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Cacá Diegues || O amor pelo que somos

O Brasil sempre foi um país sem programas refletidos para um futuro próximo ou distante

É através da cultura que amamos as regiões do globo que nos interessam. Ela nos faz amar as nações e sua história, seu passado e sua memória. Amamos a Grécia Antiga, por exemplo, por causa de seus filósofos e poetas. Por causa de Aristóteles, que ensinou a Humanidade Ocidental a pensar. Por causa de Homero, que nem sabemos se de fato existiu. E de sua obra, possivelmente recriada por cantores diversos e anônimos. Por causa da “Ilíada”, que Alexandre carregava debaixo do travesseiro enquanto conquistava o mundo. É isso que nos faz amar a Grécia e refletir sobre ela, como um mistério que estamos sempre tentando desvendar.

Só amando o que somos, podemos reconhecer valor em nós mesmos. Mas penso que nunca soubemos o que somos. Somos o Brasil que se formou a partir de 1500, tendo aventureiros e desterrados portugueses como colonizadores? Ou somos o Brasil dos imperadores tentando nos dar um caráter nacional, que nunca chegou a se formar? Ou o Brasil das três Repúblicas de nossa experiência política moderna, em crise permanente? Será justo definirmo-nos a partir do que nossas elites quiseram de nós, independente do que pensava, curtia ou fazia a população sem poder? E essa população sem poder sabia o que era, exercia consciente o direito de ser o que desejava ser?

O Brasil sempre foi um país sem programas refletidos para um futuro próximo ou distante. Isso talvez seja o que sempre produziu nosso encanto junto a viajantes e leitores que buscam um projeto de humanidade, que procuram uma resposta para seu mal-estar sobre eles mesmos. Esse Brasil-pandeiro sempre nos serviu de álibi para dormirmos em berço esplêndido, sem receio de acordarmos vivendo uma tragédia. Um país abençoado pela graça, jamais conhecerá a desgraça, seja ela de que natureza for.

Não costumamos fazer planos, projetos que se estendam no tempo. Sempre nos satisfizemos e nos regozijamos quando identificados como o país do carnaval e do futebol, o país do sorriso ao sol e da cordialidade em qualquer circunstância. A bela canção que nos afirmava abençoados por Deus e bonitos por natureza, que cantamos todos juntos, sem distinção de ideologia ou de posição politica, fora criada e difundida, com gigantesco sucesso popular, no coração da noite sombria da ditadura militar, responsável pelo que vivíamos com dor.

Mesmo sem saber quem somos, inventamos um país diferente dos outros, através de nossos pensadores mais sábios e criativos. Como Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Roberto DaMatta, e tantos outros criadores de um Brasil divergente que espera se redimir na sombra do que é, no detalhe do que quase foi. Na poesia de nossos defeitos, como está na abertura de “Retrato do Brasil”, o livro de Paulo Prado: “Numa terra radiosa, vive um povo triste”.

Como reação ao concerto do que ficou consagrado, muitas vezes nadamos na direção contrária à da onda dominante. Desde que o presidente declarou que patriota brasileiro, em defesa do meio ambiente, deve fazer cocô dia sim e dia não, desde então tenho feito cocô duas vezes por dia. Não se trata de prejuízo biológico ou desafio ideológico, mas do simples prazer de pensar e fazer por mim mesmo. Sem atrapalhar, como princípio, a vida de ninguém. Essa é a maior satisfação que um ser humano pode ter, o que o consagra como ser humano.

A nação que mais amamos será sempre aquela em que manifestamos nossos pensamentos, mesmo os mais pobres, fúteis e inúteis, sem medo de retaliação dos poderosos e da eventual maioria. Com a certeza de que estamos cumprindo um dever e não precisamos explicar, nem entender porquê.

No julgamento de nós mesmos, a síndrome brasileira por excelência é a da autodesvalorização, o fanático desejo de destruir o que for nosso. Sem admitir que não existe o “nosso” e o “deles”, damos a vida pelo desmonte de nossas virtudes. Diferentes dos povos que têm o hábito de se autoexaltar, somos os primeiros a desfigurar nossas aparentes vantagens. Há sempre uma versão maliciosa para cada atrativo virtuoso que, por ventura, descubram em nós. Somos obcecados em destruir com estardalhaço o que tentam, com boa vontade, construir sobre nós.

Minha filha Flora, jovem cheia de sabedoria e talento, me dizia que a gente só consegue amar o lugar em que dorme tranquilo e sem sobressaltos. E onde acorda sereno, com os olhos voltados para a luz.


Cacá Diegues: Ódio e poder

O mundo de hoje, 50 anos depois de Woodstock, talvez se ria dessa ideia tola de paz e amor

The Woodstock Music & Art Fair não foi bem uma feira, nem se realizou na cidade de Woodstock, no norte do estado de Nova York. Na história da cultura popular do século XX, o evento ficou conhecido apenas como Woodstock.

Embora seu pôster oficial fosse mesmo pretensioso, anunciando “an Aquarian exposition”, em “três dias de paz & música”, sua repercussão junto à juventude americana foi maior do que isso e se tornou incontrolável.

Os festivais de música já proliferavam na América e no Hemisfério Norte do Ocidente, mas Woodstock acabou sendo o maior e o mais importante deles.

Realizado na pequena cidade de Bethel, numa fazenda de gado, Woodstock reuniu meio milhão de pessoas, sem nenhuma condição para isso, entre 15 e 18 de agosto de 1969. Esta semana, portanto, celebramos seu cinquentenário, 50 anos de lembranças que, pouco a pouco, vão se apagando da memória do mundo.

Foi o que pensou um dos organizadores do festival, o empresário Michael Lang, hoje com 74 anos de idade, que tentou montar um novo Woodstock, uma comemoração no mesmo espaço em que ocorreu o original. Algumas das estrelas desse novo espetáculo, já contratadas e pagas, seriam Jay-Z e o Dead & Co, banda herdeira do histórico Grateful Dead. Além de Carlos Santana, uma das poucas 32 atrações de 1969 que topou voltar a Bethel. Mas as bodas de ouro de Woodstock fracassaram, e Lang anunciou, na semana passada, seu cancelamento.

No final agitado da década de 1960, Woodstock foi uma síntese da contracultura em ebulição. Único e lendário, o evento acabou sendo um dos maiores momentos na história da música popular universal. Depois do susto inicial com a multidão aglomerada diante do palco, o público jovem cantou junto com artistas consagrados e conheceu os ícones da música popular de ruptura radical da década seguinte, como Jimi Hendrix e Janis Joplin.

Organizado como um show musical, Woodstock se tornou uma proposta de novos costumes, de um novo comportamento. Uma nova ideologia de paz e amor, o mantra que havia conquistado a juventude como o ideal de uma época e de uma geração.

Nos Estados Unidos, a juventude havia se interessado por política a partir do empenho contra a Guerra do Vietnã, mobilizada pela televisão que trazia, para a sala de jantar dos lares americanos, os mortos e mutilados das batalhas daquele dia em Hanói. Apesar disso ou por causa disso, 1969 foi também o ano do assassinato da atriz Sharon Tate, grávida de um filho de Roman Polanski, morta por fanáticos, autoproclamados hippies liderados por Charles Manson.

O mundo de hoje, 50 anos depois, talvez se ria dessa ideia tola de paz e amor.

Preferimos celebrar o ódio como a arma que leva ao poder e, se possível, à guerra que pode ser militar, comercial ou cultural. Tanto faz, contanto que seja capaz de aniquilar o outro, o diferente de nós, o inimigo. Os que não têm poder, não têm como destruir o adversário. E os que não cultivam o ódio jamais terão poder, jamais serão capazes de dar porrada no outro. Isso é o que de fato parece interessar, em nossos dias.

No Brasil, em agosto de 1969, vivíamos um dos piores momentos de nossa vida política, sob o autoritarismo da ditadura militar. Nessas circunstâncias, era impossível acompanhar a explosão de liberdade convulsiva e fraterna identificada no slogan “paz e amor”.

No máximo, podíamos contar com o vigor de nossa música popular e com a recente alternativa tropicalista. Nossa mais consagradora vitória cultural no período, a Bossa Nova, era a exata negação de Woodstock, uma organização mental de sentimentos e emoções. À frente dela, João Gilberto era o ápice de uma mistura rara e quase divina de perfeição e delicadeza. O que não tinha nada a ver com o agito contracultural de Woodstock.

Enquanto a juventude do país mais rico do mundo caía de boca na insegurança do experimentalismo, desorganizando a produção cultural e as relações humanas, em benefício do ideal de um novo modo de vida, sem noção do que poderia acontecer, no pobre maior país latino-americano lutávamos para melhor organizar nossas cabeças e encontrar um jeito de sobreviver à tragédia que o destino político nos havia preparado. Às vezes parecia outro planeta.


Cacá Diegues: As duas festas

Euclides da Cunha foi superado, na festa literária, pela emersão de excelentes escritoras e escritores negros

Este ano, a 17ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) era para ser uma homenagem ao escritor Euclides da Cunha, o autor de “Os sertões”, como acontece com os comemorados anuais. Mas não foi. Primeiro porque nunca vi tanto esforço no desmonte de um brasileiro consagrado. Segundo porque Euclides foi superado, durante os dias da Flip, pela emersão de uma geração de excelentes escritoras e escritores negros, suas obras e manifestações em debates públicos. Esse foi o generoso papel cumprido por essa Flip recente.

O primeiro motivo para o anticlímax de Euclides na Flip foi a clássica obsessão brasileira de desfazer dos heróis nacionais, em qualquer ramo. Tom Jobim costumava dizer que, no Brasil, o sucesso é uma ofensa pessoal. Euclides da Cunha foi um militante das causas abolicionista e republicana, autor de um livro extraordinário sobre as circunstâncias culturais, sociais e humanas da miséria no Nordeste brasileiro. A miséria do sertão, talvez a principal vítima de nosso feudalismo de “coronéis”, os seus barões.

Desta vez, a curadora da Flip foi a competente Fernanda Diamant. Para se ter uma ideia do que foi o evento, basta dar uma olhada na lista dos livros mais vendidos na festa. Nos cinco primeiros lugares, estão quatro obras sobre experiências de pessoas de origem africana; e uma quinta dedicada à comunidade indígena, “Ideias para adiar o fim do mundo”, escrita por Ailton Krenak, membro daquela comunidade.

O livro mais vendido, o único que já li de cabo a rabo, foi “Memórias da plantação”, editado pela Cobogó e escrito por Grada Kilomba. Nascida e criada em Lisboa, Grada Kilomba é uma artista interdisciplinar, descendente de angolanos e são-tomenses, vivendo hoje em Berlim, onde lecionou em universidades locais. Seu livro é uma compilação de episódios do racismo cotidiano, no qual elabora uma nova forma de tratar a questão racial na diáspora africana, do saber à escrita. Os outros livros recordistas foram “Fique comigo”, de Ayobami Adebayo (Nigéria), “Também os brancos sabem dançar”, de Kalaf Epalanga (músico de Angola), e “Meu pequeno país”, de Gaël Faye (Burundi), o mais jovem do grupo, com 36 anos de idade.

Uma maioria de mulheres fez da Flip palco privilegiado do feminismo negro. Como na mesa formada por Grada Kilomba e as brasileiras Flávia Oliveira e Ana Paula Lisboa, onde se afirmava, com inteligência e imaginação, o déficit teórico sobre o racismo. “Sempre que estou no Brasil, eu choro”, dizia Grada Kilomba, “é um colonialismo normalizado, como se o presente quase se tornasse o passado”.

Apesar da barbárie produzida por terroristas que tentavam acabar com a palestra do jornalista Glenn Greenwald, com hinos em altíssimo volume e foguetes espoucando por perto, a raiva acabou se transformando em celebração. A 17ª Flip foi um sucesso diferente dos sucessos anteriores.

A Flip também nos surpreendeu com a incompreensão sobre Euclides da Cunha, que viveu na passagem do século XIX para o XX. Os conhecimentos eram outros, e o escritor não podia deixar de ser influenciado pela época e suas pressões relativas. Sobretudo num mundo fascinado pelas recentes teorias e descobertas biológicas, como as de Charles Darwin e Jean-Baptiste de Lamarck, eventualmente confundidas, pela ignorância, com racismo. Seria o mesmo que rirmos do positivismo de políticos e militares ligados à Proclamação da República, o que se estava vivendo e o que estava valendo naquele momento. Ou, no extremo, condenarmos Alexandre, o Grande, por admirar Aquiles e a destruição de Troia.

Para quem deseja conhecer Euclides da Cunha de fato e num espaço mais curto de tempo, sugiro a leitura de sua palestra feita em 1907, no Centro Acadêmico XI de Agosto, em São Paulo, sobre Castro Alves e seu tempo. Ali, Euclides nos explica o poeta baiano sem idealismo e sem demagogia, sabendo tratá-lo no espaço em que a arte se mistura à urgência da compreensão do que vivemos na realidade.

Na semana posterior à Flip, o presidente Bolsonaro renovou sua disposição em relação à cultura, anunciando o que pretende fazer com a Ancine e o cinema brasileiro. Declarou, por exemplo, não admitir filmes como alguns que citou.

Alguém precisa lembrar ao presidente que o cinema brasileiro não é produzido com dinheiro do Estado, mas com recursos do Condecine, taxa produzida pela própria atividade. Além disso, nenhum presidente, de país algum, tem o direito de se arvorar em proprietário daquilo que o Estado produz ou ajuda a produzir.


Cacá Diegues: A civilização se transforma

A história da literatura, a construir ou a modificar ideias e projetos, vai mudar a nossa própria história

Foi Jorge Furtado, consagrado realizador de cinema e televisão, quem me alertou para “O mundo da escrita”, livro do qual me deu de presente um exemplar. Nele, o autor afirma que uma sucessão de tecnologias mudou a história da humanidade ao longo do tempo. Algumas levaram séculos entre sua invenção e o uso regular delas. Outras foram inventadas mais de uma vez, conforme as necessidades locais, a distância entre as culturas e os territórios onde eram praticadas.

Uma delas é a escrita, do papiro ao papel, uma tecnologia primeiro inventada na Mesopotâmia, há cerca de cinco mil anos, para servir à burocracia do Estado, à política e aos negócios. Bem antes portanto de servir à literatura propriamente dita. A escrita criada e desenvolvida em diferentes cantos do planeta, durante tanto tempo, é o tema de Martin Puchner, professor de literatura na Universidade de Harvard, em seu livro publicado recentemente pela Companhia das Letras.

Puchner começa “O mundo da escrita” em 1968, num capítulo a propósito da viagem à Lua da Apollo 8. A espaçonave americana levava três astronautas aos céus, e eles traziam consigo um exemplar da Bíblia cristã. Com sincera emoção diante do que viam rodando lá embaixo (me desculpem os discípulos de Olavo, mas a Terra não é plana), cada um dos três leu um trecho do Gênesis, que se inicia dizendo: “No princípio, Deus criou o céu e a terra”. Pelo mundo afora, 500 milhões de espectadores acompanhavam a transmissão do feito pela televisão.

Ao êxtase místico de Anders, Lovell e Borman, Puchner contrapõe Yuri Gagarin, o astronauta soviético que se tornara o primeiro homem a viajar no espaço, cerca de sete anos antes. Gagarin não havia levado consigo uma cópia do “Manifesto do Partido Comunista”, nem discursos de Lênin ou Kruschev, para ler na viagem. Mas, ao descer na Terra, declarou meio sério, meio irônico: “Olhei, olhei, mas não vi Deus”. O piloto soviético e os três astronautas americanos se tornaram parte de uma nova e mais sofisticada etapa da Guerra Fria entre os blocos liderados por seus países. A Guerra Fria também tinha muito de uma guerra entre textos literários fundamentais.

A primeira referência de Puchner à importância da literatura na história da humanidade é a Alexandre, o Grande. Durante suas conquistas militares, na formação de um império que ia da Grécia à Índia, Alexandre levava três objetos que guardava com cuidado sob seu travesseiro. O primeiro era um punhal, presente de seu pai, Filipe II da Macedônia. Depois, uma caixa, dentro da qual mantinha em segurança uma cópia da “Ilíada”, de Homero. Era essa a leitura favorita de Alexandre, por ser a história através da qual “via sua campanha e sua vida”. Um texto quase sagrado para ele, que desejava reproduzir os sucessos de Aquiles em Troia. Podemos dizer que a “Ilíada” ilustrava e controlava sua visão de mundo.

A história da literatura, a construir ou a modificar ideias e projetos, vai mudar nossa própria história em diversos momentos. A primeira obra-prima da literatura universal, anterior à Bíblia e a Homero, é a “Epopeia de Gilgamesh”, de 1.200 a.C., da qual o temido rei assírio Assurbanípal, chamado o Rei do Universo, era um grande admirador e gostava de reencenar na realidade de sua corte e de suas conquistas.

Esdras e sua consolidação dos textos do Antigo Testamento, unificando e dando cidadania aos judeus que os veneravam; “As mil e uma noites”, de Sherazade, modificadas conforme onde eram lidas; os escritos de terceiros em nome de Buda, Confúcio, Sócrates e Jesus, que nunca escreveram uma só linha; a insurreição de Lutero, sustentada pela imprensa recém-inventada por Gutenberg, contra a opressão do Vaticano; o “Popol Vuh”, contos místicos que serviram aos maias para enfrentar a violência da colonização espanhola; as teses políticas e ideológicas de Marx, Engels e Lênin, além da oposição a elas de anticomunistas; os artífices literários criadores da África Ocidental moderna; tudo isso e muito mais faz parte, até nossos dias, da evolução da escrita, que enriquece a civilização com o acesso à mente do outro.

Não importa se então aparece o presidente de um grande país, como o Brasil, que se mofa e ri de tudo que está escrito e representa alguma coisa, mesmo que apenas sonhos. A marcha do avanço da literatura e da arte não pode ser detida, a não ser que a humanidade recue ao passado. E se considere incapaz de inteligência e de inventividade.


Cacá Diegues: A vida começa aos 80

Kurosawa, um dos gênios do cinema japonês pós-Segunda Guerra, declarava sua admiração por Bergman

Domingo que vem, 14 de julho, Ingmar Bergman, cineasta sueco, um dos maiores artistas e pensadores na história do cinema, estaria fazendo 101 anos de idade. Filho de pastor luterano, educado em restrita disciplina religiosa, Bergman, depois de montar Ibsen e Strindberg no teatro, inventaria um cinema de gritos e sussurros, extraordinário encontro jamais igualado de beleza plástica com densidade humana.

Morto aos 89 anos de idade, em 2007, Bergman assistiria, ainda em vida, no isolamento e na solidão da Ilha de Faro, à sua consagração, da nouvelle vague francesa ao cinema independente americano, de Kubrick,

Woody Allen e Tarantino ao argentino Torre Nilsson e ao brasileiro Walter Hugo Khouri. Federico Fellini, gênio do improviso e da intuição, da ilusão e do humor cáustico, inventor de outra graça, proclamava Bergman o maior artista do século.

Do outro lado do mundo, vindo de uma cultura exuberante e combativa, Akira Kurosawa, um dos gênios do fértil cinema japonês posterior à Segunda Guerra Mundial, também declarava sua admiração por Bergman. Kurosawa começara sua carreira artística como pintor, numa exposição de estreia aos 17 anos, enfatizando sua influência das artes plásticas do Ocidente. Além de obras-primas cinematográficas, como “Os sete samurais” ou “Ran”, Kurosawa nos deixaria quadros pintados a partir do storyboard de seus 30 filmes, que ele mesmo desenhava, em mais de 50 anos de profissão.

Apesar de ser costume em países que têm tradição cinematográfica, o Brasil nunca cultivou livros e filmes sobre seus cineastas. Nem cartas trocadas entre eles. A única exceção talvez seja Glauber Rocha, cuja obra escrita é tão vasta, profunda e necessária, que se pode completar uma estante com seus textos ou textos sobre ele. Assim, sempre nos surpreende documentos como o que acabo de receber de Walter Lima Jr., excelente cineasta brasileiro que devia poder estar filmando muito mais do que filma. Walter me enviou o texto de uma carta de Akira Kurosawa a Ingmar Bergman, recolhida pelo jornalista e blogueiro espanhol Paco López, que a reproduziu na internet.

Kurosawa não conhecia Bergman pessoalmente. Ele decidira escrever-lhe depois de ler o livro de memórias do diretor sueco, “Lanterna mágica”, publicado em 1987. Ali, tomara conhecimento de que Bergman estava fazendo 70 anos de idade, angustiado com a vida e preocupado com seu futuro no cinema. Bergman lamentava que, certamente em breve, não estaria mais fazendo filmes. Mas ainda realizaria obras como “Saraband”; assim como o próprio cineasta japonês ainda faria “Os sonhos de Akira Kurosawa”. Kurosawa viria a falecer em 1998, aos 88 anos de idade, dez depois de escrever a carta a Bergman. Ei-la abaixo.

“Estimado senhor Bergman, por favor, permita-me felicitá-lo em seu septuagésimo aniversário. Cada vez que o vejo, seu trabalho toca meu coração profundamente e tenho aprendido muito de suas obras, sempre alentadoras. Desejo que o senhor se mantenha em bom estado de saúde, para que possa criar mais filmes maravilhosos para todos nós.

No Japão, existiu um grande pintor chamado Tessai Tomioka, que viveu na era Meiji (final do século XIX). Esse artista pintou vários quadros excelentes, quando ainda era jovem. Ao chegar à idade de 80 anos, começou de repente a pintar quadros que eram muito superiores aos anteriores, como se estivesse vivendo sua grande fase de florescimento. Cada vez que vejo suas pinturas, me dou perfeitamente conta de que um ser humano não é capaz de criar obras extraordinárias, até chegar aos 80.

Um ser humano nasce como bebê, se converte em um menino, passa pela juventude, a flor de sua existência. E finalmente volta a ser um bebê, antes da morte. Esta é, em minha opinião, a forma ideal da vida. Creio que estaria de acordo com que um ser humano chega a ser capaz de produzir obras puras, sem restrição alguma, nos dias de sua segunda infância. Agora tenho 77 anos de idade e estou convencido de que meu verdadeiro trabalho está apenas começando.

Mantenhamo-nos unidos, pelo bem dos filmes. Com as mais cordiais saudações, Akira Kurosawa”.


Cacá Diegues: Várias notícias

Fico pensando na angústia dos jovens e dos senhores que acreditam nesses aparatos sexuais e no que eles lhes prometem

Quando comecei a usar um computador, bem antes de eles se tornarem veículos de selvageria política através das redes sociais, não me lembro de ter recebido chuvas de propaganda de tudo, como acontece hoje em dia. Talvez me chegasse um ou outro anúncio de equipamentos digitais que prometiam transformar minha vida num paraíso de facilidades. Mas, com imperícia e espanto, levei algum tempo para me convencer de que o Google, por exemplo, tinha a resposta para todas as minhas incertezas de nomes, datas e circunstâncias.

Lembro-me de quando um querido amigo, com quem eu jantava, precisou responder a seu filho adolescente sobre uma escalação do nosso Botafogo, na final de longínquo campeonato carioca. Em casa, antes de dormir, procurei meu velho compêndio sobre o clube, para checar a informação. Eu e o menino poderíamos estar sendo vítimas de um golpe de prestígio, dado por seu pai. Mas o Google tinha razão. O Botafogo ganhara o título de “Glorioso” no tetracampeonato de 1934, quando nosso artilheiro fora Carvalho Leite. E a seleção brasileira, na Copa do Mundo daquele ano, tinha por base o time alvinegro.

Hoje, antes de consultar o Google, sou bombardeado pelos anúncios que me chegam pela internet. Anúncios em quantidade cada vez maior. Os mais recentes têm me incentivado a aumentar o tamanho do pênis e me armar de produtos que estimularão “minhas parceiras”. Fico pensando na angústia dos jovens e dos senhores que acreditam nesses aparatos sexuais e no que eles lhes prometem.

Nos últimos tempos, não é mais ao desejo sexual que se dirigem os anúncios intempestivos, mas a outra forma de afirmação: as armas. Tenho recebido propaganda constante de fuzis e pistolas, de soco inglês e de aparelhos destruidores de desconhecidos que nos podem incomodar. Recebo, há dias, anúncio de “lanterna de choque para defesa pessoal”, um “aparelho de choque de altíssima voltagem”. No final da propaganda, o aviso humanitário: “não deixar ao alcance de crianças e não usar no intuito de brincadeira com amigos”. Ou seja, pau puro.

Enquanto isso, viaja para outras galáxias gente que nunca precisou de fórmulas sexuais ou armas de fogo para impor ao mundo o que sabiam fazer. Dois deles partiram semana passada: o jornalista e crítico de cinema Rubens Ewald Filho e o empresário fonográfico André Midani. O primeiro nos divertia há anos, com suas críticas informadas e bem-humoradas. O trabalho do segundo enriqueceu a história da música do país, gravando e promovendo o melhor da bossa nova, da MPB, do tropicalismo e do rock brasileiro, do primeiro disco de João Gilberto ao dos Titãs. No auge da Philips, André mandou publicar, com foto de sua constelação de astros contratados, um anúncio com a frase: “Só falta o Roberto”. E André bem merecia o Roberto também.

Entre uma coisa e outra, recebi, no meu endereço de e-mail, surpreendente mensagem, como segue. Vocês sabem de quem.

“Depois de criar aquela beleza toda, dei a Terra de presente aos dinossauros. Achei que aqueles bichos imensos iam fazer do planeta o paraíso que ele devia ser, de acordo com a grandiosidade da natureza que eu havia criado. Já estava me preparando para dar aos dinossauros a qualidade do raciocínio, quando Miguel me advertiu de que eu devia esperar mais um pouco, para ter certeza de que aqueles bichos mereciam o melhoramento. O arcanjo tinha razão. Os dinossauros brigavam muito entre eles e foram ficando cada vez mais repelentes, com aquela coisa de serem répteis. Mandei então um supermeteoro que caiu no México, para acabar com eles.

Passei alguns milhões de anos entediado, sem saber o que fazer para aproveitar a beleza toda do planeta, aquele ensaio de Éden. Fui salvo por uma ideia nova, dessa vez de Gabriel, que me sugeriu criar um novo bicho, à minha imagem e semelhança. Assim, estaria tudo sob controle. Mas fiz uma besteira e ensinei o homem a criar. E eles tomaram certas liberdades comigo e me ensinaram a amar. Foi um inferno!

Tentei resolver a parada acabando com tudo outra vez, agora sem usar fogo, só água. Um dilúvio. Mas também não deu certo. No início, eles topavam até sacrificar seus filhos em minha honra. Mas é claro que eu não deixava eles concluírem essa coisa bárbara, o horror do filicídio. Eu queria é que eles fossem seres mais civilizados.

Depois inventei a Guerra Fria, duas nações em disputa derradeira, para encontrar equilíbrio, com receio uma da outra. Mentiras e porrada dos de lá acabaram com os sonhos dos de cá, que perderam a esperança. Os de cá, por sua vez, não tinham mais de quem ter medo, resolveram botar pra quebrar na exploração de todo mundo. Era isso o que sempre quiseram, botar pra quebrar na exploração de todo mundo.

Agora não tenho mais vontade de fazer nada. Por mim, deixo rolar. Estou cansado de tentar resolver a parada que é deles. Acho que já me acostumei com a merda geral”.

Tenho a impressão de que Ele está querendo que eu faça um filme sobre tudo isso. Vamos ver.


Caca Diegues: O planeta Flora

Ela faleceu apesar do enorme esforço que fazia para sobreviver

Desde que ficara doente, no final de 2015, Flora desenvolvia um projeto que pretendíamos produzir para ela, eu e Renata. A Nasa havia descoberto estrela parecida com o Sol, em torno da qual giravam planetas que foram batizados com letras que iam de A até não sei o quê. Flora havia se interessado pelo Planeta F do sistema que a Nasa chamou de Trappist-1, o planeta que possuía condições naturais mais semelhantes às da Terra.

Após sua primeira cirurgia, em dezembro de 2015, Flora começou a desenvolver a ideia de uma série que se chamaria “Bem-Vindo a Trappist-1 Planeta F”. Durante um tempo, ela nos dava a ler trechos do que seria o projeto, até completá-lo uns dois anos depois. Suas anotações eram cada vez mais claras e contundentes: “(Essa) é uma série em processo, onde procuraremos descobrir quem está aqui afim de sair e ir começar um mundo novo. Queremos elaborar as dificuldades pessoais dos brasileiros, por que suas vidas são complicadas e complexas, como dispõem suas esperanças num mundo completamente novo.”

Um dos trechos de seu projeto dizia: “No mesmo ano em que a Nasa anunciou a descoberta de Trappist-1, eu me curava de um câncer no cérebro. Um ano intenso, cheio de intromissões científicas dentro do meu corpo, cheio de provas da minha contemporaneidade da geração millenium. Durante o tratamento, deixei de lado o celular, os eletrônicos e tudo o que me afastava da vida agora. Queria entender por que nos afastamos e o que nos resta. Eu podia começar tudo de novo. Quem eu traria comigo? Foram dois anos de reflexão. Entendi que o começo, ou até o fim das coisas, nada mais é do que a utopia de que elas têm solução. De que de repente é possível sair desse planeta e construir um outro, com menos defeito. Reiniciar o mundo, assim como eu tive a oportunidade de reiniciar a vida.”

E concluía sua declaração de intenções: “Quem são essas pessoas que vivem aqui do meu lado? Quem são os negros, os pobres, os gays e os vizinhos? Voltei ao celular e à distância, mas não abandonei o desejo de saber o que a gente está fazendo aqui. (...) Quando o Estado se importa cada vez menos com a cultura, a gente se transforma em mil para fazer alguma coisa. Eu quero ouvir e falar sobre o tempo em que vivo, numa comunhão da farsa e esperança de que tudo pode acabar bem.”

Em 2018, depois de brilhar em Cannes como atriz de filme selecionado, os médicos constataram que o tumor no cérebro havia voltado de forma violenta. Depois de duas novas cirurgias, Flora faleceu no último dia 2 de junho, apesar do enorme esforço que fazia para sobreviver e seguir trabalhando no teatro, em novelas e em filmes. Aos 32 anos de idade. Em seu velório, Duda e Dudu, seus parceiros, leram para os amigos presentes a carta à Nasa que ela havia preparado para quando iniciasse a produção de seu projeto. Ei-la aqui.

“Dear Nasa,

Sou Flora Diegues, brasileira do Rio de Janeiro, cineasta e atriz. Desde que vocês anunciaram a existência do Trappist-1, vivo numa excitação. A existência de outro sistema solar como o nosso, a 39 anos/luz daqui, é uma mensagem de esperança e liberdade. Planetas como o nosso, quem sabe, a uma distância impossível e concreta. Desde então, tenho pesquisado sobre o assunto, apesar de completa ignorância sobre o tema, e venho pensando em como tudo isso pode virar um conteúdo para mim. Quando nos apaixonamos pelo tema, não tem como escapar.

Depois de pensar muito, entendi que o que me interessa é saber por que as pessoas querem sair do Planeta Terra, por que começar tudo de novo. Ou acabar. Quem somos nós vivendo hoje, fantasiando uma viagem para um outro planeta, para nos salvar do caos político e social em que vivemos. O Brasil não está simples. O mundo não está simples.

Minha ideia então é fazer um “teste de elenco” para Trappist-1 Planeta F. Em uma realidade hipotética, quem seriam os selecionados brasileiros para essa grande jornada. Mandarei e-mails convidando muitas pessoas para falar sobre o assunto, convocando-as para a seleção de uma nova sociedade. O que você faria em uma nova sociedade? Por que você sairia daqui? Estou muito curiosa em saber que país é esse em que estou vivendo, como vivem os pretos, os gays e o meu vizinho, como é que eles estão passando.

Esse e-mail é quase um pedido de bênção a vocês que transformaram a minha vida com uma notícia tão espetacular e tão pouco comentada. Quem sabe vocês não me ajudam com informações extras que podem mudar mais ainda minha vida.

Obrigada, Flora.”

Só agora me dou conta de que o nome do astro que ela gostaria de explorar, para habitar com quem achasse merecê-lo, era o de sua inicial: Planeta F, de Flora.


Cacá Diegues: Ele ganhou um coração

Quando chegou diante de nós, já estávamos todos de pé, tentando imaginar o que havia acontecido

A zona cirúrgica fica no subsolo do hospital, repleta de tecnologias, as mais avançadas da América do Sul. Mas nós esperávamos no quinto andar, para onde nos haviam enviado a fim de aguardar o resultado da operação em nossa filha. Na salinha de espera, eu e minha mulher estávamos cercados de amigos. A tensão já era naturalmente imensa, pela natureza do lugar. E ainda trazíamos conosco o que faltava para tornar exasperante aquela tensão.

(De tal modo que só sei escrever sobre isso, embora pudesse falar de outras coisas. Como a mensagem que recebi semana passada de Haroldo Costa, me contando que a primeira aparição de Chico Buarque na TV Globo se deu em 25 de outubro de 1966, num festival de música inventado por Walter Clark e dirigido por ele, Haroldo).

O doutor cirurgião, um craque, apareceu na porta do elevador acompanhado por colaboradores. Vindo do subsolo, o grupo conversava e, embora não distinguíssemos com clareza o que diziam, havia entusiasmo em seus gestos e palavras. O cirurgião os liderou em direção a nós.

Quando chegou diante de nós, já estávamos todos de pé, tentando imaginar o que havia acontecido. Ele me ofereceu sua mão mágica, da qual dependíamos tanto, e me disse que o caso era realmente grave. Mas a cirurgia acabara bem, tivera um bom resultado. “Estou mais animado”, nos disse. Nem sei direito o que me ocorreu. Joguei-me em seus braços, apertei seus ombros com força, como quem abraça um ser amado que não se vê há muito tempo. Acho que lhe agradeci o feito, com um simples mas profundo “obrigado”.

(Não pretendi falar mal do ex-presidente, em quem votei por duas vezes. Ao lado de Fernando Henrique, ele não foi expulso de campo, como Collor e Dilma, nem esperava no banco, como Itamar e Temer. Critiquei foi o comportamento do líder popular que não devia estar preso mas, já que estava, tinha que exercer de outro jeito o seu papel. Abel pediu demissão do Flamengo, a culpa é sempre de quem lidera).

Só então percebi a presença de dona Alice na salinha, sentada perto de nós, numa poltrona muito maior do que ela. Não sei se havia acabado de chegar ou se já estava ali quando chegamos, nossos sentidos estavam concentrados na nossa menina operada. Dona Alice sorria para nós, aquele bando de desmiolados abraçados ao doutor, comemorando seu sucesso e, portanto, o nosso. Ela sorria solidária, uma bênção modesta ao que acontecia. E ela nem sabia o que era, mesmo que o sorriso fosse tão sincero e generoso.

Entendi que dona Alice queria saudar nossa celebração, queria comemorar também. Tentei justificar nossa euforia: “É minha filha, senhora”. Ela não disse nada, além de dar-me os parabéns. Então lhe perguntei, como numa proposta de amizade: “E a senhora?”. E ela: “É meu marido. Ele acaba de ganhar um coração”. E, diante de meu espanto, acrescentou, sem nenhum pudor de sua alegria, naquele ambiente contido que dona Alice, uma senhora negra e de aparência modesta, não devia ter o hábito de frequentar: “Novo! Um coração novinho em folha”.

Sem detalhes desnecessários, dona Alice nos contou que há quatro meses seu marido esperava por um coração para transplante, numa fila imensa que ela achava que não ia acabar nunca. Outro dia, recebeu recado de autoridades, anunciando que uma moça de 24 anos havia morrido num acidente. Seu coração tinha sido preservado, e a família da moça autorizara o transplante. Dona Alice olhou para os lados, se certificou de que, àquela hora da madrugada, ninguém mais chegava à salinha do quinto andar, e nos confidenciou com malícia: “Uma moça de 24 anos! Já pensou como vai ser agora? Nem sei se vou dar conta do recado”.

(Temos que celebrar a semana que passou. Chico Buarque ganhou o Camões e dois filmes brasileiros foram premiados em Cannes. É uma resposta da inteligência brasileira. Não precisamos abrir guarda-chuva no vídeo, cantando na chuva sem dignidade, para provar que estamos fazendo as coisas que devem ser feitas para que o Brasil seja um país livre, justo e igual, em que se possa viver em paz).

Talvez arrependida, mas certamente encabulada, depois da piada dona Alice ficou séria e me perguntou por nossa menina. Eu e minha mulher lhe explicamos o que se passava. Mas, apesar da simpatia, ela não estava lá muito interessada na razão de nossa felicidade. Dona Alice apenas juntava sua euforia à nossa, comemorava o novo coração do marido por trás da celebração do sucesso temporário de nosso caso.

O elevador acabara de chegar, e os amigos que estavam conosco já o tinham ocupado, quando me lembrei de perguntar seu nome. “Alice”, ela me disse logo. “A senhora tem um sorriso lindo, dona Alice”, lhe respondi. Mas não sei dizer o que ela achou de minha observação, pois a porta do elevador começou a se fechar e meus amigos me puxaram para dentro dele.

Até essa sexta feira à tarde, dia 31 de maio, quando escrevo, nossa filha ainda não teve alta do tratamento. Não vou deixar de fazer o que faço, mas vou dedicar minha vida à minha menina, quando ela deixar o hospital.

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Flora Diegues faleceu na manhã de ontem, vítima de um tumor no cérebro.


Cacá Diegues: Aquilo que somos como país

Chico Buarque de Hollanda é um desses gênios, o mais importante e completo de sua geração

Na vida de uma nação, há certas circunstâncias do passado das quais é impossível fugir. Ao longo de nossa história, estamos sempre tentando escapar daquilo que somos, da natureza de nosso começo e de nossa formação, da cultura que nos deu origem e que nos permite respirar por nossa própria conta, sem vergonha e sem censura. Mas, de vez em quando, aparece um gênio entre nós que nos obriga a lembrar de tudo isso. Aí recolhemos o facho, encabulados de nosso empenho para negar-nos a nós mesmos.

Chico Buarque de Hollanda é um desses gênios, o mais importante e completo de sua geração. Um criador que nos ensina a sermos nós mesmos, a nos reconhecermos e nos regozijarmos com o que somos. Sobretudo a termos consciência de nossos erros, entre os quais o mais grave sempre foi o da desigualdade, esse castigo que a democracia formal costuma esconder.

Conheci Chico em 1966, por meio de Nara Leão. Ela chegava de São Paulo trazendo canções de um jovem compositor que acabara de conhecer. Nara decidira cantar uma delas num festival próximo, mas ainda não a sabia de cor. Ela tirou da bolsa um papel amassado, com versos que ainda não decorara: “Estava à toa na vida/ O meu amor me chamou/ Pra ver a banda passar/ Cantando coisas de amor”. Era a primeira vez que a ouvia cantar “A banda”, que se tornaria um hino adotado por toda a população do país, independente de idade ou sexo, independente de opção política.

Poucos dias depois, encontrei o compositor num restaurante boêmio de Copacabana e fiquei sabendo que o jovem paulista era carioca, filho de um de nossos ídolos nas atividades culturais da PUC, Sérgio Buarque de Holanda. O autor de “Raízes do Brasil” deve estar no céu, comemorando adoidado o Prêmio Camões que seu filho acaba de ganhar. É a sua cara.

O Prêmio Camões é destinado, todo ano, a um escritor de língua portuguesa que tenha se destacado no uso dela. Nada mais justo que tenha sido dado, em 2019, a Chico Buarque. Não só pelas canções que escreveu e nos fez cantar descobrindo o Brasil, mas também pelas peças e romances que perturbaram nossa convicção de que sabíamos tudo sobre o país e seu povo. Sua obra, por trás de eventuais lágrimas e sorrisos francos, tem sempre alguma coisa a mais para nos fazer conhecer, mais e melhor, a nós mesmos. Esse prêmio já foi dado a muitos de nossos mestres, como João Cabral de Melo Neto (o primeiro a recebê-lo), Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, Ferreira Gullar, Alberto da Costa e Silva, Raduan Nassar, entre outras e outros. Com toda a justiça, toda a honra e toda a glória, Chico Buarque agora se junta a eles.

Com gosto por tudo que é popular no Brasil, como na banda de “A banda”, Chico se espalhou pelos temas que melhor nos representam, como o carnaval, o futebol, o circo, o morro, a malandragem, a dor de corno, os dissabores políticos. E o amor, claro. Além do próprio Brasil, que ele nem sempre identificou em sua obra, mas que está presente nela, como no “Sabiá” e mesmo, surpreendentemente, em “Joanna Francesa”. Por falar em cinema, pelo menos nos filmes que fiz, ele nunca nos entregou com antecedência uma canção prontinha, preferindo escrevê-la no estúdio, antes da gravação. Foi assim com quase todos os números de “Quando o carnaval chegar” e com “Bye Bye Brasil”, cuja letra criou depois de ver apenas uma vez o copião do filme, numa velha moviola.

Chico é um exemplo de integridade. Não importa se você não concorda com as posições políticas dele. Se é discriminado ou odiado pelos que não estão de acordo com suas preferências, nunca o vi praticar qualquer ato de rejeição a uma pessoa porque ela não é lulista ou coisa que o valha. Se Chico se aborrecer com alguém, não há de ser por isso. Mas por outro motivo, como um gesto canalha praticado pela vítima de sua rejeição. É pública a história da noite em que jantávamos com amigos no Leblon e, quando deixamos o restaurante, ele foi xingado em voz alta e agredido moralmente por uns rapazes do outro lado da rua. Pois Chico atravessou a rua para discutir amavelmente com seus agressores, que calaram inibidos e talvez envergonhados.

E aqui peço licença a nosso herói para criticar um ídolo seu, o ex-presidente Lula. Não é verdade que só agora, por causa do Prêmio Camões, Chico finalmente apareceu na telinha da TV Globo, “pela primeira vez”. Que eu me lembre, Chico já esteve antes no próprio “Jornal Nacional”, no “Fantástico”, num tributo a Marielle Franco e em outros programas da Globo, inclusive uma série histórica de shows semanais, em dupla com Caetano Veloso, criada por Daniel Filho. Um líder popular responsável não deve iludir seus admiradores com informações falsas ou com má informação. Não é agindo irracionalmente, sobre quem não concordamos, que vamos tornar mais racional a polarizada disputa política no Brasil.

Voltando ao que interessa, quem ganhou o Prêmio Camões deste ano foi o Brasil e todos os brasileiros que, como Chico Buarque, sonham com um país mais igual, mais livre e mais justo, onde seja possível viver em paz.


Cacá Diegues: Para não ser um idiota igual a quem?

Não ouvi do general Villas Bôas nada malicioso ou agressivo

Sempre falta dinheiro para a cultura no Brasil, sempre faltou. Pouca gente desvinculada de sua militância acredita mesmo que a cultura seja formadora da nação e de seu espírito estrutural. Ou, ao menos, um elemento constitutivo de sua formação. Para grande parte dos brasileiros, a cultura é atividade de vagabundo que, não sabendo fazer mais nada, explora os recursos do Estado para essa espécie de férias eternas e remuneradas.

O sentimento se agrava, quando se lê no jornal que o diretor-presidente da Ancine, a Agência Nacional do Cinema, iria, com mais alguns dirigentes da instituição, para o Festival de Cannes, às custas da agência. Enquanto isso, os produtores que fabricam os filmes que, graça à sua qualidade, são selecionados por Cannes (este ano são cinco), não têm recursos para continuar a produzir. Não faltaria dinheiro para a viagem à Côte d’Azur; mas falta dinheiro para a atividade que serve de pretexto à viagem. Ouso dizer que tanto melhor que eles acabaram não indo viajar. Ficaram por aqui e vão ter que encarar a crise.

O Brasil sempre foi assim. Talvez, em outros tempos, tenha sido até pior. Vivemos de ilusões, às vezes para nos aliviar, às vezes simplesmente por cinismo. Ilusões sobre nossa natureza, de onde viemos e para onde queremos ir. Nunca pensamos em para onde merecemos ir. Como não estamos jamais satisfeitos com o que de fato somos, inventamos disfarces nos quais nós mesmos acabamos por acreditar.

De vez em quando, aparece alguém que, por meio de diferentes ideias e instrumentos, se esforça para nos afastar dessas ilusões, para ver se melhoramos de caráter. Como Joaquim Nabuco, em seu tempo e até hoje. Ou Machado de Assis, um pessimista do bem. Ou ainda Glauber Rocha, herdeiro assimétrico de Castro Alves e Euclides da Cunha, a nos jogar na cara nossa violência e nossa crueldade social.

Aparecem também outros criadores que as reforçam ou criam novas ilusões para que existamos, como se precisássemos delas para existir. Talvez até precisemos mesmo, em certas situações limites e míticas. Mas para que o sol da verdade nos cubra de luz nos momentos em que sofremos tanto, não podemos buscar a razão de sermos no texto conciliador do grande Gilberto Freyre, no elogio ingênuo do gênio Humberto Mauro, nos inesquecíveis sambas-enredo de nossas maravilhosas escolas.

Entre esse dois exageros, surge, muito de vez em quando, um brasileiro que se coloca a igual distância entre eles, para evitar tanto engano. São, em geral, pessoas que desejam resolver conflitos e confrontos fraternos de um modo mais do que pacífico. De um modo afetuoso. Não se trata daquilo que o sociólogo Zander Navarro chamou de complacência nacional, uma subordinação acrítica ao fato e à sua interpretação, o que dificulta as possibilidades de transformação social. Trata-se apenas de um raro método político de fazer a história avançar.

Um deles, único militar ligado ao governo que conheci pessoalmente, é o general da reserva Eduardo Villas Bôas. Vi-o apenas uma vez, numa manhã em Brasília, a conversar sobre a atividade cultural no país e, mais particularmente, sobre a situação do cinema brasileiro.

Não ouvi do general nada malicioso ou agressivo sobre qualquer das pessoas citadas durante nossa conversa, gente de diferentes lados do espectro político e ideológico do país. Pelo que ouvi, minha impressão foi a de que sua obsessão era a da construção do Brasil, um país que não estava só em sua cabeça e em seus sonhos, mas que devia estar sobretudo nos concretos interesses dos brasileiros. Na minha opinião, o que o general Villas Bôas procurava inquieto era justamente esses interesses, quais seriam e como conciliá-los numa democracia.

Numa síntese, o ex-ministro Gustavo Bebianno disse a uma colunista que Villas Bôas era “um exemplo de força, bravura, inteligência, serenidade e resiliência”. E acrescentou que ele não podia ser alvo de ataques covardes e infames, “promovidos por teóricos remotos”. Também acho.

No caso, o “teórico remoto” é o tal Olavo de Carvalho, jocoso astrólogo que se manifesta sempre por palavrões, uma modalidade de expressão mágica que visa a impedir a resposta do ofendido. Puro exibicionismo. O general Villas Bôas chamou-o de “Trotski de direita”, como Delfim Netto havia chamado tanta gente poderosa de “direita incultural”. Ele não gostou. E aí replicou violenta e deseducadamente, contra um homem que, tenho a impressão, tenta suavemente ouvir e entender quem não pensa como ele.

Ao longo dos séculos, grandes estudiosos de todo o mundo se obrigaram a viagens extensas ao Brasil, para refletir e escrever sobre nós, a partir do que aqui via. O nosso “pensador”, morando há mais de 15 anos na Virgínia, Estados Unidos, de onde nunca sai, se pretende um preciso decifrador do Brasil, tendo o direito de dizer quem presta e quem não presta por aqui. Ou seja, o mínimo que cada um de nós precisa saber sobre cada um de nós, para não ser um idiota. Como quem, por exemplo?


Cacá Diegues: Mais abuso

Devemos desaparecer, como as Humanas estão sendo condenadas a desaparecer do ensino superior?

O “Filme B”, publicação dedicada ao que se passa nos mercados brasileiro e mundial de cinema, inicia seu boletim desta semana com o seguinte texto: “Nas ruas e no mercado, só se fala em uma coisa: Vingadores — Ultimato (Disney). O longa chegou feito um vendaval, varrendo dos cinemas os filmes em cartaz, e sem dar espaço para outros lançamentos. (...) O lançamento do filme ocorreu em 3.103 salas de 737 cinemas, isto é, em aproximadamente 92% do circuito total disponível no país”. A euforia é do texto original, os destaques são meus.

Como não está aí para criar polêmica, o redator do “Filme B” não avisa que em todo país do mundo existe uma regra, em geral na forma de lei, que impede esse evidente abuso de poder. Nos Estados Unidos, por exemplo, o país do capitalismo liberal, nenhum filme pode ser lançado em mais que 15% do circuito nacional. No Brasil, a ocupação máxima já foi de 30%, um exagero. Hoje não tem mais isso, o filme americano é lançado como quiser e fica quanto tempo quiser, numa mesma sala.

Isso talvez faça parte do que Delfim Netto (imagine!) chamou recentemente de “direita incultural”, com o governo combatendo defensores de conhecimentos que prometem a construção de uma organização social que pensa sobre seu próprio futuro. Que não estejam condicionados, como “formigas operárias”.

Antigamente ainda tinha a chamada “cota de tela”, o número de dias que cada sala teria que reservar para filmes brasileiros, a partir do desempenho de nosso cinema no ano anterior e de acordo com o discutido entre produtores, distribuidores e exibidores, a cada fim de ano. A cada fim de ano, a “cota de tela” era estabelecida pelo governo federal, assessorado pelo seu Ministério da Cultura, pela Agência Nacional de Cinema, ou por meio equivalente atuando no país naquele momento.

Havia também a “lei da dobra”, outro dispositivo de aplicação universal. Estabelecida entre nós a partir do final dos anos 1970, a “lei da dobra” obrigava os exibidores a manter o filme brasileiro em cartaz, enquanto ele estivesse alcançando a média de público semanal da sala. O filme brasileiro hoje é expulso da sala, mesmo estourando a boca do balão.

Essas medidas começaram a valer no Brasil há décadas. A “cota de tela”, durante o primeiro governo Vargas. A “lei da dobra”, no apogeu do regime militar inaugurado em 1964. Portanto, não podemos atribuir a existência delas a qualquer manifestação de ordem política primária. Elas visavam, como na fundação da Embrafilme ou na promulgação da Lei do Audiovisual, a dar condições de existência a uma atividade cultural e a uma indústria criativa indispensáveis ao país. E em vésperas de começarem a crescer.

Nenhuma das duas existe mais. A “cota de tela”, não se sabe por que, a Ancine não cuidou de atualizar ou simplesmente renovar. Já se passaram cinco meses, desde o final de 2018, e não se ouviu falar nela. A “lei da dobra”, nem se leva mais a sua vigência em consideração. Basta ver o que aconteceu com a chegada dos “Vingadores” e a imediata retirada de cartaz de filmes brasileiros de grande sucesso popular, como “De pernas pro ar 3”.

Para estimular nossa paranoia de abandono absoluto, basta olhar para a composição do novo Conselho Superior de Cinema, órgão regulador da atividade, administrado pela Ancine, nomeado e sob controle do Ministério da Cidadania. Ali, só se sentam conselheiros de grandes empresas americanas de cinema, além de representantes do sindicato deles, a Motion Pictures Association of America.

Repito uma pergunta que já fiz aqui, nesse espaço de jornal: o que é que o governo deseja de nossa cultura, de um modo geral, e do cinema brasileiro, em particular? Devemos desaparecer, como as Humanas estão sendo condenadas a desaparecer do Ensino Superior? É preciso desistir de nossa provável ilusão de que, através do cinema, ajudamos a criar uma nação com história e personalidade, com personagens e acontecimentos que reconhecemos como nossos? Nossos filmes, dedicados a discutir o que somos, devem dar lugar aos Vingadores dessa pretensão?

Apesar de tudo, não vou deixar de filmar como acho que deve ser feito no Brasil. Em 1962, o cinema brasileiro produzia uma meia dúzia de filmes anuais e nós, jovens universitários, fizemos “Cinco vezes favela”, sem um tostão furado. Mais tarde, eu já tinha feito filmes de grande sucesso, como “Xica da Silva”, “Bye Bye Brasil” ou “Quilombo”, quando Fernando Collor, de pura sacanagem e talvez por vingança eleitoral, acabou com o cinema brasileiro. Aí, em 1993, em parceria com a TV Cultura, fiz “Veja essa canção”, realizado em vídeo, com uma equipe menor do que a de uma filmagem de batizado.

Agora que, mesmo com o Brasil produzindo 160 filmes por ano, espero tão pouco da Ancine, não me custa nada repetir a experiência. Nem que tenha que acompanhar a geração do jovem cineasta Tomás Portella, que me disse outro dia: “Minha geração vai ter que cavar um túnel para poder ver a luz no fim dele”. Eu topo.


Cacá Diegues: Em defesa dela

Devemos saber que a liberdade de expressão nunca é ‘abusiva’. Ou ela é absoluta, ou não é

Com a seleção de quatro filmes brasileiros pelo Festival de Cannes deste ano, o sucesso internacional do nosso cinema me tira um pouco do espaço para falar mais longamente do vexame que Dias Toffoli e Alexandre de Moraes estão dando diante da nação.

Em primeiro lugar, o fato divulgado não foi uma invenção dos dois meios de informação culpabilizados. O nome de um ministro do Supremo não foi inventado, ele estava nos documentos da Lava-Jato como colaborador da Odebrecht ou coisa que o valha. Se a hipótese foi falsificada ou se for mentirosa, cabe à Justiça tomar providências. Mesmo um juiz do Supremo não tem o direito de resolver o caso por sua própria conta. O “supremo” não é ele.

A acusação de fake news não pode justificar uma intervenção de força. Aliás, é necessário que comecemos a analisar essa história de fake news de um modo menos primário. Se tudo o que perturbar o poder dos poderosos for considerado fake news, vai ficar fácil para eles praticarem todas as bandalheiras possíveis. Pois serão sempre tratadas como fake news e estamos conversados.

Assim como não acabaremos nunca com os crimes comuns somente com punição justa e necessária, as notícias falsas devem ser também motivo de educação da população digital, para que compreenda o mal que elas podem provocar. Como no caso dos crimes comuns. Muito mais eficiente, humano e democrático será educarmos nossos filhos contra a fabricação de fake news, do que esperar que elas sejam praticadas para condenarmos seus praticantes. O crime também é uma questão de educação.

Em defesa da liberdade de expressão, devemos saber que ela nunca é “abusiva”. Ou ela é absoluta, ou não é. As eventuais consequências de males provocados pela liberdade de expressão são da alçada da Justiça. É a Justiça que julga o mal provocado pela liberdade de expressão, depois de praticada sem censura prévia. Indivíduos, com ou sem toga, podem dar palpites mas não têm o direito de impedi-la.

Sempre pensei que os ministros do Supremo fossem a garantia da democracia no país, contra outras forças dispostas a acabar com ela. Não são. Infelizmente temos que estar sempre atentos a eles também.

Eu, por exemplo, me tornei leitor incondicional da revista “Crusoé” e do site “O Antagonista”. Podem vir me prender, mas não durmo sem dar uma olhada neles.

Este artigo já tinha sido enviado ao jornal, quando chegou a notícia de que o ministro Alexandre de Moraes revogara a censura em questão. Mas nosso texto segue válido, como uma observação sobre o que não pode ser feito.

Como foi anunciado essa semana pelo Festival de Cannes, o evento cinematográfico mais importante do mundo, o cinema brasileiro emplacou quatro filmes este ano.

Para a competição pela Palma de Ouro, a principal sessão do festival, Cannes selecionou “Bacurau”, o novo filme do pernambucano Kleber Mendonça, desta vez em parceria com Juliano Dornelles. Dornelles havia feito o design de produção de “Aquarius”, a obra anterior de Kleber Mendonça, também selecionada para a competição de Cannes, em 2016. “Bacurau” é um belo e originalíssimo filme, uma mistura inesperada de gêneros, filmado na fronteira do estado da Paraíba com o Rio Grande do Norte.

O outro filme brasileiro na competição é “O traidor”, dirigido por Marco Bellocchio, que conta a história da passagem pelo Brasil do mafioso Tommaso Buscetta, com Maria Fernanda Cândido no papel de sua mulher. Trata-se de uma coprodução com a Itália, em que a parte brasileira ficou sob a responsabilidade dos irmãos Caio e Fabiano Gullane, produtores sediados em São Paulo.

Além desses dois filmes na principal sessão do festival, Cannes ainda selecionou “A vida invisível de Eurídice Gusmão”, do cearense Karim Aïnouz, com Fernanda Montenegro, Carol Duarte e Julia Stockler. Além de “Port Authority”, de Danielle Lessovitz, com a atriz trans Leyna Bloom. Ambos os filmes, produzidos por Rodrigo Teixeira (produtor de “Alemão”, realizado na favela do mesmo nome) estarão na seleção de Un Certain Regard (Um certo olhar), mostra igualmente oficial, fora de competição.

E ainda há a esperança de uma quinta produção brasileira selecionada, dessa vez para a Semana da Crítica, dedicada a primeiros filmes. Veremos no decorrer desta semana.

Essa flagrante vitória internacional do cinema brasileiro chega exatamente num momento em que velhos inimigos afiam as unhas para destruí-lo. Em que um movimento, nem sempre muito claro, investe contra a participação do estado no cinema nacional. Sendo essa participação uma estratégia cultural e econômica apoiada e executada em todos os países do mundo onde existe uma produção cinematográfica. Inclusive na pátria do capitalismo liberal, os Estados Unidos.

Uma nova geração de talentosos cineastas brasileiros, jovens diretores e produtores, estão ajudando a recolocar nosso cinema no mapa internacional da atividade, enquanto por aqui se tenta acabar com ela. De que é que eles precisam mais, como prova de resultado e sucesso?