frequência do impeachment é, pois, sinal de força da democracia brasileira. Ela tem sabido reagir aos chefes de Estado que ultrapassam os limites da autoridade recebida pela eleição.

O impeachment de Fernando Collor e o que atingirá Dilma Rousseff não decorreram, porém, apenas dos abusos mencionados. As crises que atingiram seus governos, embora bem diversas, resultaram em parte do seu extremovoluntarismo. O abuso de poder foi apenas uma das manifestações desse voluntarismo, normalmente obediente à ordem legal. Claro que os voluntarismos dos dois tiveram orientações políticas muito diversas: Collor orientou-se pela crença no valor do mercado e Dilma, pela crença nas virtudes da intervenção estatal.

O voluntarismo de Collor expressou-se, por exemplo, na edição de mais de uma centena de medidas provisórias no seu primeiro ano de governo e na tentativa, posterior, de forçar reformas liberalizantes que exigiam mudanças na Constituição e, portanto, grande maioria parlamentar, quando mal conseguia maioria simples no Congresso. Assim, o presidente buscou, com sucesso variável, impor sua vontade graças ao uso intenso dos poderes do Executivo, mas desconhecendo ou menosprezando os interesses políticos sediados nos partidos e no Congresso. Atuava como se os votos recebidos na eleição de 1989 lhe tivessem dado superior legitimidade em relação aos demais Poderes de Estado. Isso até o início de 1992, quando foi obrigado a recuar e tomar em conta a força e a legitimidade dos demais Poderes. Mas não o fez na medida necessária para retomar o controle da situação.

O voluntarismo de Dilma está mais à flor da nossa memória. Todos se lembram da dádiva maravilhosa de 20% na conta da luz, anunciada em setembro de 2012 juntamente com a renovação antecipada de todas as concessões no setor elétrico. A vontade presidencial foi feita, a despeito dos protestos das empresas do segmento de eletricidade e da desorganização do setor, mas teve de ser paga depois pelo consumidor, cujos gastos em 2015 aumentaram em cerca de 50% para compensar a benesse antes recebida. Caso similar foi a contenção dos preços dos combustíveis abaixo do nível internacional desde 2007 e, especialmente, a partir do início de 2011. Em nome do controle da inflação, esse voluntarismo presidencial trouxe prejuízos elevadíssimos à Petrobrás (US$ 50 bilhões até o final de 2014) e ao setor produtor de álcool combustível. Esses e outros casos de imposição da vontade se expressaram em formas de intervenção estatal que fizeram pouco da lógica própria dos mercados, incluídos aqueles em que empresas estatais tinham e têm parte relevante.

Contudo talvez tenham sido as decisões políticas que Dilma Rousseff tomou depois da vitória eleitoral de 2014 que mais corroeram sua capacidade de governar. A mais relevante foi a decisão de adotar o “ajuste fiscal” como diretriz da política econômica do novo governo e convidar um banqueiro para conduzi-la, desdizendo tudo o que afirmara na campanha eleitoral. Além de contrariar o seu partido, que vivia na ilusão de que gasto é sempre igual a desenvolvimento, transformou a tristeza da derrota oposicionista em revolta contra o estelionato eleitoral sofrido. A mentira indiretamente revelada e reconhecida reduziu, antes mesmo da posse, a legitimidade não da democracia, mas da presidente recém-eleita.

Na sequência, ela escolheu uma equipe ministerial que a afastou mais ainda da corrente majoritária do PT. E decidiu disputar, com candidato do PT, o comando da Câmara dos Deputados (para o qual se vinha preparando o deputado Eduardo Cunha), corroendo a já precária aliança com o PMDB, que lhe dera o vice, votos e um bom naco de tempo no rádio e na televisão. A derrota fragorosa nessa disputa evidencia, mais que tudo, o voluntarismo político da presidente. Ela se inclinou quase sempre a tomar pouco em conta os interesses de partidos e lideranças com os quais interagia, como se eles tivessem de curvar-se à vontade presidencial por terem menos legitimidade. É verdade que o sistema presidencial brasileiro dá ao chefe de Estado um poder muito grande. Mas o impeachment de Collor demonstrou que para governar o presidente precisa manter liderança sobre uma coalizão partidária majoritária. Se não consegue fazê-lo, perde condições de bem exercer o cargo.

Seguramente abuso de poder e voluntarismo presidenciais não explicam, por si sós, a crise política atual. Mas sublinham que a democracia não exige apenas eleições; demanda também responsabilidade no exercício do poder, tanto pelo respeito aos limites da lei como por levar em consideração os interesses legítimos dos demais atores. Infelizmente, Collor e Dilma, não se mostraram capazes disso.


* BRASILIO SALLUM JR. É PROFESSOR DE SOCIOLOGIA DA USP, AUTOR DE ‘O IMPEACHMENT DE FERNANDO COLLOR – SOCIOLOGIA DE UMA CRISE’

Fonte: Estadão


Alberto Aggio*: O pós-PT e o retorno da política

A conjuntura política do País segue normalmente seu curso, sem contramarchas, desde a admissão do processo de impeachment pelo Congresso, o afastamento de Dilma Rousseff e a assunção de Michel Temer ao comando interino do governo da República. Malgrado temores de uns e desejos de outros, não há recuo no sentido que se impôs ao processo. Apesar das críticas e das indefinições iniciais do governo interino, das ocupações de prédios públicos e das manifestações de rua, nenhum abalo expressivo foi produzido. Aguardam-se para agosto os lances finais do processo de impeachment e poucos são os que creem na volta da presidente afastada. Crescem a aprovação do governo interino e a esperança na recuperação econômica, enquanto é visível o isolamento político de Dilma e do PT.

As avaliações do cenário político feitas pelos intelectuais petistas, salvo raras exceções, reiteram ad nauseam o paradigma do “golpe de novo tipo” (Opinião, 8/6). Algumas delas, sem nenhuma razoabilidade, beiram a alucinação. A favor do novo governo também houve manifestações destoantes de impaciência, desconsiderando as condicionantes da governabilidade nesta fase de interinidade.

Mesmo premido por uma herança dramática, Temer tomou iniciativas administrativas importantes. As medidas econômicas de restrição de gastos, de difícil implementação, ainda dependem de aprovação do Congresso. Elas compõem um ajuste fiscal de perfil estrutural, necessário e realista para recolocar o País nos eixos. Dilma tem argumentado que tais medidas não foram aprovadas pelas urnas e jamais seriam caso fossem apresentadas. Trata-se de uma crítica vazia e sem sustentação, uma vez que Dilma abandonou seu discurso eleitoral para adotar um ajuste fiscal mitigado, que não se concretizou por tibieza sua e por oposição do seu próprio partido. Traindo a si mesma e ao País, Dilma cometeu um “estelionato eleitoral” que lhe custou a confiança da sociedade. Agora, o País precisa enfrentar a crise sem tergiversações.

As mudanças mais significativas verificaram-se, contudo, no âmbito político. A renúncia de Eduardo Cunha e a eleição de Rodrigo Maia para a presidência da Câmara dos Deputados são sinais de um “retorno da política” e apontam para uma valorização da representação, para a superação das crispações decorrentes da clivagem “nós versus eles” e para mais autonomia, articulação política e eficiência do Parlamento.

A renúncia de Cunha e suas derrotas subsequentes nas Comissões de Ética e de Constituição e Justiça da Câmara jogam por terra mais uma falácia petista. Afirmava-se que o afastamento de Dilma levaria a um governo Temer/Cunha e aprovar o impeachment era colocar Cunha na Presidência da República, razão por que o ex-presidente da Câmara havia posto em pauta o processo de impeachment, “vingando-se” de Dilma. Mas essa fábula se foi e Cunha, neste mesmo agosto, poderá perder o mandato de deputado.

Os primeiros lances do “retorno da política” exigiram que o PT negociasse seus votos na eleição para presidência da Câmara, mesmo com a condenação de alguns de seus intelectuais e parlamentares, evidenciando mais uma vez sua crise de orientação. O PT ainda não é capaz de admitir que sua decaída, cristalina pelo fracasso de Dilma e pela montanha de casos de corrupção, é a base da imagem negativa que o partido criou para si mesmo, uma consequência que não pode ser enfrentada com escapismos do tipo “o PT é atacado por suas virtudes, e não por seus erros”.

É uma situação dramática para um partido que, longe de ser revolucionário, promoveu um reformismo débil e instrumental com o objetivo de se perpetuar no poder. O PT fracassou porque não conseguiu combinar reformismo social e democracia política de maneira progressista, o que lhe bloqueou a possibilidade de se tornar uma esquerda simultaneamente “transformadora” e “de governo”. A consequência foi a perda da vocação majoritária e a regressão a um discurso de “resistência” a tudo: ao suposto “golpe”, ao governo Temer, ao imperialismo e ao capitalismo.

Somado ao pragmatismo de sempre, o PT vive hoje envolto pela sedução de um regresso a posições remotas da esquerda do século 20, em companhia desajeitada daqueles que creem num “movimentismo” permanente.
No mundo político fora do PT, os resultados da débâcle petista são diferenciados. Um deles foi o ressurgimento de um anticomunismo anacrônico e obtuso, idêntico ao seu objeto de rechaço. O outro foi abrir espaço para o liberalismo voltar a ocupar o centro da cena e, renovado, apostar suas fichas num programa para sair da crise e retomar o crescimento. Na bússola do liberalismo constam a contração do Estado e o estímulo à economia privada, que parecem convencer o conjunto da sociedade.

Embora divididos, os liberais passaram a ser tratados como o núcleo de articulação de uma nova proposta hegemônica. Em nossa História contemporânea, a aliança entre esquerda e liberais operou em defesa das liberdades: foi assim no Estado Novo e na luta contra o regime militar. Não há razão para que ela não seja perenizada e ganhe novos patamares, novos direitos.

Luiz Sérgio Henriques publicou neste espaço artigo sobre a crise do PT e a possibilidade de uma “outra esquerda”, democrática e reformista, fundada nos valores da Constituição de 1988 e no Estado Democrático de Direito. Certamente, ela deverá também buscar uma maneira justa e progressista de combinar reformismo social e democracia política. Assim, além de perenizar a aliança com o liberalismo em defesa das liberdades, na quadra que atravessamos será preciso avaliar os termos de uma nova concertação que possa empreender uma reforma histórica do Estado brasileiro, rompendo privilégios e corporativismos, sem eliminar sua presença reguladora, solidária e em defesa da cidadania. Seria um grande desafio e um belo destino.


*Alberto Aggio é historiador, é professor titular da Unesp

Publicado no Estadão em 31/07/2016


FAP e PPS realizam seminário "Saídas para a crise"

A FAP (Fundação Astrojildo Pereira) em parceria com o PPS realizam, nesta quinta-feira (08), em Brasília, o seminário “Saídas para a crise” na Câmara dos Deputados. O objetivo é debater com especialistas e partidos de oposição temas para contribuir com a formulação de propostas visando o enfrentamento da grave situação econômica do País.

Acompanhe ao vivo

De acordo com a direção da FAP, estão previstas palestras (veja programação abaixo) com os economistas Marcos Lisboa, Felipe Salto – especialista em finanças públicas –, Luiz Carlos Mendonça de Barros e Ricardo Paes de Barros.

A organização do evento também convidou os presidentes do PSDB, PSB, Democratas, Solidariedade, PSC, Rede e PSD para participarem do seminário, além do senador Cristóvão Buarque (PDT-DF).


PROGRAMAÇÃO

Seminário Saídas para a crise

Data: 08 de outubro de 2015 (Quinta- feira)

Local: Câmara dos Deputados – Plenário 11 do Anexo II

8h – Abertura

8h30 – Natureza Estrutural da Crise com Marcos Lisboa, doutor em economia pela Universidade da Pensilvânia (EUA) e vice-presidente do Insper-Instituto de Ensino e Pesquisa ;

9h30 – Ajuste Fiscal Preservando as Conquistas Sociais com Felipe Salto, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo;

10h30 – Projeto Nacional para enfrentar a Crise com Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, ex-presidente do BNDES e ex-ministro das Comunicações;

11h30 – Políticas Sociais na Superação da Crise com Ricardo Paes de Barros, doutor e pós-doutor em economia pela Universidade de Chicago, especialista em políticas públicas e um dos fundadores de programas de combate à pobreza do governo FHC;

12h30 –  Encerramento”

Fonte: Ass. Imprensa PPS - http://www.pps.org.br