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Cacá Diegues: O risco da democracia

Presidente podia se dispor a ouvir mais pirralhas consagradas ou não em capas de importantes revistas cosmopolitas

E os juros foram para um patamar histórico mínimo, o Banco Central acaba de determinar que eles baixem para 4,5%. Isso não vai resolver a questão da miséria no Brasil ou a de nossa vergonhosa desigualdade, mas deve ajudar o país de algum modo. Pelo menos é o que percebo com a excitação dos ricos e a dos que querem ficar ricos. As agências que nos avaliam para investimentos potenciais estão elevando, aos poucos, nossa nota de oportunidades. Como a Standard & Poor’s, que acaba de melhorar nossa avaliação de risco.

A introdução na listagem da Nasdaq da brasileira XP Inc. (aquela que fez propaganda na TV com Luciano Huck), depois de um mais do que bem-sucedido IPO (o IPO é uma emissão primária de ações) em Wall Street, nos envia dois sinais importantes. Primeiro, ficamos sabendo que o capitalismo brasileiro tem agentes novos e criativos, como os jovens liderados pelo empresário Guilherme Benchimol. E, depois, que é possível fortalecer uma empresa nacional, lançá-la no mundo, sem apelar para robôs, fake news e propinas. Sem o Estado.

Com esse sucesso da XP, comemoramos também a confirmação de que estava mesmo equivocada a política econômica de apoio concentrado e irrestrito aos “campões” do capitalismo brasileiro. Para serem atendidos, quase todos aqueles campeões precisaram praticar acordos e manobras de corrupção, comprovados pela devolução da volumosa grana que, com a Lava-Jato, voltou aos cofres públicos. Não podíamos ter prova mais contundente da corrupção instalada no país.

Não sei que outros grupos financeiros, formados por jovens empresários ou não, navegam nesse mesmo mar contemporâneo de economia capitalista. A eles, o governo deveria estar prestando mais atenção. De minha parte, tento desvendar, por exemplo, com alguma pouca e precária leitura, o que vem a ser esse anarco-capitalismo, proclamado por alguns economistas. Como Hélio Beltrão, um de seus mais assíduos defensores em diferentes tribunas.

Em vez de passar tardes de sonho com príncipes árabes assassinos de jornalistas, ou perder tempo puxando o saco do presidente americano que não precisa dele, Bolsonaro podia estar dando voz a essas ideias novas, mesmo se forem aparentemente malucas. Devia promover e incentivar o que ainda não é, para inventar o que será.

Nosso presidente podia se dispor a ouvir mais pirralhas consagradas ou não em capas de importantes revistas cosmopolitas. Revistas que professam uma ideologia muito mais próxima da do nosso presidente, mesmo que ignore a existência dele. Cerca de dois mil anos atrás, um menino revoltou-se contra o ímpio comércio no templo e aprontou contra os vendilhões. Segundo os registros da época, o pirralho se chamava Jesus e tinha 12 anos de idade, quatro a menos que a pirralha Greta, aquela a quem a imprensa dá tanta importância.

A intolerância do governo acaba contagiando a própria oposição. Em breve, poderemos não estar mais sabendo a diferença entre direita e esquerda, porque as duas agem do mesmo modo, com a mesma intolerância e dificuldade de pensar fora da caixinha que cada um traz consigo, repleta de preconceitos e lugares-comuns. Se, na política, essa polarização radical empobrece o país e nos faz temer por sua imbecilização, na cultura ela é o oposto do próprio sentido da matéria. Imagine só protestar contra o tema da próxima Flip, porque a escolha recaiu sobre poeta que, em caráter privado, elogiou vagamente o golpe militar de 1964. O que é enorme diferença para elogios a torturadores ou ameaças com pau de arara.

A festa literária vai ser realizada em torno de Elizabeth Bishop, a maior poeta do continente americano (norte, centro ou sul), no século XX. Uma poeta que também escreveu sobre nós e que entendeu, do seu jeito particular, as agruras do país. O que faríamos então com gênios, como o cristão fundamentalista T.S.Eliot ou como o admirador do fascismo italiano Ezra Pound? Ignoraríamos sua poesia extraordinária? Faríamos o que fizeram, no passado, burocratas como Jdanov, a serviço de Stalin, ou Goebbels, a serviço de Hitler? A democracia é sempre um risco que não podemos deixar de correr. Vale a pena.


Cacá Diegues: Indispensável Fênix

Mesmo que tentem nos impedir de fazer os filmes que desejamos fazer, o cinema brasileiro não vai acabar nunca

O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, cuja 52ª versão acaba de se encerrar, é o mais antigo do país. Vi-o nascer e participei de sua inauguração com meu segundo longa-metragem, “A grande cidade”, em 1967. O festival tinha sido criado como um foco de resistência cultural à ditadura que então se instalava no Brasil. Uma ideia de Paulo Emílio Salles Gomes e da turma da Universidade de Brasília, o festival se tornaria, ao longo dos anos, uma plataforma de difusão e reconhecimento do moderno cinema brasileiro.

Hoje, mais de 30 anos depois do fim da ditadura, vivemos no Brasil a ameaça de um novo tempo de intolerância e barbárie. O presidente nomeado da Fundação Palmares diz que que a escravidão foi benéfica para os negros. O da Funarte declara que Elvis Presley e os Beatles planejavam implantar o comunismo no Ocidente. E o da Biblioteca Nacional garante que Caetano Veloso e Renato Russo são responsáveis pelo analfabetismo no Brasil. E ainda temos o ministro da Educação, a afirmar que nossas universidades são uma balbúrdia, que se dedicam à plantação de maconha.

O cinema tem sido alvo preferencial dessa insensatez, nos levando a um dramático paradoxo — vivemos o melhor momento da história do cinema brasileiro, produzindo cerca de 170 filmes no ano passado, com prêmios e sucessos no Brasil e no exterior, enquanto somos ameaçados de extinção pelo poder público nacional que nos quer ver pelas costas.

Não nos deixam outra saída senão a de uma oposição positiva, ativa e criativa, através de nossos filmes e de nossa militância. Uma oposição democrática, pois a democracia é a base, o princípio e o argumento de tudo o que devemos pensar e fazer. Os que foram eleitos como representantes do povo precisam respeitar a vontade do povo que os elegeu e quer ver nossos filmes.

Na abertura do Festival de Brasília, cuja seleção oficial foi tão respeitosa com nossa diversidade, assistimos a dois exemplos lamentáveis de prática antidemocrática. Um cineasta lia, no palco, um documento de protesto contra atitude do poder público local, quando um segurança lhe arrancou o documento das mãos. De certo modo, o próprio público do festival havia inspirado esse gesto de intolerância autoritária quando, no início da cerimônia, não deixara um representante do governo falar, sufocando sua voz com vaias e gritos, não permitindo que ela fosse ouvida. Numa democracia de verdade, estar com a razão não autoriza ninguém a censurar a voz do outro, daqueles que não concordam conosco. Se agirmos do mesmo modo que eles, como poderemos afirmar a diferença entre eles e nós?

Através de porrada ou de inércia estratégica, o governo sonha em acabar com o cinema brasileiro que o incomoda tanto. O que eles precisam saber é que mesmo que nos tirem todos os recursos a que temos direito, que sufoquem nossos meios de produção, que nos ameacem com censura e filtros, que tentem nos impedir de fazer os filmes que desejamos fazer, o cinema brasileiro não vai acabar nunca.

O regime ditatorial após 1964, de um jeito, e o governo Fernando Collor, de outro, cederam a essa sombria tentação. Durante a ditadura, fomos vítimas de censura cega e radical, que mandava cortar cenas de nossos filmes ou simplesmente os interditava. No governo Collor, o primeiro eleito pelo voto direto da população, por puro rancor deram um fim à Embrafilme, responsável pela maioria de nossos filmes. Gerida pelo Estado, a Embrafilme chegara a ser a terceira distribuidora do continente, incluídas as majors americanas. Tanto uma, quanto o outro fracassaram pois, no tempo, não conseguiram acabar com nosso cinema. Ele ressurgiu sempre de um outro modo, como uma fênix necessária, indispensável. É que os filmes são um retrato da alma de um povo que se reconhece neles, para se conhecer melhor.

Dos oito filmes na seleção oficial do Festival de Brasília, apenas dois eram dirigidos por cineastas veteranos. Os outros foram realizados por jovens vindos do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Mato Grosso, Pará, sei lá mais de onde. E cada um era cada um; nenhum se parecia, nem um pouco, com o outro.

Pode-se criar uma crise financeira de produção. Pode-se enchê-lo de outras muitas dificuldades. Mas ninguém nunca vai conseguir acabar com o cinema brasileiro. Nunca.


Cacá Diegues: A fome efêmera

Trabalhadores vão, cada vez mais, a pé para seu trabalho, mesmo quando é distante, ou passam o dia todo sem comer

Nenhum regime ou governo, hoje instalado no mundo, tem, de modo explícito, por base, princípio ou programa, o combate à desigualdade. Em nosso mundo, a desigualdade é cada vez maior, em todas as sociedades do planeta. Nos países ricos ou pobres, em desenvolvimento ou em decadência, pseudo-socialistas ou protocapitalistas. Ninguém parece se importar com essa questão, que pode mudar o rumo da humanidade, determinar para onde acabaremos indo, no meio dessa desgraceira toda e do caos que ela provoca, de Hong Kong a Santa Cruz de La Sierra, passando por todas as bombas que explodem por aí.

No Brasil, hoje, a renda média do 1% mais rico do país é cerca de 35 vezes maior que os ganhos de metade dos mais pobres, como nos diz o IBGE. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), nosso desemprego dramático provocou o empobrecimento dos que já eram pobres, recuando de 5,7% para 3,5% sua participação na renda nacional. Trabalhadores vão, cada vez mais, a pé para seu trabalho, mesmo quando é distante, ou passam o dia todo sem comer. Tudo para economizar o dinheiro destinado à educação dos filhos, que não têm nenhuma perspectiva de entrar para uma faculdade.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a cada 40 segundos alguém se mata em algum lugar do mundo. E, em grande parte das vezes, o motivo é a depressão social. Mesmo em nações consideradas abastadas, onde a imensa desigualdade é agravada pela visibilidade comparativa do luxo alheio. Nações são comunidades imaginárias, como diz David Christian, parceiro de Bill Gates, o homem mais rico do mundo, em seu livro “Origens”. O que existe, de fato, são os seres humanos que as formam. São eles que sofrem o desgaste de uma ética de alteridade que, mesmo cínica, a humanidade se sentia obrigada a proclamar. Hoje, o desprezo pela dor do outro e a ideia de fatalidade do sofrimento alheio estão consagrados, já viraram programa de governo em muitos regimes. Alguns, até, considerados exemplos de democracia.

Em 1848, há quase dois séculos, John Stuart Mill escreveu que “o melhor Estado para a natureza humana é aquele em que ninguém é pobre, ninguém deseja ser mais rico, nem tem motivo algum para temer ser empurrado para trás pelo esforço dos que querem avançar”. Outro pensador, o economista John Maynard Keynes, mais recente e mais realista, sustentou, em 1930, que “dentro de um século, a produtividade será alta o suficiente para garantir a todos as necessidades da vida”. O prazo de cem anos ainda não se esgotou, mas os seres humanos têm desafiado essa lógica natural para obter cada vez mais, enquanto os outros nada têm. Isso não pode acabar bem.

Para nossa surpresa, leitores e espectadores de antecipações generosas, o século XXI é um tempo de vandalismo, de massacres, de insegurança, de endividamentos, de concentração de poder e riqueza, de fome em todos os continentes. O mundo já devia estar ficando melhorzinho, não é não?

Um dia, chegaremos à conclusão de que tudo que nos parecia permanente era, na verdade, efêmero. Se Deus existir, por exemplo, não precisa de nosso reconhecimento para ser o que é. Teria sido ele a nos doar a grandeza do universo, que havia nascido de um peteleco seu no vazio do mundo, que depois chamaríamos de Big Bang. Deus não deve ter se dado àquela trabalheira toda para nos fazer sofrer e assistir impávido a nosso sofrimento.

O céu, sob o qual divagamos, é uma ilusão. Nem mesmo azul ele, de fato, é. O que está sobre nossas cabeças é o universo e sua infinita grandeza; e o universo não tem céu. O nosso céu, pra valer, tem que estar mais perto, em nossos corações, na nossa compaixão pelo outro. E compaixão não é a vulgar piedade, um mal disfarçado exercício de poder. Compaixão é ser solidário na trajetória do outro, compartilhar sua paixão

Suportar as diferenças, inevitáveis entre seres humanos, significa não deixar que elas se estendam até a mais desumana das dores

Fábio foi um irmão mais moço. Desses que a gente vê nascer, crescer e aprender o que é importante na vida. Na dele, o mais importante sempre foi a própria vida. Não dá para dizer que Fábio foi descansar, porque era incansável. Como toda a sua família, os Barreto, na construção do cinema brasileiro moderno. Fábio já estava fazendo falta, durante os dez anos de esperança de que voltasse. Agora, então!


Cacá Diegues: Para onde queremos ir

Polarização entre velhos extremos é um conforto para quem não se interessa em encontrar e praticar alternativas

Vivemos num mundo em transformação. Isso parece óbvio, porque o mundo sempre esteve em transformação, o tempo todo. Mesmo que as circunstâncias, às vezes, o levem a uma transformação para trás. Quando isso acontece, não é por muito tempo que dura o tempo de atraso. Outras vezes, como penso que agora, trata-se de uma transformação radical e inevitável, uma negação de quase tudo que veio antes, por necessidades geradas pelas circunstâncias da vida. Um pouco como quando o Iluminismo se desenvolveu e conquistou a Europa culta, como uma resposta ao religiosismo fanático e inquisitorial. Ninguém se dispensa de ser feliz.

Ao fim da Guerra Fria, quando o Muro de Berlim caiu, há 30 anos atrás, cogitou-se até em considerar a História como finalizada. Não haveria mais para onde ir, depois do encerramento da dicotomia que, como sempre, dividira a humanidade. Era como se um dos lados em litígio tivesse ganhado a guerra e não houvesse mais o que fazer. Hoje sabemos que ainda havia muito o que fazer, que haverá sempre o que fazer. Sobretudo num país como o Brasil, um país que nunca soube direito o que ele próprio era, embora tivesse se elaborado tanto, cheio de planos e sonhos que nunca se realizaram.

Com a Ancine no Ministério do Turismo, sob a tutela de Roberto Alvim, o desbocado, talvez não se possa mais mostrar favela e sertão nos filmes brasileiros, não sei. Esses temas de artistas indignados não cooperam com o luxo de cruzeiros náuticos e semelhantes turísticos. Mas as favelas e o sertão continuam lá, onde sempre estiveram, com crianças sendo assassinadas todo dia e gente morrendo de fome, além de rios secando ou poluídos por desastres.

Quem sabe seja esse, no final das contas, o recado do governo depois de tanto desmerecer, subestimar e condenar os filmes que andamos fazendo até agora. Não escapou nenhum. Se quiserem trabalhar, os cineastas brasileiros, como outros artistas do país, terão que adivinhar o que eles querem de nós.

Por outro lado, Lula livre podia ser um bom argumento para se esquecerem um pouco da gente, se dedicarem um ao outro. Mas o neo-novo personagem não tem mais muita coisa para dizer, já ouvimos os discursos da largada, são os mesmos de sempre. Neles, ele falou mal da Rede Globo, a única emissora que transmitiu, de cabo a rabo, seu discurso daquele dia. Lá para as tantas, disse que o presidente governava para os milicianos, ou coisa que o valha. E, mais adiante, ironizou-o dizendo que, como não queria saber de trabalhar, o capitão entrou para as Forças Armadas. Tudo, como sempre, no mesmo padrão de radicalidade sem ideias, ao sabor do vento de idiossincrasias, queimando as possibilidades de diálogo em busca de pensamento e ação novos. No fundo, Bolsonaro e Lula acham que o mundo não existe sem os dois.

No Chile, o povo está nas ruas contra o populismo aristocrático, a direita de Sebastián Piñera. Na Bolívia, o povo saiu às ruas contra o populismo salvacionista, a esquerda de Evo Morales. Os dois, cada um em seu país e a seu modo, trataram seus povos como incapazes de escolher o que desejam. A velha praga latina do caudilhismo, do desrespeito aos programas anunciados, quando eles não rendem mais voto ou grana. O desrespeito à Constituição de cada um, ao prometido e ao jurado. A polarização entre os velhos extremos é um conforto para quem não se interessa em encontrar e praticar alternativas. Ou para quem tem preguiça de pensar.

Nada disso serve mais a ninguém. É uma disputa no passado que já devia ser remoto, um retorno de direita ou de esquerda ao que não interessa mais. É inevitável pensar no livro novo de Mangabeira Unger, “O homem despertado”, que o “New York Times” simplificou chamando o autor de “visionário incansável”. Nele, Mangabeira diz que a transcendência política é hoje “a capacidade de cada um de nós ser maior do que suas circunstâncias”.

No Brasil, gostei foi da ideia de um segundo turno com três candidatos. O eleitor não seria mais prisioneiro da obrigação do mau voto. Haveria sempre um tertius que nos permitiria recusar a esterilidade dos dois lados eternos. Recusar o ódio cego e fatal, fazer ciência e poder pensar.

Claro, não é a ciência que vai salvar o mundo. Mas ela não pode ser ignorada, porque nos diz o que somos e de onde viemos. Assim como a cultura nos faz imaginar o melhor para nós, nos faz escolher para onde devemos ou queremos ir. Aonde chegaremos.


Cacá Diegues: Outros tempos

Entre barbárie e civilização, para que o mundo e o ser humano existam mais um pouco, devemos ficar sempre com a civilização

A gente devia agradecer aos meninos da família Bolsonaro pelo serviço que eles prestam à pobrezinha da nossa democracia. Com os absurdos que eles vivem sugerindo, o país está sempre testando e, em geral, confirmando nosso carinho pela coitadinha. O que o Brasil democrático precisa e quer é sempre o contrário do que eles propõem em diferentes circunstâncias. Agora, por exemplo, só pensam em reeleição. E já partiu a campanha.

O direito do presidente da República à reeleição foi um mal que Fernando Henrique Cardoso prestou ao país. O primeiro mandato de FHC foi um enorme sucesso. Para ele e seus apoiadores, como para o país todo. FHC não só tinha criado e montado o Plano Real, enquanto ministro de Itamar Franco, como o consolidou definitivamente em seu próprio governo. Isso já bastaria para o aplauso da nação, que recuperava a confiança em nossa moeda, devolvendo-nos orgulho e serenidade em nossos projetos de vida. Mas, além disso, FHC preparou com muita dedicação o sucesso de seu ingrato sucessor.

Seria preferível que FHC tivesse ficado no poder por cinco ou talvez seis anos (como na França), num mandato único, sem direito à extensão, do que lhe permitir a reeleição. Mas o mistério dessa atração é tão profundo, esse amor pela continuidade do poder é tão intenso, que mesmo Bolsonaro, que passou toda a campanha eleitoral falando mal da reeleição e jurando que não se aproveitaria dela, em alguns meses de governo já estava se lançando candidato a um repeteco.

Acho até natural que um presidente que gosta de seu job acabe cedendo ao gosto por ele. Mas a reeleição é o que há de pior para uma democracia ainda frágil como a nossa. O presidente em exercício dificilmente resiste a passar seus anos de primeiro mandato preparando, de modo lícito ou ilícito, os anos do segundo ato. No fundo, é essa necessidade visceral de repetir os anos de prazer, seu e de seus pares, que os leva a aspirar à reeleição. No fundo, foi a reeleição que inventou a reeleição.

Não devemos nos esquecer de que a pior liderança que o país teve nesses últimos anos, a presidente Dilma Rousseff, a mãe de todos os males sofridos por nós e que nos emperram até hoje, conseguiu se reeleger. Mesmo seu partido podendo optar por Lula, candidato infinitamente mais popular, bem-sucedido num passado recente. Mas não foi por aqueles males que o então deputado Bolsonaro votou pelo impeachment de Dilma. Quem consultar os vídeos da Câmara verá que seu voto foi acompanhado do elogio mais radical ao mais destacado torturador da ditadura, Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Embora mentindo, a prometer o que nem ameaçou cumprir nos poucos meses de seu segundo mandato, Dilma ganhou de alguém que, na época, considerávamos um sujeito de respeito, mais preparado, um idealista. A trajetória política do cara, quando finalmente revelada, é mais um argumento a favor do fim da reeleição —e se Aécio tivesse sido eleito em 2014? Com a disposição que ele tinha e a reeleição à disposição dele, íamos certamente alimentar a farsa até 2022. Quem sabe, ele seria capaz de fazer, com o óleo nas praias, o mesmo que esse Ricardo Salles tentou, pensando que todo brasileiro é idiota —transformar o desastre ecológico em desastre com viés ideológico.

Está mais do que na hora de nos prepararmos para um outro futuro, que não é nenhum desses para os quais os dois lados polarizados tentam nos conquistar. A disputa maior, em futuro muito próximo, não será mais entre a esquerda e a direita, formas de pensar que tratam as pessoas e o mundo de modo parecido.

Às vezes parecido demais, dependendo apenas do assunto e dos livros que lemos a propósito dele. Isso não faz mais nenhum sentido, num mundo vivendo o tempo do homem ou do Antropoceno, acelerado desde a segunda metade do século XX. As ideias e as doutrinas podem ser diferentes. Mas a aplicação delas, sua ação e os males que produzem são mais ou menos os mesmos. Só mudam os gurus.

A disputa do futuro será entre barbárie e civilização. O paradoxo é que, se as coisas continuarem no ritmo atual, com a disputa ideológica radicalizada infantilmente, o progresso vai se tornar um fator de barbárie. E, entre a barbárie e a civilização, para que o mundo e o ser humano existam por mais um pouco, devemos ficar sempre com a civilização. Que me desculpe o senhor presidente, mas quem está sugerindo um novo AI-5 no país não está apenas sonhando. Está provocando um pesadelo do qual já sabemos que é difícil acordar. Mas o Brasil não vai mais cair nessa.


Cacá Diegues: As praias a perigo

Há 58 dias, o óleo toma a costa do Nordeste, e o governo insinua lorotas e fofocas de conspirações

O Brasil se encontra radicalmente dividido entre duas grandes formas antagônicas de pensar o país. De um lado, pseudo-conservadores que pretendem restaurar aqui um passado que nunca tivemos. De outro, pseudo-revolucionários projetam nosso futuro para amanhã de manhã. De preferência, bem cedinho. Nada disso foi possível em nenhuma nação do mundo, de qualquer hemisfério.

O caso do óleo nas praias do Nordeste nos coloca diante dessa polarização das duas alienações da realidade. Já se falou muito, de um lado, de inimigos externos que teriam provocado o desastre. Do outro, condena-se as autoridades incapazes de tomar providências. As duas reações são apenas culpabilizadoras e irresponsáveis quanto às consequências do acidente. Repetidas pelos alto-falantes da mídia e das redes sociais, elas eludem o mais importante.

No dia 4 de setembro, chegaram as primeiras manchas de óleo, trazidas pelas ondas ao litoral de Pernambuco. Elas não causaram estrago paulatino, e sim uma destruição imediata de todo o litoral nordestino e do que ele representa para aquela população. Não só o envenenamento do que se tira do mar e das areias, o alimento regular e diário, além do turismo que despenca. Mas também o significado natural e simbólico daquelas praias para a população local. As praias do Nordeste não são apenas um orgulho do Nordeste; elas são uma reserva de energia para os sonhos dos nordestinos. A população local as usa com proveito físico, e ainda como símbolo poderoso de seu valor.

Poucos dias depois de chegar a Pernambuco, o óleo já se espalhava do Maranhão à Bahia. Mas o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, não estava nem aí. Literalmente. Ele tinha ido para os Estados Unidos e Europa, parece que para explicar o fogo na floresta. Quando o ministro voltou, fez duas rápidas “vistorias” nas praias, de poucos minutos cada uma. E foi para a televisão contar ao país o que estava acontecendo, como se estivesse de fato a par de tudo. Na televisão, o ministro tentou, como faz sempre esse governo, ideologizar a questão, apesar de o desastre ser ambiental, no campo dele.

Primeiro, botou a culpa num navio de ONG internacional, como se ela estivesse praticando terrorismo contra o Brasil. Remontou um vídeo para fazer prova, e foi prontamente desmoralizado pelos acusados que mostraram, em sua rede social, o vídeo original. O ministro insinuou também que, como o óleo era comprovadamente de origem venezuelana, era à Venezuela que devíamos, no mínimo, protestar. Só faltou declarar guerra ao país lá do norte, tão distante de nós e de nossas praias. Fiquei imaginando que, se em vez de óleo, as praias do nordeste se enchessem, por um absurdo qualquer, de bananas, deveríamos imediatamente declarar guerra aos macacos de todo o mundo.

Eu também não gosto do Maduro, mas nem por isso ia sair por aí acusando o país dele. Sobretudo depois de nossa própria Marinha de Guerra ter descoberto cientificamente que haviam passado 30 navios, de dez diferentes nações, pela região do mar em que deve ter começado o vazamento. O ministro ainda parece ter esquecido que o Plano de Contingência para essas situações tinha sido abandonado pelo presidente, quando este decidiu eliminar o comitê que o montou. Vários Conselhos Federais, como aquele, foram desmontados para “evitar o aparelhamento do serviço público”.

Há 58 dias, o óleo torna as praias do Nordeste inviáveis e infectas, capazes de aborrecer a população e provocar doenças. O ministro do Meio Ambiente e grande parte do governo federal nada fizeram em benefício das praias e das vítimas, a não ser insinuar lorotas, fofocas de conspirações inventadas para distrair nossa atenção do que é de fato importante. A direita mais significativa do século passado, o nazismo, usava essa “descoberta” de inimigos externos, como pretexto para unir a população ingênua em torno de sua autocracia.

Segundo o vice-presidente Hamilton Mourão, a 10ª Brigada de Infantaria, sediada em Pernambuco, participará dessa dramática tentativa de limpar as praias sujas de óleo. Em 12 de setembro, logo no começo do desastre, a Petrobras já interferira, por sua própria conta, recolhendo, segundo a empresa, 280 toneladas de óleo. O Exército e a Marinha, que são sempre convocados nesses momentos críticos, já recolheram, junto com o Ibama, mais de mil toneladas da sujeira. Pescadores, jangadeiros e outros colaboradores anônimos de cada local são voluntários emocionantes e emocionados, nessa luta para recuperar a beleza, a grandeza, o sossego e os sonhos daquelas magníficas praias.


Cacá Diegues: Do outro lado da Baía

Em proporção a seu orçamento, Niterói já é a 9ª cidade do país que mais investe em cultura. E a primeira do estado

No final do ano passado, Renata Almeida Magalhães, minha esposa e produtora, produziu, em Niterói, o filme “Aumenta que é rock’n’roll”, dirigido pelo jovem realizador Tomás Portella, a partir do livro “A onda maldita”, de Luiz Antonio Mello. O autor do livro foi o fundador da célebre Rádio Fluminense que, a partir de 1982, lançou todas as jovens bandas populares daquele momento e se tornou um sucesso único entre a juventude das cidades próximas, como o Rio de Janeiro. E ainda colaborou com uma renovação cultural e de costumes, para a nova democracia que se anunciava no horizonte.

Voltei portanto a Niterói, para onde, quando era criança, minha mãe me levava com meus irmãos, para tomar banho de mar no Saco de São Francisco. E onde, adolescente aspirante a cineasta, visitei Nelson Pereira dos Santos e sua família, que então moravam na cidade. Redescobri Niterói.

Todo estudioso do assunto sabe que a primeira sessão de cinema na América do Sul, deu-se no Rio de Janeiro, na Rua do Ouvidor, em 8 de julho de 1896. Mas há controvérsias quanto à primeira imagem filmada no Brasil, a inauguração da produção cinematográfica no país. Minha aposta é em Affonso Segretto que, com seus irmãos Paschoal e Caetano, se tornaria depois o mais importante grupo exibidor de cinema do Rio de Janeiro, a então capital federal.

A imagem que o empresário ítalo-brasileiro registrou do navio em que voltava da Europa foi a da entrada da Baía de Guanabara, com suas águas transparentes protegidas pelos picos do Maciço da Tijuca. E ainda as baleias que ali nasciam, se criavam e vinham mais tarde visitar. Seu projeto talvez fosse registrar a capital. Mas, ocupando inevitavelmente parte do enquadramento, lá estava também Niterói, do outro lado da Baía, com suas praias e prédios serenos.

Mais de um século depois, Niterói confirma essa presença fundadora, tornando-se uma espécie de futura capital brasileira do cinema. Semana passada, estive lá para a inauguração, pelo prefeito Rodrigo Neves, do Auditório Nelson Pereira dos Santos.

Com 490 lugares, a sala é parte de conjunto arquitetônico de Oscar Niemeyer. Ela servirá à exibição de filmes, bem como a concertos, conferências, espetáculos teatrais ou de música popular, como parte de um complexo cultural. Ali, o prefeito Rodrigo Neves anunciou, para o futuro próximo, a criação de um Museu do Cinema Brasileiro. Seria bem oportuno, porque, do jeito que o governo federal o tem tratado, nosso cinema pode mesmo desaparecer em breve.

Quando a cultura se torna um alvo preferencial a ser abatido, com a eliminação de incentivos federais e a tentativa disfarçada de reinstaurar a censura, a prefeitura de Niterói abre os braços generosos para ela. Proporcionalmente a seu orçamento, Niterói já é a nona cidade do país que mais investe em cultura. E a primeira do estado. A atual prefeitura criou incentivos para que empresas locais possam abater do IPTU e do ISS aquilo que investirem na cultura. E qualquer produção brasileira de audiovisual pode também se servir do fomento, quando utilizar a cidade como cenário.

A prefeitura de Niterói também cuida da preparação de profissionais da área, numa cooperação frutuosa com a Faculdade de Cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF), uma das primeiras escolas de cinema do Brasil, fundada pelo mesmo Nelson Pereira dos Santos. Alguns desses profissionais participaram, com louvor, da equipe de “Aumenta que é rock’n’roll”.

Segundo o prefeito Rodrigo Neves, a Secretaria de Cultura do município toca um Museu de Arte Popular; o Teatro Municipal, criado por João Caetano no século XIX; uma companhia de balé, como a do Municipal do Rio; o Arte na Rua, um apoio a artistas de rua; o Teatro Oscar Niemeyer; e o Aprendiz, programa de iniciação musical em escolas públicas. “Investimos no Aprendiz”, diz o prefeito, “porque, como sociólogo e amante da cultura, tenho a convicção de que a criança e o adolescente que têm contato com a arte dificilmente vai, um dia, empunhar uma arma. A cultura é fundamental para a autoestima de Niterói, mas também para a redução das desigualdades e prevenção à violência”.

Como seria bom que o resto do Brasil seguisse esse exemplo de Niterói.


Cacá Diegues: Meu discurso na ONU

Qual dessas alternativas, a barbárie ou a civilização, cada país deve escolher para o presente e o futuro?

Se a mim coubesse discursar na abertura da 74ª Assembleia Geral da ONU, se eu tivesse essa honra por causa de nossos antepassados políticos que a mereceram por suas ideias, elegância e dignidade, evitaria levar comigo uma pobre moça com cara de indígena que serviria apenas para me filmar encantada, com seu celular progressista de homem branco. Eu não teria coragem de dizer que a menina representa os índios do meu país. Apenas uns poucos, já que o resto a gente massacrou devidamente no passado.

Começaria meu discurso mandando meus confrades do mundo inteiro aprenderem logo o português para lerem “Escravidão”, o livro do professor Laurentino Gomes. Ele nos conta como subjugamos com eficiência, desde o primeiro leilão dos cativos em 1444, uma outra etnia que trouxemos para cá, atravessando com eles um oceano, para que nos servissem e inventassem o país que agora os despreza e discrimina.

Eu também citaria a Bíblia, mas um outro versículo mais apropriado. Podia ser, por exemplo, o que está no Livro Sagrado em Lucas 12, 1-3, que aprendi com Frei Betto: “Tomem cuidado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia”.

Em meu discurso, talvez fosse o caso de lembrar o que muita gente tenta esquecer ou negar: a ditadura no Brasil, de 1964 a 85. Ela está nas primeiras páginas dos jornais da época, mesmo dos que a apoiavam. Como na manchete de 26 de março de 1969, onde o presidente-general afirma: “O governo já cuida da volta à democracia”. (Ora, o que volta é porque já foi). Ou, em 19 de agosto do mesmo ano, a declaração de membro do triunvirato militar no poder: “Nosso objetivo é restaurar a democracia”. (Ora, só se restaura o que não é mais). O mesmo jornal dizia, três dias depois, que “o Exército está decidindo a sucessão”. Pode ser mais claro?

E, para quem não acredita na crise do clima, sugiro outras manchetes de exatos 50 anos atrás, reproduzidas em colunas de jornais de hoje: “Veneno no ar, a maior densidade mundial de poluição está no Rio”. Ou, num outro dia: “Envenenamento do ar ameaça de extermínio a vida sobre a terra”.

Diria, na tribuna da ONU, que é burrice reduzir a vida hoje a uma disputa polarizada e besta entre direita e esquerda. Ou até mesmo entre socialismo e capitalismo. Citaria o Piketty ou qualquer um dos anarco-capitalistas contemporâneos, para explicar que nada é mais tão separado assim. Como, aliás, John Maynard Keynes já tinha sacado um pouco, desde 1936. Essa luta mortal (ou imortal?) entre direita e esquerda é coisa de quando a assembleia da Revolução Francesa se reunia, com os conservadores no lado direito do plenário e os radicais no esquerdo. Que diferença libertária havia, no século passado, entre a Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin? De que lado se encontra a China no nosso século, o de seu liberalismo econômico ou o de seu autoritarismo político? A democracia só é um estorvo, Carlos, quando perdemos a paciência com ela, por razões vagas, tolas ou inconfessáveis.

Uma pessoa se suicida no mundo a cada 40 segundos, sendo o suicídio a segunda maior causa da morte de adolescentes e jovens no Brasil. Foi sempre assim? E o tiro que o procurador-geral ia dar no Gilmar Mendes, hein? E o homem do governo que falou mal de nossa maior atriz, uma glória do país, e nenhum superior chamou sua atenção? O que está hoje em discussão, senhores representantes de todas as nações do mundo, não é o assanhamento entre a direita e a esquerda tão parecidas. E sim uma opção entre barbárie e civilização.

O passado já passou. Mas qual dessas duas alternativas, a barbárie ou a civilização, cada um de nossos países deve escolher para o presente e o futuro de seu povo? Quem sabe ele será mais feliz e vai se descontrair para viver em paz a vida como quiser levá-la.

E vejam só, senhores, o exemplo de nosso cinema sem carinho e sem apreço dos que mandam. Apesar da disposição adversa do presidente e de alguns de seus ministros, como os da Cidadania (?) e da Educação (aquele que escreve “suspenção”, assim com cedilha), que não querem saber de nós, estamos sobrevivendo com muita honra. Este ano, com nove filmes no Festival de Berlim e prêmios por aí. Como em Cannes (dois) e em Veneza (mais dois).

Porque decidimos combater o “macartismo cultural”, vamos deixar que todos se manifestem, em nome da diversidade natural do país. Porque nós escolhemos a civilização. That’s it, everybody.


Cacá Diegues: Fernanda, a alma do país

Fernanda Montenegro é um exemplo superior de intelectual brasileira, pensando sobre o que nós somos

‘Foram anos duros, mas foram os melhores anos de nossas vidas”. Essa citação de Bertolt Brecht está em “Prólogo, ato, epílogo”, editado pela Companhia das Letras, livro de memórias de Arlette Pinheiro, a atriz que melhor conhecemos pelo pseudônimo que adotou como profissional e que assina a obra, Fernanda Montenegro. A melhor atriz brasileira de todos os tempos, síntese de uma cultura nacional que se exprime por uma dramaturgia específica que só nós sabemos e podemos expressar.

Os “melhores anos de nossas vidas”, a que Fernanda se refere citando Brecht, são exatamente seus anos tão criativos, expostos ao desinteresse ou à ignorância repressora do Estado. Os anos em que aprendemos a admirá-la e segui-la, não apenas como a grande estrela que ela sempre foi, desde o iniciozinho de sua carreira ao microfone da Rádio MEC, mas também como uma estrela-guia de nossos passos em relação ao futuro do Brasil.

Fernanda Montenegro não é apenas a excepcional atriz de rádio, teatro, cinema e televisão, hoje reconhecida em todo o mundo. Ela é também um exemplo superior de intelectual brasileira, pensando sobre o que nós somos. Tudo o que ela faz ou diz, provavelmente tudo o que ela pensa, está sempre dedicado a reconhecer de onde viemos como nação e para onde devemos ir. Mas não como uma opção aleatória, uma alternativa sem discussão, a gosto do freguês. Ao contrário, como nossos grandes pensadores do século XX, os inventores do Brasil moderno, Fernanda quer descobrir o que somos e o que poderíamos ser, para poder nos reinventar.

Não foi por acaso que ela passou por movimentos culturais decisivos, desde o começo de sua carreira profissional. Como o Teatro Brasileiro de Comédia, a dramaturgia criada pela televisão que então engatinhava e o próprio Cinema Novo. Em cada um desses momentos de nossa história cultural, e em outros que se seguiram a esses, ela esteve sempre presente, colaborando com sua luz a serviço do que estava acontecendo e por acontecer. Não somente a luz imóvel dos refletores que a põem em destaque no palco; mas sobretudo a luz inquieta e explosiva de uma estrela no céu, em permanente estado de risco.

Não me lembro se, na época, cheguei a falar sobre isso com Fernanda, mas sempre fui contra sua migração para a burocracia da gestão cultural do Estado. Durante o governo de José Sarney, o primeiro presidente civil depois da ditadura iniciada em 1964, ela foi convidada a assumir o recém-criado Ministério da Cultura, o MinC, que não existe mais. Uma enorme onda de apoio cobriu seu nome, com incentivos que vinham dos políticos, como vinham também e principalmente da própria comunidade de artistas e produtores de cultura. Contra o desejo da imensa maioria, torci para que ela não aceitasse sua indicação. Como Glauber Rocha, Ferreira Gullar, Gilberto Gil e outros artistas tão importantes e competentes quanto esses, na época e depois da época, na minha opinião ela tinha que ficar sempre do lado de cá, sem compromissos que a domassem e impedissem sua manifestação iluminada. Nós precisávamos mais de seu talento, inteligência, independência e liberdade do que de sua gestão cultural.

E aí está Fernanda Montenegro, a nos reiterar sua pregação de qualidade na criação artística, de democracia e justiça, de liberdade e igualdade sem prejuízo dos outros. E, em torno desses valores, ela busca construir o que esperamos de nossa produção cultural, sem a qual país algum do mundo será respeitado e sobreviverá como nação. Porque, mesmo que ignorada ou combatida pelos dirigentes do país, é a cultura que alimenta e produz a alma de uma nação. Ela só existe na medida em que puder refletir o que é seu povo, enquanto inventor de ideias e de comportamentos. Fernanda é uma de nossas heroínas nesse processo mal compreendido, tão longo e difícil. Mas alcançável.

Ah, já ia me esquecendo. Além de estar lançando seu livro de memórias, Fernanda Montenegro comemora também seu aniversário no próximo dia 16 de outubro. Em menos de duas semanas, portanto, ela completará 90 anos de idade, com o fogo da criação e da participação aceso, como se tivesse nascido ontem.


Cacá Diegues: O desejo de todos

Líder de democracia deve se propor a representar o desejo da nação, nunca só os interesses dos que o elegeram

Numa democracia de verdade, é sempre muito difícil determinar o que deseja a maioria. Sobretudo no presidencialismo, a maioria se manifesta e é compreendida através do voto, apenas de quatro em quatro anos, podendo muito bem mudar de opinião depois de uma eleição, num prazo curto ou não. Aliás, a democracia não foi mesmo inventada para garantir a ditadura da maioria.

Embora seja necessário reconhecer que sem a manifestação da maioria não há democracia possível, é preciso não deixar de considerar que a democracia existe também para garantir o direito à voz e à ação das minorias. Essa talvez seja a mais cara e nobre causa democrática possível, a menos óbvia e imediatista. Uma vez escolhido pela maioria dos que votam, o verdadeiro líder de uma verdadeira democracia deve se propor a representar o desejo da nação, nunca reduzido apenas aos interesses daqueles que o elegeram.

Em geral, a maioria se interessa apenas em garantir seus desejos e seus privilégios no conjunto de seus iguais. Enquanto as minorias estão sempre empenhadas na luta por um novo conjunto de direitos que elas pretendem ser capazes de beneficiar a totalidade dos cidadãos. A democracia de um país só faz se fortalecer no centro dessa dialética pacífica entre maioria e minorias. Talvez até seja isso mesmo a democracia.

Nosso atual presidente, legitimamente eleito por uma maioria de votos que o escolheu, não pode se considerar representante apenas dessa maioria, nem tratá-la como se ela fosse a nação. Até mesmo pelos números de sua eleição. No segundo e decisivo turno de 2018, 8,6 milhões de votos foram nulos, 2,4 milhões em branco, com uma abstenção de 31,3 milhões de eleitores. Ou seja, 42,3 milhões de votos que, se somados aos de seu adversário, formarão um número muito superior ao dos seus.

Isso não quer dizer que sua eleição tenha sido uma fraude. Absolutamente. A eleição do atual presidente foi correta, de acordo com as regras do jogo eleitoral democrático. Isso quer dizer somente, repito, que a frieza dos números é mais uma razão, além da razão conceitual, para que ele se considere um representante do que pensam todos os brasileiros. Mesmo aqueles que não votaram nele.

Durante a fundação da democracia americana, exemplo maior de regime democrático-liberal no Ocidente, os “pais fundadores” se dividiram muitas vezes, cada um para um lado dos princípios. Como quando James Madison e Thomas Jefferson enfrentaram Alexander Hamilton em defesa do federalismo na Constituição recém-criada. O “Bill of Rights” decorrente desses conflitos está até hoje em vigor, consagrado no sistema democrático americano.

Ao contrário disso, temos vivido, desde bem antes de 2018, um vendaval de opiniões radicais e histéricas, que não têm nada a ver com o país do presente. Imagine só o do futuro. O populismo, de direita ou de esquerda, transforma seus líderes em divindades de uma seita sem sentido, infalíveis e impossível de serem contestados. Eles se tornam maiores do que o que pensamos do Brasil e do que ele necessita, não nos deixa formar nenhuma tendência unida em benefício de um programa qualquer, seja ele qual for. Tanto de um lado quanto do outro, tudo é considerado fatal e inegociável.

A história passada ou mais recente nos ensina que não é nada disso, que só o contrário da polarização selvagem é razoável. Ho Chi Minh aliou-se aos Estados Unidos para expulsar os franceses da Indochina. Depois, aliou-se à União Soviética e à China para expulsar os americanos do Vietnã. Quando finalmente os vietnamitas conseguiram mandar os invasores para fora do país, a primeira medida do novo governo nacional foi rebatizar a capital como Ho Chi Minh.

Por mais que a gente tente mantê-la sob controle, a vida é feita sobretudo de acasos, eventos que não programamos e que podem chegar até nós por uma sucessão de acontecimentos pessoais ou por disposições do lugar e do tempo em que estamos. Em política, isso acontece constantemente e nem sempre podemos dar um jeito para que o acaso se acerte com nossos planos. Resta-nos acreditar sempre no que está na obra de Hilda Hilst: “Ainda que a janela se feche, o certo é que amanhece”.


Cacá Diegues: As bordunas que nos esperam

Um presidente da República devia pensar bastante antes de falar. Sobretudo se vai comentar notícia pública

Se durmo mal à noite, acordo meio distraído, preciso me iludir com manias contemporâneas e caio de boca na internet para ver o que é que há. Então, leio os posts matutinos e me assusto: onde é que estamos? E minha cabeça roda em busca de uma direção, tentando entender: onde é que viemos parar?

Não sei se a deputada Maria do Rosário é mais feia do que madame Macron. Se o pai da ex-presidente do Chile era mais cubanófilo que o pai do presidente da OAB. Se um ministro é mais chucro ou mais ingênuo que o outro, que seria rechaçado no Senado caso fosse indicado para o Supremo. Quem nos surpreende com tais escolhas é o cara em que devemos acreditar sempre, por ser o chefe da nação. Que país é esse?

Quando o Brasil completou 500 anos de invasão europeia, no ano 2000, o professor de Ciência Política Renato Lessa publicou pequeno ensaio antecipativo, quase um conto sci-fi, com o premonitor título de “Maicon da Silva, 45 anos, mulato e evangélico: presidente da República”. No final do século passado (ou no princípio deste) ele nos prevenia de que, em 20 ou 30 anos, o presidente do Brasil poderia ser assim descrito, como estava no título de seu ensaio. Dezenove anos depois, sabemos que Lessa só não acertou a idade e a cor da pele do rapaz.

Quando, no ensaio, o professor diz que não havia nada que eliminasse sua hipótese, acrescenta logo: “ainda que as barreiras à ascensão exijam fôlego heroico”. Mas esse fôlego pode muito bem ser substituído por um certo acaso, produto de um “mercado eleitoral brasileiro gigantesco e aberto a inúmeras trajetórias possíveis”. A do nosso atual presidente é um exemplo.

Bolsonaro, o indiscutível vencedor de 2018, está hoje bem atrás de alguns de seus ministros em matéria de popularidade. Dois deles, o da Justiça e o da Economia, dão-lhe surra épica em pesquisa idônea, produzida pelo mesmo instituto que previu sua vitória no ano passado, o Datafolha.

Acho que um presidente da República devia pensar bastante antes de falar. Sobretudo se vai comentar notícia pública, dessas que todos conhecem ou podem vir a conhecer. Não dá pra sair por aí temerariamente, a julgar a beleza ou a conduta dos outros, às vezes gente de quem nem teve notícia antes de lhe ocorrer comentá-la. Enquanto isso, ocorrências no mínimo lamentáveis nos enchem de vergonha, sem que ele sequer as critique.

Os responsáveis pelo tráfico de drogas e o pessoal das milícias, com o apoio de evangélicos terroristas, têm se unido com violência contra as religiões de matriz africana, destruindo terreiros e imagens sagradas. Em Parada de Lucas, proibiram os moradores de usarem roupas brancas que na visão deles remetem à umbanda e ao candomblé. De janeiro a agosto deste ano, houve 150 ataques a terreiros no Estado do Rio, um aumento de 120% em relação ao mesmo período do ano passado.

A discriminação, seja qual for, está sempre disfarçada por trás de princípios aparentes. Alunos da Escola de Música da UFRJ têm se recusado a cantar obras de Villa-Lobos, Mignone, Guerra-Peixe ou Waldemar Henrique, porque seriam obrigados a usar palavras de religiões afro-brasileiras, como orixá, Xangô, Obaluaê etc. No fundo, se comportam como denunciado por Joaquim Nabuco, para quem a Lei Áurea acabava com a escravidão no Brasil, mas não com as consequências dela em nossa sociedade. Essas ainda durariam por muitos anos.

Os sectários estão sendo incentivados à intolerância pelo prefeito do Rio. Esse homem, que deixa nossas ruas abandonadas, que não conserta o que é público e está danificado, que não faz nada contra roubos e crimes, que detesta samba e carnaval, nossa música e nossa festa, determinou a interdição de revista em quadrinhos em que personagens do mesmo sexo se amam. Uma revista exposta na Bienal do Livro, evento exemplar de tolerância e convivência democráticas. Curioso que uma das estrelas da Bienal é “Bom crioulo”, romance escrito em 1895 por Adolfo Caminha, que narra a história de amor entre um grumete branco e um marujo negro.

Sérgio Buarque de Holanda dizia que, no Brasil, se confunde conservadorismo com atraso. E o atraso está sempre armado, como declarou Bolsonaro: “Se eu levantar a borduna, todo mundo vai atrás de mim”. Olhem só o que pode estar nos esperando.


Cacá Diegues: Seu garçom, faça o favor

No botequim, o valor de quem fala alto será sempre superior ao de quem é capaz de raciocinar sem muito escândalo

Mesmo que o amemos com paixão, o Brasil é um país pouco fácil de se elogiar. Os tolos sempre acreditaram no marketing que nos vende como um paraíso tropical, onde tudo é belo e prazeroso, onde não há conflitos a encarar. Já os mais espertos perceberam a falácia do país da cordialidade e do risonho rosto ao sol, e protestam contra nossas dificuldades, das mais fundamentais às mais prosaicas, para o exercício do amor. O mestre Antônio Vieira, por exemplo, reclamava de nossos mosquitos que não paravam de picá-lo; assim como dom João VI ordenou a mudança para o Rio de Janeiro, porque não aguentava mais o mau cheiro nas ruas da Bahia.

Hoje, parte de nós, ao comentar o que somos, exerce uma lógica peculiar e muito original do que podemos chamar de “cultura de botequim”, que hoje domina a cultura brasileira em geral, depois de longo silêncio cuidadoso de desvalorização e de vergonha do que podíamos ser. Ou vir a ser.

A cultura de botequim se manifesta através de outra especialidade nacional, a “conversa de botequim”, à qual se dedicaram, com diferentes posturas e valores, poetas, romancistas e pensadores sobretudo cariocas. Entre eles, Noel Rosa pode ser considerado o pai da expressão. Grandes artistas como João do Rio, Marques Rebelo ou Nelson Rodrigues, entre tantos outros, nos fizeram conhecer bem esse mundo, em outros momentos do país. Pois, como toda criação dessa natureza, a cultura de botequim se transforma no tempo, conforme o que acontece e a influencia do lado de fora do botequim.

A conversa de botequim se caracteriza pela irresponsabilidade tóxica de seus praticantes, pela impertinência com que tratam assuntos pertinentes. No botequim, não se pensa duas vezes ao preferir a piada à verdade sem graça. Ninguém vacila em inventar um argumento falso para justificar o que pretende afirmar. Não se dá crédito ao que não serve para impor uma razão pouco razoável. Ganhara discussão é a prioridade, mesmo que não se saiba o que está certo ou errado, que não se dê muita importância à vitória. Mesmo que estejamos a espremer uma barata na sola do sapato, faremos isso porque é assim que se faz no mundo real dos heróis. Com um sorriso nos lábios, ainda que disfarçadamente triste.

No botequim, o valor de quem fala mais alto, de preferência aos gritos, será sempre superior ao de quem é capaz de raciocinar sem muito escândalo. No botequim, o que vale mesmo é o tapa lerdo nas costas e o sucesso junto a um público que busca diversão na absoluta normalidade.

O botequim é, antes de tudo, o lugar de seres normais; dos que serão sempre de um só jeito, os que não querem surpreender e não se surpreenderão. O lugar da paz conquistada pela ignorância.

O julgamento de nós mesmos é o da auto desvalorização, ainda que disfarçada pelo galicismo literário a nos garantir que essa é a arma mais poderosa contra quem não acredita em nós. Há sempre uma versão pejorativa para cada virtude que por ventura se descubra em nós.

Hoje, mais do que nunca, o cara no botequim é um machista que coça o saco e cospe no chão, a cultivar linguagem vagabunda e misógina como suprema demonstração de poder e grandeza. Ele não admite mulheres no botequim, porque elas só existem para serem usadas e injuriadas de diferentes modos. A mulher do outro será sempre mais passada, além de suspeita; enquanto a nossa, uma bênção de perfeição e virtude. A conversa de botequim não admite autocrítica, nem revisão da qualidade de matrimônios desgastados.

A cultura de botequim é o clímax da masculinidade tóxica, o supremo instante de humilhação do outro. O cara no botequim é capaz de considerar a morte de uma esposa querida como a libertação do viúvo para a gandaia. A doença fatal não passa de um pretexto para a traição (“sempre desconfiei desse aneurisma, ele nunca me cheirou bem”). E se a vítima chorar no enterro, o botequim dirá que é apenas mimimi, puro disfarce. O importante é uma fodinha por semana; e, se a mulher do outro for menos apetitosa ou sei lá o quê, dizer simplesmente: “Não humilha cara, kkkkkk”. O botequim pensará que vamos aprender e nos acostumar ao sofrimento.