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Cacá Diegues: A indústria do simbólico

As resistências ao financiamento público da cultura brasileira têm origem em preconceitos políticos e ideológicos

No Brasil, quando se fala em cultura, se pensa logo na Lei Rouanet. Para elogiá-la ou, o mais comum, demonizá-la como instrumento de corrupção e malfeitos. Nada mais injusto. A Lei Rouanet, criada em 1991 pelo diplomata e filósofo Sergio Paulo Rouanet quando secretário de Cultura, viabiliza a produção cultural da qual participam decisivamente três diferentes sujeitos responsáveis, que a fazem passar pela vontade democrática dos setores concernidos da sociedade: o produtor cultural que propõe seu projeto, o poder público que cria as regras para seu financiamento e os agentes privados que vão deduzir de seus impostos o que lhes é permitido por lei investir. Claro, nenhuma lei é perfeita, e há sempre como aperfeiçoá-la. Mas negar a importância e o valor da Lei Rouanet é recusar o que se faz de mais avançado em quase todo o mundo civilizado, onde circulam regras parecidas, do capitalismo neoliberal dos Estados Unidos ao capitalismo de Estado da China.

Poucos depreciadores apressados da Lei Rouanet se dão conta de que ela não abarca todas as formas possíveis de cultura. A produção de filmes brasileiros, por exemplo, não é atendida por ela. Nosso cinema é financiado exclusivamente através da Lei do Audiovisual, a lei 8.685, aprovada em 1993 durante o governo Itamar Franco.

As resistências ao financiamento público da cultura brasileira têm origem em preconceitos políticos e ideológicos. Pela natureza do que ela significa como manifestação do que vai na alma da população, por seu caráter simbólico de afirmação do que somos, pela ousadia em tentar representar-nos como nação e povo, a cultura é vista como uma atividade perigosamente identitária e, portanto, excludente, capaz de produzir disposições com as quais nem sempre concordamos. E, quando não concordamos, reagimos de forma radical contra o que ela pretende nos dizer, como se a reação fosse indispensável à nossa sobrevivência. Mas a cultura não é, nem pode ser, uma arma letal de luta política e sobretudo ideológica. Ela não pode servir para nos separar, mas para nos revelar e celebrar nossa multiplicidade. A bem-vinda diversidade de nossa formação e de nossas circunstâncias.

Graças ao reconhecimento desse espaço, estamos vivendo um excepcional momento de qualidade no cinema brasileiro. Produzimos cerca de 180 filmes por ano, número do qual nunca chegamos nem perto em nossa história, com uma diversidade regional, geracional, de gênero, política e cinematográfica que corresponde ao país em que vivemos, dos igarapés amazônicos às favelas cariocas, das cidades históricas de Minas aos Pampas gaúchos, das praias do Nordeste aos arranha-céus paulistanos.

Uma nova geração de cineastas brasileiros está fazendo com que se redescubra nosso cinema pelo mundo afora, através de prêmios, destaques e lançamentos qualificados. No Brasil, as receitas desses filmes nas salas de cinema raramente correspondem à sua qualidade. Mas quando esses mesmos filmes passam na televisão aberta ou fechada, sua audiência é sempre excepcional. É que o público da televisão está em casa, não precisa de dinheiro para o transporte e o ingresso, nem para a Coca-Cola e a pipoca tradicionalmente mais caras do mundo. O cinema brasileiro vai bem; o que vai mal é a economia do país.

Existem nações que podem nos servir de exemplo. Lee Chang-dong, consagrado cineasta sul-coreano que já foi ministro da Cultura de seu país, diz que, quando fez seu primeiro filme e a produção da Coreia do Sul engatinhava, há mais de 25 anos, o público local costumava afirmar que não via filme nacional “nem que lhe pagassem”. Hoje, com seu desenvolvimento econômico e industrial, a Coreia do Sul é a principal nação produtora de cinema na Ásia, superando China e Japão, com sucessos locais e internacionais.

Um estudo da insuspeita PriceWaterHouse, realizado entre 2001 e 2010, concluiu que a indústria de lazer e cultura foi a atividade econômica que mais cresceu no mundo durante o período, a uma taxa de 7,5% ao ano. Em 2010, a cifra de negócios da atividade atingiu US$ 1,7 trilhão (um trilhão e setecentos bilhões de dólares). A projeção para o crescimento do setor, entre 2010 e 2019, atinge qualquer coisa em torno de US$ 2,3 trilhões (dois trilhões e trezentos bilhões de dólares). O cinema e o audiovisual em geral representam cerca de 60% dessa cifra.

Apesar de contido pelos cerca de cinco anos de recessão econômica, o mercado brasileiro de lazer e cultura também cresce. A produção de conteúdos diversos para abastecer esse mercado deixou de ser um fenômeno apenas simbólico, de afirmação de nossa identidade, para se tornar também um negócio em benefício da população. Aqueles conteúdos serão consumidos a um ritmo cada vez mais intenso, na medida da recuperação de nossa economia. Essa indústria a serviço de vidas humanas que necessitam de lazer e cultura depende de nós todos. Como escreveu o ensaísta e poeta espanhol Miguel de Unamuno: “Somos mais pais de nosso futuro, do que filhos de nosso passado”.


Cacá Diegues: Um poder suave

Se não for abandonada como supérfluo, não importa se a cultura vai ganhar um ministério próprio

O presidente eleito Jair Bolsonaro tem anunciado suas decisões sobre a organização de seu governo. Às vezes, até volta atrás do que já andara considerando fato consumado. Mas nem mesmo por desmentidos sabemos quais são seus planos para a área da cultura. Discutimos apenas hipóteses, quase sempre inspiradas em declarações enviesadas de campanha. Não temos conhecimento de ninguém do novo governo que esteja pensando no assunto, ninguém que esteja tomando a iniciativa de propor ideias sobre cultura para os próximos quatro anos. Nem mesmo os superministros, como Paulo Guedes, Sergio Moro, Onyx Lorenzoni ou Augusto Heleno.

Não estou me referindo ao debate recorrente sobre a manutenção do Ministério da Cultura, causa pela qual lutamos tanto ao longo dos primeiros anos de redemocratização. O MinC foi uma invenção da democracia emergente, e isso o marcou indelevelmente. Quando o presidente Michel Temer, recém-empossado, tentou acabar com o ministério, a reação dos produtores de cultura foi de fúria, como se se estivesse tramando o fim da atividade ou, pelo menos, a subestimação de seu valor. Uns lutaram mais, outros menos, mas nenhum produtor de cultura permaneceu insensível. Agora, parecemos todos recolhidos a uma reflexão que ainda não deu fruto.

O Ministério da Cultura nasceu com o governo de José Sarney, herança de Tancredo Neves, que o deixou criado e ocupado antes de morrer. José Aparecido de Oliveira, intelectual mineiro responsável por poderoso apoio à sua existência, foi o primeiro a ocupá-lo, tornando-se uma espécie de fundador da novidade. Tancredo entregou-lhe a concepção do que seria o MinC, e Aparecido correspondeu a essa confiança, criando um núcleo moderno e eficiente de administração pública da cultura.

No governo seguinte, o primeiro eleito pelo voto direto da população, a cultura sofreu um golpe histérico de um presidente que se vingava infantilmente da ausência de apoio de artistas e intelectuais à sua candidatura. Era tão evidente que esse desprezo oficial estava desconectado da realidade, que o governo Fernando Collor foi obrigado a criar a Lei Rouanet. Uma lei que, por um desses milagres políticos em que as circunstâncias se impõem, e os homens no lugar estratégico das decisões não podiam ser mais apropriados, foi criada pelo então secretário Sergio Paulo Rouanet. Até hoje, essa lei é um documento contemporâneo, uma vitória da ousadia e da lógica, num ambiente em que nem sempre elas prevalecem. Algumas atividades culturais, como o cinema, não se beneficiam da Lei Rouanet, não têm acesso a ela. Ao longo do tempo, o cinema ganhou suas próprias regras nas relações com o Estado, através da Lei do Audiovisual, implementada no início dos anos 1990.

Se, neste próximo governo, a cultura for tratada com respeito e entusiasmo, com empenho burocrático e interesse real do Estado, se não for abandonada como supérfluo, não importa se vai ganhar um ministério próprio ou não. A cultura tem que ser uma atividade de interesse do Estado brasileiro, disposto às medidas possíveis e necessárias para que ela se torne representativa e poderosa, instrumento de nosso desenvolvimento nacional, em qualquer que seja o escaninho para o qual for encaminhada pelos homens públicos do país.

A cultura é uma inquestionável responsabilidade do Estado, é ela que nos diz quem somos e acaba por dizer para onde devemos ir. Por isso mesmo, vive uma certa esquizofrenia natural em que precisa de absoluta liberdade para se manifestar, mesmo que dependa materialmente do Estado que tem interesses em suas tendências. Todo país do mundo, do capitalismo neoliberal americano ao capitalismo de Estado chinês, protege e investe em seus valores culturais para existir como nação.

Podemos simplificar sua importância na política dos três Fs, proclamada durante o governo de Franklin Roosevelt, nos Estados Unidos: flag follows films (a bandeira segue os filmes). Foi através da cultura (sobretudo da música e do audiovisual), de seu soft power, que os Estados Unidos impuseram, na segunda metade o século XX, sua liderança mundial, vendendo os produtos expostos nos filmes e um modo de vida especial (o chamado american way of life) que se espalhou pelo planeta e manteve o país à frente do mundo, independentemente das armas que poderia produzir e usar contra seus inimigos. A cultura brasileira, com sua força, originalidade e diversidade, pode exercer papel semelhante, capaz de levantar as energias desse melancólico século XXI. Depende do que o Estado brasileiro pretende e espera dela.


Cacá Diegues: Uns choques necessários

Na democracia, a maioria escolhe os que comandarão a sociedade, mas também os que vão fazer oposição

O Partido dos Trabalhadores conseguiu produzir, em crescendo, uma autoimagem negativa para seus aliados naturais e eleitores de sempre. A alta auto-concentração de seus projetos, a ausência de autocrítica, o culto à personalidade sem limites, o fracasso espetacular do governo Dilma e a arrogância apesar de tudo fizeram do PT um alvo prioritário de eleitores irritados. Os inúmeros erros desde o mensalão, negados sem explicação conveniente e com intransigência autoritária, acabaram por contagiar tudo o que vinha dali. Inclusive a cândida candidatura de Fernando Haddad.

Em grande parte do voto majoritário que elegeu o novo presidente, deve estar a rejeição a um partido político que, apesar de anos no poder, quase nunca realizou o prometido, enquanto anunciava sua excelência como representante das classes populares e exibia uma velha liderança que, ao contrário do que já fora, se tornara populista, personalista e cheia de ambiguidades. O PT se tornaria assim eleitor involuntário de um candidato conservador que se dispunha a acabar, na marra, com a corrupção no serviço público, principal razão da miséria brasileira da qual o próprio Partido dos Trabalhadores fazia parte.

Mesmo que não concordemos com as ideias e com o programa dos vencedores, não podemos esquecer que eles foram eleitos pelo voto popular, uma maioria indiscutível do país. Mas, numa democracia, não é por ser maioria que eles se tornam inquestionáveis. Temos o direito de discordar, desejar para o Brasil um outro futuro que não aquele que anunciam. Numa democracia, a maioria escolhe os que vão comandar a sociedade, mas também aqueles que vão lhes fazer oposição, mantendo sempre acesa a possibilidade de a minoria estar eventualmente com a razão. É para isso que existem os outros, os que não pensam como eles, que não são iguais a eles.

Nessas eleições, o país deu uma guinada à direita. O responsável por essa guinada foi a vontade do povo, seja qual for a razão dele. Como não estou de acordo, me preparo para discordar, ser a sua negação democrática. Mas, para isso, não preciso invocar resistência alguma, ação passiva de derrotados imobilizados. Como os franceses foram na blitz da ocupação nazista, ou como nós mesmos fomos na surpresa da ocupação militar de 1964. Na democracia, os que não concordam com o resultado da consulta popular devem fazer oposição sabendo celebrar o que julguem justo, torcendo para que o país dê certo, mesmo que parcialmente e nas mãos de quem não escolhemos para nos representar.

Temos vivido um vendaval de opiniões sectárias e histéricas de todos os lados, produzido por frustrações que não têm nada a ver com o estado do país. Há muito o que fazer pelo Brasil, em qualquer circunstância. É preciso acabar com a fome de grande parte da população, corrigir nossa brutal desigualdade, evitar a burocratização do ensino e da cultura, vencer a mortalidade infantil que cresce novamente, criar empregos para 12 milhões de brasileiros, proteger a população da violência e da insegurança públicas. Na eleição de 1989, a primeira da redemocratização do país, Mário Covas pregava um choque simultâneo de capitalismo e de democracia. Talvez estejamos de novo precisando disso, para acabar com o “capetalismo” e a “democradura”, invenções brasileiras tão sombrias, quanto indefinidas.

Temos, enfim, a obrigação de cumprir o que está em nossa Constituição de 1988. Ela não é apenas um relato de obrigações neutras, mas fala sobretudo de nossos deveres com a nação, em seus diferentes artigos: construir uma sociedade livre, erradicar a pobreza e as desigualdades sociais, não aceitar os preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação. E por aí afora. Na abertura do primeiro capítulo do livro “Retrato do Brasil”, de Paulo Prado, um autor que não podia estar tão esquecido, está escrito: “Numa terra radiosa vive um povo triste”. Talvez seja nosso dever torná-lo mais alegre.


Cacá Diegues: O futuro depois da eleição

Só posso entender clara vitória de Bolsonaro como uma punição que o povo resolveu dar ao país, sobretudo às suas elites governantes

Como se supunha que fosse acontecer, Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República. Não há mistério algum em saber quem ele é, não preciso sussurrar num tom de voz conspiratório que ouvi dizer isso ou aquilo dele, do que disse ou andou fazendo. O que ele é, o próprio Bolsonaro nos revela em tantos vídeos que ele mesmo grava ou deixa gravar para exibição pública.

Através desses vídeos, ficamos sabendo que ele considera a ONU uma perigosa reunião de comunistas; que afastaria o Brasil do Acordo de Paris; que pretende resolver a polarização radicalizada da sociedade brasileira eliminando um dos lados, aquele que chama de “vermelho”, dando a seus ativistas a opção de deixar o Brasil ou ir para a cadeia. Os mesmos vídeos nos quais seu filho Eduardo, deputado como ele, afirma que um cabo e um soldado são suficientes para fechar o Supremo Tribunal Federal, confirmando a anedota pessimista do jurista Nelson Hungria: “Acima do Supremo, só os tanques e as baionetas”.

Os vídeos nos mostram que Bolsonaro prefere um regime autoritário e é a favor da tortura, tratando como herói um célebre torturador dos porões de nossa ditadura, Carlos Alberto Brilhante Ustra. O ex-capitão adotou, como slogan de sua campanha à Presidência, a frase patriótica e religiosa: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Como dificilmente o Senhor vai se dar ao trabalho de descer à Terra para ajudá-lo a governar o país nesses próximos quatro anos, só restará a Bolsonaro se auto-nomear delegado d’Ele, autorizando a si mesmo os gestos que julgar que Deus praticaria.

Nada do que é dito nos parágrafos anteriores é fofoca, disse me disse com a intenção de prejudicar a imagem de um candidato legitimamente eleito pelo povo do país. Tudo foi dito por ele mesmo, ao vivo ou em vídeos que tratou de difundir pelos programas digitais dos quais participou em campanha. Uma novidade inteligente, pois o mundo digital cria novas tecnologias e faz o raciocínio analógico único envelhecer.

Como não acredito que existam 60 milhões de brasileiros que pensam desse modo, que tenham pelos outros brasileiros sentimento tão destrutivo, só posso entender essa clara vitória de Bolsonaro como uma punição que o povo resolveu dar ao país, sobretudo às suas elites governantes. É como se dissessem à população que estão cansados de serem iludidos, de ouvir promessas que não se cumprem, de sofrerem calados à espera de uma remissão que nunca chega. Chega de incompetência, chega de malfeitos, chega de corrupção, chega de brincadeira com a felicidade do povo, agora vai ser pau puro, vocês que se danem.

Não me venham com a velha história de que o povo foi enganado, de que não faz ideia de quem são esses caras. Pela alegria que vejo nas ruas, o povo votou consciente, era isso mesmo o que ele queria. Os eleitores de Bolsonaro não são militantes de nenhum partido, nem ativistas de nenhuma ideologia, não têm uma cartilha doutrinária pela qual rezam sua doutrina. Ideologia de emergente é ascensão social, e não luta de classes. E o “perigo comunista” acabou há muito tempo, hoje só existe como pretexto para golpes de Estado.

Apenas os eleitores se cansaram e só nos resta respeitar sua decisão. Eles quiseram punir o Brasil pela distância entre a imagem ideal do país e o que ele é de fato. Quem não estiver de acordo, que se prepare para a oposição que a democracia lhes dá o direito de exercer. A democracia que obriga o poder a aceitar a diferença, sem exigir nenhuma submissão do pensamento, apenas o respeito às regras e às leis.

Em 1776, a Revolução Americana inaugurou a democracia moderna. Mas foi na França, em 1789, um século antes da Proclamação da República no Brasil, que a ideia de democracia foi formulada com mais precisão, através de mote célebre: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A liberdade se tornou uma reivindicação básica do capitalismo; e a igualdade, do socialismo. Sempre esperei que o Brasil resolvesse o impasse inventando a fraternidade dos tempos modernos, resolvendo com uma face humana o confronto contemporâneo entre o indivíduo e a sociedade, o direito de sermos o que somos sem fazer mal a ninguém, de bem com todos. Ainda temos o direito de sonhar.


Cacá Diegues: O voto da semana

A democracia é o único sistema possível numa civilização respeitável. E ela não é a imposição do modo de vida da maioria

Estamos a uma semana da eleição mais tensa e histérica do Brasil moderno. Não é que as outras tenham sido sempre saudáveis. Mas essa pode se tornar o clímax de todos os erros que cometemos antes, desde o Império, quando o imperador isento e bonachão deixava que os dois partidos, o Liberal e o Conservador, ficassem dando golpes um no outro.

Nasci sob o Estado Novo ditatorial de Getúlio Vargas. Só já maduro fui descobrir que, na primeira eleição depois de sua queda, o Brasil havia eleito, como presidente da redemocratização, o Ministro da Guerra do ditador. Depois, na eleição seguinte, foi o próprio ex-ditador, responsável por crimes hediondos, que voltou ao poder, por votação democrática. Embora, devido à idade, ainda não votasse, em 1955 me engajei com entusiasmo adolescente na campanha de Juscelino Kubistchek, o rei da simpatia.

A primeira eleição em que tive idade para votar de fato foi a de 1960. Fui um dos poucos de minha turma politizada que votou no marechal Lott e não em Jânio Quadros, como quase todo mundo. Diziam que até o presidente da UNE, líder e responsável pela frente popular mais vasta na história do movimento estudantil, havia se encantado com o demagogo farsante que, com sua inexplicável renúncia, atirou o Brasil numa crise que gerou o golpe militar de 1964.

A ditadura militar durou 21 anos. Quando veio a nova redemocratização, a sequência política ficou parecida com a de Vargas: o presidente da redemocratização tinha sido presidente do partido da ditadura. Na primeira eleição direta e democrática que tivemos a seguir, elegemos outra vez um aventureiro, que outra vez deixou o governo antes de completar o mandato legal. Só que, agora, a Justiça é que o tirava do trono que não merecia ocupar.

E então, numa graça inesperada, vieram dezoito anos de euforia pública, durante Itamar, FHC e Lula. O Brasil se tornava uma nave de esperança, flutuando na direção que sempre pretendemos para nós – um país menos desigual, com mais oportunidades para todos, acabando com a inflação endêmica, tratando melhor a habitação, a educação e a saúde de seu povo, fiel a um sistema democrático que nunca tentou violar, se dando ao respeito universal.

Não importam os partidos que fizeram esse tempo, nem as queixas que cada oposição a cada governo fazia de seu adversário. O que importava mesmo era a alegria de viver num país onde, mesmo merecendo essa ou aquela correção de rumo, havia um horizonte de luz à nossa espera, em cuja direção valia à pena navegar. Nós todos acreditávamos nesse horizonte e podíamos viver desse orgulho.

Mas o sonho acabou e o Brasil virou o que é agora – um país sem caráter, de desigualdades e desemprego, de pobres desassistidos, de economia em recessão, sem expectativa de recuperação num prazo humano. Um país violento, desorientado e caótico, de líderes egoístas à beira de uma catástrofe bárbara. Agora não se trata mais de escolher entre políticos e partidos, nem mesmo de escolher entre a direita e a esquerda, como muitos simplificam tentando nos convencer. O que está em jogo hoje é a disputa entre civilização e barbárie, duas formas distintas e distantes de viver e conviver.

O desgaste do gosto pela civilização está contaminando o mundo inteiro, não podemos deixar que esse mal chegue ao Brasil. Civilização significa sabedoria e conhecimento, regras e leis que servem a todos, respeito ao outro, amor universal.

A democracia é o único sistema político possível numa civilização respeitável. E ela não é a imposição do modo de vida da maioria, mas o regime em que as minorias têm garantido seu direito à diferença. O contrário disso é o fim do diálogo que sempre faz a humanidade crescer na crise, o estado humano por excelência. Nosso voto é um instrumento indispensável para impedir a substituição desse diálogo crítico pela vontade do mais poderoso.


Cacá Diegues: A soma do que somos

Entre pobreza do real e exagero do sonho, Fernanda Montenegro nos mantém fiéis ao que gostamos de ser, ao que queremos ser

Este ano, a homenageada pelo Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, promovido pela Academia Brasileira de Cinema, foi Fernanda Montenegro, uma eterna síntese das qualidades dos filmes velhos e novos feitos no Brasil. Terça-feira passada, nossa grande dama recebeu seu Otelo, o troféu que lhe era devido, no palco da Cidade das Artes. A luz de seu talento, o mistério que a torna única, iluminou mais uma vez a nossa atividade.

Segundo diz a Bíblia, todo ser humano é um templo vivo de Deus. Acho isso mais ou menos. Depende muito do ser humano em questão, tem uns que são mais templo vivo do que outros. Pega um bandido do tráfico de drogas, por exemplo. Tem uns que atiram por dá cá aquela palha, entendendo por palha o que a gente está mesmo imaginando.

Por outro lado, tem seres humanos que, mesmo que se queira plantar em sua fama alguns sórdidos pecados, nada pega. E não pega, não porque a má fama é inconsistente; mas sim porque a pessoa é que é consistente demais, não importa qual seja seu tipo de fama. Fernanda Montenegro é uma dessas pessoas.

Tecnicamente, Fernanda é uma atriz, deusa dos palcos, de todas as telas grandes e pequenas. E do que mais se venha a inventar para nos contar a vida de alguém. No Brasil ou por aí, poucas mulheres nos deram o que Fernanda já nos deu e continua a dar, incansável narradora de almas. Pode ser que Bette Davis ou Jeanne Moreau tenham chegado perto; como perto há de ter chegado Cacilda Becker. Mas Fernanda é só ela.

Cultura nacional é a soma de todos os hábitos, costumes, criações e invenções da população de um país. De tal modo que é pouco dizer-se que Fernanda Montenegro é uma atriz brasileira, nascida em tal lugar, no dia tal, do ano tal. Entre a pobreza do real e o exagero do sonho, ela nos mantém fiéis ao que gostamos de ser, ao que queremos ser. À soma do que somos.

Porque Fernanda vive e viverá para sempre, em cada um de nós e nos que vierem depois de nós, como a própria imagem ideal do Brasil e dos seres humano que vivem nele, no teatro ou na televisão, passeando por nossas pobres quatro mil salas de cinema. Ou ainda pelas 40.700 salas dos americanos, pelas 50.776 salas da China, pelo mundo afora afim de exibir o brasileiro.

O escultor Auguste Rodin dizia que as catedrais da França eram construídas como um corpo vivo. Então, digo eu, todo corpo humano é uma catedral. E o de Fernandona é a nossa basílica, a sede sagrada do que somos. Ela é que é imortal.

Será que as desgraças do mundo estão aumentando ou são as notícias que agora chegam mais depressa, por todo tipo de canal, quase que em tempo real?

Esta semana, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) nos informam em relatório que, em 2017, mais de seis milhões de crianças com menos de 15 anos perderam a vida. Um pouco mais de cinco milhões dessas crianças tinham menos de 5 anos de idade.

Os motivos dos óbitos são quase sempre preveníveis e remediáveis. Mas as mortes ocorrem em regiões onde não há prevenção e aonde não chegam os remédios necessários, como a Africa Subsaariana e o Sul da Ásia. O relatório diz que, a seguir assim, sem ação urgente, 56 milhões de menores de 5 anos morrerão no mundo até 2030.

Perto desses números fatais, parece até desimportante lembrar o crescimento da pobreza no Brasil. Hoje temos, em nosso país, 23 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza convencionada universalmente. A pobreza cresceu 33%, entre nós, nos últimos quatro anos, segundo a FGV Social.

Esse crescimento do número de famílias vivendo abaixo da linha de pobreza faz crescer a desigualdade em nosso país, a um nível espantoso. Um nível em que certas medidas, ainda que positivas, como o Bolsa Família, já não conseguirão atenuar. A taxa de desemprego no país é uma das principais responsáveis (talvez a principal responsável) por nosso empobrecimento, nesses últimos anos. E o índice de desempregados é bem parecido com os 33% da população que fizeram crescer o índice de pobreza. Até quando?


Cacá Diegues: Para vencer a razão

Não podemos deixar de perseguir utopia democrática. Mas precisamos imaginar novas formas de pensá-la

No caos que nos atordoa, às vésperas de uma eleição que nos parece imprevisível e decisiva, o que nos consola é saber que o tempo que vivemos vai passar um dia. E será certamente lembrado como um tempo de tensão, que quase nos levou ao terror. Só não o conseguiu porque, no fim desse tempo, há uma inevitável eleição que todos exigem democrática. Todos os partidos que disputam o sucesso eleitoral se consideram viáveis, não havendo por que evitar ou alterar de modo irregular seu desfecho, por uma facada ou pelos dedos em forma de arma.

A democracia no Brasil, embora desmoralizada pela corrupção, pelo escárnio às leis e pela falta de representatividade, ainda é um valor cujo respeito assegura a viabilidade política do país. Ainda não precisamos argumentar com ameaças sociais para ignorá-la, como na Venezuela. Em vez disso, cada um luta para conquistar o voto dos cidadãos, algo que convencionamos ser indispensável para exercer o poder. Como diz Conrado Hubner Mendes, temos que evitar a raiva, porque “a raiva pode vencer a razão”.

Não sei se esta será a última eleição democrática no país, como alguns analistas julgam e começam a teorizar sobre, em vista do retorno das ameaças militares e do autoritarismo voluntarista da extrema esquerda. Não sei se os campos que sairão frustrados dessas eleições terão disposição e força para romper o compromisso democrático que os levou à urnas, apostando no golpe ou no caos para impor seu projeto. Por enquanto, os interesses múltiplos de todos os lados nos protegem dessas aventuras. Da crise da democracia representativa, entre nós e no mundo, é que ninguém tem como nos proteger.

A eleição de Trump nos Estados Unidos inaugurou escandalosamente o rompimento de um dos princípios de sobrevivência da democracia, a partir de sua proteção pelas leis fundadoras, um mecanismo de relativização de resultados eleitorais que impedia o absolutismo republicano. E disso ninguém é particularmente culpado, nem mesmo o pirado e sórdido candidato eleito.

Como no Brasil, neste momento, é uma ilusão achar que Lula e Bolsonaro, as duas principais representações da radicalização eleitoral, são os culpados pela insegurança que passamos a viver. O recuo do capitão esfaqueado, a negar o que dissera nos jornais e na televisão, não está muito longe da distância entre o que o ex-presidente diz enquanto nomeia, como seu sucessor na candidatura, um de seus mais moderados parceiros de partido.

O que está radicalizando essas próximas eleições não é o que dizem os candidatos ou o programa quase inexistente de seus partidos. O que está radicalizando o processo é o sentimento de uma talvez muito próxima inviabilidade do sistema e a desconfiança sobre o que poderá vir depois. É simplesmente a própria forma da democracia representativa que, por razões diversas, começa a fracassar no mundo inteiro. Não podemos deixar de perseguir a utopia democrática, de jeito nenhum. Mas precisamos imaginar novas formas de pensá-la e exercê-la.

A democracia nasceu numa praça de Atenas, ocupada apenas por uma elite. O sistema serviu para recivilizar e reumanizar o mundo da segunda metade do século XX, o mundo posterior à barbárie da Segunda Guerra. Ele agora está começando a se revelar moribundo. Precisamos salvar o que, na democracia, é necessário para sempre, inventando uma nova forma de vivermos democraticamente.

O ano vai chegando ao fim, e o cinema brasileiro repete, neste 2018, o mesmo desempenho de quantidade e qualidade do ano passado. Basta ver os bons filmes em cartaz, como “Benzinho”, de Gustavo Pizzi (um grande filme, que acaba de ser nomeado representante do Brasil no prêmio Goya de melhor filme ibero-americano de 2018), “O paciente”, de Sergio Rezende, “O banquete”, de Daniela Thomas, “O animal cordial”, de Gabriela Amaral Almeida, “Vende-se essa moto”, de Marcus Faustini, “Abrindo o armário”, de Dario Menezes e Luis Abramo, “As boas maneiras”, de Juliana Rojas e Marco Dutra, “O candidato honesto 2”, de Roberto Santucci, “Ferrugem”, de Aly Muritiba, “Missão 115”, de Silvio Da-Rin, “Não se aceitam devoluções”, de André Moraes, “Yonlu”, de Hique Montanari, e muitos outros. Além de “Domingo”, que abriu o Festival de Brasília neste fim de semana, um filme extraordinário de Felipe Barbosa, o mesmo realizador de “Gabriel e a montanha”, destaque do nosso cinema no ano passado.


Cacá Diegues: O modelo das desigualdades

A gente dá aos cidadãos de 5ª classe um cantinho para dormir, lhes dá de beber e de comer, para que sigam servindo à nação

Quando falamos do Brasil, a palavra que mais usamos, hoje em dia, é crise. Podemos enfeitar o papo com eufemismos mais classudos, tipo recessão, mas a ideia segue sendo a mesma. Queremos sempre nos referir ao que nos aconteceu, depois de 18 anos de justa esperança durante os governos de Itamar, FHC e Lula, quando o país crescia a uma taxa média de cerca de 5% a 7% ao ano.

Quando Dilma Rousseff sofreu o impeachment, a inflação já chegara a quase 10%, a taxa de juros a 15%, e mais de 11 milhões de brasileiros estavam desempregados. Michel Temer assumiu o governo e, nos seus cerca de dois anos de mandato, esses números só fizeram se agravar, mesmo que à sombra de uma pequena recuperação da economia.

No resto do mundo, a coisa também anda feia, mas nem sempre pelos mesmos motivos. Na África, as guerras elevaram o número de crianças mortas por violência para cinco milhões em 20 anos, além da desnutrição e de doenças que estão sob controle em outras regiões do planeta. O que temos em comum com os países africanos é a absoluta desigualdade provocada pela falta de oportunidades para todos e pelas ideias que foram construídas sobre essa desigualdade.

As desigualdades cultivadas na sociedade brasileira, uma perversão que vem desde a chegada dos europeus por aqui, com sua economia baseada no trabalho escravo, podem acabar com a noção que nós pretendemos ter de nação. Nada impede que, seguindo em frente nessa trama nacional, um dia acordemos com a mais radical divisão social em nosso país, praticada através da expulsão dos indesejados ou de genocídios purificadores. Poderemos até pensar, quem sabe, na restauração da escravidão no país, como única solução para, digamos, a crise fiscal ou coisa parecida.

Cada vez mais nos convenceremos, na prática, de que os que possuem alguma coisa nasceram para viver graças às necessidades dos que não possuem nada. Uma espécie de princípio natural, um axioma da vida contra o qual não há o que fazer.

A cultura política no Brasil é baseada na ideia de que não somos responsáveis por nada. O crime foi sempre cometido pelo outro que veio antes de nós, que fez com que entrássemos no rumo da tragédia da qual não temos como escapar. E, como não temos mais como escapar dela, deixamos de tratá la como tragédia. Nada mais iluminado para nossos olhos do que aquilo que não temos como evitar. Basta dormir em paz e, na manhã seguinte, acordar novamente com o relho na mão.

É assim, por exemplo, que tratamos a favela carioca, como tratamos outros quilombos pelo Brasil afora, hordas de cidadãos de quinta classe, cujos direitos são iguais aos dos animais domésticos: a gente lhes arruma um cantinho para dormir, lhes dá de beber e de comer, o suficiente para que sigam servindo à nação. E a nação somos nós e nossas cada vez mais novas necessidades de um mundo novo.

Quando as UPPs foram criadas, em 2008, José Mariano Beltrame, secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, seu criador, imaginava uma polícia de proximidade, um conceito de policiamento comunitário comandado pela população local. O modelo mais próximo era o de Medellín, na Colômbia, experiência bem-sucedida contra a violência nas comunidades. As UPPs não eram eventuais invasões militares em busca de bandidos ou milicianos, mas um serviço público, sob controle dessas mesmas comunidades. As UPPs teriam um papel decisivo, atraindo (como atraíram) a entrada de outros serviços públicos indispensáveis e de projetos privados de caráter social, esportivo e cultural. As favelas produziriam sua própria economia, passariam a ser protagonistas de sua própria história.

Beltrame preparou policiais para a atividade, criou uma verdadeira escola militar paralela com a participação dos moradores, que completariam as regras da corporação com as necessidades de cada favela. Mas o governo fluminense não estava de fato interessado nessa utopia de serviço público e a oposição não soube ou não quis compreendê-la. A experiência das UPPs terminou em menos de dez anos, após a instalação da última UPP.

Assim como as UPPs acabaram, agora são os postos de controle do crescimento das favelas que estão sendo fechados. Acontece que os cidadãos dessas comunidades, que não são iguais a nós, precisam de um lugar onde morar. Morar mal, mas morar.


Cacá Diegues: Para onde vamos

Tenho muito medo desse ‘cansaço democrático’, como se refere a ele João Pereira Coutinho, citando David Runciman

Em vários países da América Latina, como no Brasil, uma onda autoritária e perigosamente obscurantista cresce no embalo de novas eleições. É como se o eleitor estivesse cansado de ideias, programas e partidos, como se ele agora só pensasse e reivindicasse o factual de sua vida, como a segurança. Chega, para ele, de ideologias; o que hoje interessa ao eleitor é comportamento e mentalidade.

O exemplo mais claro e sinistro disso nos veio do que aconteceu com os refugiados venezuelanos em Pacaraima, no estado de Roraima. Sob o pretexto de revolta diante do assalto de refugiados a um comerciante brasileiro de quem tiraram sangue, a população da cidade caiu em cima dos venezuelanos acampados em beira de estrada, tocando fogo em tudo oque lhes pertencia, inclusive documentos pessoais. A população local os expulsou da região com violência, cantando em coro o nosso Hino Nacional.

Embora seja o país de maiores dimensões no continente, o Brasil é o que menos recebeu refugiados venezuelanos. Países com menos recursos, como o Equador, ou mais distantes, como a Argentina, receberam o dobro de gente vinda da crise, da desgraça em que vivia na Venezuela. Para não falar nos recordistas Colômbia e Peru.

Não adianta levantar argumentos racionais ou impor decisões superiores do governo federal e da própria ONU, que anda implorando a todos os países do mundo que deem guarida aos inúmeros refugiados de guerra, fome e discriminação racial e religiosa, em todos os continentes. Os intolerantes cantam o Hino Nacional com fé e confiança, certos de que esse nacionalismo absoluto é um instrumento para evitara praga do estrangeiro. Uma garanti ad e que aterra é de quem já vive nela e não se pode deixar que seja pisada por quem não nasceu aqui.

Tenho muito medo desse “cansaço democrático”, como se refere a ele João Pereira Coutinho, citando David Runciman e seu livro “How Democracy Ends”(em tradução livre, “Como acaba a democracia” ). Talvez estejamos vivendo essa experiência representada por uma imensa maioria desinteressada do futuro, dando suporte, por inação e conveniência, a propostas de uma direita maluca que também não sabe para onde vai. O que se há de fazer?

Semana passada, falei aqui do que considerei censura indireta ao filme “A fadinha lésbica”, de Sávio Leite, dada a não concessão, por parte da Ancine, do Certificado de Produto Brasileiro (CPB) que lhe permitiria cumprir a cota de tela a que as produções nacionais têm direito.

Viajando para o sul do país, escrevi minha coluna do dia 16 para o dia 17 de agosto, quando a enviei ao jornal. Nesse ínterim, a Ancine concedeu o CPB desejado pelos produtores do filme, naquele mesmo dia 17, o que tornou meu texto desatualizado. Tanto melhor, agora poderemos todos assistir à “Fadinha lésbica” .

Segundo a resposta da assessoria de comunicação da Ancine a meu artigo, o CPB original da “Fadinha lésbica” é de 8 de março de 2017. O efeito dessa classificação original “é apenas a não contabilização da obra para fins de cumprimento de cota na TV paga, (...) não havendo qualquer vinculação com atos de censura ”. Só que ninguém exibe um filme brasileiro que não cumpre cota.

Por isso, segundo o mesmo documento, “a empresa produtora encaminhou solicitação de alteração do enquadramento em 16 de agosto de 2018, o qual foi processado pela Superintendência de Registro um dia após, com a retificação da classificação da obra para aquela solicitada”. Apesar da estranha rapidez na concessão do novo CPB, em apenas 24 horas, peço desculpa aos funcionários da Ancine por minha imprecisão, pela informação incorreta.

Para que não haja dúvida sobre o que me animou nesse episódio, reproduzo a seguir o texto do diretor do filme, Sávio Leite, em sua página no Facebook, uns dias depois: “Gostaria de deixar claro que a intenção do cineasta Cacá Diegues de me ajudar foi muito bacana. Durante o processo de alteração do status do CPB, houve muitas informações truncadas. Agradeço imensamente sua ajuda. Peço desculpas pelo malentendido.”

Enfim, toda agência é um instrumento da sociedade instalado no interior do Estado, desde sua criação no governo FHC, até sua confirmação no de Lula. Tomara que a Ancine não acabe se tornando um pesadelo para os cineastas brasileiros.


Cacá Diegues: Chega de brincar com fogo

Bolsonaro não tem programa de governo; mas tem uma vastíssima coleção de críticas e adesões a comportamentos

O crescimento da candidatura de Jair Bolsonaro, do PSL, à Presidência da República nos assusta. Se queremos evitar uma tragédia política, é preciso tomar uma atitude diante da perversão ideológica a que estamos assistindo envolvera sociedade brasileira. Chega de folclore em torno do capitão-candidato, de considerá-lo uma anedota passageira, e compreender que, por trás do fenômeno, existe uma tendência de comportamento que corresponde ao desejo de uma parte da população.

Semana passada, Bolsonaro esteve no programa “Roda Viva”, da TV Cultura, e ali, entre outros absurdos, disse que o Brasil não devia nada a ninguém pela escravidão de africanos. Segundo ele, os portugueses nunca puseram os pés em África, eram os próprios africanos que entregavam aos europeus seus inimigos locais como escravos. Mesmo que essa fantasia sombria fosse verdadeira, para onde esses africanos se dirigiam, onde se tornavam escravos e como escravos eram tratados por senhores brancos europeus ou de origem europeia?

Ao longo de nossa história, 4,9 milhões de seres humanos viveram como escravos no Brasil. Foi sua escravidão que forjou o nosso racismo, a hipocrisia social e a insensibilidade de nossa sociedade em relação a seu estado. Da tradição escravocrata, nasceu a desigualdade radical de nossa sociedade.

O que Bolsonaro pensa e afirma está sempre ligado a essa tradição colonial, à concepção da sociedade estruturada em categorias de superioridades que ninguém é capaz de desmontar. Uma organização de classes fruto de decisão divina que, por divina, não há como se opor a ela, muito menos corrigi-la. Suas poucas ideias pertencem a essa tradição, agora modernizada pela ignorância irresponsável e intolerante das redes sociais.

Bolsonaro repete sempre, com palavras simples e objetivas, os bordões dos preconceitos originários de anedotas e hábitos de botequins de estrada. Não existe fundo no que ele diz, só forma; um jeito de dizer as coisas que todo mundo entende do que se trata e pode se identificar com a grossura liberada. É como se estivéssemos vendo o mal desastrado, do qual sempre rimos escondidos, se tornar uma lógica eleitoral, impregnada numa cultura onde não há tempo para pensar.

Já procurei muito, mas nunca encontrei o programa de governo de Bolsonaro e de seu partido. Entre as coisas que diz, sempre muito veloz para que não tenhamos tempo de pensar sobre elas, só vejo conversa de maloqueiro sobre sexo e vizinhos. Umas conversas boas para quem tem preguiça de pensar e se vinga dos que pensam, eliminando o que considera pura mitologia em torno de cada assunto. Conversas de quem odeia a dúvida e o mistério, esses inimigos do bem-estar medíocre.

Em geral, o cidadão quer saber dos candidatos o que farão no posto para onde estão sendo votados. Mas, no caso de Bolsonaro, o que vemos é a ascensão de um novo tipo de eleitor, que, mais do que interesse por programas, quer mesmo é saber como seus candidatos se comportam diante das novidades morais do mundo. Bolsonaro não tem programa de governo; mas tem uma vastíssima coleção de críticas e adesões a comportamentos.

Quando as pessoas ficam de saco cheio das explicações sobre os tantos erros que afetam suas vidas, escolhem sempre o método dominante como culpado de seus males. E porque não entendem, nem fazem questão de entender o que se passa, elegem a razão e o conhecimento como inimigos, põem a inteligência fora de moda. Quando você fica cansado de uma viagem desconfortável que parece não ter mais fim, perde a noção do valor de para onde vai, não se importa mais com o destino. Tanto faz. Quando Bolsonaro ensina o bebê a usar uma arma de fogo, ele está dizendo que ninguém tem nada a ver coma vida desimportante do outro. Esse mundo foi feito para nós, os que, se for preciso, sabemos eliminar o que nos incomoda.

Numa democracia, direita e esquerda têm todo o direito e até a obrigação de se manifestar, a população precisa conhece-las para saber a quem deve seguir. Mas o que Bolsonaro diz é apenas bárbaro. E a barbárie é um estágio da sociedade humana muito anterior à democracia, não sabe conviver com ela.


Cacá Diegues: Uma invenção do amor

No afã soberbo de controlar tudo, inventamos coisas que não existem para contrapô-las como ciência à realidade concreta, para nos impormos à natureza imprevisível

A comunidade científica do mundo todo está excitada com rumores sobre a descoberta de uma nova partícula subatômica e a força nuclear saída de suas colisões, mais de três milhões de vezes por segundo. Ao explodir, essas partículas ameaçam mentes e corações humanos que nunca mais serão os mesmos. Curiosamente, as explosões fazem com que toda matéria tenha pouca massa e muita luz. As coisas em volta perdem o peso, o mundo gira como se estivessem todos bêbados e nunca mais as vítimas voltam ao normal.

Aliás, o que mais intriga a essas vítimas é saber o que seria afinal “ser normal”?

Alguns registros fotográficos dos experimentos mostram o que se passa, quando as explosões se dão em seres humanos. De repente, em um canto qualquer de uma dessas fotos, descobrimos um homem e uma mulher que se beijam. Abraçados, ele a traz para junto de seu corpo, com a pressão de seus braços às costas dela. E ela puxa com força o rosto dele para perto do seu, trazendo-o pelo pescoço até o beijo na boca. O casal não parece ignorar o entorno e seus sinais de ameaça. Apenas não resiste ao que se passa dentro deles mesmos, a vencer a insensibilidade do mundo do lado de fora de seus corpos.

Talvez esteja mesmo na hora de reinventar a vida e, inventando qualquer outra coisa parecida, de criar a possibilidade de uma redenção da permanente tragédia humana.

Nunca é tarde para compreendermos que tudo o que fazemos no mundo, mesmo que não desconfiemos disso, é feito para sermos benquistos pelo outro. Isso não é nenhuma novidade, já estava até no Antigo Testamento, o livro consagrado por todas as religiões monoteístas. Está lá, no Livro de Samuel I, versículo 18: “Davi amava o outro, como à sua própria alma”.

Pode ser que sejamos uns tolos, tentando sacar do querer bem ao outro o sentido da vida. Talvez a vida não tenha mesmo sentido algum; mas procurá-lo é o único sentido que a vida pode ter.

Querer bem ao outro é uma proposta de solidariedade, de encontro entre pessoas que sentem prazer em estar juntas, sem saber direito porque, num momento que não se repete. Segundo Scott Fitzgerald, o grande romancista americano do século XX, “existem todas as espécies de amor neste mundo, mas nunca o mesmo amor duas vezes”.

No afã soberbo de controlar tudo, inventamos coisas que não existem para contrapô-las como ciência à realidade concreta, para nos impormos à natureza imprevisível, sujeita ao caos e ao acaso. Inventamos, por exemplo, a linha reta e o zero, em um mundo em que ambos não existem, onde só existem curvas e nada está vazio. Travestis de Deus, só admitimos a perfeição de um lado e o opróbrio do outro. Por isso inventamos o amor, para tentarmos apagar essa distância entre nós e o outro.

Foi isso o que o homem inventou de melhor, nesses poucos séculos de sua existência na Terra: a misteriosa e inusitada força nuclear que nunca sabemos de onde vem, tomando nosso corpo, com estupendas colisões de partículas que nos fazem experimentar finalmente a razão de viver. Aquilo a que podemos chamar de amor.

O amor de verdade é sereno e discreto, como tudo o que dá certo. Um permanente aprendizado de vida, como um barco e suas circunstâncias a atravessar o agitado rio do mundo. Ele aponta sempre para a solidariedade, um veículo em que só se pode viajar acompanhado. O amor não é o fim da estrada, mas a estrada sem fim que os amantes devem trilhar juntos, a suportar a prática diária de um mundo que não é o ideal.

Quando se ama e vai mal, qualquer brisa é temporal. Mas não deixaremos que o amor padeça de tédio, vamos reinventá-lo sempre, abastecendo-o como abastecemos o carro que nos vai levar por um longo, porém aprazível caminho que vale a pena percorrer. Amar é suportar o outro como ele é, nesse rumo de tantas dores e prazeres. Parece que a Biblia não foi lá muito bem entendida e portanto traduzida. Na verdade, o que Jesus Cristo quis dizer não foi “amai-vos uns aos outros”, mas sim “suportai-vos uns aos outros”, o que é bem mais natural. Ou sagrado, tanto faz.

Suportar significa também dar apoio, juntar-se um ao outro, transformando os dois numa só explosão de um só e invencível ser. Para isso, é preciso trabalhar a cada instante, para que o amor seja realmente “eterno enquanto dure”, como decretou Vinicius de Moraes. Ou, ainda melhor, que o amor dure eternamente, como deve ser a vocação do barco dentro do qual, juntos, os amantes vão atravessar o oceano de suas vidas, sem fazer do mundo lá fora o inimigo a combater.

Embora ele às vezes nos seja ingrato, o mundo não pode ser nunca o inimigo a combater. Sobretudo quando amamos e portanto não temos medo de viver. É essa a força do amor — quando ele se instala, não temos mais medo de viver. Não temos mais medo de nada, hoje e sempre. Quase nada.

* Cacá Diegues é cineasta

 


Cacá Diegues: A melhor atriz do mundo 

Jeanne Moreau inventou seu tempo e acompanhou as mudanças ocorridas naquilo que ela inventou. A importância dela estava dentro e fora da tela

Os jornais e a televisão cobriram o assunto, é verdade. Publicaram biografias, listas de seus filmes mais significativos, fofocas de seus ex-maridos (de um deles até trocaram o nome, um outro foi eliminado da memória pública), tudo que uma estrela merece ao morrer com 89 anos de idade. Mas foi tudo pouco, para entender Jeanne Morau e seu papel na história do cinema é preciso muito mais.

Com a morte de Jeanne Moreau, morre um pedaço do cinema. Ela produziu, dirigiu ou escreveu poucos filmes. Mas foi nos filmes que interpretou, nos filmes a que deu um caráter que muitas vezes eles não tinham originalmente e que ela inventou por conta própria ou por ser o que era, que ela ergueu a história de um cinema que não existia antes dela.

Quando, em “Ascensor para o cadafalso” (“Ascenseur pour l’échafaud”, de Louis Malle, 1957), Jeanne Moreau caminhou pelos Champs-Élysées ao entardecer, sem luz artificial, iluminada apenas pela luz das vitrines de Paris e dos faróis dos automóveis, com a câmera levada pelas mãos do fotógrafo Henri Decae, ao som de um improviso de Miles Davis, à espera do desenlace de uma conspiração criminosa que arquitetara contra seu marido, nesses planos, cuja continuidade estava apenas em sua beleza e eficiência, nascia um cinema que nunca havíamos visto antes, uma maneira de encarar a vida que não conhecíamos, um rosto que se expressava de um modo mais rico e complexo, como apenas desconfiávamos que era a própria existência humana. E nunca mais o cinema foi o mesmo.

Jeanne era apaixonada por Bette Davis e, talvez por isso mesmo, muito ensaísta de respeito atribuía à estrela hollywoodiana a origem do jeito Moreau de ser na tela. Mas não tinha nada a ver. Bette Davis era uma grande atriz na tradição do cinema americano clássico, um rosto que não se deixou influenciar pelo falso naturalismo de cartilha dos estúdios. Jeanne Moreau inventou seu tempo e acompanhou as mudanças ocorridas naquilo que ela inventou. A importância dela estava dentro e fora da tela.

Logo depois de “Ascensor para o cadafalso”, ela faria, em 1958, com o mesmo Louis Malle, “Os amantes”, um filme em que, em todos os lugares e épocas em que passou, o grande destaque era um longo plano do rosto de Jeanne Moreau reagindo a alguma coisa que não se via na tela. Seu parceiro, na cama em que faziam amor, sumia por seu corpo abaixo, sugerindo um sexo oral cujo resultado estava apenas no rosto da atriz. O choque moral e de costumes que esse plano provocou tornou o filme maldito, proibido pelas igrejas e pelos bons costumes, censurado em quase todo o mundo. E, no entanto, era apenas um close solitário de Jeanne Moreau.

Quando ela veio ao Brasil, no início dos anos 1970, para filmar “Joanna Francesa”, um membro da equipe, cinéfilo de respeito, desses que sabem tudo dos filmes que amam, aproveitou uma noite descontraída, numa mesa de bar com parte do elenco, e reproduziu para Jeanne algumas das falas célebres de seu filme recente “A noite”, um clássico moderno dirigido por Michelangelo Antonioni. Para minha surpresa, ela não reconheceu as falas, não sabia de que filme vinham, não se lembrava de que tinha sido ela que as dissera. Jeanne Moreau, que cultivava com empenho a história do cinema, que sabia dizer o que fosse necessário sobre os filmes importantes dessa história, não tinha o hábito de se consagrar.

Segundo Orson Welles, que filmou com ela, Jeanne Moreau era “a melhor atriz do mundo”. Mas acho que isso é pouco para definir o que ela foi. Como Jeanne disse uma vez, para ela “o cinema não era uma carreira, mas sim uma vida”. E era pela vida que ela se interessava sempre, mesmo em filmes tão comerciais quanto “Viva Maria”, que ela faria em 1965 com Brigitte Bardot, durante o qual dava ideias ao diretor e improvisava constantemente, a ponto de irritar sua parceira que, a cada intervenção dela, ameaçava ir embora.

Por vários motivos que não se resumem ao cinema, meu filme favorito, entre os que ela fez, sempre foi “Jules e Jim” (de François Truffaut, 1962), o mais belo filme sobre o amor jamais feito. É nele que Catherine, seu personagem meio anarquista, canta a canção “Le tourbillon de la vie”, uma canção que era a sua cara. Jeanne Moreau amava esse turbilhão.

* Cacá Diegues é cineasta