Caetano Araujo

FAP e Cidadania formam 289 líderes em gestão pública no país

Curso on-line Gestão Cidadã continua disponível para os interessados, com aulas na plataforma Somos Cidadania

Cleomar Almeida, da equipe da FAP

O presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, disse neste sábado (31/7), durante a formatura do curso Gestão Cidadã, que a formação política dos primeiros 289 líderes de todos os estados e o Distrito Federal atesta a “responsabilidade na utilização dos recursos públicos” e o compromisso “fundamental para o processo democrático brasileiro”. O coordenador do curso, ex-prefeito de Vitória (ES) Luciano Rezende, destacou que essa é mais uma etapa para que o país avance, já que, segundo ele, “o Brasil precisa de líderes políticos capacitados”.





Realizado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), em parceria com o Cidadania, o curso teve aulas telepresenciais e 1.236 inscritos até o momento. Desse total, 70% são filiados ao partido e 30%, simpatizantes. Além disso, a capacitação de líderes também teve 61% de mulheres, o que, segundo a organização, mostra o compromisso com a paridade de gênero, com o potencial aumento delas na política. Os certificados serão enviados a todos os demais inscritos, assim que concluírem a capacitação.

O curso, que recebeu nota 9,4 dos alunos, continua disponível, para os interessados, na plataforma Somos Cidadania, com acesso totalmente on-line e gratuito. Os estados que tiveram o maior número de inscritos foram Roraima (145), Minas Gerais (104), Rio de Janeiro (99) e Paraná (74).





Coletividade
De acordo com o presidente nacional do Cidadania, o curso comprova que o partido e a FAP estão cumprindo com o seu dever no uso de recursos públicos. “A legislação definiu que os partidos deveriam ter organização, fundação ou instituto que fosse dedicado à formação profissional, política, de liderança e gestão pública, como este que estamos fazendo para justificar, concretamente, essa atuação recebendo recursos da coletividade”, observou.

O curso, na prática, segundo Freire, além de formar líderes, mostra a preocupação da FAP e do Cidadania não apenas com filiados ao partido, mas também com todos os interessados que queiram ter formação e qualificação e se prepararem para suas atividades. “É o cumprimento da nossa função. Nossos objetivos estão sendo atendidos. Quero parabenizar a todos que participaram”, ressaltou o presidente nacional da sigla.

O coordenador do curso, que também é presidente do Conselho Curador da FAP, destacou que a primeira fase do curso, com os alunos já formados, “foi um sucesso total”. Segundo ele, a participação de pessoas que também não são filiadas ao Cidadania comprova “o caráter amplo e cívico” da formação de líderes.

Nova política X Boa política
Rezende aproveitou para explicar a diferença de nova política, que, para ele, carrega dois preconceitos, e boa política, na qual se baseia o curso de formação da FAP em parceria com o Cidadania. “O termo nova política não define, com precisão, o que o Brasil precisa, porque traz dois preconceitos embutidos. O primeiro é o de que tudo que é novo é bom.  O segundo é o de que tudo que é velho é ruim”, comparou.

“Mas estamos cansados de ver lideranças novas que decepcionam, e, por outro lado, há governantes com longas carreiras que nos orgulham. A boa política se faz com comprometimento. Sem ele, não tem como fazer algum projeto que envolva decisões importantes”, destacou o ex-prefeito de Vitória por dois mandatos e que terminou o governo com alta popularidade. Ele acrescentou que “a capacitação é um processo permanente e contínuo”.



Diretor-geral da FAP, sociólogo e consultor do Senado, Caetano Araújo parabenizou todos os concluintes do curso, assim como o fez os demais integrantes da mesa, oficialmente. “Concluir um curso desta qualidade e extensão é um feito que deve ser bastante apreciado e valorizado”, reconheceu ele, ressaltando que um dos maiores compromissos da fundação é fortalecer a trajetória de educação a distância.

“Grande parte do sucesso deste curso se deve à experiência acumulada em gestões anteriores. O alto nível alcançado se deve, além disso, à coordenação competente do Luciano, à qualidade dos professores e ao intenso trabalho de toda a equipe da FAP envolvida neste projeto. Nossos cursos não vão parar por aqui. Neste próximo semestre, vamos fazer novos cursos e, no próximo ano, mais ainda”, adiantou.

Resultados
Idealizador do projeto pedagógico do curso, advogado, doutor em Direito do Estado e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Marco Marrafon, que também é diretor executivo da FAP, disse que, com a formação de líderes, o curso cumpre seu objetivo de atender à crescente demanda por resultados na gestão pública.

“Especialmente em tempos tão obscuros e difíceis, a principal demanda da sociedade hoje é por resultados. Os arroubos autoritários estão destruindo nossa democracia. Também é preciso que as instituições cumpram o seu dever de funcionar melhor para o bom aprimoramento da democracia”, disse Marrafon. “Com esta formatura, o Cidadania mostra que, para além da polarização, está preocupado em melhorar a vida das pessoas, concretamente. A democracia e as instituições precisam funcionar”, asseverou.





Em vídeo enviado aos concluintes, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), uma das maiores críticas ao governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), parabenizou todos os envolvidos no curso e, principalmente, as novas lideranças. “Reconheço muito a importância desse curso que está sendo destinado à capacitação de futuras lideranças, com a finalidade de aprimorar o padrão da administração pública”, acentuou.

A parlamentar destacou, especialmente, o índice de participação de mulheres na formação a distância. “As dificuldades que a mulher enfrenta na política acabam sendo um combustível para mim. Para todas nós, aliás. Não desista, persista, o lugar da mulher também é na política. O lugar da mulher é onde ela quiser”, afirmou, antes de parabenizar os homens que também concluíram o curso.

Continuidade
Ex-diretor-geral da FAP, jornalista e colunista político, Luiz Carlos Azedo demonstrou muito orgulho e felicidade ao dizer que o curso é a continuidade de uma política de formação iniciada na gestão anterior à dele, que terminou em 2020. Durante a gestão de Azedo, a fundação realizou os cursos Jornada da Cidadania e Jornada da Vitória, com participação de alunos de todo o país.


Passo a passo para sua inscrição no curso Gestão Cidadã





Curso Gestão Cidadã: Fundação celebra conclusão da primeira turma

Evento online contou com a participação do presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire; o presidente do Conselho Curador da FAP e coordenador do curso Gestão Cidadã, Luciano Rezende e do diretor-geral da FAP, Caetano Araújo

A solenidade de conclusão da primeira turma do curso Gestão Cidadã foi realizada por meio do aplicativo Zoom a partir das 11h deste sábado (31/07), com transmissão na página da FAP no Facebook e no canal da entidade no Youtube.

Além de alunos dos 26 estados e do Distrito Federal, participaram do evento virtual o presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire; o presidente do Conselho Curador da FAP e coordenador do curso Gestão Cidadã, Luciano Rezende; o diretor-geral da FAP, Caetano Araújo; e Marco Marrafon, um dos professores mais bem avaliados pelos estudantes.

A formatura On-line também teve a participação especial da Senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), que pabenizou os formandos por meio de uma mensagem em vídeo (veja no link abaixo).

TV FAP | Homenagem da senadora Eliziane Gama aos concluintes do curso Gestão Cidadã

Cerca de 300 alunos já concluíram o curso Gestão Cidadã, destinado à formação política on-line e gratuita de novos líderes, prefeitos, vereadores e demais gestores filiados ao Cidadania, segundo levantamento preliminar. Confira, no link abaixo, alguns depoimentos de alunos do curso.

TV FAP | Depoimentos de concluintes da 1ª turma do curso Gestão Cidadã

A capacitação continua disponível na plataforma de educação a distância Somos Cidadania, lançada em maio.

Confira, abaixo, o vídeo da transmissão da cerimônia virtual de formatura da primeira turma do curso.




Para mais informações sobre o curso, uma equipe está à disposição para sanar dúvidas ou repassar mais informações por meio do WhatsApp (61 9 8279-3005). (Clique no número para abrir o WhatsApp Web).

TV FAP | Homenagem da senadora Eliziane Gama aos concluintes do curso Gestão Cidadã

TV FAP | Depoimentos de concluintes da 1ª turma do curso Gestão Cidadã

Curso Gestão Cidadã terá formatura on-line neste sábado (31/7)

Curso online Gestão Cidadã supera marca de 1 mil inscritos

Inscrições abertas: curso Gestão Cidadã reúne time de professores de alto nível

FAP, em parceria com Cidadania, lança curso de capacitação Gestão Cidadã

Gestão Cidadã é tema de podcast da Fundação Astrojildo Pereira


RPD || Entrevista Especial – Forças Armadas manterão fidelidade à Constituição, diz Santos Cruz

Por Caetano Araújo e André Amado  

O Brasil já se encontra no terceiro ano do governo Bolsonaro, a um ano e meio das eleições e em meio a uma CPI que pode ter desdobramento graves. Mas não se pode desviar a atenção do essencial, que é a vacinação da população, da recuperação da economia e o reforço das instituições do país, avalia o gerenal da reserva Carlos Alberto Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria Geral da Presidência da República do atual governo e entrevistado especial desta 31a edição da Revista Política Democrática Online.

“Se de fato estiverem ocorrendo tentativas de recorrer a medidas excepcionais, fora da cartilha democrática, fora da constituição, isso se deve à mais completa falta de noção institucional”, diz Santos Cruz, que também foi secretário nacional da Segurança Pública na gestão do presidente Michel Temer e comandou as missões da ONU no Haiti e na República Democrática do Congo. Para ele, no caso das Forças Armadas, por exemplo, “cujo apoio seria essencial em cenários desse tipo, não vejo a mínima condição de dar respaldo a qualquer proposta extrainstitucional”, completa.

Na entrevista à Revista Política Democrática Online, Santos Cruz também comenta sobre a questão da Amazônia e o meio ambiente, o papel do Brasil no cenário internacional, polícias militares, liberação de armas de fogo, segurança pública, cidadãos armados e o comunismo, o grande inimigo do bolsonarismo. “O problema nosso não é de comunismo. Infelizmente, estão usando isso daí para maniqueísmo. Hoje quem não é amigo é inimigo”, alerta.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista do general Carlos Alberto Santos Cruz.

Revista Política Democrática Online (RPD)Na situação de crise que vivemos, podemos considerar o comportamento do presidente da República como uma ameaça à democracia? 

General Carlos Alberto dos  Santos Cruz (SC): Antes de mais nada, é preciso contextualizar o momento brasileiro. Há alguns pontos que precisam ser focados. O primeiro deles é a pandemia, um trauma social, que já ceifou mais de 400 mil vidas. Todos nós conhecemos pessoas, famílias, conhecidos, parentes que se foram com a pandemia. Isso está afetando demais a sociedade brasileira. A vacinação é nossa saída, mas ela não está disponível em quantidade suficiente, o que causa enorme apreensão, tanto mais porque os cuidados que todos deveríamos seguir não estão sendo respeitados, por várias razões.  

O segundo ponto é a economia, que não passa por um bom momento. Mas o cidadão comum não está ligado nisso. Só os que têm alguma noção de economia sabem que nossa situação não é fácil nem boa. A vacina é a única maneira de restaurar a normalidade das atividades econômicas. Como, então, tratar da pandemia e da economia ao mesmo tempo?  

Os mais desassistidos estão sendo duramente afetados. Muitos de nós conseguimos passar bem de algum modo, mas as pessoas que perderam sua atividade econômica, que não têm rendimento garantido, são mais sacrificadas. É preciso destinar recursos federais para esse pessoal. Não adianta só jogar bilhões em emendas parlamentares. A prioridade é para quem está passando fome e outras necessidades.

“Um governo que carece de planejamento, de respeito institucional, pessoal e  funcional, tem efeitos graves para a sociedade, efeitos multiplicadores preocupantes”

Já estamos no terceiro ano de governo, a um ano e meio das eleições e em meio a uma CPI que pode ter desdobramento grave. Mas não se pode desviar a atenção do essencial, isto é, a vacina, a economia, a fome. Se de fato estiverem ocorrendo tentativas de recorrer a medidas excepcionais, fora da cartilha democrática, fora da constituição, isso se deve à mais completa falta de noção institucional. As instituições estão carentes de apoio, de planejamento. Por exemplo: o Ibama e o ICMBio, com responsabilidade de fiscalização do meio ambiente, são criticados por ineficiência. A solução tem sido mandar o Exército em apoio. O Exército pode ajudar temporariamente, mas o fundamental é reforçar a estrutura das instituições. Caso contrário, os problemas não estão sendo corrigidos. Outro exemplo: critica-se o STF. Mas o que o Executivo e o Legislativo têm feito para melhorar o Supremo? Quais propostas foram apresentadas para alterar as atribuições, estabelecer novos critérios de escolha, prazos dos mandatos? Não adianta atacar, propor melhorias milagrosas. O objetivo tem de ser aperfeiçoar as instituições e, assim, fortalecê-las.

Nossa democracia corre riscos? Corre alguns riscos, mas não no sistema e, sim, em pontos específicos. Por exemplo, não acredito que uma medida aventureira qualquer venha a ter resposta positiva. Não acredito, pois as instituições, embora fracas e carentes de aperfeiçoamento continuado, existem e não vão aceitar ações aventureiras por parte de governante. No caso das Forças Armadas, por exemplo, cujo apoio seria essencial em cenários desse tipo, não vejo a mínima condição de dar respaldo a qualquer proposta extrainstitucional. Outros riscos decorrem de atos fomentados por grupos de fanáticos. E o desfecho do fanatismo é sempre a violência. O fanatismo é de fato um risco, mas não o vejo capaz de contaminar a sociedade. 

RPDPode-se entender que a falta de planejamento, de respeito às instituições e de liderança nas altas esferas do governo tenham justificado sua decisão de deixar o Palácio do Planalto?  

SC: Não. Era início de governo. Alguns problemas já eram bem nítidos, mas não totalmente caracterizados. Eu fui dispensado da minha função pelo presidente da República, o que é uma prerrogativa daquela autoridade. Não tem nada de errado. Um governo que carece de planejamento, de respeito institucional, pessoal e  funcional, tem efeitos graves para a sociedade, efeitos multiplicadores preocupantes. Por exemplo, a conduta de fanáticos, de pequenos grupos de extremistas desqualificados, de baixíssimo nível, cujo linguajar expresso em redes sociais constrange repetir em entrevistas. Essa conduta tem influência e não contribui para conduzir o país a boas soluções.  

RPDExistiriam dois exércitos, duas Forças Armadas que se poderiam posicionar diferentemente em relação a um agravamento da situação conjuntural política brasileira?  

SC: Não vejo nenhuma possibilidade disso acontecer. As Forças Armadas têm dentro delas um sistema de liderança que abarca a todos os militares. Individualmente, todos são eleitores e podem votar em quem quiser. Não há problema nenhum. Mas, uma vez de uniforme e dentro da instituição, o militar segue o comando institucional. Isso é uma cultura. Fiquei 47 anos dentro do Exército e nunca vi discussões de caráter político. Zero discussões acerca de política. É cultural. Entrou no quartel acabou a discussão. Você pode ir discutindo no carro. Entrou no quartel, acabou!  

Os três comandantes que foram recentemente substituídos, por exemplo, deram poucas declarações sobre a saída. Tomaram posse três outros militares também excelentes. Manteve-se a mesma filosofia. Nada mudou. Nada. Pessoas da mesma cultura, da mesma geração de formação, todos contemporâneos 35, 40 anos dentro da mesma força. Não tem como você quebrar isso. Não adianta. Não será um aventureiro qualquer que vai pegar e quebrar um sistema desses.  

“Não é justo generalizar nem supor que os policiais possam ser arrastados para qualquer ação ilegal. Tanto quanto as Forças Armadas, isso não vai acontecer! Vejo as polícias militares com boa liderança”

RPDIncitação à violência por meio da internet, tentativa de disseminar o acesso a armas sem o controle devido, flerte com reivindicações corporativas da Polícia Militar, essa mistura explosiva pode levar a uma explosão de fato? 

SC: Risco sempre existe, mas de pequenas coisas. Até porque nós estamos assistindo a uma festa dos irresponsáveis. A internet é uma ferramenta de comunicação fantástica. Estamos cada um em nossas casas fazendo essa reunião virtual. São recursos maravilhosos. Só que, da maneira como se está observando, é uma verdadeira festa de exageros, oportuna para os fanáticos, para gente sem limites. Já existem providências em defesa da sociedade, no plano legislativo. Por exemplo, a legislação de combate às notícias falsas, as famosas fake news, que alimentam o fanatismo. Não tem nada a ver com liberdade de expressão. Permanecem válidos os crimes de calúnia, difamação e injúria, previstos no Código Penal.  

Sobre as polícias militares, é importante frisar que vivemos num modelo federativo. Tanto o governador como as instituições do Estado têm de seguir não só a constituição federal, mas também a estadual. O Legislativo e o Judiciário têm de atuar. Se o governador ou as instituições policiais violarem a lei, eles têm de ser responsabilizados. 

Cabe lembrar que as polícias militares têm pessoas muito boas, em geral muito bem preparadas.  O nível é bom. Esse pessoal é sensível à cadeia de comando. Eu não tenho dúvida nenhuma. Temos hoje 500 mil policiais militares no Brasil, que estão na rua em contato direto com a população. É um trabalho difícil. Sempre pode ocorrer erros. Em geral, erros pessoais. Isso é muito explorado, mas não é justo generalizar nem supor que os policiais possam ser arrastados para qualquer ação ilegal. Tanto quanto as Forças Armadas, isso não vai acontecer! Vejo as polícias militares com boa liderança.  

Sobre o problema das armas de fogo, não tenho dúvida de que a polícia militar e a polícia civil estão insatisfeitas com essa tentativa de liberar armas  sem o devido controle. Isso dificulta o trabalho dos policiais. Eles já têm a quem enfrentar, e ainda mais as armas fora de controle na mão de crime organizado, de milícias etc. É um problema essa liberação de armas sem um bom critério. Uma coisa é o comércio regulamentado. Sou a favor do que já existe, e é controlado pela Polícia Federal e o Exército. Só que as medidas de controle e de rastreamentos que o Exército fez dois anos, um ano e meio atrás, foram anuladas pelo presidente. O Exército é um órgão que trabalha só com o interesse técnico. Foi muito ruim anular esse controle.  

Existem distorções de concepção. A segurança pública é obrigação do Estado. Não pode um governo estimular as pessoas a se armarem para melhorar a segurança pública. Isso é falta de noção completa, falta de noção das suas obrigações, porque segurança pública é obrigação do Estado e tem de ter um plano nacional de segurança pública. Isso passa pela valorização e treinamento do efetivo da polícia, pelo aperfeiçoamento da legislação, orçamento etc. Todos têm de estar envolvidos – Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público. O governante não pode tentar convencer as pessoas a se armarem para garantir a segurança pública. Isso é loucura. E mais. Considerar que o cidadão armado é uma opção política é um total absurdo. Tanto quanto dizer que o Japão não invadiu os Estados Unidos, na segunda guerra, porque os Estados Unidos tinham não sei quantos milhões de armas nas mãos dos civis. Teoria sem cabimento. Imagina a logística militar que se exigiria do Japão para invadir os Estados Unidos. Tais argumentos animam certo frenesi, uma esquizofrenia política. Tudo isso, sem dúvida nenhuma, significa risco. Se não é risco geral, ao menos localizado, com algumas possíveis iniciativas pontuais. Mesmo nos Estados Unidos, essas maluquices levaram a violências localizadas. Vejo, portanto, também aqui, risco de violência ao menos limitadas. 

RPDO que se pode dizer da versão defendida por alguns setores das Forças Armadas de que, de um lado, propostas de cooperação com comunidade de nações no tocante ao desmatamento da Amazônia podem disfarçar alegada cobiça internacional sobre a região e, de outro, que a ameaça do comunismo para a sociedade brasileira ainda persiste. 

SC: Com 15 dias de casado, 44 anos atrás, 1977, cheguei na Amazônia, em Tabatinga e Ipiranga, na beira do rios Solimões e Içá. Fiquei lá um ano e meio, sem telefone celular nem televisão, com a Radiobrás iniciando transmissão com maior potência para competir com as emissões em espanhol provenientes dos Andes.  

O pessoal militar tem um sentimento de propriedade da Amazônia, porque ali deixou seu sacrifício. Para mim, não foi sacrifício. Foi grande satisfação. Mas o pessoal tem essa cultura. É normal. A cobiça internacional sobre a Amazônia existe. E isso mexe muito com o brasileiro. Só que o pessoal também tem de entender que existem assuntos que são mundiais. No caso do meio ambiente e do clima, são assuntos mundiais em que estamos inseridos. A Amazônia é nossa, claro. Todo mundo sabe que é nossa. Mas a gente não pode, por causa disso, dizer que “eu faço o que eu quero, não participo de convenção do clima, não participo de discussões de meio ambiente e também não sigo determinados padrões de desenvolvimento”. Não é assim. 

Essa é uma questão muito sensível, e o Itamaraty tem condições de ocupar uma posição de liderança por conta de boa formação de seu pessoal, mas tem de seguir a diretriz que é dada pelo governo. Ainda em 2019, logo após a assunção deste governo, busquei contato com o Chanceler e sua equipe, para transmitir-lhes minha visão sobre alguns pontos de política exterior. Sempre tive muita ligação com o Itamaraty. No curso de minhas viagens ao exterior, costumava visitar os embaixadores brasileiros. 

Lembro-me de ter comentado que, embora prioridade da política externa, os Estados Unidos não se resumiam a Donald Trump.  Sobre meio ambiente e clima, penso que deveríamos tratar da questão com uma perspectiva mais ampla e com finalidade social. Tive oportunidade de falar sobre essa matéria com autoridades francesas, em particular com a agência de desenvolvimento, quando destaquei a importância de investimentos no Brasil, em especial no Nordeste. Depois, saí e não acompanhei mais o assunto. 

É uma coisa de loucos… o Brasil está na beira do precipício, e os comunistas estão empurrando para cair no barranco… e tem um Salvador da Pátria que vem do céu ungido por Deus para salvar o Brasil. Não é assim

As riquezas em terras indígenas despertam a cobiça de nações estrangeiras? A perspectiva de bloqueio internacional faz parte dessa estratégia? Sou da opinião de que devemos consolidar uma liderança sobre a matéria e conversar com todos, para angariar a boa vontade da cooperação internacional.  Mas fica difícil convencer nossos potenciais parceiros se nem no nosso horizonte geográfico mais próximo, América do Sul, tivemos o impulso de convocar uma reunião sequer do Pacto Amazônico, mesmo sediando em nosso território a secretaria executiva desse órgão multilateral. Poderíamos desenvolver projetos dentro das terras indígenas, por exemplo, promovendo reuniões periódicas em Manaus, Porto Velho e em outras cidades da Amazônia, para demonstrar nosso interesse, nossa liderança, e conquistar boa vontade. Tem de ter orçamento para isso. Traríamos também representantes da França, afinal um país com território na Amazônia.  

Quanto ao comunismo, registro que morei na Rússia por dois anos e um ano nos Estados Unidos. Pelo que vi, concluí que o Brasil não aproveitou o que existe de bom nos Estados Unidos e na Rússia. O Brasil poderia ter feito uma boa combinação, mas não fez.  O problema nosso não é de comunismo. Infelizmente, estão usando isso daí para maniqueísmo. Hoje quem não é amigo é inimigo. Só os patriotas que andam de verde e amarelo, e os demais são inimigos. É uma coisa de loucos… o Brasil está na beira do precipício, e os comunistas estão empurrando para cair no barranco… e tem um Salvador da Pátria que vem do céu ungido por Deus para salvar o Brasil. Não é assim. 

Temos de atuar de maneira mais racional no cenário mundial. A corrupção não tem nada a ver com o comunismo ou não-comunismo. Temos de combater os privilégios e nossas diferenças sociais. Não é possível pagarmos supersalários com dinheiro público. Temos de fazer o que precisa ser feito para melhorar a sociedade brasileira e não alimentar discussões ideológicas e estéreis. Nosso problema básico é fazer o que é melhor para nós. Por conta de postura ideológica, o Ministério das Relações Exteriores quase nos isolou na comunidade internacional. Existem saudosistas comunistas, mas comunismo está ultrapassado, tanto quanto falar de direita ou esquerda. Nessa concepção puramente ideológica, fica tudo muito limitado.  

RPDNum mundo em mudança acelerada, quais as novas tarefas necessárias à defesa nacional? 

SC: A defesa nacional hoje não está mais só com as Forças Armadas. Tinha-se a concepção de que a defesa nacional estava nas Forças Armadas. Hoje, não. As Forças Armadas têm a parte de integridade, física, a parte dissuasória. Isso ainda reside nas Forças Armadas. Mas a defesa nacional, como um conjunto, passa pelo desempenho no meio ambiente, na economia, na política.  

Quando a gente deixa de ser respeitado internacionalmente na política, isso afeta todos os componentes da defesa nacional. Uma boa economia, sólida, uma sociedade não dividida, harmônica, unida, são fundamentais para a defesa nacional. As Forças Armadas são uma das poucas instituições que fica e tem condições de se manter em locais remotos e ali marcar a presença nacional e apoiar os outros setores, outros Ministérios que, às vezes, têm que fazer alguma tarefa na fronteira, mas não têm estrutura. Mas lá tem as Forças Armadas para acolher e auxiliar. Não adianta desenvolver as Forças Armadas e não desenvolver a economia, o respeito internacional, não desenvolver a união da sociedade e outros órgãos internos que precisam ser desenvolvidos.  

“O governante não pode tentar convencer as pessoas a se armarem para garantir a segurança pública. Isso é loucura. E mais. Considerar que o cidadão armado é uma opção política é um total absurdo”

A modernização das Forças Armadas passará também pela política industrial, pela segurança cibernética. Imagina uma interferência no banco de dados do Bolsa Família, da Caixa Econômica, do Banco do Brasil? E que tal uma guerra cibernética como essa ou mesmo uma guerra biológica, com vírus ou qualquer coisa que ainda não se tenha estruturado? 

Além das ideias já citadas, imagina o tumulto de uma interferência no banco de dados dos benefícios assistenciais do INSS. Isso deixaria muita gente necessitada sem receber o auxílio. Defesa Nacional é a tranquilidade e a paz social. Ela não depende só das Forças Armadas. 

Saiba mais sobre o entrevistado

General Carlos Alberto Santos Cruz
Entrevistado especial da Edição 31 da Revista Política Democrática Online, Carlos Alberto dos Santos Cruz é general de divisão da reserva do Exército Brasileiro, que foi comandante das forças da ONU no Haiti e no Congo, Secretário Nacional de Segurança Pública e ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência do Brasil.

Saiba mais sobre os autores

Caetano Araújo é graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e consultor legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.

André Amado é escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online. É autor de diversos livros, entre eles, A história de detetives e a ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.

Fonte:


RPD || Entrevista Especial - José Gomes Temporão: ‘Pandemia terá impacto central no futuro da Nação’

Ausência de medidas e negacionismo do presidente Jair Bolsonaro contribuíram drasticamente para a situação crítica que o país enfrenta atualmente no combate à pandemia do novo coronavírus, acredita Temporão

Por Caetano Araújo, Luiz Santini e Renato Ferraz

O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira em relação ao combate contra a pandemia do novo coronavírus são inúmeros, incontáveis, avalia o ex-ministro da Saúde  José Gomes Temporão, entrevistado especial desta 30ª edição da Revista Política Democrática Online.

Temporão aponta três medidas que deveriam ter sido feitas pelo Governo Bolsonaro para evitar a situação em que o país se encontra atualmente: 1) Deveria ter liderado articulação entre Butantan, FIOCRUZ e os laboratórios estrangeiros que estavam desenvolvendo novas vacinas e fechado acordos de compra ainda em meados de 2020. 2) Optou apenas pelo número mínimo de doses do mecanismo Covax, administrado pela Organização Mundial da Saúde, que é de 10% da população. O Brasil vai receber, assim, 20 milhões de doses, suficientes para vacinar 10 milhões de pessoas. País tinha direito de pleitear até 80 milhões de doses, em benefício de 40 milhões de brasileiros.   3) Se tivesse fechado acordos compra com Pfizer, Moderna, Sputinik V e outros produtores lá atrás, teríamos tido vacinas a partir de janeiro e já poderíamos estar com 100 milhões de pessoas vacinadas.

“A sociedade brasileira, o povo brasileiro, foi objeto de um ataque criminoso organizado do governo federal, que destruiu a capacidade brasileira de enfrentar adequadamente essa pandemia”, critica Temporão. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Revista Política Democrática Online.  

Revista Política Democrática Online (RPD): A pandemia está tendo o impacto de uma tragédia social, sanitária, emocional. Mas pode ter favorecido o reconhecimento da importância do Sistema Único de Saúde para a saúde dos brasileiros por parte de toda a sociedade, independentemente de níveis sócioeconômicos, tanto quanto a percepção da relevância do papel da ciência e da qualidade dos pesquisadores e cientistas nacionais na condução das graves questões sanitárias que vêm ameaçando o país. Como valorizar esses sentimentos de forma permanente?  

José Gomes Temporão (JGT): Que bom começarmos a conversa falando de coisas boas também. A situação difícil, dramática e trágica que nosso país vive nesse último ano tem e seguirá tendo impacto central no futuro da nação. Importa destacar, no entanto, que, ao longo desse período pandêmico, o SUS ganhou novo contexto, um novo olhar da sociedade. Está lá na Constituição de 1988, no Artigo 196: “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, alcançando através de políticas econômicas e sociais”. Quer dizer, uma visão bastante abrangente da questão da saúde. Nós também sabemos que, no curso dessas três décadas, se de um lado o SUS conseguiu se estruturar, ampliou cobertura, reduziu desigualdades entre classes sociais e regiões e teve um impacto nos indicadores sanitários extremamente importante, por outro lado se fragilizou do ponto de vista do financiamento, da gestão, do modelo assistencial. E através de uma política deliberada de subsídio ao mercado, o que nós assistimos foi um crescimento proporcional muito importante do percentual da população brasileira que dispõe de um plano seguro de saúde para o atendimento de suas necessidades corriqueiras de exames, consultas e internações – maior parte, provida pelo empregador. Ou seja, é uma cobertura privada financiada majoritariamente pelo empregador e ligada, portanto, ao vínculo laboral. Então essa visão do SUS ao longo dessas décadas sofreu, digamos assim, algumas fragilizações.   

A primeira para a qual eu queria chamar a atenção é uma certa visão que se consolidou na sociedade do SUS como muito importante para as pessoas pobres, para os mais pobres. Trata-se de um desvio, uma visão equivocada. Porque, na verdade, o SUS prescrito na Constituição reflete a visão da construção de um sistema universal para todos os brasileiros.   

A segunda, que também se difundiu de maneira muito forte na sociedade, é essa visão de que ter um plano de saúde faz parte do processo de ascensão social, e de que a medicina privada, portanto, terá um padrão de qualidade superior à da medicina pública – o que, aliás, não se sustenta em nenhum ponto de vista analítico. Temos hospitais, instituições, programas e políticas de excepcional qualidade no SUS e no setor privado. Temos problemas dramáticos de qualidade no SUS e no setor privado. A discussão está equivocada, porque, quando a pandemia começa e o impacto dela na sociedade se expressa dessa maneira tão pungente, real e concreta, uma série de setores da sociedade que, antes via o SUS um pouco assim à distância – como “uma coisa que não faz parte do meu cotidiano, do meu dia a dia, talvez tenha muito peso para os meus empregados, ou para as pessoas que trabalham na minha casa” – passou a avaliá-lo em uma dimensão distinta. Basta imaginar, como mera hipótese, o que seria dos praticamente 50 milhões de brasileiros que não têm nenhum tipo de proteção social estruturada, subempregados, que trabalham por conta própria, e os 15, 16 milhões de desempregados, portanto a grande maioria da população brasileira, sem o SUS?   

"TIVEMOS UMA FRAGMENTAÇÃO DA FEDERAÇÃO BRASILEIRA. O GOVERNO FEDERAL, NA VERDADE, SE TRANSFORMOU EM UM POLO DE RESISTÊNCIA ÀS MEDIDAS PRESCRITAS PELA CIÊNCIA E PELA SAÚDE PÚBLICA"

Felizmente, essa avaliação de senso comum da sociedade se expressou também na grande mídia. Nunca se falou tanto nos jornalões, nas TVs abertas e nos programas de TV fechada sobre o SUS, sobre suas dificuldades, suas qualidades, um reconhecimento do trabalho importantíssimo dos profissionais que ali labutam todos os dias. Atingiu inclusive setores com uma visão desenvolvimentista, progressista, mas que viam também o SUS um pouco distante. Registrou-se todo um movimento da área da ciência brasileira de aproximação com o SUS. Multiplicaram-se as experiências de articulação, integração e de reflexão conjuntas entre instituições e entidades do campo da saúde pública, da medicina, da ciência brasileiras no sentido de buscar orientar a população, esclarecer a sociedade, reivindicar, criticar o governo.   

Estou seguro, assim, de que, apesar das dificuldades estruturais que o SUS enfrenta, ganhamos espaço político e temos de saber como aproveitar isso para fortalecê-lo no futuro. Essa questão do SUS e do que eu chamo da construção de uma consciência política, de uma consciência coletiva, de uma consciência social do valor dos sistemas universais e do SUS, é uma questão central da nossa agenda nos próximos tempos.   

Isso vem junto com a questão da ciência. Em maio do ano passado, já ressaltávamos em debates que só conseguiríamos sair dessa situação quando tivéssemos uma ou mais vacinas que funcionassem. Mas ouvíamos: “vacina?, esquece. Vacina, só em 2021, 2022. É coisa para um ano e meio, dois anos”. Citava-se o caso anterior do período mais curto de desenvolvimento de uma vacina, a da caxumba, que levou quatro anos para chegar ao mercado. E a ciência nos colocou não uma, mas várias vacinas antes de um ano do início da pandemia.   

A ciência mostrou seu valor, sua importância. No caso brasileiro, com algumas singularidades. Fomos o terceiro país do mundo a fazer o sequenciamento genético do vírus; cinco dessas vacinas, que já estão no mercado, foram testadas na população brasileira, em que foram realizados ensaios clínicos. Nós sabemos que, para fazer ensaio clínico, você tem de ter uma estrutura de ciência e de hospitais de ensino e pesquisa; uma estrutura regulatória – nós temos uma das melhores agências reguladoras do mundo, a ANVISA. E os brasileiros publicaram inúmeros artigos, e participaram de inúmeras iniciativas no campo da ciência extremamente importantes no enfrentamento dessa doença.   

Outra dimensão que tem muito a ver com ciência, embora não se limite a ela, na verdade a transcende, é a questão do desenvolvimento tecnológico que depende da ciência e que entrou de novo na agenda. Todos nos lembramos do que aconteceu em março do ano passado: não tínhamos testes, não tínhamos respiradores, nem equipamentos de proteção individual, e a nação perplexa chegou à seguinte conclusão: a gente compra tudo da China. Ora, por que não fazemos aqui? Existiriam barreiras tecnológicas ou de conhecimento intransponíveis? De maneira alguma. Isso é reflexo de décadas de uma visão totalmente equivocada do que deva ser o processo de desenvolvimento brasileiro, o que se repetiu no início deste ano, quando se tentou justificar a falta de vacinas pela dependência da importação da China dos princípios ativos para produzi-las.   


"Temos hospitais, instituições, programas e
políticas de excepcional qualidade no SUS e no
setor privado. Temos problemas dramáticos de
qualidade no SUS e no setor privado"

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil


Espero que se recoloque de vez na agenda a visão da ciência como questão central e se discuta a necessidade de um projeto nacional de redução da dependência tecnológica brasileira no campo da saúde. Quando eu estava no ministério, entre 2007 e 2010, implementamos, de maneira pioneira, durante o segundo mandato do presidente Lula, uma política voltada exatamente para essa prioridade: como internalizar e aumentar a capacidade brasileira de produzir aqui tecnologias que até então importávamos. Fizemos isso no campo das vacinas, de medicamentos para transplante, de medicamentos para distúrbios psíquicos, de medicamentos para doenças reumatológicas, de testes para diagnóstico. Chegamos a desenvolver cerca de 80 projetos de parcerias entre laboratórios de capital nacional, multinacionais e laboratórios públicos. Mas, a partir de 2016, tudo se interrompeu, e agora no governo Bolsonaro, simplesmente não temos a menor perspectiva de que esse projeto possa seguir adiante. Em resumo: SUS na agenda, ciência na agenda e a redução da vulnerabilidade tecnológica da saúde brasileira na agenda dos próximos anos.   

RPD: Para quem não é da área, é grande a influência das versões difundidas pela imprensa e redes sociais, essencialmente que estamos em uma situação catastrófica e que vamos bater todas as marcas negativas em relação a essa pandemia. É procedente essa visão? Como chegamos a esse quadro? Onde erramos? Onde o governo federal, os governos subnacionais, a sociedade civil, enfim, erraram? E o que fazer para superar isso no curto prazo, para, senão superar, pelo menos minimizar os estragos que se anunciam?  

JGT: Havia, no início do ano passado, uma expectativa nacional e internacional sobre o desempenho do Brasil no contexto da pandemia, que eu qualificaria de positiva. Baseava-se na existência do SUS, um sistema universal que ampliou muito o acesso da população aos serviços – claro, com todas as dificuldades que conhecemos. Incorporava, também, a percepção internacional, construída ao longo de muitas décadas, da liderança que o Brasil exercera em alguns foros multilaterais, na área da saúde global. A Organização Panamericana da Saúde foi dirigida ao longo de décadas por brasileiros. O primeiro diretor geral da Organização Mundial da Saúde foi brasileiro, o Marcolino Candau, que ficou lá mais de dez anos. O Brasil teve papel importantíssimo na aprovação da legislação de TRIPs, na OMC, que regula a proteção patentária em medicamentos e produtos de saúde. O Brasil foi líder na aprovação da Convenção-quadro para o controle do tabagismo, o primeiro tratado de saúde pública internacional. Ou seja, o Brasil era visto como país dotado das ferramentas e as condições necessárias para enfrentar a pandemia.  

Faltou nessa análise, porém, considerar um componente que terminaria por evidenciar a grande vulnerabilidade brasileira. É bem distinto mobilizar o sistema de saúde, mobilizar a ciência e ter um governo que enfrente uma situação como essa de maneira competente ouvindo a ciência e saúde públicas se você tem uma grande homogeneidade social – caso da Europa. Mas, em um país estruturalmente desigual, como o Brasil, a complexidade das ações requeridas é bem maior. Teríamos de ter tido algumas iniciativas, decisões, o que não ocorreu.   

"O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira são inúmeros, incontáveis"

Por exemplo: desde o início, uma política econômica a serviço da saúde e a serviço da defesa da vida. Contamos, na verdade, única e exclusivamente com o benefício emergencial de R$ 600, graças ao Congresso Nacional, e que foi interrompido em dezembro. Isso foi pouco. Houve muitas iniciativas da sociedade civil, organizações não governamentais, movimentos culturais, movimentos de mulheres, população negra e jovens, para tentar enfrentar de alguma maneira, minimizar o impacto dramático dessa doença e, inclusive, de viabilizar que esses estratos mais vulneráveis da população pudessem manter distanciamento e permanecer em casa. Mas foram claramente insuficientes. O setor privado também ensaiou um apoio, em situações localizadas, desestruturado, desorganizado.   

Além disso, deveríamos ter tido, também desde o começo da pandemia, como implementei quando dirigi o ministério da saúde em 2009 e 2010 ante o surto do H1N1, a liderança do governo federal para coordenar e elaborar um plano de ação, elaborado por um comitê permanente onde o governo federal, os estados e os municípios juntos com a ciência e a saúde pública, construíssem as estratégias. O objetivo seria mobilizar a sociedade, com base em um projeto de comunicação pesado, para orientar, informar, educar, segundo as prescrições da saúde pública e da ciência, vale dizer: evitar aglomerações, manter o distanciamento, uso universal de máscaras, higiene das mãos, e agora as vacinas.   

E o que tivemos? Tivemos uma fragmentação da federação brasileira. O governo federal, na verdade, se transformou em um polo de resistência às medidas prescritas pela ciência e pela saúde pública. O presidente liderou esse processo criminoso repetidas vezes, como o atestam dezenas de exemplos, fatos, declarações e comportamentos públicos.  

Somente em dezembro último, o presidente aceitou, a contragosto, a inclusão da vacina do Butantan no PNI e nunca cessou de prescrever falsos tratamentos, estimulando as pessoas a um comportamento irresponsável. Minimizou a gravidade da pandemia e apostou na curta duração de seus efeitos, para fortalecer sua oposição ao isolamento social e abrir espaço à difusão de fake news. Debilitou o comando as operações do governo no campo da saúde pública ao militarizar o ministério da Saúde, comprometendo sua capacidade técnica, sua respeitabilidade e credibilidade. Deixou o país um ano à deriva, sem ministro e sem ministério. Construiu, na prática, uma autoridade sanitária paralela informal. Quebrou uma das pernas centrais da nossa capacidade de enfrentamento, ao debilitar o pacto federativo, jogando a responsabilidade sobre os governadores e prefeitos. Não orientou nem cobrou uma política econômica que estivesse em total sintonia com a política de saúde.   

Esse comportamento do presidente não deve ser julgado de maneira isolada. Juntam-se, cúmplices, o ministro da saúde, o ministro da economia e o conjunto do governo como um todo, que devem também solidariamente ser responsabilizados pela tragédia que nos levou a mais de 330 mil óbitos, em começos de abril (País superou a marca de 350 mil mortes em 12/04/2021). É o epílogo sangrento, dramático, pungente de um ano de negação, de mentiras, de quebra da federação, de ataque à ciência, à saúde pública e a Organização Mundial da Saúde.   

RPD: Como vê o horizonte da vacinação no Brasil?  

JGT: Tivemos as primeiras vacinas chegando ao mercado internacional em dezembro do ano passado, e o Brasil tem dois dos maiores produtores de vacinas do mundo, resultado, inclusive, de décadas de investimento na Fundação Oswaldo Cruz e no Butantan. O Butantan por conta própria, e em uma luta incrível, insana, contra o presidente da República, fechou acordo com os chineses e desenvolveu sua vacina usando plataforma que o Butantan já domina há muito tempo, a mesma plataforma tecnológica da vacina da gripe que usamos todos os anos, a vacina da influenza. E a FIOCRUZ optou por algo mais ousado: fez um acordo de transferência de tecnologia com a AstraZeneca e a Universidade de Oxford de uma plataforma tecnológica nova: é a primeira vacina no mundo que usa essa plataforma tecnológica, que usa o veículo adenovírus de chimpanzé, que coloca a proteína da espícula do vírus no nosso organismo, e, a partir daí, a gente desenvolve os anticorpos. Dispomos, assim, de duas grandes fábricas de vacinas, mas uma limitação: ainda dependemos da importação dos princípios ativos.   

"A ciência mostrou seu valor, sua importância. No caso brasileiro, com algumas singularidades. Fomos o terceiro país do mundo a fazer o sequenciamento genético do vírus"

Considerando esse contexto, o que deveríamos ter feito? Erramos onde não poderíamos ter errado, para além dos erros que já listei aqui, mas no campo das vacinas, especificamente. Sabedores de que tanto o Butantan como FIOCRUZ teriam dificuldades no início do ano de produzir em larga escala por essa dependência de insumos, e também porque o processo de transferência de tecnologia é complexo – é normal não se cumprirem prazos restritos do cronograma –, deveríamos ter feito três coisas que não fizemos:  

- Desde abril do ano passado, o PNI – considerado como um dos melhores do mundo, que vacinou, em 2010, 90 milhões de brasileiros contra o H1N1 em três meses – deveria ter liderado articulação entre Butantan, FIOCRUZ e os laboratórios estrangeiros que estavam desenvolvendo novas vacinas e fechado acordos de compra ainda em meados de 2020. Não só não fizemos isso, mas também rejeitamos a oferta da Pfizer de 70 milhões de doses. Isso ocorreu no tempo em que o presidente atacava as vacinas o tempo todo.   

- O mecanismo Covax, administrado pela Organização Mundial da Saúde, constituído por um pool de produtores, um fundo financiado por doações e com recursos de países desenvolvidos, foi de início rechaçado pelo Brasil. Quando o governo aderiu, optou apenas pelo número mínimo de doses, que é de 10% da população. Receberemos, assim, 20 milhões de doses, suficientes para vacinar 10 milhões de pessoas. Só que teríamos direito, e não exercemos, de pleitear até 80 milhões de doses, em benefício de 40 milhões de brasileiros.   

- Tivéssemos fechado acordos de compra com Pfizer, Moderna, Sputinik V e outros produtores lá atrás e garantido um volume de doses que se somariam a ainda incipiente capacidade brasileira do Butantan e FIOCRUZ, neste momento praticamente 10% da população brasileira receberiam a primeira dose, isto é, de 19 a 20 milhões de pessoas. Tivéssemos vacinas a partir de janeiro, já poderíamos estar com 100 milhões de pessoas vacinadas. E o impacto disso na redução da circulação do vírus, das pessoas infectadas, internadas, mortas teria sido dramática. Por isso, afirmo: a sociedade brasileira, o povo brasileiro foi objeto de um ataque criminoso organizado do governo federal, que destruiu a capacidade brasileira de enfrentar adequadamente essa pandeia.  

RPD: Diante disso tudo, da má gestão política, sanitária, diplomática e econômica, como responsabilizar a quem de direito e evitar que esses crimes fiquem impunes?  

JGT: Já são inúmeras as iniciativas, dentro e fora do país. Eu, mesmo, ao lado de vários outros ilustres sanitaristas e cientistas, subscrevi um pedido de impeachment do presidente da República, pedido que se adiciona a mais de uma centena de outros ora hibernando na gaveta do presidente da Câmara dos Deputados, para não mencionar a representação de ex-ministros da saúde, ex-juristas, juristas advogados, apresentada ao Tribunal de Haia contra o presidente Jair Bolsonaro. O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira são inúmeros, incontáveis.   

Mas o governo federal cooptou, para usar um termo educado, o chamado Centrão para impedir que esses processos avancem. Por isso, não conseguimos garantir que essas iniciativas conduzam à abertura de um processo de impedimento do presidente, o principal obstáculo a um adequado, responsável e sério manejo do enfrentamento da pandemia, onde a ciência e a saúde pública têm que prevalecer. Não conseguimos até o momento transformar esse conjunto de denúncias inclusive junto ao Ministério Público, a Advocacia Geral da União e ao Supremo, em fatos que transcendam a decisão política da denúncia em si. Não conseguimos sequer abrir o processo de impedimento, porque, segundo nossa Constituição, cabe ao presidente da Câmara a decisão monocrática de submeter a matéria à apreciação de seus pares no plenário, o que não ocorreu na gestão do Rodrigo Maia nem parece vir a ocorrer na da Artur Lira. O Ministério Público tem sido omisso diante das dezenas denúncias recebidas não se manifestando. No âmbito do Tribunal de Haia, ainda não se decidiu sobre o acolhimento da representação.  

"Espero que se recoloque de vez na agenda a visão da ciência como questão central e se discuta a necessidade de um projeto nacional de redução da dependência tecnológica brasileira no campo da saúde"

Não tenho dúvida, porém, de que as evidências são muito contundentes: os crimes estão aí, os números estão aí, os vídeos estão aí, as manifestações estão aí; a tipificação de crimes contra a Constituição e o Código Penal está aí. E todos esses senhores e senhoras serão responsabilizados pelos crimes cometidos contra a população brasileira, contra a segurança nacional. Inclusive, contra o próprio desenvolvimento da nação e a frustração no campo da educação; a fome voltou; a mortalidade por doenças que tinham sido reduzidas, aumentou. Os responsáveis terão de ser punidos. Não apenas nas urnas em 2022: punidos criminalmente por cometimento de crimes contra a vida e a saúde da população.  

RPD: É muito preocupante quando se fala da perda da liderança do Brasil no sistema de saúde global. Mas também é possível dizer que o sistema global também está muito frágil, mesmo com as declarações quase diárias e emocionais, dramáticas, muitas vezes, do diretor geral da OMS. Falta uma coordenação global. Tudo indica que esta não será a última pandemia. Outras virão, no rastro de novos desastres sanitários e sociais, no rastro da questão da migração e do desrespeito à questão ambiental. Tudo isso prenuncia novas pandemias. Para que não sejam tão devastadores como o atual, será necessária uma coordenação sob uma liderança global. O que pensa a esse respeito?   

JPT: Essa é uma questão fundamental para nosso futuro. Começo com o que Brasil conseguiu fazer no exterior no cenário da saúde global. Estive há dois anos em Maputo, em Moçambique, e visitei um projeto desenvolvido pela FIOCRUZ, no âmbito de ações semelhantes lançadas para os países portugueses africanos lusófonos. Era o Instituto de Saúde Pública local, um prédio imponente, construído pelos Estados Unidos, cheio de equipamentos de última geração, fornecidos pela China, e operado por mestres, doutores e especialistas, treinados no Brasil. A importância do projeto refletia a diferença da abordagem da ajuda prestada pelos Estados Unidos e pelo Brasil na capacitação do sistema de saúde. Enquanto os Estados Unidos priorizaram doações para a montagem de programas verticais de combate a doenças escolhidas, como malária, chagas ou tuberculose, o Brasil privilegiava um olhar da cooperação em saúde estruturante, vale dizer, ajudando os países a organizar seu sistema de saúde, suas instituições permanentes de saúde.  

Isso foi alcançado pela associação entre o Ministério da Saúde, pelo menos de 2000 à gestão do ex-ministro Serra até 2016, e do Itamarati, por intermédio da ABC – Agência Brasileira de Cooperação. E nós perdemos tudo isso quando o Michel Temer entra, e principalmente agora com o Bolsonaro. O ministro das Relações Exteriores virou motivo de chacota nos corredores do Itamarati e acabou saindo, não sem antes contribuir para destruir a projeção visão internacional do Brasil, também no campo da saúde. Teríamos podido ajudar muito mais os países em desenvolvimento.  

Não devemos esquecer, por outro lado, que, a reboque da visão de Trump, Bolsonaro atacou frontalmente a OMS justo quando o mundo precisava de uma agência forte, nos planos técnico, financeiro e político. Falando em coordenação internacional, a OMS é absolutamente fundamental, haja vista a realidade nua e crua das vacinas. Atualmente, a questão da distribuição e consumo, a disponibilização de vacinas em termos globais, repete o mesmo padrão de desigualdade das outras tecnologias da saúde ao longo de décadas. Mais de 60% de todas as doses de vacinas destinam-se a atender cerca de 15 países, os países ricos.   

Tudo isso clama por uma OMS fortalecida. Fortalecida, inclusive para começar a discutir outros temas: a questão de patentes. A proteção patentária está na OMC, mas deveria estar na agenda de discussão e trabalho da OMS. Não há dúvida de que teremos situações de vulnerabilidade sanitária e outras pandemias no futuro. Impõe-se, portanto, uma OMS cada vez mais forte. E que o Brasil reocupe o papel tão importante que ocupou ao longo das últimas décadas, infelizmente, conspurcado, apagado pelo governo Bolsonaro.  

Saiba mais:

*José Gomes Temporão é médico sanitarista, membro da Academia Nacional de Medicina, ex-ministro da Saúde e pesquisador da Fiocruz.

*Luiz Antonio Santini é médico, professor da UFF de Cirurgia e de Saúde Pública, ex-diretor do INCA e pesquisador associado da Fiocruz.

*Caetano Araújo é consultor legislativo do Senado Federal, sociólogo. É diretor da Fundação Astrojildo Pereira (FAP).

*Renato Ferraz é jornalista profissional desde 1988. Trabalhou em veículos como Veja, Correio Braziliense, Congresso em Foco e outros. É pós-graduado pelo UniCeub e pela ISE Business School/Universidad de Navarra.

  • ** Entrtevista realizada para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

RPD || Entrevista Especial - Arminio Fraga: ‘O Brasil está dando um mergulho no passado e sem liderança’

Por Raul Jungmann e Caetano Araújo

Defensor do auxílio emergencial desde o início da pandemia diante de uma situação que não é típica do ciclo econômico, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central (1999-2003) durante o segundo mandato do Governo FHC é o entrevistado especial desta 28ª edição da Revista Política Democrática Online. Para 2021, o sócio fundador da Gávea Investimentos e um dos mais notórios economistas liberais do país avalia que um novo auxílio seja necessário para ajudar a sustentar a economia. "Há consenso a esse respeito, mas o governo enfrenta limites na sua capacidade de financiamento. Terá de ser, portanto, muito bem pensado", acredita.

Armínio Fraga também faz um alerta sobre a ideia de que o governo brasileiro vai continuar se endividando, na expectativa de que isso vai gerar um futuro melhor. “É um perigo monumental”, completa. Para ele, o governo Bolsonaro não está discutindo os problemas centrais da economia brasileiro. "Nossa taxa de investimento em torno 15%, 16% do PIB é muito baixa para sustentar o crescimento. Espelha enorme incerteza", acredita. Associado fundador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), Fraga também considera a derrota de Trump como muito importante para o Brasil e o mundo. "Se o Biden for na direção de Clinton, de Obama, será um espetáculo", avalia. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista à RPD Online.

Revista Política Democrática Online (RPD): Alguns analistas avaliam que, a partir de suas declarações e artigos mais recentes, você poderia considerado como uma ponte autorizada entre os setores liberais e a esquerda democrática. O que pensa a respeito?
Armínio Fraga (AF):
É mais uma torcida do que uma análise. Eu vejo a necessidade de esquecer um pouco os rótulos e pensar nas propostas concretas. Estou convencido – e não digo que seja um teorema – da ideia de que no Brasil, como em muitos outros países, alguns grandes temas têm que andar juntos, eles se reforçam. Na economia são três. Macroeconomia saudável, para organizar um pouco a casa e impedir que haja uma crise a cada cinco, 10 anos. No plano do crescimento, importa cuidar da produtividade para o país crescer. Há décadas que crescemos muito pouco. Houve momentos de luz, mas sempre mais do que compensados por trevas, colapsos, uma desgraça.

Outro ponto não menos importante refere-se ao tema da desigualdade, que, embora não seja monopólio da esquerda, é sua essência. É fundamental olhar para a desigualdade de uma maneira ampla, completa. A pobreza é inaceitável, mas nós temos que ir muito além do combate à pobreza extrema. Temos que criar condições para que as pessoas tenham capacidade de se empregar, ter sua renda, seu espaço, portanto, de oportunidade e mobilidade, e por aí vai. Essa agenda, a meu ver, é de fato uma combinação liberal, social, que não difere muito da agenda do Fernando Henrique Cardoso, tampouco da do Lula em seu primeiro mandato. Naquele momento, parecia que o Brasil político fosse oscilar dentro de um espaço pequeno, um pêndulo que não se tornaria uma bola de demolição, como acho que acabou acontecendo.

Eu me vejo nessa posição. Não sou político, não tenho ambições eleitorais, mas tenho, sim, participado do debate público. Como me dão espaço, procuro aproveitar. E essa ponte, a meu ver, precisa ocorrer mais para o centro, algo mais equilibrado, e não essa loucura que temos hoje, de costumes e ameaças autoritárias, de comportamento truculento, nem tampouco de uma esquerda velha, sonho compreensível, mas que avalio nunca ter dado certo. Menos ainda uma esquerda, entre aspas, que produziu o bolsa-empresário de sete pontos do PIB, quando o Bolsa Família consome meio ponto do PIB. Isso não é esquerda, nem sei muito bem o que era. Embarcou-se numa canoa furada, abraçaram ideias equivocadas e, infelizmente, também a corrupção e tudo mais. Então, se é esse espaço de ponte que querem me atribuir, fico muito feliz, é onde eu gostaria de estar mesmo.

RPD: Você não estaria apostando muito na convicção das pessoas, na capacidade de elas reagirem da maneira descrita? Não faltaria um orquestrador, uma liderança que lhes abrisse o caminho e as conduzisse na aproximação entre o liberalismo e a esquerda?
AF:
Não vejo o que eu faço como sendo uma tentativa política completa, sou apenas uma pessoa que disputa um espaço de opinião. Trata-se de uma tese a ser construída, o que será, em muitos aspectos, difícil. O lado liberal não é muito intuitivo, isso já vem desde Adam Smith. São receitas que, às vezes, levam as pessoas a se sentirem desprotegidas. Penso, assim, que caberia uma campanha de informação, mas isso me faria sair um pouco do meu quadrado.

Há muito tempo venho tentando entender a narrativa da história, por assim dizer. Tentei quando estive no governo. Depois, prossegui conversando com muita gente, inclusive com o próprio presidente Fernando Henrique. Mas como se faz, por exemplo, para lograr vencer o populismo? Muito difícil. Com meu chapéu de economista, diria que é quase impossível. Um dia, ele pode quebrar, mas, até lá, é imbatível, prometendo mundos e fundos, ninguém fazendo contas, ninguém entendendo coisa alguma e, num belo dia, quebramos de novo. Esse é um desafio político de primeira ordem.

Muito francamente, penso que acabaremos reinventando a socialdemocracia. Adaptada às coisas ao século 21. Ótimo: meio ambiente e tecnologia. Eu, por exemplo, sou bem verde. Mas acho que precisamos mais de ideias do que liderança. O Brasil tem de repensar o espaço partidário. Os partidos e suas siglas de hoje não valem nada. Escrevi recentemente na Folha artigo em que mencionei esse ponto. Precisamos evoluir nessa área. Entendo que o número de partidos tende a cair com as cláusulas de barreira e a proibição das coligações, mas, além de uma redução no número de partidos, acho que falta clareza programática, ideológica. Não é suficiente fazer, por exemplo, como tenta fazer o partido Novo que declarou “nós queremos honestidade e eficiência”. Todo partido deveria defender honestidade e eficiência. Falta ir muito mais longe. É necessário mais do que uma pessoa, embora isso sempre ajude. No mundo de redes e de comunicação direta com o eleitorado, o peso da candidata ou do candidato numa eleição presidencial é altamente relevante. Mas, se isso vier sem uma estrutura de valores, de propostas, inclusive no plano partidário, ainda que seja alguma coligação, desde que construída em cima de ideias, temo que o Brasil seguirá patinando.

RPD: Para a retomada do crescimento, o auxílio emergencial poderá ajudar? Qual é o dever de casa que o Guedes deve seguir?
AF:
Guedes se define como um liberal. Ao tomar posse, disse que era um liberal político também, um defensor da democracia. Nada disso se revelou evidente. Há que se distinguir crescimento, que, para mim é algo mais sustentado, de recuperação, esta, mais cíclica, de curto prazo, basicamente o que ocorre na esteira de uma recessão, do que já tivemos dois exemplos gigantes nos últimos sete anos. Na primeira, a recuperação foi tímida, pífia, é um momento ainda muito complicado, mesmo que Temer tenha apresentado boa agenda de reformas. Mas, depois, tudo se complicou, como se sabe, e aí veio o que veio.

Para fazer o país crescer, é outra estória. Temos de incluir na política econômica a educação, a saúde. Depende também de confiança, estando tudo interligado. Uma empresa, quando explora a possibilidade de investir, tem que trabalhar com um horizonte de tempo que vá além da recessão.

Defendi o auxílio emergencial desde o início da pandemia diante de uma situação que não é típica do ciclo econômico; antes, uma calamidade colossal, agravada pela não resposta pronta do governo federal. Cabia, pois, um auxílio. Depois ocorreu, e forte, só que veio mal calibrado, talvez por razões meio populistas, talvez por uma expectativa de que o negócio não fosse tão sério ou duradouro assim. Não dá, portanto, para repetir o esforço do ano passado. Algum auxílio tem, porém, que acontecer, para ajudar a sustentar a economia. Há consenso a esse respeito, mas o governo enfrenta limites na sua capacidade de financiamento. Terá de ser, portanto, muito bem pensado.

Não acredito que se estejam discutindo os problemas centrais da economia brasileiro. Nossa taxa de investimento em torno 15%, 16% do PIB é muito baixa para sustentar o crescimento. É um nível que espelha enorme incerteza, grande falta de confiança. Em entrevista live recente, Larry Summers, indicou que, se tivesse de escolher um único indicador para entender o que está acontecendo num país, olharia para o que os investidores locais estão fazendo com o dinheiro deles. No nosso caso, a coisa complica.

Estamos tendo essa conversa logo após as votações do Congresso, e nada sugere uma situação que nos vá encher os olhos, com o Brasil embarcando num outro modelo. Ao contrário: acho que a gente está dando um mergulho no passado e sem liderança.

RPD: O enfrentamento da crise sanitária justificaria o abandono de toda preocupação relativa ao equilíbrio das contas públicas?
AF
: Um governo pode se endividar, um governo que não seja um estado falido, mas isso obedece a várias restrições. Mas a restrição mais básica é ter alguém disposto a emprestar esse dinheiro para o governo. Começando por baixo, a ideia de que emitir moeda, emitir dívida na sua própria moeda, é uma garantia de que não há limite para seguir se endividando é um nonsense completo. Imagine se as pessoas seguirão comprando papel do governo, se entupindo de papel do governo, de um governo que não mostra um rumo, que repetir nossa própria história, a história de nossos vizinhos, de vários países, da própria Alemanha no passado? Acho surpreendente que alguém acredite nisso. Escrevi isso num dos meus artigos na Folha que essa ideia de que um governo, que pode emitir sua própria moeda, siga emitindo dívida sem limite é para mim na verdade uma ameaça. Não é à toa que o dólar está tão alto aqui.

Vamos aos fatos. A política fiscal no Brasil, desde a Dilma (2014), virou uma das políticas fiscais mais gastadoras do mundo. Essa política, que foi um total colapso fiscal, alguém pode defendê-la? Eu não sei como as pessoas falam em austeridade, num país que está com déficit primário e acumulando muita dívida desde 2014. Alguns alegam que valeria a pena se endividar para investir.

Os programas de investimento do governo são difíceis de administrar. Defendo mais investimento público, há muito tempo. Defendo mais eficiência do estado, mas isso não resolve, inclusive porque o investimento público é lento, e nós estamos precisando de uma resposta, do ponto de vista conjuntural, imediata.

Acho que é preciso separar. Reconheço alguns passos, mas a ideia de que o governo brasileiro vai continuar se endividando, na expectativa de que isso vai gerar um futuro melhor, é um perigo monumental. O investimento público cair de 5% do PIB para menos do que 1% é um problema. Mas isso é porque, do outro lado, vários outros gastos aumentaram muito e ocuparam o espaço. Vejamos. A folha de pagamento do governo como um todo cresceu imensamente, a previdência brasileira é extravagante dada nossa relativamente jovem estrutura etária, que vem mudando rapidamente, e, sobretudo a partir da gestão Dilma, o Brasil gastou uma fortuna em subsídios. Segundo relatórios muito bem feitos pelo tesouro nacional, a tal da bolsa empresário, se quiser, os gastos tributários, chegaram a 7% do PIB, inclusive os subsídios do BNDES. O Bolsa Família, só para comparar, é 0,5%.

É evidente que o Brasil precisa reorganizar seus gastos, redirecioná-los na direção de mais produtividade e menos desigualdade, esse é o jogo. De onde vem o dinheiro? Dos gastos e subsídios que mencionei há pouco. Ao contrário dos países avançados, no Brasil, com juros de longo prazos ainda altos, e pouco crescimento e credibilidade, a opção de financiar com mais dívida seria muito arriscada.

RPD: A crise do estado de bem-estar social, na década de 1970, foi seguida, a partir de 2008, pela crise do modelo de auto regulação dos mercados mundiais. Está aberto o caminho para estratégias intermediárias de desenvolvimento?
AF:
A pergunta remete a um mundo que desembarcou do “fim da história” do Fukuyama, onde se supunha a vitória de um modelo liberal-democrático. Mas nada disso aconteceu. O estado-nação está mais forte do que nunca. Estou falando de China, Índia, Turquia, os Estados Unidos sob Trump e de outros casos menores, mas não irrelevantes, como Filipinas e o Leste Europeu, para não mencionar um número de combinações entre modelos econômicos e políticos.

Não bastasse a disseminação de um viés autoritário em muitos países, preocupa ainda mais o modelo econômico chinês. Eles abraçaram o mercado, mas com um controle quase que absoluto do partido, com a presença obrigatória de um membro do partido em todos os conselhos das principais empresas. Quanto ao tratamento da informação, o sentido de privacidade sob o comando do Xi Jinping meio que deu um cavalo de pau. No que parecia ser uma suave caminhada para algum grau de abertura, a partir das bases, ele pisou no freio. Pisou no freio também na internacionalização da moeda chinesa. Várias dessas ideias foram deixadas de lado, ante a introdução do controle de câmbio e de outras medidas duras. É um modelo que assusta, como o foi, no passado, o modelo soviético. Mas o chinês, por estar mais adaptado às realidades do mercado, representa talvez desafio maior para a construção de um mundo livre, aberto e pacífico, bom de se viver.

Representa, no fundo, um desafio para a socialdemocracia, para o liberalismo também, e, embora não me sinta qualificado para dar grandes respostas, arrisco supor um repensar do modelo social-democrático, vale dizer, da ideia de um liberalismo progressista e da própria socialdemocracia, conceitos que considero muito parecidos e que estão em crise. Bastaria mencionar o descontentamento das classes médias, em especial nos países desenvolvidos, diante da concorrência global, de um lado, e dos avanços da tecnologia, de outro. É um quadro que requer respostas urgentes, entre as quais se destaca um desafio existencial, que é a questão da mudança climática. Espero que chegada do Biden force maior coordenação no mundo ocidental e que o chamado soft power, não só americano, mas também europeu, cada um do seu jeito, volte a prevalecer.

Quero dizer que a chance de o mundo se desenvolver de uma forma tranquila depende muito do êxito do modelo ocidental. Mas não só. As pessoas que vivem sob regimes autoritários têm que saber que existe um modelo melhor, na linha do que os americanos oferecem, por ser um lugar aberto.

Para o Brasil e o mundo, vejo como muito importante a derrota do Trump. Em que medida essa adaptação política vai acontecer, não saberia dizer. Imagino para o Brasil uma visão que seja solidária e capaz, ao mesmo tempo, de gerar crescimento. Incluiria também o uso de tecnologia para queimar etapas, desde que seja complementar às pessoas e não substitutiva, distinção nada trivial. Recomendaria também – e com ênfase especial – a ideia, que, aliás, tem nossa cara, de um Brasil Verde, que caiba no seu espaço, com qualidade de vida para as pessoas, isto é, a qualidade do ar, da água, da alimentação, comentário autorizado para quem, como eu, mora no Rio.

O Brasil tem tudo para num período de uma ou duas décadas transformar-se transformar num espaço verde extraordinário. Olhem a Nova Zelândia, a Costa Rica. Não importa o tamanho, o modelo é que tem de ser bom. Acho que nossa adaptação ter de ser nessa linha.

RPD: O governo Biden pode influir nessa adaptação?
AF:
Indiretamente, sim, dando o exemplo. Só remover o exemplo péssimo do Trump já é bom. Se o Biden for na direção de Clinton, Obama, será um espetáculo. Mesmo que seja inevitável que os Estados Unidos, junto com os europeus, nos apertem um pouco. Podem até estender a pressão para outros temas, como Amazônia, direitos humanos, respeito à imprensa, respeito à própria democracia. Não dá para viver sem isso. Acho até bom para nós também. Talvez uma pressão externa não chegue a modificar muito o comportamento de nossas lideranças, mas a pressão do mercado pode: a pressão econômica eventualmente vai morder.

RPD: Executivo da BlackRock e Jorge Caldeira, em seu livro, Paraíso sustentável, defendem que a questão ambiental, a questão climática, tem influência direta nas finanças, na produtividade, nos lucros das empresas. Qual sua visão a respeito?
AF:
Considero procedente essa visão. A BlackRock está certa em defender essas causas e trazê-las para o dia a dia das empresas, das pessoas, acho super saudável. Mas nada disso substitui o governo. Acredito em autorregulação, mas ela só funciona, se acima da autorregulação, tiver a regulação do Estado. E, claro, estou pressupondo um Estado de boa qualidade, sem a qual país algum se desenvolve. Essa é a estrutura básica. Vejo como muito positiva as opiniões acima indicadas. Esse movimento, que se identifica como ESG, a meu ver, é saudável, porque toca num nervo sensível das pessoas, uma alma solidária. E essa é uma crítica, inclusive uma autocrítica, que muitos economistas mundo afora vêm fazendo e que, a meu ver, faz todo sentido. Entendo que esse assunto vai longe. Não até onde precisa chegar, no entanto, sem uma participação concreta do Estado. As boas intenções do setor privado têm de ser complementadas por um Estado que também cumpra com o seu papel.

Venho refletindo muito sobre o tema ESG, em geral. O G, de governança, no Brasil tem avançado bastante. O que aconteceu com a Petrobras foi um enorme acidente de percurso, mas foi apenas isso, porque, no mundo privado, as empresas vêm evoluindo muito bem nessa direção, já não é de hoje. Foi um movimento que nasceu dentro do setor privado, na bolsa de valores em particular, no Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. É, sem dúvida, uma revolução, o que aconteceu aqui no Brasil, está dando muito certo.

O S de social é carente no Brasil, a despeito de governos socialdemocratas e do próprio PT. Ainda há muito a faze. Mas também penso que há alguma consciência, não no momento, mas há. E o A de ambiental é o que estamos discutindo. É indispensável, essencial, é uma questão de sobrevivência do planeta, que se faça a transição. Ela está acontecendo de forma lenta e perigosa. O governo Trump deu, na verdade, duro golpe nesse projeto, ao se afastar do acordo de Paris. Mas agora, com o Biden, pode voltar aos trilhos. Vejo, de novo, o Brasil numa posição muito boa para ocupar esse espaço e de uma forma que projete para o mundo a consciência de que essa é uma questão planetária, e boa para nós também.

*Arminio Fraga
Sócio fundador da Gávea Investimentos e presidente do conselho do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde. Membro do Group of Thirty e do Council on Foreign Relations. Foi presidente do Banco Central (1999-2003), presidente do conselho da B3, diretor do Soros Fund Management e trustee da Princeton University (EUA), onde obteve seu Ph.D.. Foi professor da PUC-Rio, da EPGE-FGV, da SIPA-Columbia (Nova York) e da Wharton School (Pensilvânia).

*Raul Jungmann
Ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.

*Caetano Araújo
Consultor legislativo do Senado Federal, sociólogo. É diretor da Fundação Astrojildo Pereira (FAP)


RPD || Entrevista Especial - Marcos Nobre: 'Se Bolsonaro se reeleger, acabou a democracia no país'

Jair Bolsonaro “tenta destruir as instituições por dentro”, avalia o cientista social Marcos Nobre. Para ele, é preciso que as forças democráticas de direita, de centro e de esquerda se unam em torno da queda do presidente

Por Caetano Araujo e Vinícius Müller

O projeto autoritário do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para o Brasil é de longo prazo e se a oposição insistir na estratégia de fidelizar parcelas separadas do eleitorado, sem pensar numa grande coalizão de forças, será impossível derrotar o atual presidente em 2022, avalia o professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), Marcos Nobre, entrevistado especial desta 27a edição da Revista Política Democrática Online (RPD).

Para Marcos Nobre, Bolsonaro governa para um terço do eleitorado, no qual se apoia para não sofrer impeachment e chegar ao segundo turno das próximas eleições. E faz um alerta: "Nós temos que conversar com esse eleitorado e convencê-los de que é necessário levar Bolsonaro ao impeachment. Se não for possível o impeachment, em convencê-los de que é necessário votar em uma candidatura do campo democrático", acredita.

Marcos Nobre, entre outros, publicou, pela Companhia das Letras, Imobilismo em movimento. Da redemocratização ao governo Dilma (2013) e, pela Todavia, Como nasce o novo. Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel (2018) e Ponto-final. A guerra de Bolsonaro contra a democracia (2020). A seguir, os principais trechos da entrevista.

Revista Política Democrática Online (RPD) - Como interpretar a mudança de comportamento do governo após a reação do Supremo Tribunal Federal às ameaças de manifestantes governistas radicais?  

Marcos Nobre (MN): Acho importante ressaltar, em primeiro lugar, que Bolsonaro fez apenas um recuo tático, o projeto autoritário, vale dizer, o confronto dele com as instituições, continua em curso. O que aconteceu foi que uma parte do sistema político decidiu apoiar um projeto de extrema direita. O que se chama de Centrão são muitos, como ficou claro nas eleições municipais e, agora, no processo conducente à eleição das mesas da Câmara e do Senado. Ainda não conhecemos o resultado dessa disputa, mas sabemos que o sistema político se dividiu em três: um bloco de apoio ao governo, ou seja, um bloco que decidiu apoiar um presidente de extrema direita; um outro bloco que está à direita, que chamaria de direita tradicional, que também se organizou de maneira independente do governo Bolsonaro; e existe a esquerda. Qual é o elemento fundamental da situação atual? É que nós temos um presidente abertamente golpista, com um projeto autoritário. Aí diz-se: "Não, mas as instituições estão segurando". Peço para se fazer uma única comparação, entre o Brasil de 2020 ou de 2021 com a Hungria de 2012 e 2013. Ou seja, naquele momento de primeiro mandato de Orbán, quantas pessoas achavam que a democracia estivesse de fato em risco na Hungria? Temos de ter clareza quanto à gravidade do momento.  

RPD - Na conjuntura presente, quais são as tarefas imediatas das forças democráticas de oposição?   

MN: Quando se tem uma situação como a nossa, o que se pode fazer é uma frente ampla em defesa da democracia, não existe outra saída. A não ser que se continue a subestimar, tanto o projeto autoritário do Bolsonaro, como a capacidade dele de se reeleger em 2022. Se todo mundo achar que as instituições estão funcionando, que a democracia não está em risco e que se o Bolsonaro se reeleger o Brasil vai continuar democrático, aí realmente não precisa fazer nada. O que tem que ser feito é um acordo para isolar Bolsonaro, ou seja, as forças democráticas precisam sentar e fazer um acordo em torno de coisas muito básicas. Não vai poder mais acontecer o que aconteceu no Brasil desde a eleição de 2014, ou seja, não se pode dizer que a eleição foi fraudulenta, não se pode dar golpe, não se pode dar rasteira no adversário e tentar jogar o adversário para fora do campo político, de fora do sistema político. Isso tem reflexo eleitoral? Tem. Por quê? Terá de ser um acordo de reconstrução institucional, um pacto de convivência democrática entre as forças políticas. Qualquer que seja a candidatura que passar para o segundo, terá de contar com o apoio da integralidade do campo democrático, não importando se é da esquerda ou da direita.  

"Se ele (Bolsonaro) se reeleger, acabou a democracia no país. O primeiro mandato é de destruição de instituições e o segundo mandato é de implantação do autoritarismo"

É um projeto difícil, mas a alternativa é perder a democracia. Basta olhar para a eleição americana. O Trump tentou – e continuou tentando – dar golpe, ao insistir em manipular os resultados do pleito. Agora, vamos transferir isso para o Brasil. O Bolsonaro vai querer sair do poder tranquilamente? Ele sabe que o risco dele, da família e dele próprio irem para a cadeia é muito alto. Então ele não tem nada a perder. Se ele se reeleger, acabou a democracia no país. O primeiro mandato é de destruição de instituições, e o segundo será de implantação do autoritarismo, como o fez Viktor Orban, na Hungria. Esse é que é o script autoritário do populismo da década de 2010.   

 
RPD: Quais os principais obstáculos à cooperação entre as diversas forças e oposição e como superá-los?
MN: Primeira coisa: o exemplo dos Estados Unidos não nos serve. Ou seja, nós não teremos uma candidatura única do campo democrático em 2022. Então não nos serve esse exemplo.  

Mas há elementos que permitem pensar uma saída. Um sinal disso é o que se está insinuando na organização de forças para a escolha do novo presidente da Câmara dos Deputados. Uma direita tradicional se descolou da extrema direita e propôs à esquerda um acordo em torno da presidência, isso é muito importante. Não é pouco importante. Então talvez se possa pensar no seguinte. A pergunta central tem de ser formulada com clareza e a resposta dada com consciência: É grave risco para a democracia a reeleição de Bolsonaro? È preciso com que o campo democrático repactue entre si a democracia brasileira? Vejam bem; não é uma discussão a ser enfrentado no nível dos partidos, do sistema político, mas conduzida desde baixo. Caso contrário, a pretendida repactuação ocorrerá simplesmente no topo do sistema político, nas cúpulas.   

Na democracia, só existem adversários, mas Bolsonaro é um inimigo, porque ele é um inimigo da democracia. Então como fazer para que essas forças aceitem se sentar para negociar? Primeira coisa, muita política, precisam conversar. Diante da atual correlação de forças, a julgar pelos resultados recentes das eleições municipais, o projeto de esquerda – se é que a esquerda tem um projeto – consegue se impor? Não é provável, a correlação de forças lhe foi claramente desfavorável, tendo alcançado algo como 25% dos votos.   

Mas lembremos que um projeto de esquerda precisa da democracia, é um oxigênio sem o qual não dá para construir seu projeto político. A conversa à que me referi como caminho obrigatório para a repactuação tanto almejada terá, portanto, de consolidar a visão de que a democracia é também objetivo maior para a direita tradicional. Somente assim será possível construir algo como uma frente ampla comprometendo os campos da direita democrática e da esquerda democrática.  

A direita democrática não pode atrapalhar a reconstrução da esquerda, assim como a esquerda não pode atrapalhar a reconstrução da direita, dessa direita democrática, não da extrema direita, que evidentemente, está fora da mesa de negociação. Esse é que é o ponto: não só fazer política, mas também discutir política, porque isso é que desapareceu. Não se pode mais ficar nesse joguinho de lacrar em rede, "Você me deu um golpe, não converso com você", "Você votou no Bolsonaro, não converso com você", pois isso é o levará exatamente à reeleição do Bolsonaro. É importante empurrar os partidos na direção de discutir política como gente grande, sem o quê não há saída.  

"A primeira coisa que eu acho importante é que Bolsonaro fez apenas um recuo tático, o projeto autoritário dele continua em curso, o confronto dele com as instituições continua em curso"

Volto a mencionar o que estamos presenciando na disputa em torno do novo presidente da Câmara, para mim sinais alentadores de que, de alguma forma, já se vem insinuado uma frente ampla democrática no Congresso. Se não, como explicar a convergência de esforços que viabilizou a aprovação do FUNDEB e do auxílio emergencial? Isso é a frente democrática na prática. Para mim, pouco importa se a direita tradicional resolve fazer suas declarações de amor à democracia, por pragmatismo, ao não ter conseguido dirigir e ocupar o governo Bolsonaro, como achava que pudesse. Isso para mim pouco importa. O que importa é que demonstrou que está realmente preocupada com o que pode acontecer com uma reeleição do Bolsonaro, isso para mim está claro, e abandonou o barco do governismo.   

"Qual é o elemento fundamental da situação atual? É que nós temos um presidente abertamente golpista e que tem um projeto autoritário"

A esquerda, por outro lado, considera necessário o impeachment, na avaliação de que não é possível deixar Bolsonaro chegar até 22, no exercício do mandato, porque concorreria com mais poder. Se a direita democrática vai topar um impeachment ou não, vai depender da esquerda convencer a sociedade. Esta, sim, é uma tarefa da esquerda - convencer a sociedade da necessidade do impeachment. Por quê? Porque as condições para o impeachment são muito exigentes. Será preciso subtrair apoio social do Bolsonaro, muito. E sabemos que a aprovação do governo Bolsonaro é altíssima, 37%, algo enorme, sobretudo depois de tudo o que aconteceu. Se formos capazes de convencer a sociedade dessa necessidade, se conseguirmos retirar apoio ao governo Bolsonaro, se conseguirmos fazer pressão sobre o Congresso, se conseguirmos convencer a direita democrática das vantagens do impeachment, teremos feito a coisa mais importante para a democracia brasileira, a mais importante de todas.   

RPD: Estas dificuldades em mantermos um ambiente democrático não revelam, na verdade, um problema estrutural da sociedade brasileira? A ascensão de Bolsonaro não é fruto de uma combinação entre uma conjuntura -  que vem sendo alimentada desde os anos 90 e que foi potencializada a partir de 2013 - , e traços estruturais e mais enraizados da sociedade brasileira?  

MN: Para mim, o marco temporal é 2013, porque, em 2013, ficou claro que a democracia brasileira, tal como estava funcionando até ali, não estava mais funcionando para a população brasileira. Qual foi a resposta do sistema político a junho de 2013? Blindar-se. A resposta do sistema político foi lamentável, porque foi uma resposta de se blindar, de se fechar em si mesmo, colocando-se em um modo de autodefesa, de sobrevivência, e, com isso, permitindo que essa energia social, já dispersa, solta na rua, não fosse canalizada para o sistema político. E, não sendo canalizada para o sistema político, para onde foi, então? Foi, de um lado, para a Marielle Franco, para um monte de mandatos coletivos, para novas intervenções. Mas foi também, de outro lado, para a Lava Jato, para maneiras de vampirizar essa energia social difusa que vendiam a ilusão de que poderiam fazer a reforma que o sistema político se recusou a fazer. Foi uma vertente que favoreceu também Bolsonaro, que aproveitou para proclamar: ‘Esse sistema nunca vai se autorreformar, então você tem que votar em alguém que é contra o sistema, e o único que é contra o sistema sou eu’. Esse populismo antiestablishment é característico da extrema direita dos anos 2010.  

"O que tem que ser feito é um acordo sobre isolar o Bolsonaro, ou seja, as forças democráticas precisam sentar e fazer um acordo em torno de coisas muito básicas"

RPD: Por que Bolsonaro, com seus ataques à democracia e às instituições e mesmo com uma conjuntura desfavorável - pandemia e crise econômica - mantém sua popularidade?  

MN: Vamos fazer uma diferenciação no caso do Bolsonaro. É difícil estimar qual que é o núcleo duro de apoio ao Bolsonaro, é difícil. Mas é alguma coisa entre 12 e 15% do eleitorado. Estamos falando de uma coisa enorme, cerca de 20 milhões de votantes no núcleo duro do Bolsonaro. Agora, para chegar a 37%, faltam ainda 22%. Esses 22% não pertencem a esse núcleo autoritário do Bolsonaro, embora também comprem a história do antissistema. O Bolsonaro continua sendo, como presidente, contra o sistema, ele continua se colocando como outsider, e nós continuamos tratando o Bolsonaro como se ele fosse de fato um outsider. E isso é extraordinário, é a hegemonia total, a vitória total do Bolsonaro no campo cultural, se a gente quiser usar a expressão antiga. É isso, ele destrói as instituições porque as instituições devem ser destruídas porque elas são injustas. E ele tem apoio por isso.   

Então o que a gente, como democratas, temos que fazer? Temos que conversar com esse eleitorado, esses 22%, que apoiam o Bolsonaro, mas que não pertencem ao núcleo duro, e convencê-los de que é necessário levar Bolsonaro ao impeachment. Se não for possível o impeachment, em convencê-los de que é necessário, em 2022, votar em uma candidatura do campo democrático. Essa é a nossa tarefa política. Porque se a gente considerar que 37% são autoritários, então esquece, não tem mais saída. A tática do Bolsonaro sempre foi de governar para um terço, que é esse um terço do eleitorado que é claramente antissistema. Que vota em quem for antiestablishment, e como eles não têm alternativa, eles ficam com o Bolsonaro, porque não apareceu nenhuma alternativa. Então o Bolsonaro decidiu: "Eu vou governar para esse um terço, eu não vou governar para a maioria". Isso é uma tática, e por que é um terço? Porque com um terço você continua não dando maioria e, portanto, você convence todo mundo de que você é antissistema mesmo, porque você não consegue ter o apoio da maioria, então você só pode ser antissistema, certo? Segundo, você consegue com isso uma vaga no segundo turno em 2022 com um terço, e você tem um seguro anti-impeachment. Você tem as três coisas. Isso é muito relevante para entender como o Bolsonaro funciona. Sem entender bem como o Bolsonaro funciona, o campo democrático não vai saber onde tem que bater, porque precisa ter tática, precisa ter estratégia muito clara, porque se não nós vamos perder. E vamos perder feio.    


Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

Revista da FAP analisa o resultado das eleições em direção diferente a da polarização de 2018; acesso gratuito no site da entidade

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O recado das urnas em direção oposta à da polarização de dois anos atrás, o desastre da gestão governamental de Bolsonaro que gerou retrocesso recorde na área ambiental e a incapacidade de o presidente exercer sua responsabilidade primária, a de governar, são destaques da revista Política Democrática Online de dezembro. A publicação mensal foi lançada, nesta quinta-feira (17), pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza a íntegra dos conteúdos em seu site, gratuitamente.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

No editorial, a publicação projeta o que chama de “horizonte sombrio”. “Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional”, diz um trecho.

Em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, o professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo), José Álvaro Moisés, avalia que existe, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer Bolsonaro nas eleições de 2022.

Moisés, que é coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade. Isso, segundo ele, para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País.

Outro destaque é para a análise do historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, que avalia que “o Ano 2 – como dizem os jovens – ‘deu mal’ para Bolsonaro”. Ao final de 2020, diz o autor do artigo, o destino o presidente é cada vez mais incerto, com popularidade declinante e problemas políticos de grande magnitude. “Com a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, perdeu seu principal referente ideológico”, afirma Aggio.

“O isolamento internacional do País é sem precedentes, depois de desavenças com a China e a União Europeia. Sob pressão, Bolsonaro estará forçado a uma readequação na política externa. Não haverá futuro caso não se supere a redução do Brasil a ‘País pária’ na ordem mundial, admitido de bom grado pelo chanceler Ernesto Araujo”, acrescenta o professor da Unesp.

Ex-ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública e ex-deputado federal, Raul Jungmann analisa, em seu artigo, a necessidade de dialogar e liderar as Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil. Isso, segundo ele, “é um imperativo da nossa existência enquanto nação soberana”.  “Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as FFAA, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites, é também uma questão democrática, incontornável e premente”, assevera.

O conselho editorial da revista Política Democrática Online é formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

Veja lista de todos os conteúdos da revista Política Democrática Online de dezembro:

  • José Álvaro Moisés: ‘O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum’
  • Cleomar Almeida: Vítimas enfrentam longa via-crúcis no combate ao estupro
  • Charge de JCaesar
  • Editorial: Horizonte sombrio
  • Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo
  • Paulo Ferraciolli: RCEP, o maior tratado de livre-comércio do mundo
  • Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro – Uma eleição e dois scripts
  • Bazileu Margarido: Política ambiental liderando o atraso
  • Jorio Dauster: Do Catcher ao Apanhador, um percurso de acasos
  • Alberto Aggio: Bolsonaro, Ano 2
  • Zulu Araújo: Entre daltônicos, pessoas de cor e o racismo
  • Ciro Gondim Leichsenring: Adivinhando o futuro
  • Dora Kaufman: Transformação digital acelerada é desafio crucial
  • Henrique Brandão: Nelson Rodrigues – O mundo pelo buraco da fechadura
  • Hussein Kalout: A diplomacia do caos
  • João Trindade Cavalcante Filho: O STF e a democracia
  • Raul Jungmann: Militares e elites civis – Liderança e responsabilidade

Leia também:

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


Caetano Araújo: Ecos da Guatemala

Depois das manifestações massivas no Chile e no Peru, chegou a vez da Guatemala. Milhares de manifestantes saem às ruas do país, num roteiro semelhante aos eventos de 2015, que terminaram com a queda e posterior prisão do então presidente do país. O movimento tem bandeiras claras: combate à corrupção e alocação eficiente dos recursos públicos. O estopim da crise foi a proposta de orçamento, que embute aumento expressivo da dívida pública, em benefício de alguns setores empresariais, com a redução concomitante dos recursos destinados à saúde e à educação. A renúncia do presidente já é discutida abertamente, até nos círculos governistas.

Nas diferentes capitais da América Latina sucedem-se manifestações intermitentes de insatisfação política. Na verdade, todos esses eventos são as manifestações visíveis do mesmo terremoto que opera nas profundezas do subcontinente. Para pensar esse terremoto, podemos usar, a título de hipótese, a expressão “paradoxo da educação mínima”, em analogia com as armadilhas da situação de “renda média”, que anima o debate econômico.

A descrição do paradoxo é simples. Em situações de legalidade democrática e relativa estabilidade econômica, com acesso à informação em tempo real, um pequeno crescimento nos níveis de escolaridade dissemina na população, simultaneamente, a consciência de suas carências e da responsabilidade do Estado pela sua superação. A agenda política que daí resulta tem duas caras: eficiência dos serviços públicos e, para chegar a tanto, aperfeiçoamento das instituições. Na linguagem comum, reforma política e reforma democrática do Estado.

No Brasil, a sequência temporal entre progresso educacional e nova agenda foi clara. A universalização do ensino fundamental entre nós data de fins do século XX e a primeira geração que sofreu o seu impacto foi protagonista das manifestações de 2013. O processo constituinte, em debate no Peru, está acordado no Chile. Na Guatemala, teremos que aguardar os desdobramentos do processo para ter alguma clareza a respeito de seu desfecho provisório.

Não é a primeira vez que países da América Latina partilham o mesmo conjunto de tarefas e desafios históricos. Em anos não muito distantes, a tarefa de pôr fim às ditaduras e reiniciar a ordem democrática foi enfrentada com sucesso, seguida, quase de imediato, pela conquista de algum patamar de estabilidade econômica. Nesses momentos, em consonância com as especificidades históricas de cada país, foram constituídos operadores políticos à altura das demandas da conjuntura.

Hoje, em contraste, as demandas estão claras, para população e para os atores da política, mas o ritmo da política é mais acelerado e os operadores competentes demoram mais a aparecer.

*Sociólogo, diretor da Fundação Astrojildo Pereira


RPD | Entrevista Especial | Arnaldo Niskier: 'Falta tudo à educação brasileira'

O professor Arnaldo Niskier avalia que o país sofre sem um plano nacional de educação e com o principal órgão – o Ministério da Educação – minado por uma gestão precária que mistura ideologia com gestão escolar. “Essa mistura não é saudável: prejudica os beneficiários do processo – os estudantes”, avalia

Por Cristovam Buarque e Caetano Araújo

Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e ex-membro do Conselho Nacional de Educação (CNE), Arnaldo Niskier é o entrevistado desta 22ª edição da Revista Política Democrática Online. Autor de mais de 100 livros, especialmente sobre educação. É professor aposentado de História e Filosofia da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ) e Doutor em Educação pela UERJ. Foi membro do Conselho Federal de Educação (CFE), do Conselho Estadual de Educação (CEE-RJ) e secretário de Estado do Rio de Janeiro por quatro vezes.

Nesta entrevista que concedeu ao presidente do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), o ex-senador Cristovam Buarque (Cidadania-DF), e a Caetano Araújo, da Diretoria Executiva da FAP, Niskier comenta a situação atual do educação no Brasil e possibilidades de futuro, entre outros temas.

“Talvez eu esteja sendo otimista em excesso, mas sei que o país precisa que o Ministério da Educação acorde definitivamente; que monte uma equipe positiva, uma equipe que se preocupe com os verdadeiros problemas da educação; e que não faça da ideologia um procedimento prioritário, porque não é essa a prioridade do nosso país”, avalia Niskier.

Confira, a seguir os principais trechos da entrevista de Arnaldo Niskier à Revista Política Democrática Online.

Revista Política Democrática Online (RPD): Estamos no quarto ministro da Educação deste governo. Os três primeiros foram inoperantes ou polêmicos, ou ambos. O quarto, depois da posse, não pôde trabalhar porque caiu vítima da Covid 19. A educação no Brasil aguenta essa conjuntura?

Arnaldo Niskier (AN): Não, acho que não. Na linha do meu artigo publicado na Folha de S. Paulo, considero que o MEC não sai do lugar, e que todo lugar em que ele ficou foi infelizmente um lugar desairoso. Falta tudo à educação brasileira, e o Ministério da Educação não corresponde às expectativas que temos em relação a este importante órgão público. Não corresponde, porque inclusive existe um Plano Nacional de Educação (PNE) que previa operação de 20 metas bastante objetivas, 20 metas e mais de 50 indicadores, e, dessas todas, duas ou três andaram um pouco, e as outras todas ficaram na saudade.

O problema não é, para mim, só o dinheiro, porque dinheiro acaba aparecendo. O problema é fundamentalmente a gestão do órgão que tem sido precária. Há uma mistura de ideologia com gestão escolar, e essa mistura não é saudável: prejudica os beneficiários do processo – os estudantes. O Brasil tem 60 milhões de estudantes nas escolas do país, e eles estão mal servidos, na minha opinião. Não estão tendo a cobertura devida para suas necessidades, e isso é, sem dúvida, negativo.

“O Brasil tem 60 milhões de estudantes nas escolas do país, e eles estão mal servidos, na minha opinião. Não estão tendo a cobertura devida para suas necessidades, e isso é, sem dúvida, negativo”

O quarto ministro, Milton Ribeiro, inspira-me alguma esperança. É um pastor presbiteriano, egresso da Universidade Mackenzie. Meu irmão, Silvio, trabalhou lá cerca de 25 anos, e sempre me passou relatórios muito favoráveis sobre funcionamento da instituição, que aprendi a admirar. Acredito, portanto, que, tão logo ele se recupere da Covid-19, poderá dar um jeito na situação.

Talvez eu esteja sendo otimista em excesso, mas sei que o país precisa que o Ministério da Educação acorde definitivamente; que monte uma equipe positiva, uma equipe que se preocupe com os verdadeiros problemas da educação; e que não faça da ideologia um procedimento prioritário, porque não é essa a prioridade do nosso país. A prioridade é acabar com o analfabetismo, que ainda atinge 12 milhões de pessoas acima dos 15 anos de idade; aperfeiçoar o ensino fundamental; dar a implementação devida ao ensino médio; tratar adequadamente o ensino superior. Eis algumas prioridades que alinho.

Cristovam Buarque (CB): Não há dúvida de que se deve receber bem o novo ministro. Comparado com os anteriores, é muito melhor. Mas a questão é se precisamos de ministro, de um Ministério da Educação de base. O MEC é um ministério que só cuida das universidades, do ensino superior, cujos sindicatos e associações dos estudantes tornam o ministro um prisioneiro. As universidades são muito fortes. Quando Paulo Renato criou o ENEM, o foco era avaliar o Ensino Médio. Mas ninguém dava importância. Quando virou um instrumento para o ingresso na universidade, que foi uma boa coisa, realmente, acho que mudou no tempo do Haddad, aí todo mundo descobriu o ENEM, para reservar, porém, maior importância à educação superior, descuidando-se da educação de base. Não seria o momento de o MEC voltar-se para a educação de base, deslocando-se o ensino superior para algum outro ministério, centrando-se a educação de base como tema primordial do governo federal, no colo do presidente da República?

E uma segunda pergunta: comemorei quando o FUNDEB foi renovado, depois de 20 anos. Mas o que vai mudar? O FUNDEF já tem dez anos. O primeiro PNE, com 15 anos; o segundo, com cinco. Há oito anos, alterou-se o piso nacional de salário para os professores. Isso melhora, mas não permite o salto, está aquém das possibilidades, das necessidades, da ambição.

AN: Recordo que o Brasil ocupa colocação lastimável no PISA. Estamos no 57º lugar entre 80, 90 países. Somos uma vergonha em matemática, em português e leitura.

CB: Dez anos depois do FUNDEB, tenho duas ambições: que o Brasil se situe entre os melhores no plano da educação, e que o filho do pobre estude numa escola tão boa quanto a do filho do rico. Em qualquer país decente do mundo, a escola não tem nada a ver com CEP, nem com o CPF. No Brasil, depende-se do CPF ou do CEP, de onde mora ou de quem é o pai. Não estamos querendo fazer uma comparação entre o nós hoje e o nós ontem, mas entre o “nós” daqui a 20 anos e a Finlândia daqui a 20 anos. Para isso, um Ministério da Educação específico terá de assumir a educação de base. São as duas perguntas: a ambição e a estrutura. Um MEC centrado na educação de base, para nos situarmos os melhores do mundo, e a escola igual para todos.

“Tive a oportunidade de conversar com o ministro da Educação finlandês, um jovem de cerca de 40 anos, a quem perguntei qual a razão principal do sucesso da Finlândia em matéria de desenvolvimento. E ele me respondeu: ‘São três razões. A primeira é educação, a segunda é educação, e a terceira é educação’”

AN: Você tem razão. Sei que tem defendido a ideia de que, para o ensino superior, deveria haver um outro ministério, mais ligado ao desenvolvimento científico, tecnológico e à inovação. Isso pode ser uma bela ideia. Mas é preciso que isso seja algo que esteja também na alma do presidente da República. Tenho a impressão de que ele não entende nada do que está acontecendo na nossa educação. As declarações que ele faz são desastrosas. Na discussão do FUNDEB, foi derrotado. A equipe dele, os deputados que o apoiam, foram fragorosamente derrotados pelas ações do presidente Rodrigo Maia. A versão que ficou do FUNDEB foi a função prioritária dada pelo Rodrigo Maia ao exame da matéria. Por que o FUNDEB foi importante? Porque ele mexe com 4.800 municípios brasileiros. Dos 5.500 que nós temos, 4.800 são abrangidos, recebem recursos do FUNDEB. Então, não é algo que se possa desprezar. Ao contrário, nós temos de prestigiar. Eu acho que você tem toda a razão de exigir que o MEC tenha uma ação sobre o ensino fundamental ou a educação básica, para abranger também o ensino médio. Isso seria muito importante, mas só vai ocorrer quando houver uma compreensão geral do processo, a partir, como eu insisto, do próprio presidente da República, que tem de ter uma compreensão maior e melhor do processo.

RPD: Que avaliação se pode ter sobre o presidente da República na área da Educação? Parece que, enquanto estivermos neste governo, com este presidente, o ministro pode até ser esforçado e bem-intencionado, que os resultados serão modestos nessa área. Haveria algum espaço para se fazer algo mais?

AN: A prática tem demonstrado que o tratamento dado pelo presidente à educação é rigorosamente precário. Ele não leva a educação a sério. A gestão do ministro Weintraub, mais de um ano no ministério, foi uma catástrofe. Declarações e ações absurdas. Acho que nossa educação não merece isso. Temos necessidades prementes, que precisam ser supridas, precisam ser atendidas, e se a atitude do presidente fosse outra, é claro que Weintraub não ousaria cometer os absurdos perpetrados durante aquele quase ano e meio. Eu conheço bem o Ricardo Vélez. Coitado, tentou ideologizar sua ação no ministério, e deu tudo errado. Sucedeu-lhe o Weintraub, pior ainda. Aí veio o ministro Decotelli, que cometeu o inexplicável, incluir em seu currículo tanta coisa que não tinha concluído. Era um mau princípio, ele começou com o pé esquerdo e, naturalmente, não sobreviveu. Chega, agora, o vice-reitor da Universidade Mackenzie, onde se formou. São credenciais que muito o habilitam a desempenhar-se bem da nova difícil missão.

RPD: Quando se compara o Brasil inclusive com outros países em desenvolvimento, verifica-se grande diferença, não em nosso favor, quanto à consciência de que a educação e a qualificação da mão de obra são instrumentos imprescindíveis para que logremos índices mais altos de avanços na economia e nas relações sociais. Por que é tão difícil cristalizar essa visão? Será preciso um trabalho de base junto à cidadania para convencer o quanto essas prioridades são inexoráveis?

“Eu acho que você tem toda a razão de exigir que o MEC tenha também uma ação sobre o ensino fundamental ou a educação básica, para abranger também o ensino médio. Isso seria muito importante, mas só vai ocorrer quando houver uma compreensão geral do processo, a partir, como eu insisto, do próprio presidente da República”

AN: Você suscita ponto importante. Anteontem, no canal Futura, apresentei em meu programa habitual “Identidade Brasil”, às19h30, em horário nobre, portanto, uma nova escola, em Helsinki (Finlândia), bem sintonizada com a mentalidade de um país voltado prioritariamente para a educação. Trata-se de uma escola bonita, inaugurada há sete ou oito anos, para 1.100 alunos, em que as aulas demoram 90 minutos, para permitir ao professor avançar, inclusive na parte de aplicação prática dos conhecimentos que são ministrados aos alunos. Nos intervalos, os alunos podem frequentar os laboratórios, as bibliotecas que estão a serviço do alunado dentro da escola. Enfim, são lições admiráveis. Já tinha estado algumas vezes na Finlândia, porque tive a honra de ser durante 13 anos o cônsul da Finlândia no Rio de Janeiro. Um país pequeno, de população pequena, que conseguiu destacar-se com um nível educacional dos mais altos do mundo.

No curso de uma viagem anterior, tive a oportunidade de conversar com o ministro da Educação finlandês, um jovem de cerca de 40 anos, a quem perguntei qual a razão principal do sucesso da Finlândia em matéria de desenvolvimento. E ele me respondeu: “São três razões. A primeira é educação, a segunda é educação, e a terceira é educação.” É o que a gente tem na cabeça também, é a educação que leva um país ao desenvolvimento, leva um povo à sua felicidade, à realização do emprego, da obtenção dos recursos, para que possa sobreviver dignamente. Voltei dessa viagem com a sensação de que tinha ido ao encontro de uma questão extraordinária, que é a prioridade que se deve dar ao trato da coisa pública. Educação em primeiro lugar, em segundo e em terceiro. Infelizmente, estamos longe disso, bem longe disso.

CB: É possível a gente chegar a esse nível numa estratégia de 20, 30 anos? Demora, a Finlândia começou nos anos 1970 a fazer isso, mas a pergunta permanece: é possível fazer isso apenas mexendo nos municípios, a exemplo do que o FUNDEB faz? Só mexendo, a gente vai chegar ao padrão Finlândia? Ou vai-se precisar muito mais do que mexer? Adotar os sistemas municipais com liberdade pedagógica e com descentralização gerencial? Basta mexer com mil reais por ano por criança que o FUNDEB passa, ou vai-se precisar mais do que mexer, como fizeram a Finlândia e a Irlanda, mas intervir, digo, o Brasil intervir? Claro, não vai ser esse governo que está aí. Mas, se o governo passa, volto à pergunta: será suficiente mexer, ou tem-se de intervir, isto é, a nação brasileira, na educação de cada criança?

AN: Tem de intervir, de modo saudável. Você falou na Finlândia. Não podemos concentrar nossa preocupação apenas no modelo finlandês, embora ele seja extraordinário. Conheci também o caso da Coreia do Sul, outro bom exemplo. A Coreia do Sul deu prioridade à educação a partir do Ensino Fundamental, e hoje é também um tigre asiático de primeira ordem. Agora, tivemos, ou estamos tendo, competência para criar o auxílio emergencial. O Brasil lavrou um tento pagando esse auxílio emergencial a mais de 50 milhões de brasileiros; é fantástico, não há como negar. Teve alguns problemas, alguns deslizes, mas isso é natural, o que será corrigido ao longo do processo. Se apareceu o dinheiro para o auxílio emergencial, por que não aparece para ajudar a educação a realizar seus projetos? Como você disse bem, Cristovam, a partir dos municípios. O Brasil, eu insisto, tem 5.500 municípios. Vivem, em sua grande maioria, num estado de absoluta pobreza e precariedade. Se houver uma preocupação saudável de mexer com a educação a partir da base, que ela venha via município, e os municípios que sejam assistidos financeiramente pela União, que é quem detém o cofre público. Acho que é por aí que se pode desenhar uma solução para o futuro do país.

RPD: Professor, o senhor foi um dos pioneiros do ensino a distância.

AN: Eu que criei, no antigo Conselho Federal de Educação, depois, Conselho Nacional de Educação, os elementos que foram cedidos ao senador Darcy Ribeiro, para que ele pudesse fazer a lei 9.394, de 1996, em que, pela primeira vez, se tratou oficialmente, em cinco artigos, do que seria a educação a distância. Tenho essa honra, esse orgulho, e hoje vejo que essas coisas evoluíram muito. Em matéria de educação a distância, em matéria de ensino remoto, ou híbrido, como o futuro se desenha nesse sentido, o Brasil é um modelo que pode – e deve – ser imitado. Ainda há desavenças quanto à qualidade do ensino remoto. Os professores ainda não foram devidamente preparados. Ainda não há internet em todas as escolas. A grande maioria de nossas escolas, de um total de 190 mil escolas em todo o Brasil, ainda não tem condições operacionais legítimas, diante da ausência da internet. E como funcionar sem internet? Não dá. É preciso, pois, que os recursos sejam direcionados para a montagem dessas escolas e a formação adequada de seus professores. Falar em formação adequada dos professores é falar também em remuneração condigna, porque os professores brasileiros estão ganhando muito mal em comparação com outras nações.

RPD: Como tudo no Brasil, as novidades só “pegam” diante de alguma crise. A pandemia criou essa crise, e hoje, as escolas estão sendo obrigadas a dar aulas remotamente, de uma maneira intuitiva, é verdade, com professores ainda não preparados para isso, improvisando metodologias e soluções. A pandemia poderá contribuir para desenvolver e amadurecer o que foi iniciado abruptamente com o ensino à distância?

“A grande maioria de nossas escolas, de um total de 190 mil escolas em todo o Brasil, ainda não tem condições operacionais legítimas, diante da ausência da internet. E como funcionar sem internet? Não dá”

AN: Acho que sim. Mas temos de tratar a pandemia com o devido respeito, e o devido cuidado. Estou há cinco meses em casa, me cuidando, porque estou no grupo de risco, com 85 anos… É preciso, portanto, ter cuidados e, certamente, não vamos ter saudade da pandemia. Em nenhuma hipótese, ela não nos servirá de exemplo, a não ser da resistência do povo brasileiro a esse tipo de sofrimento, porque, no fundo, é um sofrimento. Tantas mortes, tanta gente que foi infectada e que teve de passar por um processo penoso de recuperação. É uma recuperação que não se tem certeza de ser para sempre. Ainda se teme uma segunda onda, ou até uma terceira. Não temos certeza de nada. Agora, existe a notícia de que a Rússia já encontrou a vacina, e que vai começar a vacinar no mês de outubro, antecipando o que outros países vêm tentando. Na verdade, há 26 vacinas em estudos no mundo. A que está mais avançada, parece que é essa russa.

O Brasil tem experiências com a da Universidade de Oxford, tem experiências com a China também, e estamos rezando para que essas coisas se aperfeiçoem o mais breve possível e possam ser utilizadas em tempo hábil pelo povo brasileiro. No meio desse processo, existe a educação. Nossa esperança é a de que possamos sair dessa crise imensa, com tantas mortes sofridas, tantas mortes que lamentamos, com uma nova educação. O novo normal não será igual ao que acontecia antes da pandemia. Teremos um novo normal, com toda a certeza, e a educação pode e deve exercer papel primordial nesse processo, com qualidade. Virá a nova educação.

RPD: É possível esboçar um horizonte otimista para o futuro da educação no Brasil?

AN: Acho que melhor do que eu, o Cristovam, pela qualidade dos serviços já prestados ao país, como reitor da Universidade de Brasília, um reitor admirável; como governador de Brasília; ministro e senador da República, estaria em melhores condições de começar a responder a essa pergunta. Depois poderia fazer um fecho, se vocês concordarem.

CB: Começo cumprimentando Niskier por seu papel no impulso da ideia do ensino a distância. Ele agiu, como alguém que, no começo do século XX, soube entender a mudança do teatro para o cinema. E isso é mais importante ainda do que a própria característica remota. A aula vai tender a deixar de ser teatral, de um professor, e vai ser cinematográfica, feita por uma equipe. E esse produto, essa peça vai ser transmitida. Niskier podia ser mais reconhecido ainda como quem deu os primeiros passos nessa mutação. Mas ele pediu que eu dissesse alguma coisa para ele arredondar.

Quero dizer, então, que acredito que um dia, da mesma maneira que há em cada cidade uma agência do Banco do Brasil, vamos ter uma Escola do Brasil. Hoje, não existe a Escola do Brasil, hoje a escola é municipal, e, enquanto ela for municipal, não vai ter a qualidade que a gente espera, porque os municípios são pobres, e não só em dinheiro. Então, a ideia de que a Escola do Brasil possa replicar-se em cerca de 200 mil, desfrutando cada uma da devida liberdade pedagógica, é um horizonte ambicioso, por enquanto otimista, do que vai acontecer no país. Não dá para falar de marco temporal para tal conquista. Mas gostaria de deixar essa mensagem de que um dia, além do Banco do Brasil, a escola também vai ser do Brasil.

AN: Você tem toda a razão, reforçada por palavras de qualidade e de respeito. De minha parte, tenho lido muito ultimamente sobre esses pontos. E escrevi um livro, Memórias da Quarentena, que espero lançar nas próximas semanas. Fiz uma avaliação do que as coisas representam, coloquei neste livro muito da minha experiência como professor de História e Filosofia da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde militei por mais de 30 anos, uma escola pública de qualidade. Acho sinceramente que nós devemos dar prioridade aos recursos para a educação. Eles existem, não se iludam. Essa ideia de que o Brasil não tem dinheiro é uma ideia falsa. O dinheiro existe e aparece, como apareceu agora, conforme eu fiz referência, na pandemia, com o auxílio emergencial.

Temos também de formar bem os professores, melhorar os cursos de pedagogia, promover o interesse dos alunos pelos cursos de formação de magistério, o que não ocorre em nossos dias. Hoje, de todos os que fazem o ENEM, só 2% têm interesse em seguir a carreira do magistério. Isso é muito pouco, é um absurdo. Em comparação com outros países, é quase uma aberração. Temos de promover o interesse do aluno pelo magistério, e que isso se faça também com a promessa de salários compatíveis com a dignidade humana, como diz a nossa lei de diretrizes e bases da educação nacional.

Em síntese, defendo, entre outras, a adoção das algumas premissas sobre as quais será mais viável pensar no novo normal, numa nova educação: prioridade para as escolas municipais, como ressalta Cristovam; canalização de recursos públicos para aprimorar a educação híbrida – essa que combina o virtual e o presencial; aperfeiçoamento do que se deve fazer nas universidades, que não podem continuar sendo criticadas como foram na gestão de Weintraub; antes, têm de ser respeitadas e utilizadas como formadores de recursos humanos adequados e compatíveis para o desenvolvimento da educação, da ciência, da tecnologia e da inovação em nosso país.


Cacá Diegues: Gente é para brilhar

Caetano é uma hipótese de Brasil que gostaríamos que fosse a verdadeira

Para muitos brasileiros, o sol se levanta no fim da tarde. Mas não por preguiça ou enfado da vida, mas porque é essa a hora em que ferve a panela de uma cabeça privilegiada que só pensa em nós. Não por caridade, mas por saber que a solidariedade é a única forma de amor que não implica em propriedade do outro. E assim amamos e somos livres. Tudo o que ele faz, escreve, diz e canta está sempre assinalado por essa ideia, à qual ele parece dedicar vida e obra. Caetano Veloso é uma hipótese de Brasil que todos nós gostaríamos que fosse a verdadeira.

Caetano é um homem de muitos amigos, sem nenhum confidente especial. Não por falta de confiança, mas porque seus segredos estão por aí, a boca larga e pequena, nas letras de suas canções, no que ele diz e escreve. A poesia de Caetano não é nunca molenga, elegias ao que não importa. Ela é sempre o resultado de uma mente em chamas, amorosa e combativa, que não se deixa iludir pelo lugar-comum, mesmo que unanimemente vitorioso. Ele quer sempre saber se o contrário não é melhor. Ou não.

Às vezes, quando penso em Caetano, penso em conversas que já tive com Renata Magalhães (uma das produtoras de seu filme), Antonio Cicero (grande poeta, amigo do peito) ou Susana de Moraes (ela faria 80 anos, no último dia 5, vizinha leonina de Caetano), seus amigos e eventuais colaboradores. Os três adoram a hipótese de que o Brasil seja um ser cultural de caminhos contraditórios e radicais.

Quando é moderno, o Brasil pode ser a vanguarda experimental do mundo. Como foi com Tiradentes, um herói barroco do iluminismo que acordava a humanidade; ou Santos Dumont, que se recusou a registrar a invenção do avião, pois devia pertencer a todo mundo; ou Oscar Niemeyer, para quem Brasília era a concretização em concreto de um modo de viver, em que todos somos iguais. Mas, quando fica para trás, o Brasil é capaz de recuar à mais selvagem Idade da Pedra, produzindo os mais nefastos e bárbaros costumes, além de líderes equivalentes. Caetano foi sempre um dos primeiros, sem nunca resistir a tentar convencer os segundos, já que tudo pode mudar um dia.

Com todo o respeito aos outros admiráveis artistas e intelectuais do movimento, Caetano é seu líder ilustrado, o generoso criador maior do Tropicalismo, praticando-o radicalmente e promovendo-o em que missão estiver. Foi sua obra que o tornou o último estágio do nosso Modernismo, a conclusão de uma operação nacional de criação tão bem-sucedida, a melhor em nossa história, indo de Castro Alves a Roberto Carlos, dos Andrades de 22 aos irmãos Campos do concretismo, de Sousândrade a Leminski, de Villa a Tom.

Tudo isso com extrema consciência (e, às vezes, um certo pesar), como fica claro nesse trecho de seu livro de memórias “Verdade tropical”, de 1997, sobre a canção “Tropicália”, batizada pelo produtor do Cinema Novo, Luiz Carlos Barreto: “Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo”.

Conheci Caetano Veloso no início de 1966, às vésperas do carnaval, no Mercado Modelo de Salvador. Éramos um grupo de cinema que estava na Bahia para participar de um festival, numa época em que os festivais ainda eram raros.

Lá para as tantas, já de madrugada, chegou ao restaurante um menino com um violão embaixo do braço, parecendo muito mais moço do que sua verdadeira idade. Alguém na mesa o conhecia, ele acabou sentando conosco. Mas só se manifestou quando a conversa girou em torno da eterna disputa, então na moda, sobre raízes culturais. Alguns dos nossos nacionalistas do cinema arrasavam com a Jovem Guarda, quando Caetano pegou seu violão e cantou “Quero que vá tudo pro inferno”, num andamento mais lento, mais rebuscado, cheio de descobertas inesperadas. O silêncio se impôs na mesa e ele repetiu a canção muitas vezes. Quando terminou, eu estava aos prantos.

Caetano Veloso nunca mais saiu de minha vida, mesmo quando parecia não estarmos de acordo. Sexta-feira passada, ele fez 78 anos de idade e espero que, para nosso bem, ainda viva o dobro disso. Que nos lembre sempre de que gente é pra brilhar e não pra morrer de fome.