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Cacá Diegues: Nelson Pereira dos Santos e nós
Nos anos 1950, com seus dois filmes de estreia e a produção de um terceiro, cineasta iniciou uma revolução que nunca terá fim
O grande cineasta Nelson Pereira dos Santos foi um dos maiores artistas e pensadores da cultura brasileira no século XX. Da cultura brasileira e da criação cinematográfica em países que, quando Nelson começou a fazer filmes, estavam ausentes das telas, exilados da história oficial do cinema no planeta. Países e povos que, naquele momento, não tinham representação alguma deles mesmos, imagens e sons do que eram e do que podiam ser.
Nos anos 1950, com seus dois filmes de estreia e a produção de um terceiro, Nelson iniciou uma revolução que nunca terá fim, enquanto houver povo no mundo que não se manifeste nessa arte. Seus filmes eram “Rio, 40 graus” (1955) e “Rio, Zona Norte” (1957), além de “O grande momento” (1958), dirigido por Roberto Santos. Quando fez seu primeiro filme, o cinema que circulava universalmente se resumia às produções de Hollywood e às de alguns países da Europa Ocidental, como Inglaterra, França e Itália. As raras surpresas que vinham da Escandinávia, do Japão ou da Rússia, assim como de outras inesperadas cinematografias, só faziam confirmar a exceção.
A origem do Cinema Novo brasileiro, exceção que deu cria, está nos filmes e na atividade política de uma geração que se reuniu em torno de Nelson. Esse movimento, a fundação da primeira cinematografia nacional e moderna em país do então chamado Terceiro Mundo, foi reconhecido nos festivais internacionais. Como consequência do sucesso nos festivais, os filmes começaram a ser distribuídos em circuitos comerciais, pelo mundo afora. Inclusive nos próprios Estados Unidos, junto a um público jovem e universitário.
Chegada tardia do modernismo ao nosso cinema, o Cinema Novo brasileiro, liderado por Nelson, foi o primeiro movimento cinematográfico de um país periférico a ter uma repercussão significativa no circuito internacional. Sobretudo a partir dos festivais de Berlim e Cannes de 1964, quando “Vidas secas”, de Nelson, “Deus e o diabo na terra do sol”, de Glauber Rocha, e “Os fuzis”, de Ruy Guerra, surpreenderam cinéfilos de todo o mundo. Não se tratava apenas de filmes inesperadamente bem feitos, à altura do que se fazia em Paris, Londres ou Roma. Mas de um cinema que revelava valores dramáticos, éticos, culturais, étnicos etc., de uma natureza específica. A cultura original de uma nação original que se manifestava nas telas. Um cinema nacional.
Jamais me esquecerei da sessão inaugural, no Palácio dos Festivais, em Cannes, de “Deus e o diabo na terra do sol”. Desde o início da projeção, o público sofisticado de Cannes se inquietava com o que via na tela — rostos, personagens, costumes, dramas, músicas, cenários, tudo nunca visto antes, contando uma história nunca contada antes.
Quando a sessão acabou, a sala já estava a menos da metade, e os espectadores que não a haviam deixado não sabiam direito como reagir. Até que alguns começaram a aplaudir. Em breve, o aplauso se tornou uma ovação consagradora, e eu me senti diante da descoberta de uma cultura vinda de outra galáxia, que aquele público nunca pensara que havia de existir. Tive certeza de que valia a pena fazer filmes no Brasil. E fazê-los daquele jeito, fiel ao que estivesse diante de nós.
Visto nesse mesmo Festival de Cannes, podemos medir a repercussão de “Vidas secas” pelo que escreveu François Truffaut sobre ele, dizendo tratar-se de “um filme que justifica a existência do cinema”.
Nelson foi um grande mestre, que nos ensinou tudo com doçura e real interesse pelo que o outro fazia. Mais velho e mais experiente que nós, nos ensinou a prática de um modo de fazer que permitia a existência de uma economia cinematográfica, num país periférico como o Brasil. Um país que tentávamos descobrir e revelar a cada filme.
O exemplo de Nelson não ficou restrito àqueles jovens cineastas que o cercavam numa mesa de edição, nas sessões noturnas de trabalho no Laboratório Líder, para vê-lo praticar o milagre do cinema. Ele contagiaria primeiro os cineastas latino-americanos e depois os de todo o resto do mundo onde era preciso fazer cinema, mesmo que o cinema não tivesse como ser feito. Hoje, na medida de seus valores e da crescente crueldade dos mercados, circulam pelo mundo todo filmes de toda parte, da Coreia à Romênia, do Irã a Moçambique, do Mali à Tailândia, do Equador à Guatemala. Porque cada povo sempre terá o que dizer de si mesmo e surpreender os outros.
Nelson nos deixou em 2018. Ousei então me candidatar à sua sucessão, na Academia Brasileira de Letras, para onde fui eleito e tomei posse nessa última sexta-feira. Amigos de dentro e de fora da ABL me incentivaram a candidatura. Mas a “pressão” decisiva foi a da necessidade de guardar a lembrança de meu antecessor como o inventor de um cinema, mestre e guia de uma geração. E de qualquer outra geração do cinema brasileiro, mesmo as dos que nunca viram um filme seu. Mesmo esses são tributários da luz imortal de Nelson Pereira dos Santos.
Cacá Diegues: Outro Velloso
Estudioso de cinema, ex-ministro do Planejamento se aproximou dos cineastas através de Nelson Pereira dos Santos
Morreu semana passada o economista João Paulo dos Reis Velloso, e seu obituário, exposto nos jornais e na televisão com todo o respeito, esteve sempre incompleto. Ninguém deixou de informar que Reis Velloso foi ministro do Planejamento do general Ernesto Geisel, um dos presidentes da ditadura militar. Mas ninguém se lembrou de acrescentar que ele dedicou sua vida e sua carreira à busca de alternativas nacionais mais justas, democráticas, segmentárias e igualitárias para o crescimento do país.
Crítico de Delfim Netto, seu antecessor no comando da economia do país, Velloso o considerava responsável pelo “ovo da serpente”, o conjunto de ações que criara as dificuldades posteriores ao artificial “milagre econômico” do início dos anos 1970, quando se perdeu no horizonte a própria ideia de desenvolvimento nacional. Foi na correção desse rumo que ele criou a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) e o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Em 1988, fora do governo, Velloso montou o Fórum Nacional, espaço de debate sobre o Brasil, com discussões que envolviam vários aspectos do conhecimento em geral e da realidade nacional, em particular, como ele a cultivava criativamente. Sobretudo através da cultura nacional e do próprio cinema brasileiro, uma de suas paixões.
Enquanto ministro de Geisel, Velloso se preocupara em estabelecer, como uma das metas de seu ministério, um projeto cultural visando não só à produção de bens culturais, como também seu vasto consumo pela população. Os resultados dessas buscas repercutiram logo nos segmentos mais próximos do sistema de consumo, como as indústrias fonográfica, editorial e cinematográfica.
Sem censura política ou ideológica (os filmes estão aí para prová-lo), a Embrafilme, uma sociedade anônima de capital misto, sob a direção do cineasta Roberto Farias, durante a gestão de Velloso no ministério, produziu qualidade e sucesso comercial, com prêmios internacionais e uma participação de 35% a 40% do mercado interno, taxa que nunca mais voltamos a alcançar. Em determinado momento, a Embrafilme era, ao lado de duas das sete majors americanas, uma das três empresas de cinema mais bem-sucedidas em toda a América Latina.
Foi Velloso que imaginou e criou a Condecine, taxa sobre produtos audiovisuais que até hoje alimenta a produção do cinema brasileiro, sem recorrer ao Orçamento da União ou a outros recursos públicos. É essa mesma Condecine que, até hoje, sustenta os financiamentos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), da Ancine.
Mais tarde, já fora das estruturas oficiais, Velloso passou a organizar um Fórum Econômico para o Desenvolvimento, incluindo sempre nos debates a produção cultural, inclusive a da cultura popular produzida em favelas, periferias urbanas e pequenas concentrações no interior do país. Mais uma vez, ele se adiantava à ideia futura de Centros de Cultura, elaborada e executada bem depois por Gilberto Gil.
Velloso foi o primeiro homem público brasileiro a tratar a produção cultural, não apenas por sua importância simbólica, mas também como um concreto setor econômico do país. Ele ordenou ao Ipea, que acabara de criar, pesquisar o impacto da atividade em relação ao PIB. Pela primeira vez em nossa história, ficamos sabendo que a indústria cultural brasileira gerava entre 1,5 e 1,8% do PIB, com criação significativa de empregos e renda acima de outros segmentos industriais mais conhecidos e festejados. Foi graças a essa pesquisa que, nos últimos 30 anos, tornou-se possível estruturar de maneira mais produtiva os diferentes setores da indústria cultural.
Estudioso de cinema, Velloso se aproximou dos cineastas brasileiros através de Nelson Pereira dos Santos, com quem tinha ácidas discussões políticas e de quem nunca deixara de ser amigo, até a morte recente do cineasta. Como ficara depois amigo e ouvira as ideias de tanta gente como Roberto Farias, Glauber Rocha, Luiz Carlos Barreto, Joaquim Pedro de Andrade e tantos outros. Velloso era o exemplo de um Brasil com o qual sonhamos tanto, onde os conflitos políticos não perturbavam as necessidades específicas de cada atividade. Um Brasil que bem correspondia ao ensinamento de Raymond Aron, cientista político francês de meados do século passado: “Na política, a opção jamais tem a ver com a luta entre o bem e o mal, mas com o preferível e o detestável.”
A última publicação do Fórum Nacional a que tive acesso foi a de um livrinho sobre os grandes amores da Bíblia. Nele, Reis Velloso reproduzia a palavra do apóstolo Pedro, citando o profeta Joel: “Vossos filhos profetizarão, vossos jovens terão visões, e vossos velhos sonharão”. Era essa a sua esperança de construção do país, baseada no que podemos sonhar e fazer a cada momento distinto.
Cacá Diegues: O futuro já passou no Brasil
Sinto como se essas tragédias todas que nos têm acontecido sejam um aviso para que a gente pare de besteira
Semana passada, já tinha enviado meu artigo pro jornal quando soube dos jovens atletas do Flamengo mortos no incêndio do CT do clube. Não deu mais tempo de tocar no assunto e amarguei essa ausência de uma homenagem a eles. O Brasil está começando o ano de 2019 muito mal, cheio de tragédias irreparáveis, situações que nos atiram de volta a um passado de quinta no concerto das nações. Um passado em que os brasileiros não tinham a menor importância. Nesse tempo de pé no chão, elogio da bananeira e expectativa de vida muito curta, o brasileiro se defendia com a ideia, inventada por um escritor austríaco, Stefan Zweig, que viveu por aqui e por aqui acabou se suicidando, de que éramos “o país do futuro”. No presente, o Brasil só servia para jogar futebol e brincar o carnaval.
Foi o resultado da Segunda Guerra Mundial, o fim da ditadura do Estado Novo e os paradoxos da Guerra Fria que nos prepararam para o tempo em que vivíamos. Não era o pensamento progressista e libertário que conduzia o país para a frente. Mas, pelo menos, se revelava uma força capaz de enfrentar, com certa distinção, o velho patrimonialismo que, associado ao desprezo por nós mesmos, nos tornava uma eterna esperança.
Uma geração de brasileiros acreditou na nossa capacidade de inventar uma cultura e uma política originais, um modo de pensar e viver que transformaria a civilização planetária, graças à generosidade, à solidariedade e à fraternidade de nossas ideias. O Brasil não era ocidental, nem oriental. Não seria um país capitalista, nem comunista. Nem religioso, nem ateu. Seríamos alguma coisa nova, que não existira antes de nós, e que nós mesmos não saberíamos explicar direito. Não sabíamos explicar o que ainda estava em progresso, só viver a experiência social e intelectual que, tínhamos certeza, haveria de ser vitoriosa. Foi preciso a reiteração do golpe militar, em 1968, com sua clara disposição autoritária, para acabar com os nossos sonhos que duraram tanto. Mesmo a partir de 1964, nos quatro anos anteriores ao AI-5, no tempo de uma ditadura envergonhada e molenga.
O Brasil perdeu o rumo de suas vocações de modo tão radical que não soubemos nem mesmo criar uma alternativa democrática mais original para o fim do regime autoritário. Claro que o que nos aconteceu, a partir de 1985, foi uma espécie de ressurreição. A oposição foi anistiada, voltamos a votar em quem bem desejássemos, a dizer o que quiséssemos sem medo de cadeia, a escrever sem censura e castigo. O Brasil continuou sendo o país do futuro, mas um futuro que já tinha passado.
Hoje voltamos a esse passado sem futuro. Um tempo ao qual nosso presidente, eleito livremente por nós, afirma querer nos fazer retornar. No meu coração, sinto como se essas tragédias todas que nos têm acontecido sejam um aviso para que a gente pare de besteira e tome consciência do que somos, nossa incompetência e falta de vocação para a verdadeira felicidade coletiva.
Vejo o presidente da Vale dizer aos parlamentares do país que sua empresa é uma “joia da coroa”, quando o “acidente” por ela provocado, repetindo o outro de apenas três anos atrás, matou 169 pessoas e deixou desaparecidas outras 141 (certamente também mortas), fora as perdas materiais pelo caminho. Em qualquer tipo de raciocínio, essa companhia teria que fechar as portas por falta de competência para a mineração que pretende praticar. Como os dirigentes do Flamengo tentam dar outros motivos, pela morte de seus dez jogadores adolescentes, quando todo mundo já sabe que o clube não tinha autorização dos serviços públicos para deixar funcionar o frágil contêiner em que eles foram queimados. Não basta abraçar os inimigos esportivos de ontem para celebrar as vítimas desse crime hediondo.
A morte de um ser humano é tão trágica quanto a de uma legião deles. Fico pensando se um jornalista exemplar como Ricardo Boechat e o nosso ícone do espetáculo Bibi Ferreira não morreram, na mesma semana, de puro desgosto. Quem mandou ser brasileiro?
Cacá Diegues: Quando o governo começar
Brasil é país politica e culturalmente esquizofrênico, onde duas coisas opostas entre si podem estar acontecendo
Quando leio as notícias ou vejo o noticiário político na televisão, tenho sempre a impressão de que este governo só vai mesmo começar quando o presidente deixar o hospital onde se recupera, trocando-o pelo Palácio do Planalto. Não adianta me dizer que ele está despachando da enfermaria do Albert Einstein, em São Paulo. Quero vê-lo naquele cômodo modernoso, sentado àquela mesa ornamental onde víamos nossos chefes de Estado anteriores decidir com seus auxiliares o que fazer do país. Aí, sim, vou poder saber com clareza para onde estamos indo.
Fico feliz quando ele nega com veemência não ter censurado o filme da cura gay, “Boy Erased”, que a Universal retirou de cartaz antes de ele entrar em cartaz. Como fico preocupado quando o ministro da Educação diz as besteiras que disse à revista “Veja”, afirmando que foi o que ouviu do presidente, quando este o convidou a ocupar o posto. Ainda não sei direito, com exatidão, qual dos dois é o nosso chefe de governo. O que, além das razões humanitárias, me faz ficar ansioso para que ele se cure logo de seu intestino ferido no atentado boçal que sofreu durante a campanha.
Há algum tempo, li, em algum lugar, uma declaração do filósofo Mangabeira Unger dizendo que a eleição de Jair Bolsonaro era uma “resposta tosca” à aspiração legítima de um Brasil profundo. A gente nunca chega a conclusão alguma diante de uma frase como esta, mas o professor de Harvard tem razão. Se o Brasil o elegeu, é porque tinha algum plano para e com ele, baseado no que ele diz ou em como ele é. Como tenho a pretensão de bem conhecer o país que acompanho há tanto tempo, acho mais provável que o eleitor tenha se encantado mais com o estilo do que com a sintaxe. Mas o mistério continua e, quem sabe, só vai terminar depois que o presidente receber finalmente alta de seus médicos.
Pena que isso já não tenha acontecido, antes de tanta tragédia no país, neste início de ano. Certamente, teríamos pistas certeiras do que ele pensa e de como ele é, em função de como reagisse ao criminoso desastre em Brumadinho ou às consequências do temporal que caiu semana passada sobre o Rio de Janeiro.
Como ninguém votou em mim e não preciso me preocupar com isso, posso confessar que torci para que alguém tivesse o poder de somar, aos cerca de R$ 11 bilhões bloqueados da Vale, o simples fechamento da empresa por sua óbvia incapacidade de gerir negócio capaz de provocar tal tragédia, com mais óbitos num dia do que em semanas da cruenta guerra na Síria. Ou que evitei gargalhar, em respeito aos mortos no ônibus que atravessara a Avenida Niemeyer, quando nosso prefeito declarou que o acidente resultante do temporal no Rio só foi possível porque as causas vieram da montanha e não do mar, contra o qual a prefeitura já tinha tomado as providências necessárias.
Hoje, todo mundo sabe que o Brasil é um país politica e culturalmente esquizofrênico, onde duas coisas opostas entre si podem estar acontecendo simultaneamente, sem nem por isso causar espanto. Tenho paixão, por exemplo, pela abertura do livro “Retrato do Brasil”, do pensador modernista Paulo Prado. Neste seu “Ensaio sobre a tristeza brasileira”, ele diz que “Numa terra radiosa vive um povo triste”. Somos o território brasileiro e nós. Mas nós bem que temos motivos para nossa tristeza, e eles não são apenas os que a inteligência de um antropólogo bem formado pode descobrir em nossa história.
Mesmo que não concordemos com o que ele diz, não podemos deixar de reconhecer em Paulo Guedes, além de um economista competente, um pensador capaz de propor suas ideias a partir de elaborações sofisticadas sobre o Brasil. E elas podem dar certo. Como não é possível desmerecer o esforço ideológico e técnico do ministro Sergio Moro, na sua ambição de nos oferecer uma legislação rigorosa que acabe com o crime organizado e a corrupção endêmica, coisas que alimentamos e combatemos desde o chamado “Descobrimento”.
Mas como é que esses empenhos virtuosos convivem, no mesmo espaço, com a senhora da goiabeira e a educação sem liberdade? Com o chanceler cada vez mais insensato e o vice-presidente cada vez mais sereno? De qual desses dois governos nosso presidente se sente mais próximo?
Agostinho de Hipona, filho de pai pagão e mãe cristã, que, vivendo entre a Antiguidade e a Idade Média, se tornaria bispo e santo, autor da primeira autobiografia da literatura ocidental, fundador da sabedoria moderna, dizia que apenas a fé não bastava. Ela deve estar sempre acompanhada da razão iluminada pelo livre arbítrio humano, o único meio de se conhecer a verdade de verdade. Passadas as emoções da disputa eleitoral e as primeiras semanas de um eleito compulsoriamente ausente, vamos torcer para que o presidente suba finalmente a rampa do Planalto e nos governe com sabedoria e graça.
Cacá Diegues: Um Oscar novo
A inteligência e o entretenimento se somam em Hollywood para formalizar o reconhecimento de uma nova cultura
Há certos assuntos que a humanidade vive e discute há muito tempo. A migração, por exemplo, não é um tema de prática e teoria novas, embora, em anos recentes, tenha se tornado referência nos debates sobre o presente e o futuro do ser humano no planeta. A migração está na origem do reino do ser humano sobre a Terra, se levarmos em conta os movimentos de populações inteiras pelo globo afora, em todos os tempos. O homo sapiens surgiu em algum lugar da África e se deslocou para outros continentes até chegar à América, sua mais recente e grande migração. O ser humano, seja por que motivo for, nunca ficou parado para sempre num mesmo pedaço de terra.
Hoje, repetindo o passado, assistimos a um movimento trágico de populações africanas que se deslocam de suas origens, fugindo da fome e da guerra, duas formas brutais de extermínio humano, rumo sobretudo à Europa, a esperança mais próxima. Em alguns países alvos desses movimentos, como a Alemanha, já se organizaram as formas de recepção e acolhimento desses povos, de acordo com as leis locais e as características socioeconômicas de cada um. Em outros, como alguns centro-europeus, o horror ao migrante se revela em sinais brutais de racismo e xenofobia, de recusa sistemática dos necessitados, que acabam desajustados nas fronteiras ou no fundo sinistro do Mediterrâneo.
Em países mais longínquos, ondas migratórias se deram desde muito tempo atrás, fazendo parte da própria formação da nação, mesmo que setores políticos reacionários não as desejem e tentem negá-las. Como nos Estados Unidos ou no Brasil. No caso americano, o Oscar deste ano nos revela surpreendente superação de preconceitos multiétnicos.
Entre as obras que disputam as diferentes categorias nesse 91º Oscar, fora os específicos filmes falados em outra língua que não o inglês, há trabalhos e diretores vindos de México, Grécia, Alemanha, Polônia, Suécia, Dinamarca, além de cinco cineastas negros, etnia que nunca se deu bem nessas premiações, sempre esquecida graças aos preconceitos racial, social e cultural. Esses cineastas negros são herdeiros dos “migrantes compulsórios”, trazidos da África para serem escravos no Novo Mundo branco de ascendência europeia. Tornados cidadãos americanos na segunda metade do século XIX, durante a presidência de Abraham Lincoln, só no século seguinte, a partir do governo de John F. Kennedy, em 1962, eles conquistaram com muito sofrimento seus direitos civis e passaram a ser obrigatoriamente tratados como qualquer outro dos diferentes migrantes que construíram a nação.
O Oscar é um prêmio corporativo, seus vencedores são escolhidos pelos profissionais de Hollywood, executivos, técnicos e talentos que fazem a grandeza do cinema americano, para o bem ou para o mal. Essa tendência atual, aparentemente consolidada, de premiar o que se julga de qualidade, sem restrições de preconceitos, não é um esforço institucional, nem uma política de Estado (mesmo porque não seria essa a política do atual presidente Donald Trump). Mas a confirmação de um desejo e de um projeto em que a inteligência e o entretenimento se somam para formalizar o reconhecimento de uma nova cultura que seja o resultado de todas as influências que formaram a complexidade do país.
Claro, falta ainda fazer justiça às mulheres atrás das câmeras. Embora algumas produtoras estejam indicadas pelos filmes que produziram, as listas dos indicados não incluem diretoras ou técnicas de qualquer natureza. Mas não se pode subestimar uma premiação que indica, entre os oito melhores filmes, dois dirigidos por estrangeiros (“A favorita”, do grego Yorgos Lanthimos, e “Roma”, do mexicano Alfonso Cuarón) e dois por cineastas negros (“Infiltrado na Klan”, de Spike Lee, e “Pantera Negra”, de Ryan Coogler). Se formos analisar essa tendência pela indicação dos candidatos ao Oscar de melhor diretor, veremos ainda que, dos cinco indicados, três são estrangeiros (Lanthimos, Cuarón e o polonês Pawel Pawlikowski), um é afro-americano (Lee) e só o quinto, Adam Mckay, nascido na Filadélfia, é certamente um autêntico sucessor dos migrantes fundadores do Mayflower.
Tão significativa quanto a extensão do reconhecimento a todos os filhos de um país formado por tantos povos, como os Estados Unidos, é também a natureza cinematográfica dos principais filmes indicados. Do blockbuster afro-americano de “Pantera Negra” à dramédia politizada de “Green Book”, do estranhamento agressivo de “A favorita” ao politicamente explosivo de “Vice”, do romance bélico de “Guerra Fria” ao épico documental de “Roma”, esse Oscar decreta a superação do realismo naturalista que dominou os últimos festivais internacionais com filmes bem intencionados sobre fait divers políticos, cheios de piedade social e conformismo estilístico, apontando agora para o futuro do cinema.
Cacá Diegues: A cota das minorias
O cinema é a única cultura nacional que compete com o produto estrangeiro em pé de igualdade
O que está hoje em perigo em todo o mundo é o humanismo que iluminou o pensamento ocidental durante os últimos séculos. A ideia de que o ser humano é o centro do universo que interessa, o alvo de tudo que deve ser desenvolvido, protegido e preservado, começa a não encaixar mais em novas culturas políticas espalhadas por aí. Inclusive no Ocidente que o inventou desde a Antiguidade grega, e que depois o manteve subterrâneo até o Renascimento.
O apogeu histórico do humanismo se dá com o iluminismo, a ideia de que a razão pode tudo resolver. Foi graças a essa concepção do conhecimento como instrumento de nossa compreensão e atuação no mundo que construímos a civilização em que vivemos.
A partir do século XV, com a invenção da imprensa, uma nova tecnologia, parte da Europa se alfabetizou, e os monges copistas deixaram de ser os detentores únicos dos segredos do conhecimento. Grandes pensadores alteraram os padrões sociais e fizeram as culturas valorizarem o homem comum. Como a desgraça nunca desapareceu completamente do mundo real do presente, o ser humano teve que contar com o futuro para iluminar seu rumo. Os grandes humanismos, religiosos ou ateus, tiveram que inventar o paraíso celeste e a Parusia, a sociedade sem classes e a harmonia absoluta com a natureza, essas coisas que dão sentido à vida depois que ela acaba.
O humanismo inventou a democracia moderna. Os gregos já a haviam praticado, mas dela só se beneficiava a elite cidadã. O povo e os escravos não tinham direito a ela. Agora, no nascimento da democracia moderna, todos têm teoricamente direito a ela, aperfeiçoada de acordo com as tradições de cada lugar. Embora a democracia acabe sempre por servir às maiorias, nela o minoritário pode sempre sobreviver. John Stuart Mill, um inglês precursor de ideias que floresceram no século XIX, dizia que a democracia era a “tirania da maioria”.
Nessa segunda década do século XXI, outra nova tecnologia inventada pelo homem desbanca a imprensa e o audiovisual, as formas ilustres de conhecimento até seu surgimento. Com ela, os poderosos não precisam mais ser maioria para exercer sua tirania. Através dela, eles podem saber onde está cada um de nós, pensando o quê, e nos manipular na direção que julgarem mais conveniente. Se os cérebros de Adolf Hitler ou Joseph Stalin tivessem conhecido a ciência digital e a internet, o mundo hoje seria bastante diferente. Diferente para muito pior.
O mal não está nas tecnologias que inventamos e continuaremos a inventar, mas no uso delas. E sobretudo no que pensam e desejam dela os que a sabem usar muito bem. Os políticos que melhor a utilizaram até agora, por exemplo, foi gente como Donald Trump, um padrão que começa a se repetir pelo mundo afora.
O conflito entre os populistas que usam a força da internet e os seus objetivos só tende a crescer, impedindo que tudo isso acabe em paz. Eles são necessariamente nacionalistas e dependem da mais globalista das tecnologias, uma que não tem limites territorial, linguístico ou cultural. Os algoritmos não têm pátria ou língua, não têm origem em mitos nacionais, costumes antigos ou bandeiras a respeitar. Atentem, por exemplo, para essa moda de fotos de pessoas com diferença de dez anos em suas vidas. O que parece ser apenas uma curiosidade, uma brincadeira típica do sistema digital, pode se tornar material para um completo fichário. Não só de quem a usa, como também do grupo, partido ou comunidade a que pertence.
Diz Pedro Doria, especialista no assunto: “Tecnologias de vigilância que vêm fácil demais e podem ser exploradas sem regras claras serão abusadas. Porque o abuso é da natureza de quem tem poder”. Como ele ainda afirma: “Bicho complicado, a democracia”.
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Não tem sido dolorosa a passagem de governo no plano da cultura. Tanto o ministro Osmar Terra, quanto o secretário José Henrique Pires, têm sido atenciosos com as questões do cinema brasileiro. A mais grave, nessa virada de ano, é a da ausência de um decreto de Cota de Tela para os filmes brasileiros, que deveria ter sido promulgado pela gestão anterior.
O cinema é a única cultura nacional que compete com o produto estrangeiro em pé de igualdade. O teatro, a televisão, o livro e até o jornal não enfrentam seus similares estrangeiros nos mesmos postos de venda, sob as mesmas condições, como acontece com o cinema. E agora, com o avanço do streaming, a Cota é mais urgente ainda.
Se não houver Cota de Tela para nossos filmes, como acontece em todos os países do mundo, do México à França, da China à India, da Coreia do Sul ao Egito, teremos sempre dificuldade de alcançar nosso público, enfrentando as centenas de salas dos “Aquaman”. Nossa expectativa e esperança é a de que o Ministério da Cidadania e sua Secretaria de Cultura promulguem um novo decreto para 2019.
Cacá Diegues: Um Rio de fé
Em meados de 2013, o Papa Francisco esteve no Brasil para participar da Jornada Mundial da Juventude, encontro de jovens católicos realizado no Rio de Janeiro. O 266º Papa da Igreja Católica, o simpático Jorge Mario Bergoglio, havia sucedido ao misterioso Bento XVI, em fevereiro daquele mesmo ano. Tive a intuição de que, daquela visita, podia sair um filme oportuno e belo. Renata me incentivou a concretizar a ideia. Segundo ela, só nós podíamos realizar um documentário sobre Francisco, pois “o Papa era argentino, mas Deus é brasileiro”. Nosso “Rio de fé”, o título do projeto, foi uma das mais belas experiências cinematográficas de minha vida, infelizmente pouco difundida devido à distribuição precária dos DVDs, plataforma escolhida desde o início do projeto.
Havia algo de original e revolucionário naquele chefe daquela igreja, a mais tradicional da história do cristianismo. Mas não era apenas no que dizia em seus discursos, sermões e conversas com a população. Era sobretudo em seus gestos e iniciativas, que só viravam escândalo depois de praticados, quando finalmente compreendíamos o que havia acontecido. Foi assim o tempo todo, no encontro inaugural com políticos convencionais, depois com fiéis do candomblé, com favelados de uma comunidade considerada perigosa, com meninos, meninas e outros gêneros juvenis, com a multidão que lotou a Praia de Copacabana em sua despedida. Compreendemos que o bem não era monopólio de nenhuma igreja, mas um valor indispensável à sobrevivência da humanidade.
Curiosamente, naquele mesmo ano, o Brasil se mobilizava com as manifestações de rua em defesa dos que não podiam pagar nem mais um centavo pelo transporte que eram obrigados a usar. Um movimento espontâneo que quebrou a ilusão de que um governo “popular” estava provendo tudo de que a nação precisava, que estávamos a caminho da Parusia levados pelas mãos de políticos iluminados. Hoje, parece claro que 2013 marcava a fundação de um novo momento na história social do país. Poucos brasileiros interessados pelo Brasil perceberam isso.
Francisco, ao contrário da intolerância política hoje na moda, dizia que a misericórdia de Deus não tem limites, incluindo aí até quem não crê nele. Esses deviam seguir sua própria consciência para distinguir o bem do mal, o que é imprescindível. O jornalista italiano Eugenio Scalfari, 94 anos, fundador do jornal “La Repubblica” e amigo do Papa argentino, publicou, em 2018, entrevista com Francisco, em que este diz que “não existe um inferno, o que existe é o desaparecimento das almas pecadoras”. Sabemos, por experiência tanto teológica, quanto científica, que Deus criou um universo dinâmico, em constante evolução. Sua preocupação não é apenas com o que é, mas sobretudo com o que virá a ser. A principal linguagem descoberta pelos humanos é a da esperança.
Além da esperança, a humanidade desenvolveu também sua memória histórica, para não se esquecer de como as coisas eram, não se esquecer do que foi bom e do que foi ruim. A memória talvez seja a matéria mais importante da civilização. O corpo do pintor Salvador Dalí, um dos gênios do século XX, foi recentemente exumado para um exame de comprovação de paternidade. A primeira observação do secretário-geral da Fundação Gala-Dalí, assim que havia terminado a exumação, foi a de que o bigode característico do grande artista, morto em 1989, estava “na posição clássica, marcando dez horas e dez minutos”.
Enquanto nossos líderes, como o deputado Rodrigo Amorim, desprezam, subestimam e ofendem os indígenas, desejando que eles deixem o Brasil exclusivo aos herdeiros dos europeus que invadiram com violência e rapinagem o território de todos, o Papa Francisco anuncia seu apoio ao Pacto Global de Migração, proclamado pela ONU, denunciando as restrições a ele como uma volta ao que a humanidade ocidental já foi há mais de cem anos. Esse ataque aos índios é da mesma família de outras discriminações de toda natureza, de raça a ideias. É como se no mundo só coubessem os que são como somos, nosso maior inimigo sendo portanto a diferença. Justamente aquilo que mais enriquece nossa presença no mundo.
Os primeiros homens não sabiam o que era o Sol, para que ele servia. Aí começaram a pensar sobre isso, curiosos a propósito da natureza daquela bola de fogo e o que podiam fazer com ela. A cada descoberta dessa, foi sempre possível melhorar nossa vida material e nos renovar espiritualmente. Aceitar e, eventualmente, vencer o mistério constante levou o homem a se civilizar. É isso que está sempre presente em todas as ideias “chocantes” do Papa Francisco.
Cacá Diegues: A honra de viver
De que socialismo nosso novo presidente prometeu nos libertar, em seu discurso de posse no parlatório do Planalto?
Na minha juventude, éramos todos socialistas, queríamos que os homens fossem mais iguais e ninguém passasse fome. Podia até ser uma utopia, mas era um projeto sincero e generoso para a humanidade. Quem fosse inteligente e tivesse coração não podia deixar de ter ideias socialistas, se opondo à irracionalidade desumana do capitalismo. De acordo com nossa formação e crenças pessoais, o ideário podia vir recheado de princípios cristãos ou marxistas, conforme cada momento e a fé de cada um. Foi o socialismo real em alguns países, com sua violência e seu autoritarismo, que começou a nos afastar desse sonho.
Muitos saíram então em busca de uma alternativa à selvageria capitalista nos regimes de welfare state, o bem-estar social e democrático que bastaria às nossas pretensões humanistas. O exemplo estava na Escandinávia e eventualmente em outros países europeus, como a Inglaterra. Até que o vitorioso furacão individualista de Margaret Thatcher conquistasse o país e mais da metade do mundo. Inclusive os Estados Unidos de Ronald Reagan, recém empossado como presidente. Me lembro sempre da célebre e cruel declaração da primeira-ministra britânica, no início de seu mandato: “O socialismo dura até acabar o dinheiro dos outros”. Para Thatcher, o que era chamado de dinheiro público não existia; o que existia era apenas “o dinheiro de quem paga impostos”.
Com o fim da ditadura no Brasil e o início de nossa redemocratização, procuramos, por aqui mesmo, nossa remissão das dores do capitalismo e da pobreza subdesenvolvida. O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) parecia uma modernização do socialismo democrático para os trópicos. E o Partido dos Trabalhadores (PT) deixava de ser uma agremiação sindical de resistência para se tornar um partido popular. Eles se alternaram no poder, durante décadas de nossa democracia adolescente, sem nunca atender ao que eles próprios anunciavam. Nós bem que tentamos acreditar neles e em seus líderes mais expressivos.
Agora vem o novo presidente, eleito em proclamada oposição a tudo que esses partidos representaram no poder, dizer que vai libertar o Brasil do socialismo. Que Brasil? Que socialismo?
A desigualdade em nosso país é cada vez mais brutal e vergonhosa. Ela não ficou estacionada em números escandalosos, anteriores ao PSDB, ao PT e ao MDB, mas se agravou nesses últimos anos, mesmo que certos aparentes sucessos governamentais tenham dado outra impressão ao país. Segundo relatório da Oxfam Brasil, revelado pelo presidente de seu Conselho Deliberativo, o 1% mais rico de nossa população detém cerca de 25% da renda nacional. Os 5% mais ricos, por sua vez, ganham o mesmo que a soma de todos os outros 95%. E 165 milhões de brasileiros, mais de 75% de nossa população, vivem com menos de dois salários mínimos mensais. Tem mais: 0,1% da população concentra 48% de toda a riqueza nacional e os 10% mais ricos ficam com 74% dela. Em outro cálculo estatístico sobre a nossa desigualdade, a Oxfam demonstra que os mais pobres morrem, em geral, com idade inferior a 60 anos; enquanto os mais ricos sobrevivem, em média, até os 80 anos. E por aí vai.
Não me rio da ministra que viu Jesus Cristo trepando na goiabeira, embora ache ridícula essa história de que meninas só vestem rosa e meninos, azul. Assim como não vejo por que rir do cavalo que faz baixar seu santo no terreiro. Ou subestimar a capacidade de fazer milagres de João de Deus, o estuprador. Acredito em toda crença ou em toda fantasia humana que não faça mal a ninguém. Tudo isso só nos traz mais esperança no que pode acontecer conosco e no mundo. Mas esses números são a prova de nossos descuido, despreparo e incompetência. Sobretudo de nossa indiferença e desinteresse pelos outros.
Ninguém precisa libertar o Brasil do socialismo, porque no Brasil nunca houve socialismo nenhum, apenas a demagogia sempre vencida pela desigualdade real e crescente. É essa que precisa ser extirpada, a qualquer preço, por qualquer que seja o partido no poder, por qualquer que seja seu programa de governo. É preciso viver a existência do outro, justificar o mote generoso de nosso grande jurista Dario de Almeida Magalhães: “Viver é uma honra”.
Cacá Diegues: O serviço público da cultura
Respeitar o resultado produzido pelo desejo da maioria da população não quer dizer obrigar-se ao silêncio
Amanhã, quando o sol nascer, vai estar começando um novo dia, um novo ano, um novo governo no Brasil. O novo presidente foi eleito por uma maioria significativa de brasileiros, mais de 57 milhões deles. Se bem que, no segundo turno, quando apenas dois candidatos, somente duas concepções de mundo opostas se enfrentaram decidindo para onde vamos, pouco mais de 42 milhões de nossos cidadãos optaram por não votar em nenhum dos dois. Os 8,6 milhões de votos nulos, mais os 2,4 milhões em branco e as 31,3 milhões de abstenções decidiram não escolher ninguém.
Acontece que temos um presidente eleito democraticamente por uma maioria legal e legítima, é preciso respeitar os dois — ele e a maioria de brasileiros que o elegeu. O que não nos impede de fazer certas observações talvez polêmicas. Respeitar o resultado produzido pelo desejo da maioria da população não quer dizer obrigar-se ao silêncio, aceitando o que quer que os vencedores decidam fazer. Na atividade cultural, aquela à qual me dedico, por exemplo, estamos num momento delicado, que não foi inventado pelo presidente de amanhã.
Estimulada pela malícia ou ignorância de alguns críticos perversos, grande parte da população conta satisfeita com o fim da Lei Rouanet no novo governo. Ouvi isso da boca sorridente de um taxista: acabou-se a mamata, o fim da Lei Rouanet vai acabar com a sopa de quem vive às custas do dinheiro público. Uma tolice, pois, de uma forma ou de outra, de um modo direto ou indireto, todo cidadão vive às custas do dinheiro público. E viverá cada vez mais às custas do dinheiro público, na medida em que o Estado for mais eficaz na saúde, educação, transporte, habitação, segurança, em tudo o que for um dever do Estado para com a nação e o povo. E a cultura também é um serviço público, sem o qual uma nação não sobrevive como tal.
Todo governo do mundo investe na atividade cultural do país. Nos Estados Unidos, exemplo por excelência do capitalismo liberal, além das diversas formas de incentivos fiscais estaduais e federais, o governo ainda sustenta um National Endowment para a cultura, a fim de permitir a produção do que não vai necessariamente se dar bem no mercado. Em países europeus, como França, Alemanha, Espanha e outros, esse apoio oficial à cultura é ainda mais intenso. Na Inglaterra, é através dos recursos da loteria do Estado que se faz a cultura nacional. Mesmo na China, o cinema local é produzido por grandes estúdios, situados em diferentes regiões do país e geridos pelos cineastas chineses, com investimentos do Estado.
A Lei Rouanet é uma das formas de financiamento cultural através do Estado mais democráticas e sofisticadas do planeta. E essa defesa que faço dela é absolutamente desinteressada, já que sou cineasta, e o cinema não é uma atividade que a pode utilizar. A questão do cinema brasileiro é outra, não tem nada a ver com a Lei Rouanet, da qual, repito, a produção cinematográfica não pode se beneficiar. É crucial que o presidente Jair Bolsonaro e seus colaboradores entendam essa questão, deem a ela uma solução estrutural prática e moderna, como é a economia do audiovisual.
Não existe outra agência, ministério, autarquia, seja lá o que for, mais soberana e com mais excesso de autoridade do que a Ancine. Ela foi criada em 2001, com uma estrutura que foi alterada para atender ao frenesi dos cineastas e do próprio MinC com a nomeação, no ano seguinte, de Giberto Gil como ministro da Cultura. A ilusão de que a Ancine seria mais poderosa que a própria estrutura em que está baseada a gestão pública no Brasil e mais impositiva do que a economia cada vez mais internacionalizada do audiovisual impediu que o crescimento do cinema brasileiro se consolidasse.
Nosso circuito exibidor está nas mãos exclusivas dos blockbusters (“Bumblebee” acaba de ser lançado em cerca de 1.100 telas, quase metade do que temos); nossos filmes passam em horários quebrados, sem controle de cota e eficácia nenhuma; os produtores brasileiros recebem uma parte mínima da renda de nossos filmes (cerca de 5%, quando há 30 anos ficávamos com de 30 a 40%); e o MinC e a Ancine ainda terminam o ano entregando o futuro do cinema no Brasil aos representantes das grandes empresas estrangeiras e seus aliados internos, através do Conselho Superior de Cinema.
Aliás, um bom início de conversa seria quebrar logo o poder absoluto da Ancine, dividi-la com racionalidade para eliminar seu autoritarismo. A regulação da atividade poderia ficar no universo do ministro Sergio Moro e o fomento, no de Paulo Guedes. Como ela já foi pensada um dia.
Apesar de tudo, o cinema brasileiro tem crescido quantitativa e qualitativamente. Estamos produzindo cerca de 150 filmes por ano e uma nova geração de jovens cineastas está reinventando o cinema brasileiro, com a mesma diversidade cultural do país. É preciso não deixar que isso se acabe da noite pro dia.
Cacá Diegues: O novo Poder Moderador
Essa galáxia da internet está mudando o mundo sem que tomemos consciência de que podemos orientar essa mudança
Acho que sou um cara mais pro modesto. Se faço, aqui e ali, um autoelogio, se sou capaz de citar a mim mesmo de vez em quando, não é por mera jactância. Não descobri a importância política das redes sociais, a força pública e decisiva da internet, apenas porque o novo presidente Bolsonaro usou-as na campanha vitoriosa. Penso nisso há tempos. Talvez não antes do Carlos, filho do eleito, especialista responsável por colocar o pai candidato nesse mundo virtual em que ele se deu tão bem. Mas, antes da atual consagração do novo sistema de relacionamento entre as pessoas, eleitoras ou não, já andava pensando nisso.
Em 9 de julho de 2017, aqui nesse espaço de jornal, escrevi que “[...] é preciso atualizá-la [a Constituição de 1988], um produto híbrido da redemocratização híbrida, [é preciso] introduzir nela as novidades políticas, sociais e culturais do Brasil e do mundo. Hoje, por exemplo, a internet tem um poder de representação muito maior que o Congresso. É preciso se dar conta dessa representação, introduzi-la em nossa vida pública, do jeito mais justo e eficiente possível”. Talvez houvesse aí um exagero daquele momento, um momento em que ainda não tínhamos a definição de todas as candidaturas à Presidência e nem sombra de um salvador da lavoura.
“Em 1824”, escrevi, “a primeira Constituição do Brasil inventou o Poder Moderador, criação nossa, uma jabuticaba que nunca existiu em qualquer lei no mundo ocidental. No caso, o Poder Moderador era o imperador, a quem cabia dirimir dúvidas e resolver conflitos, estabelecendo o que era mais justo e melhor para a nação”. Durante todo o século XX, do Império à República e seus vários períodos tão diversos, nos acostumamos a recorrer a um Poder Moderador, legítimo ou fruto de um golpe de força, sempre que em dificuldade. Talvez minha observação sobre o mundo virtual tenha sido consequência da falta evidente de um novo Poder Moderador, capaz de garantir nossa original “normalidade”.
O pressuposto dessa conversa não era apenas o da modernidade da internet. Eu também pensava (e ainda penso) no crescente fracasso da democracia representativa, em que os representantes não são mais respeitados por aqueles que são supostos representar e, por sua vez, não têm mais o menor interesse pelos que representam. E se essa representação se desse através da internet, de uma linguagem dialética imediata, em que os representantes teriam que ser mais fiéis a seu papel e os representados pudessem alterar, quando bem entendessem, o modelo de sua representação?
No fundo, todos esses pensadores contemporâneos que estão pondo em questão a democracia liberal, de Jacques Rancière a Manuel Castells, estão pondo em questão a possibilidade de o homem moderno ser representado na complexidade de seus desejos e prazeres, embalado por tudo que está ao alcance de suas redes e semelhantes. E a recíproca também é verdadeira: não só esse ser humano contemporâneo não se sente mais representado em seus sofisticados objetivos no mundo, como também se sente à altura (ou superior) e, portanto, no direito de contestar agressivamente quem julgar que não o entende.
Essa galáxia da internet está mudando o mundo sem que tomemos consciência de que podemos orientar essa mudança. Não se trata simplesmente de treinarmos e nos prepararmos para viver o mundo virtual, tal qual ele aparenta ou pretende ser. Mas de inventarmos seus meios de controle, de modo que o mundo virtual nos sirva segundo nossa própria ética e interesses. Não precisamos considerar como fatal ser este o espaço da mentira, o febril e inconsequente elogio da pós-verdade ou das fake news como modo moderno de viver, o único possível de existir. Em vez de nos adaptarmos à mecânica da invenção, temos que encontrar os meios de adaptar a invenção a nossos princípios e projetos. Fazer com que ela nos sirva no limite do que necessitamos e do que é simplesmente justo.
Estamos chegando a um momento em que tudo isso está se tornando indispensável à sobrevivência do próprio antropocentrismo, a era do homem como centro do funcionamento do planeta. Os eventos policiais de que estamos tomando conhecimento hoje como, por exemplo, a prisão de Meng Wanzhou, da empresa chinesa Huawei, em território canadense e a pedido do governo americano, não passa de um pequeno incidente na disputa entre as potências para o controle de instalação das redes 5G, a chave para a internet das coisas, um imenso avanço nisso tudo. Mas isso já é outra história.
Cacá Diegues: Não se pode viver sem Bertolucci
Seus melhores filmes eram sempre afirmações de sua curiosidade, de sua coragem, de sua capacidade de recomeçar
Conheci Bernardo Bertolucci em 1964, quando tínhamos 23 anos de idade, no primeiro Festival de Cannes a que os dois estivemos presentes. Tínhamos ambos filmes na Semana da Crítica, manifestação para obras de estreia, no mesmo festival em que “Vidas secas” e “Deus e o diabo na terra do sol” competiam pela Palma de Ouro e faziam o Cinema Novo brasileiro se tornar conhecido no mundo inteiro.
Quando vi “Prima della revoluzione” (Antes da revolução), o filme de Bernardo na Semana da Crítica, descobri um cinema que não era muito diferente do nosso. O filme e seu diretor se consagraram ali, como uma dessas jovens coqueluches que os grandes festivais costumam festejar, celebrando as novidades cinematográficas que passam a ser “propriedade” de seus descobridores. No caso, a descoberta era dos jornalistas franceses, como os inovadores dos Cahiers du Cinéma, uma das origens da Nouvelle Vague, o novo evangelho do cinema sem as regras exaustas dos estúdios de Hollywood.
Em meio à última e morna sessão dos participantes na Semana da Crítica, me levantei na plateia para saudar “Antes da revolução”, excelente exemplo do que todos nós queríamos do cinema naquele momento. Houve quem reagisse a meu entusiasmo e à adesão de Glauber, Bernardo e Gianni Amico, cineasta italiano que se tornaria o maior cultor do cinema brasileiro na Europa. Até que o crítico francês Louis Marcorelles, um dos responsáveis pelo evento, encerrou o debate sintetizando o que pensávamos e anunciando com exagero o nascimento, naquela sala, de um novo pensamento cinematográfico, ao mesmo tempo europeu e sul-americano.
Quando a reunião começou a se dispersar em relativo silêncio, Gianni fechou o perturbado dia repetindo várias vezes e em voz alta o que dizia no filme de Bertolucci, onde fizera uma participação especial: “No se puó vivere senza Rossellini!” (Não se pode viver sem Rosselini). Gargalhadas e aplausos mostraram quem tinha razão.
Pelo resto da vida, em Roma ou no Rio, em qualquer festival do mundo onde nos encontrássemos, minhas relações com Bernardo eram cada vez mais afetuosas e menos “didáticas”. Ele se tornaria uma grande estrela do cinema mundial, desde “O último tango em Paris”, e ganharia nada menos do que nove Oscars, por “O último imperador”. Em 1981, eu era do júri de Cannes e seu filme “tragédia de um homem ridículo” estava em competição. Bernardo não me pediu nada, em momento algum. E a grande decepção geral com seu filme me impedia de propor aos jurados mais do que um prêmio de melhor ator para Ugo Tognazzi. Na noite da premiação, Bernardo me agradeceu com lágrimas nos olhos, como se o júri tivesse prestado, com o prêmio para Tognazzi, seu ator e um de seus ídolos, uma franca homenagem ao cinema italiano.
Seus melhores filmes eram sempre afirmações de sua curiosidade, de sua coragem, de sua capacidade de recomeçar sempre sem descanso. De seu enorme prazer em descobrir outros lugares e outras vidas, mesmo que em grande sofrimento. Cada vez que nos víamos, eu lhe perguntava se, em seu filme mais recente, havia deixado a porta aberta. É que ele me havia contado que, quando conhecera Jean Renoir, o mestre francês lhe dissera que todo filme tinha que ser filmado com a porta sempre aberta, para que pudesse entrar o que estivesse por ali, sem ter sido previsto.
Há uns sete anos, com lancinantes dores nas costas, Bernardo se fez operar e, depois da cirurgia, acabou condenado para sempre a uma cadeira de rodas. A última vez que o vi, em maio de 2013, ele era homenageado, ainda em Cannes, com a exibição especial de “Io e te” (Eu e você), o único filme que fez depois do acidente cirúrgico. Ele, eu e minha mulher Renata tivemos uma conversa curta e sombria, na própria sala de projeção do festival. Renata elogiou muito “Eu e você”, que lhe havia emocionado tanto. Ele não disse nada, mas acho que gostou do comentário dela. Quando, qual um idiota, lhe perguntei como estava se sentindo, Bernardo me olhou de banda, deu um sorrisinho sem graça e me disse: “Já pensei até em morrer”.
Um artista incomparável, um dos maiores na grande tradição do cinema italiano moderno, Bernardo Bertolucci vai nos fazer muita falta. A nós, a nossos olhos, ouvidos e corações. Ao cinema e ao mundo.
Cacá Diegues: O valor da lei
O que sei é que a Lei Rouanet é uma das mais acertadas regulações do financiamento público de cultura
Tenho recebido muitas mensagens sobre o último artigo que escrevi aqui, a propósito da Lei Rouanet. Felizmente, a maioria dessas mensagens se comporta de um jeito civilizado, compreensiva quanto à necessária existência daquela lei, embora proponha algumas mudanças.
Em geral, não tenho nada contra essas propostas de mudanças, acho até que elas são mesmo indispensáveis para que tudo funcione com mais justiça e mais correção. Para que as coisas sejam aperfeiçoadas. Mas tenho me poupado de dizer que mudanças, na minha opinião, são urgentes e quais as que não merecem nossa atenção por injustas, mesquinhas ou tolas. Mexer numa lei é coisa para profissional, e essa não é a minha profissão.
É preciso tomar muito cuidado quando se vai mexer num conjunto de regras fundamentais para a produção de alguma coisa essencial ao país, como é a cultura. Ouço dizer, por exemplo, que a Lei Rouanet devia servir somente aos principiantes, para ajudar afazer surgir novos grandes artistas brasileiros. Ótimo, boa ideia. Mas aí fico pensando em como se viraria, então, um pobre artista já consagrado que, na falta de um mercado viável, de preferência sólido, não tem outra fonte de recursos para a produção de sua arte. Quando autoridades responsáveis argumentam desse jeito, temos até o direito de pensar que se trata de uma forma de elas, as autoridades, tentarem evitar o confronto incontornável, resultado de uma eventual intervenção no mercado, para que esse não sirva apenas aos poderosos predadores da boa arte nacional.
Se é para as coisas ficarem como estão, sem ninguém se aporrinhar com reformas complicadas e correções dolorosas no mercado, sugiro que os artistas consagrados se “desconsagrem”. Isso é, comecem a produzir obras menos boas e até ruins, para que não sejam desclassificados na Lei Rouanet. Teríamos menos belas canções, mais poemas de pé quebrado, romances um pouco mais chatos e pinturas sem pé nem cabeça. Mas, em compensação, contaríamos com uma grande multidão de artistas captando na Lei Rouanet, exclusiva para principiantes ainda não consagrados.
Além disso, para determinar as circunstâncias do uso da Lei Rouanet, é preciso conhecer os números que ela movimenta e o resultado efetivo de seu uso, coisa que não é o meu caso. Entre outras coisas porque, como já disse aqui, a produção de cinema não se enquadra nessa lei, não sendo portanto beneficiada por ela. Para a produção cinematográfica, a Lei Rouanet não existe. Logo, pouco sabemos de prático sobre ela.
O que sei, e gostaria de repetir sobre a Lei Rouanet, é que ela é uma das mais acertadas regulações do financiamento público de cultura, em todo o mundo. Sobretudo no mundo capitalista e democrático. Semelhantes a essa lei, existem regras espalhadas por nações de todo o planeta, mas nenhuma é necessariamente muito melhor, mais eficiente ou mais justa do que a lei brasileira. Ou mesmo mais universal, capaz de atender a todos os gêneros e tendências que ocorrem num país geográfica, cultural e etnicamente tão diverso quanto o nosso. Se há irregularidades ou corrupção em certas aplicações da Lei Rouanet, que se punam gravemente os culpados. Se amanhã a agência de um banco for assaltada, isso não é motivo suficiente, nem lógico para que a polícia exija que se eliminem as agências de bancos no país.
E se ainda compararmos os custos públicos da Lei Rouanet com os de leis de incentivos fiscais relativas a outras atividades, veremos como a cultura, tão necessária, custa tão pouco à população. Praticamente nada, se comparado à sua serventia.
O Brasil é um país de impressões que se generalizam como se fossem juízos pétreos. Claro que os melhores jogadores brasileiros de futebol não jogam mais por aqui. Estão todos, ou quase todos, na Europa, ganhando muito mais do que se tivessem ficado em casa.
Mas, sempre que nosso time do coração perde uns dois ou três jogos seguidos, temos o prazer doentio de declarar que o futebol brasileiro vai mal, não é mais o mesmo, estamos em plena decadência, acabou. A ninguém ocorre lembrar que não é o futebol brasileiro que vai mal, mas sim a economia do país que está uma desgraça cada vez maior, e por isso mesmo não permite a nosso clube pagar o salário que os melhores jogadores merecem e valem. Como na Europa ou até na Rússia, na China e no Japão, por onde agora eles andam jogando também. Os valores de mercado nunca têm nenhum valor para nossas conclusões.