cacá diegues
Cacá Diegues: Gladiador defunto mas intacto
Gláuber Rocha foi uma luz muito intensa
Há pessoas que, quando morrem, não é nem justo que não tenha nada melhor do lado de lá. Semana passada, no dia 22 de agosto, celebramos 39 anos da morte de Gláuber Rocha, nosso maior e mais discutido cineasta brasileiro. É até injusto reduzir seu talento e sua importância à palavra “cineasta”, aprisioná-lo nessa atividade. Gláuber foi tudo o que era possível ser no mundo da cultura, da criação e dos costumes, em seu tempo e para além dele.
Na Bahia, onde nasceu, ele começou sua agitação e fez seus primeiros filmes de curta-metragem, assim como os longas impactantes “Barravento” e “Deus e o diabo na terra do sol”. Além dos filmes e do cinema, Gláuber inaugurou uma vida de ideias e inquietações que o tornariam um pensador indispensável do Brasil e do mundo em que vivia. Segundo Nélson Pereira dos Santos, mestre de toda a nossa geração, “o Cinema Novo é quando Gláuber Rocha chega ao Rio de Janeiro”. Era ele que cobrava, de cada um de nós, a contribuição ao que deveria ser o Brasil nas telas. Ou as telas do Brasil.
É bobagem tentar decifrar os sonhos de Gláuber, tudo o que lhe atormentava como projeto. Gláuber não tinha sonhos, tinha delírios. Delírios tão belos e explosivos, destrutivos e criativos, quanto o mundo em que ele gostaria de ter vivido. Quase no fim de sua vida, em Sintra, Portugal, ele me deu a ler o roteiro de um novo filme que pretendia fazer na Europa. No final desse filme que nunca foi feito, depois de uma guerra planetária de extermínio, envolvendo forças políticas da época, todas sujas e repudiáveis, o mundo simplesmente se desfazia. Na última cena, o casal de heróis navegava em frágil embarcação, em direção à derradeira ilha tropical, onde iriam viver seu amor sozinhos e em paz.
Além da luz que os filmes de Gláuber deitaram sobre seu tempo, seus gestos de insatisfação, em textos contundentes e aparições na televisão, sempre foram decisivos para a formação do que foi o Brasil de seu tempo. A cada escândalo provocado por suas declarações sobre cinema, política ou costumes correspondia uma nova forma de pensar o assunto, ainda que não fosse a que ele sugeria. Gláuber era uma fábrica artesanal de ideias que não se encontravam em livro algum, de nenhuma tendência. Na melhor das hipóteses, ele as confrontava com amigos de confiança, a quem nunca deixou de consultar. Um guerreiro incansável que enchia seus próximos com tanta doçura.
O que em Gláuber chamavam de “loucura” tinha sempre uma clara estratégia; e a estratégia não é um hábito de loucos. Ninguém no mundo, mesmo seus contemporâneos e aqueles que conviveram com ele, jamais entenderá Gláuber completamente, como se acaba entendendo um poema de Jorge de Lima, por exemplo. Ser um mistério permanente, fonte inesgotável de novas revelações e descobertas à medida que o tempo passa, é o que caracteriza os poucos seres excepcionais, que a angústia e a iluminação humanas são capazes de produzir.
Já repeti algumas vezes que Gláuber Rocha foi um cometa que passou em nossas vidas, uma luz muito intensa e bela que atravessou rápido demais nosso firmamento. Tão cedo veremos nada igual; mas também não esqueceremos, nunca mais, o que vimos. Penso que a melhor epígrafe para Gláuber está no que ele mesmo escreveu, em 1978: “A descoberta poética do final do século será a materialização da eternidade”.
Gláuber sempre fará falta. Ele certamente não deixaria passar em brancas nuvens a declaração do embaixador americano, Todd Chapman, em entrevista recente, sobre o 5G, a internet das coisas, a evolução mais radical do universo digital. O leilão da rede 5G no Brasil está previsto para 2021, e Mr. Chapman afirma que, se o Brasil optar pela tecnologia chinesa da Huawei, reconhecidamente a mais avançada hoje, terá que “enfrentar as consequências”. Não gosto do regime chinês e de seu modo de vida, detesto o autoritarismo que, neste momento, se espalha pelo mundo, à direita e à esquerda. Mas o que é que a embaixada americana tem a ver com nosso futuro tecnológico? Gláuber não deixaria barato.
Cacá Diegues: Um culto de crueldade
O aborto, enquanto crime, é uma invenção de católicos conservadores de meados do século XIX
Os antropólogos brasileiros nos falam de nossa formação, a partir do encontro entre os nativos e os civilizados, navegantes sujos e doentes, ávidos por riquezas, moralmente dispostos a tudo para não perder a oportunidade que a vida, Deus ou a sorte lhes davam com o novo mundo, prontinho para ser usado e explorado pela cobiça deles. Do outro lado, estavam, como escreveu Darcy Ribeiro, “a inocência e a beleza encarnadas”, um povo original, tentando entender aquela gente tão diferente. O poder acabou nas mãos dos que chegavam, os que escreveram a história e decretaram o que somos, um povo ao mesmo tempo cruel e generoso.
Hoje, no Brasil, vivemos um culto da crueldade. Não estamos nos referindo apenas aos grupos radicais de direita no poder ou ligados ao poder, que propõem a eliminação dos que não pensam como eles. Estamos falando de hábitos e costumes populares, de inesperadas ações cotidianas, quase sempre espontâneas, às vezes até inocentes.
A mais recente demonstração dessa perda de generosidade, em nome de regras e leis sobre as quais não refletimos, é o caso da menina de 10 anos, de São Mateus, no Espírito Santo, que apareceu grávida em decorrência do estupro sistemático de seu tio, praticado desde seus 6 anos de idade. Durante quatro anos, uma criança sofre tal violência, sob pretextos que a mente perversa do adulto deve ter criado, e grande parte da população pune (ou deseja punir) a vítima.
Segundo nos informa Flávia Oliveira, sempre atenta à desigualdade no país, só em 2018, mais de 21 mil bebês nasceram de mães com menos de 14 anos de idade. É nessa faixa de idade materna que se encontra o maior número de óbitos infantis, determinado pelas condições sociais e de saúde das mães precoces. Nosso Código Penal considera crime a relação sexual com menores de 14 anos, mesmo quando consentida. Conheço uniões com enorme diferença de idade em que os cônjuges são felizes até hoje. É muito difícil legislar sobre o amor, ele é sempre uma exceção. Mas a lei não impede que, no Brasil, quatro meninas nessa faixa etária sejam estupradas por hora.
A capixaba poderia, pelo menos, passar anônima por essa tragédia, no início de sua vida condenada ao sofrimento. Mas o fundamentalismo religioso, hoje exercido de modo medieval por parte de nossas autoridades, não deixou que nem isso ocorresse com essa vítima de nossa crueldade. Uma tal de Sara de muitos sobrenomes, ex-assessora e declarada discípula da ministra Damares Alves, pastora no Ministério da Mulher (?), Família (??) e Direitos Humanos (???), descobriu e deu, em redes sociais, o nome, o endereço da família e as características da menina de São Mateus (que seria negra, pobre e criada pelos avós). Ela anunciou o hospital em que a mãe violentada faria o aborto legal, incentivando grupos religiosos a se manifestar contra a interrupção da gravidez. A menina acabou tendo que deixar o Espírito Santo, indo se cuidar no Recife.
O aborto, enquanto crime, é uma invenção de católicos conservadores de meados do século XIX, estabelecida por motivos políticos e hereditários. Nem Cristo, nem nenhum dos fundadores de sua Igreja, se manifestou sobre o assunto. É difícil estabelecer regras rígidas para essa questão, mesmo que apenas do ponto de vista civil. Mas, em qualquer circunstância, para qualquer civilização, povo ou religião, é claro que o estupro é uma barbárie que não pode ser consagrada como boa origem de uma vida. Muito menos quando se trata de uma criança, que terá sua vida destruída por um erro ou um crime que não foi ela que cometeu.
Os que se manifestaram contra o aborto da menina não foram apenas militantes políticos que estão sendo processados por atividades antidemocráticas ou religiosos ignorantes e intolerantes, mas também autoridades formais de uma Igreja que tem hoje um líder que pensa, o Papa Francisco. Em que país estavam essas autoridades quando tantos meninos e meninas pobres foram mortos por balas perdidas ou bem miradas no alvo? Nunca vi nenhum deles acender velas públicas por essas crianças, como João Pedro, Jenifer, Kauan, Kauã, Kauê, Agatha, Ketellen e muitos outros. Essas, sim, são mortes que podiam ter sido evitadas.
Cacá Diegues: Um cinema para o país
Temos que enfrentar um governo contra a nossa própria existência
Sempre fui um cinéfilo febril. Acho que nunca perdi nenhuma novidade dos três cinemas de Botafogo, onde moravam meus pais, no Rio de Janeiro. Acho que muita coisa do que sei hoje, comecei a aprender com os filmes que vi no Nacional, no Star e no Guanabara. E ainda tive, até o fim de minha adolescência, as férias de verão em Maceió, entre a turma da Avenida da Paz, os fins de semana no cinema São Luiz e as sessões semanais no clube Fênix Alagoana, onde podíamos ver filmes franceses permitidos para maiores acima de minha idade. Depois é que eu ia consultar outras fontes, como livros, mestres e amigos que entendiam das coisas mais do que eu.
O cinema sempre foi, para mim, não apenas uma fonte prazerosa de entretenimento, como também um indispensável instrumento de cultura, capaz de revelar desde a geografia até os costumes, os modos de vida, a ética dos tempos em que vivíamos. A partir das duas primeiras décadas do século XX, o cinema se tornou o pai fundador, o avozinho de uma família de audiovisual que gerou a televisão, o VHS e o DVD, o digital, a internet, o videogame e o streaming, tanta coisa que rola e ainda vai rolar por aí.
Antes de tudo, o cinema é um modo original de contar histórias e de registrar movimentos de formas, cores e sons, esteja tudo isso fora ou dentro de nós mesmos. Quando fazemos um filme, seja ele uma baita produção ou modesta selfie com nosso celular, ele é sempre, ao mesmo tempo, o registro do que existe no mundo e de um mundo que existe dentro de nós. As melhores obras audiovisuais são sempre aquelas capazes de ser essas duas coisas.
A primeira sessão pública de um filme se deu em 28 de dezembro de 1895, num café de Paris, com filmes dos irmãos Lumière, de Lyon. Menos de um ano depois, esses filmes inaugurais seriam exibidos no Rio de Janeiro, numa sala na Rua do Ouvidor, por iniciativa dos irmãos Segreto, ítalo-brasileiros que se tornariam produtores. O cinema foi, portanto, desde o início, um empenho fraterno, uma questão de família.
O cinema nasceu no berço dos anseios progressistas do século XIX, um século de tantas certezas. E foi criado no tumulto alucinante do século XX, um século sem rumo, perdido em tantas batalhas guerreiras e de finanças, que construiu, entre as duas Grandes Guerras, as ilusões do nosso futuro, quase todas fracassadas.
Potencial veículo de um novo individualismo responsável, um individualismo generoso, não marcado pelo egoísmo ou pela invisibilidade do outro, mas pela responsabilidade de cada um por todos, o cinema era a primeira manifestação de uma coisa nova que o homem inventou, para além da arte e do comércio, para o ser humano melhor se conhecer e se expressar.
Quando comecei a fazer filmes, em plena revolução autoral, o cinema era a coisa mais moderna do mundo. O poder de um filme não era medido apenas pelo número de ingressos vendidos, mas também por sua capacidade de fazer girar o mundo, criar novos paradigmas de toda natureza. Desse modo, o cinema americano e sua máquina industrial, teria o que absorver do semiartesanato brasileiro. Ou vice-versa, claro. Talvez seja até por isso que, nessa guerra cultural que nosso governo pratica contra os pensadores e os artistas do país, o cinema venha sendo uma vítima preferencial.
Enquanto cineasta, convivi, às vezes, com governos que, à direita ou à esquerda, tinham planos de nos domar, não levando muito a sério a atividade. À esquerda ou à direita, enfrentamos autoridades que desejavam criar censura prévia de investimentos. Ou, ainda, autoridades que não julgavam necessário ou conveniente haver cinema no Brasil. O governo Bolsonaro é diferente desses dois partidos — este governo é pura e simplesmente contra a existência de um cinema brasileiro e está disposto a tudo, para que isso não aconteça.
Conheci muitos governantes do país que não se interessavam pelo cinema brasileiro. Mas esta é a primeira vez, em meu tempo de vida, que estamos tendo que enfrentar um governo que é contra a nossa própria existência, a existência de um cinema brasileiro capaz de nos representar. Talvez só nos reste torcer para que esses próximos dois anos e meio passem bem depressa. Tomara que passem logo.
Cacá Diegues: Gente é para brilhar
Caetano é uma hipótese de Brasil que gostaríamos que fosse a verdadeira
Para muitos brasileiros, o sol se levanta no fim da tarde. Mas não por preguiça ou enfado da vida, mas porque é essa a hora em que ferve a panela de uma cabeça privilegiada que só pensa em nós. Não por caridade, mas por saber que a solidariedade é a única forma de amor que não implica em propriedade do outro. E assim amamos e somos livres. Tudo o que ele faz, escreve, diz e canta está sempre assinalado por essa ideia, à qual ele parece dedicar vida e obra. Caetano Veloso é uma hipótese de Brasil que todos nós gostaríamos que fosse a verdadeira.
Caetano é um homem de muitos amigos, sem nenhum confidente especial. Não por falta de confiança, mas porque seus segredos estão por aí, a boca larga e pequena, nas letras de suas canções, no que ele diz e escreve. A poesia de Caetano não é nunca molenga, elegias ao que não importa. Ela é sempre o resultado de uma mente em chamas, amorosa e combativa, que não se deixa iludir pelo lugar-comum, mesmo que unanimemente vitorioso. Ele quer sempre saber se o contrário não é melhor. Ou não.
Às vezes, quando penso em Caetano, penso em conversas que já tive com Renata Magalhães (uma das produtoras de seu filme), Antonio Cicero (grande poeta, amigo do peito) ou Susana de Moraes (ela faria 80 anos, no último dia 5, vizinha leonina de Caetano), seus amigos e eventuais colaboradores. Os três adoram a hipótese de que o Brasil seja um ser cultural de caminhos contraditórios e radicais.
Quando é moderno, o Brasil pode ser a vanguarda experimental do mundo. Como foi com Tiradentes, um herói barroco do iluminismo que acordava a humanidade; ou Santos Dumont, que se recusou a registrar a invenção do avião, pois devia pertencer a todo mundo; ou Oscar Niemeyer, para quem Brasília era a concretização em concreto de um modo de viver, em que todos somos iguais. Mas, quando fica para trás, o Brasil é capaz de recuar à mais selvagem Idade da Pedra, produzindo os mais nefastos e bárbaros costumes, além de líderes equivalentes. Caetano foi sempre um dos primeiros, sem nunca resistir a tentar convencer os segundos, já que tudo pode mudar um dia.
Com todo o respeito aos outros admiráveis artistas e intelectuais do movimento, Caetano é seu líder ilustrado, o generoso criador maior do Tropicalismo, praticando-o radicalmente e promovendo-o em que missão estiver. Foi sua obra que o tornou o último estágio do nosso Modernismo, a conclusão de uma operação nacional de criação tão bem-sucedida, a melhor em nossa história, indo de Castro Alves a Roberto Carlos, dos Andrades de 22 aos irmãos Campos do concretismo, de Sousândrade a Leminski, de Villa a Tom.
Tudo isso com extrema consciência (e, às vezes, um certo pesar), como fica claro nesse trecho de seu livro de memórias “Verdade tropical”, de 1997, sobre a canção “Tropicália”, batizada pelo produtor do Cinema Novo, Luiz Carlos Barreto: “Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo”.
Conheci Caetano Veloso no início de 1966, às vésperas do carnaval, no Mercado Modelo de Salvador. Éramos um grupo de cinema que estava na Bahia para participar de um festival, numa época em que os festivais ainda eram raros.
Lá para as tantas, já de madrugada, chegou ao restaurante um menino com um violão embaixo do braço, parecendo muito mais moço do que sua verdadeira idade. Alguém na mesa o conhecia, ele acabou sentando conosco. Mas só se manifestou quando a conversa girou em torno da eterna disputa, então na moda, sobre raízes culturais. Alguns dos nossos nacionalistas do cinema arrasavam com a Jovem Guarda, quando Caetano pegou seu violão e cantou “Quero que vá tudo pro inferno”, num andamento mais lento, mais rebuscado, cheio de descobertas inesperadas. O silêncio se impôs na mesa e ele repetiu a canção muitas vezes. Quando terminou, eu estava aos prantos.
Caetano Veloso nunca mais saiu de minha vida, mesmo quando parecia não estarmos de acordo. Sexta-feira passada, ele fez 78 anos de idade e espero que, para nosso bem, ainda viva o dobro disso. Que nos lembre sempre de que gente é pra brilhar e não pra morrer de fome.
Cacá Diegues: Depois do vírus
‘Novo normal’ talvez seja a descoberta do outro como indispensável
Já saiu no Brasil, traduzido para o português, o novo livro de Thomas Piketty, economista francês, autor do best-seller de uns seis anos atrás “O capital no século XXI”. Esse novo livro, “Capital e ideologia”, além de vender a ideia do autor para um “socialismo participativo”, procura refletir sobre as consequências da praga do novo coronavírus.
Virou irresistível tentação intelectual pensar e prever como será o mundo depois da pandemia. A síndrome é genérica, se fala nisso nas palestras acadêmicas, mas também nos papos de bar ou em festas clandestinas dos que não temem a Covid-19. E é natural e justo que seja assim. De tanta decepção, a Humanidade anda viciada em futuro, não quer saber do passado, e o presente se tornou um assunto cafona, para quem não tem imaginação. Um assunto de pobres de espírito.
A economia será sempre um fator importante na organização social da humanidade. Mas penso que ela não é mais o fator decisivo nas tendências de um tempo. Assim como a religião foi claramente determinante do que nos aconteceu durante a Idade Média; assim como consagramos a razão como leme e critério a partir do Renascimento; a economia comandou o juízo do mundo desde finais do século XVIII, até terminar o XX. Nesse período, o ser humano se fartou de autoglorificação pela capacidade de acumular, de autoconfiança por não lhe faltar nunca o que vender, de autoindulgência por ser capaz de produzir tudo de que precisávamos para mudar o mundo. Penso que o fim desse regime chega com a criação e exacerbação do capitalismo financeiro, onde a produção de bens não é mais a chave da história, mas um sistema de trocas que só absorve a quem já tem e vira desesperança para o resto — os outros.
O “novo normal”, de que tanto temos falado, talvez seja a descoberta do outro como indispensável à nossa sobrevivência, à nossa inevitável solidão. Descobrimos, nesse novo normal, a solidariedade como o amor sem sentimento de propriedade sobre o que é amado. E, isso, o capitalismo financeiro ou o socialismo participativo não são capazes de nos prover.
Não sei adivinhar como será o mundo depois do coronavírus. Não sei nem quando o bichinho vai parar de aporrinhar a Humanidade e, até lá, o que ainda vai destruir pelo caminho. Mas acho que podemos esperar por um mundo mais leve, menos arrogante, em que as grandes navegações não se darão mais entre os continentes, nem nas nuvens de fabulosas aeronaves ou no éter de nossos foguetes intergaláticos. Teremos que viver com coisas aparentemente mais simples, que nos ensinarão a trocar esses estonteantes espaços conquistados pelo encanto do tempo.
Nos anos 1970, os tropicalistas costumavam desafiar, ao mesmo tempo, a crueldade antidemocrática da ditadura militar e a caretice de uma esquerda que não sabia rir. Num debate a que assisti no MAM, entre Caetano Veloso e João Ubaldo Ribeiro, os dois concordavam que a melancolia não era uma atitude revolucionária e, às vezes, era preciso disfarçá-la para não contaminar o consumidor. Acho que foi Ubaldo o primeiro a dizer que “Alegria, alegria”, um hit contestatário de Caetano, com clara proposta de mudança radical na cultura do país, era também um canto de disfarçada tristeza pelo que vivíamos naquele momento. Uma distopia disfarçada em utopia, se isso fosse possível de ser dito.
Não precisamos recuperar o velho tropicalismo, não se trata de voltar atrás. Mas é preciso recuperar a dúvida, desafiar o sistema binário do “ou é isso ou é aquilo”, entender a democracia como o mais humano dos regimes, pois seu resultado objetivo é o mais incerto. E talvez esteja aí a sua beleza intrínseca e, quem sabe, seu fundamento. É preciso virar o jogo e, ao contrário do que já fizemos, disfarçar a grandeza da utopia com gestos mais simples de extrema objetividade.
Hoje, vivemos num mundo em que a economia da China, onde o coronavírus começou seu espalha-bosta, cresceu 3,2% neste trimestre; onde Elon Musk, um dos homens mais ricos do mundo, dono da empresa Tesla, agitadora do mundo virtual, produz carros elétricos; em que hackers russos tentam roubar a fórmula americana da vacina para a Covid 19; onde célebres intelectuais, liderados por Noam Chomsky e J.K. Rowling, publicam manifesto contra o iliberalismo (com i), o ativismo progressista de esquerda; em que o Facebook, uma das quatro maiores corporações dos Estados Unidos, derruba páginas de direita na internet, acusadas de fake news; onde a Huawei, empresa do Sudeste Asiático, disputa com empresas escandinavas a conquista do mundo para o 5G, a internet das coisas, a era da informação mais rápida e absoluta; em que a Apple anuncia que vai lançar um iPhone menor e mais barato, capaz de atender a todos os níveis sociais da população do planeta; onde o World Wealth Report revela que o Brasil, onde se pratica sem pudor o genocídio dos infectados pelo coronavírus, terá, até o final de 2020, cerca de 200 mil milionários; em que, agora que ninguém quer mais saber de petróleo, foram descobertas novas bacias que vão fazer da Guiana uma potência petroleira no mundo. Um mundo em que nada acontece como supomos que ia acontecer.
Cacá Diegues: O que somos afinal
Escolha do melhor jogo no Maracanã está se parecendo com o que fizemos do Brasil em 2018
Para comemorar os 70 anos do estádio do Maracanã, a seção de esportes do GLOBO pediu a 70 especialistas de jornal, rádio e televisão que escolhessem os 70 maiores jogos ali realizados. O ranking foi formado e publicado na semana passada. Segundo está no jornal, o primeiro lugar ficou, por decisão unânime dos jurados, com o Maracanazo, aquele jogo entre Brasil e Uruguai, na decisão da Copa do Mundo de 1950. A equipe brasileira vinha de grandes exibições e goleadas contra o México, a Suécia e a Espanha, enquanto os uruguaios chegavam à final às duras penas. O Brasil era o franco favorito, seus jogadores chegaram a tirar fotos com as faixas de campeão e foram previamente tratados como tal pelas autoridades esportivas e políticas.
Quando nosso time entrou em campo, mais de 200 mil torcedores, representando a população brasileira que estava ligada num aparelho de rádio, se preparando para a festa, o saudaram como inevitável campeão. Aos 10 anos de idade, agarrado ao grande rádio da sala, gritei o nome dos jogadores, como se estivesse no Maracanã.
O Brasil abriu o placar, no início do segundo tempo, estimulando ainda mais as comemorações. Mas a equipe não estava satisfeita com o resultado, precisava repetir o das partidas anteriores, que era o que se esperava dela. Com paciência e sabedoria, os uruguaios perceberam a ansiedade narcísica do adversário e, comandados pelos gritos de Obdulio Varela, um meio de campo parrudão, acabaram virando o jogo. Com 2 a 1 no placar, o Uruguai se tornava campeão do mundo, numa Copa em que só tinha dado Brasil. Apesar de explicável, aquele era um resultado estúpido e injusto, como só o futebol, de vez em quando, é capaz de produzir.
Durante muitos anos, fizemos dessa sombria derrota um exemplo do caráter nacional. Aprendemos a nos conformar com ela, como nos conformávamos com o que, no fundo, os brasileiros deviam ser: um povo que perdia sempre, porque não sabia vencer, não havia nascido para vencer. Apesar do tricampeonato de 1958, 1962 e 1970 (nesse último, derrotamos o Uruguai por 3 a 1), o que importava mesmo era a final de 1950 e, essa, nós nunca mais ganharíamos. O sucesso universal de Pelé era um acontecimento que não nos dizia respeito, quantas vezes o desrespeitamos! Garrincha, sim, podia nos interessar, como exemplo de um gênio bêbado, que morreu cedo e pobre. Um infeliz como todos nós brasileiros. Foi pensando nas consequências de 1950 que Nelson Rodrigues inventou a história do brasileiro que se julga e se comporta como um vira-latas.
Aí chegam esses especialistas e, quando têm que celebrar o maior estádio de futebol do mundo, uma espécie de Piazza di San Pietro do esporte, um Taj Mahal do balão de couro, a Casa Branca do gol, onde grandes craques, para delírio das torcidas, produziram incontáveis e inesquecíveis instantes de alegria e felicidade, pois esses especialistas escolhem, por unanimidade, como o melhor jogo de todos os jogos vistos no nosso Maracanã, exatamente aquele em que mais perdemos e do qual guardamos um justo rancor que já nos fez tanto mal e, quem sabe, vai continuar a fazer se a gente bobear.
E havia, para lembrar, tantos outros jogos que não temos como esquecer. Como o do gol de barriga de Renato, no finzinho do tempo regulamentar, em 1995. Ou o Santos e Milan de 1963. Ou o Brasil e Paraguai de 1969, com as feras do Saldanha que depois, com Zagalo, seriam tricampeãs. Ou o do gol de Maurício contra o Flamengo, dando o campeonato de 1989 ao Botafogo, depois de mais de 20 anos sem títulos (fazendo minha filha de 3 anos pensar que o pai dela tinha ficado maluco). Enfim, há tanto o que celebrar, por que só gostamos de sofrer?
Essa escolha do melhor jogo no Maracanã está se parecendo com o que fizemos do Brasil em 2018. A maioria dos eleitores não estava entusiasmada com as alternativas eleitorais e podia ter razão. Uns 35% deles votaram no vencedor, porque o resto votou em outros candidatos ou não foi votar. Elegemos quem não sabia nos governar e, mesmo muitos que votaram nele, não estão satisfeitos com o que anda acontecendo. Nem piedade dos que estão morrendo do vírus ele parece ter. Já são mais de um milhão de infectados e mais de 50 mil mortos, e a gente não vê o cara tentando consolar uma família, indo a um hospital confortar os doentes, se comover ou, pelo menos, se interessar pela tragédia que caiu sobre o país que ele governa. O pior para ele é que, no futuro, quando forem explicar o que foi a Covid-19, como hoje discutimos a Gripe Espanhola ou a Peste Negra, o principal responsável pelos acontecimentos no país será necessariamente o presidente de então, que falava em gripezinha ou chuvinha: “Você vai se molhar, mas não vai morrer afogado”.
Como estava na coluna de Carlos Eduardo Mansur, enquanto o Flamengo goleava o Bangu, na quinta feira passada, e 22 homens corriam no gramado cumprindo seu ofício, outros 26 seres humanos, a poucos metros dali, eram tratados da Covid-19 no hospital de campanha montado no Maracanã. “O futebol nunca refletiu tanto a nossa sociedade”, escreveu Mansur. Será que o Brasil está condenado a ser isso e somos nós mesmos que o depreciamos sempre?
Cacá Diegues: Delicadeza e doçura
No Brasil, tratamos de espalhar a lorota da mestiçagem, a mentira das boas relações igualitárias
Seja de que natureza for, o racismo será sempre um horror. Da morte de um negro sufocado por um policial branco, às piadas contra chineses de um ministro da Educação, tudo que for negação agressiva da diferença natural entre seres humanos deve ser condenado. Mas o racismo não se manifesta do mesmo modo, entre os diferentes grupos humanos. É preciso consultar essas diferenças, cada vez que devemos reagir a essa depravação moral. Como agora, com o assassinato brutal de George Floyd.
No Brasil, onde o racismo se instalou desde que nossos “descobridores” chegaram às nossas praias em 1500, ele foi da violência selvagem da escravidão secular à malemolência de descendentes de senhores de escravos, que elegeram aspectos da cultura afro-brasileira como capazes de representar a nação. Hoje, os grandes clássicos de futebol são assistidos por uma torcida bastante especial, criada pela reforma que diminuiu e gentrificou o Maracanã, evitando miseráveis gerais. Assim como o samba acabou virando um ritmo de marcha militar, desfilando no Sambódromo de ingresso proibitivo. Entre uma coisa e outra, adotamos a “política do embranquecimento”, inventada por intelectuais na virada do século XIX para o XX, que, sejamos justos, não prescrevia a eliminação de uma raça, mas a sua transformação em outra, uma miscigenação que só existiria no Brasil.
Enquanto nossa fina princesa anunciava a Abolição em praça pública, cercada por nobres e plebeus, na América do Norte uma sangrenta guerra, entre os estados do Sul e do Norte, tinha sido necessária para acabar formalmente com a escravidão. Para as duas Américas, valia a precisa previsão histórica de Joaquim Nabuco: mesmo proclamada a libertação, a escravidão ainda permaneceria uma característica de nosso comportamento. Uma cultura que, para ser eliminada, gestos generosos do poder não seriam suficientes. Como não seria suficiente nosso mito de doçura e delicadeza.
Depois do fim formal da escravidão, os ex-escravos americanos se tornaram um problema para os brancos de origem europeia, a negação de tudo o que pretendiam como nação. No Brasil, ao contrário, tratamos de espalhar a lorota da mestiçagem, a mentira das boas relações igualitárias. Enquanto lá os negros iam se tornando adversários do poder, aqui eram obrigados a pensar que faziam parte da sociedade, sem restrições. Graças à energia do capitalismo americano, então emergente, lá os negros podiam ser heróis individuais, como o foram, de Jesse Owens a Michael Jackson, de Martin Luther King a Barack Obama. No Brasil, Pelé foi sempre o solitário exemplo de nosso sucesso no assunto. Aqui, preferimos tratar o gesto injusto contra um negro, não como fruto de uma discriminação; mas como reação ao comportamento inadequado do indivíduo, independente da cor de sua pele.
É claro que o crime de Minneapolis nos leva a uma justa e total solidariedade com sua vítima, George Floyd. Mas, naquela semana de sua morte estúpida, a polícia carioca havia liquidado, como sempre faz, dezenas de cidadãos negros, inclusive crianças, apenas por estarem onde não deviam estar. A vítima mais recente fora o menino negro João Pedro, de 14 anos, morto na casa de um vizinho onde brincava, com quatro tiros dados comprovadamente pelas costas. Pelas costas, como em geral acertamos nosso racismo bem peculiar.
A Cinemateca Brasileira, sediada em São Paulo, está ameaçada de fechar, vítima do desinteresse do governo federal, do qual depende. Segundo Mônica Bergamo, da “Folha de S.Paulo”, as autoridades afirmam que vão levar meses para levantar os recursos para mantê-la e, assim, os filmes ali depositados apodrecerão. Ora, o governo federal acaba de repassar cerca de 85 milhões de reais do Bolsa Família para a Secom, a fim de alimentar sua propaganda. A Cinemateca precisa de muito menos, e o governo precisa cumprir com os encargos da União. Ou teremos outra tragédia por incúria, como a que destruiu o Museu Nacional.
Os amigos da Cinemateca costumam dizer que ela foi infectada por uma Covid-19 e está na UTI. É preciso providenciar um respirador, como a prorrogação, por uns meses, do contrato com a Acerp, responsável por sua administração. Eles estão liderando um crowdfunding para pagar aos funcionários que não receberam seus salários, nesse 2020. A Cinemateca Brasileira é uma das mais respeitadas do mundo, basta ver a quantidade e a importância das instituições internacionais que acabam de assinar manifesto a seu favor. Ela é uma memória do país, com imagens e sons registrados para que saibamos como ele é e como queremos que seja. Um museu nacional do olhar.
Cacá Diegues: O Ministério de Ontem
Está tudo tão antigo, tão ligado a ideias que pareciam mortas e enterradas, a ações já tentadas e vencidas em outros tempos
Tem dias que a gente acorda meio molenga, dá uma olhada nas notícias on-line, lê umas coisas nos jornais e fica tentando descobrir em que ano estamos. Está tudo tão antigo, tão ligado a ideias que pareciam mortas e enterradas, a ações já tentadas e vencidas em outros tempos, que, durante uns segundos, a gente pensa que segue amarrado a um sonho que não termina. Sonho, não. Pesadelo.
Corre pelo mundo uma pandemia danada, matando gente em tudo que é continente. Na China, onde o vírus primeiro apareceu, parece que está tudo sob controle. O que não acontece ainda na Europa, que está quase chegando lá. No Sudeste Asiático e na Nova Zelândia estão os heróis da humanidade, intrépidos vencedores do vírus diabólico. Ele é o único inimigo que devíamos estar enfrentando com empenho, todos juntos, unidos e inseparáveis, porque pode acabar com todos nós, sejamos de que partido formos. De direita, de esquerda ou de todas as tendências de centro. O vírus só reina onde não se tem nenhuma consciência política disso, ali está a crise aguda.
Na América do Norte, um presidente insensível, que só pensa na reeleição cada vez mais difícil, odiado por todo mundo que ainda crê na viabilidade do amor, resume sua participação na guerra contra o vírus a crises de mau humor com os que censuram suas mentiras virtuais. E, na parte de baixo do continente, a América do Sul inteira fecha suas fronteiras para o perigo que vem do Brasil, isolado dali e do mundo. De nosso país, é que podem chegar os perigos da Covid-19 para nossos vizinhos de língua espanhola, que já tiveram muita inveja de nós e de nosso jeitinho esperto de viver. Hoje, eles nos evitam, como se fôssemos apenas amantes protetores e fiéis do vírus diabólico. A porta aberta para que eles invadam a vizinhança.
As notícias da manhã me levam a um mundo agendado por uma espécie de Ministério de Ontem, onde a política se repete numa evidente tentativa de golpe de Estado, comandado por gente doente e doida, desta vez eleita, mesmo que ocasionalmente e por engano. Eles não só não nos deixam pensar na luta contra o vírus, nos concentrarmos na defesa de todos nós contra a “gripezinha”, como agem contra toda tentativa de enfrentar o bichinho maldito. Como se o vírus não existisse e não estivesse atrás de nós, é tudo invenção desses comunistas. Enquanto isso, brincam de espingarda na gravata e gritos apopléticos de horror, cada vez que são apanhados em flagrante.
Como não temos partidos em que podemos confiar, com os quais nos identificamos e a eles seguimos, cada vez que temos uma eleição decisiva ficamos diante de escolhas que não sabemos por onde analisar. No meio do caminho, somos muitas vezes obrigados a topar a violência de um impeachment, afastando do governo, por meio de manobras de salão, quem foi eleito pela simpatia espontânea da população. Nas duas últimas vezes em que isso aconteceu na política brasileira, o eleitor já não tinha muita confiança em ter acertado em sua escolha. E isso foi o que nos salvou de uma crise mais longa e mais séria.
O capitão foi eleito como uma reação da população aos 15 anos do oposto no poder, por causa de grave decepção popular. O número de eleitores arrependidos hoje é imenso. Arrependidos, não. Eleitores que simplesmente deploram não lhes ter sido dada opção mais sã e mais sólida, como alternativa. O primeiro sinal que tive do resultado futuro da eleição de 2018 foi-me dado pelos motoristas de táxi. Todos iam votar no capitão. Agora, antes da quarentena, todos afirmavam sua decepção com o voto que deram. Mas sempre acrescentando a pergunta melancólica: mas eu ia votar em quem?
A nós, que prestamos mais atenção, sempre nos ocorreu o que podia acontecer. Ou ninguém se lembra que, graças aos apresentadores do “Jornal Nacional”, os espectadores não viram as páginas abertas da “cartilha sexual” que o Ministério da Educação do governo anterior havia preparado para as crianças, onde a chupeta tinha uma forma de pênis? Foi o casal de jornalistas que não deixou que o então candidato mostrasse a cartilha pervertida, típico objeto de fake news, para as câmeras.
Em grande parte, quem ganhou a eleição graças a esses disparates receia que eles sejam agora criminalizados.
Insisto que, se o cara foi eleito democraticamente, mesmo que por engano (a democracia, às vezes, também se engana), temos que respeitar esse resultado, sempre atentos ao que ele pode aprontar. Serão mais dois anos e meio de desacertos, sustos e ameaças. A não ser que ele pise na bola mais gravemente, o que se há de fazer?
Cacá Diegues: A estratégia da mentira
Militantes brasileiros do autoritarismo armado se dedicam à fabricação inesgotável de fake news
Todo mundo mente nesse mundo. Quando a gente é criança, mesmo que ninguém nos ensine a mentir, a gente mente. Às vezes, por motivos até louváveis, como livrar a cara de um amigo ameaçado por meninos da turma da namorada recém-conquistada. Outras, para contar vantagens inconsequentes, como na qualificação exagerada do pai ou de um tio. Pode-se mentir também por excesso de imaginação, impossível de ser contida.
Na minha infância, em Maceió, uma senhora negra tomava conta dos filhos de meus pais, narrando estórias maravilhosas para nos fazer dormir. A mim, por exemplo, Bazinha me contava as aventuras do Zumbi dos Palmares que, entre outras virtudes empolgantes, sabia voar, lá pela Serra da Barriga, perto de nossa cidade. Mais tarde, lendo de Monteiro Lobato a Ariano Suassuna, acabei verificando decepcionado que alguns heróis desses autores contavam estórias mais audaciosas que as da Bazinha. Isso para não falar dos livros de João Ubaldo Ribeiro, que li muito mais tarde, claro.
A mentira é uma característica da civilização humana e nasceu com a própria Gênesis, quando Adão e Eva tentaram iludir o Senhor, sobre terem experimentado do fruto proibido. Ou, que me desculpem a ousadia, quando o próprio Senhor ordenou a Abraão que sacrificasse, à sua glória, o filho Isaac. E era apenas uma prova de fé. Dentro ou fora de Livros Sagrados, em louvor ou não de deuses e senhores de nossas almas, a mentira se estabeleceu na cultura humana, como uma característica dela e só dela. Você já encontrou algum animal mentiroso? Nenhum deles é capaz de mentir. Só nós.
Como tudo que é humano, a mentira serve ao bem e ao mal, depende de quem e para o quê a utiliza. Foi impulsionado pela mentira organizada que Adolf Hitler se impôs ao povo alemão. Quando alguns de seus colaboradores se recusaram a apoiar o projeto de guerra para ocupação da Europa, militantes nazistas trataram de espalhar que a esposa do general Blomberg, ministro da Guerra e principal opositor ao plano guerreiro, tinha sido prostituta e que a mãe dela fora dona de um puteiro.
Até meados da Segunda Guerra Mundial, Hitler nunca teve o Exército que proclamava ter, enganando o mundo e o próprio povo alemão com exibições falsas e falsos desfiles em que soldados e equipamentos de guerra se repetiam. Na verdade, a anexação dos sudetos, as incorporações da Renânia e da Áustria, assim como o desmantelamento da Tchecoslováquia, preliminares da Guerra, não tinham sido propriamente vitórias militares, como Hitler afirmava para convencer os alemães de sua força e de seu poder. Foi com mentiras sucessivas, como essas, que Hitler desmantelou toda a estrutura democrática da Alemanha. E, com elas, quase faz a suástica cobrir o continente europeu inteiro.
Esse uso esperto da mentira, criada com certa astúcia, é a mesma estratégia usada pelos bolsonaristas no Brasil. Além de afastar de perto dos fatos políticos perigosos democratas, atropelando-os ou simplesmente desmoralizando suas decisões, os militantes brasileiros do autoritarismo armado e mentiroso se dedicam à fabricação inesgotável de fake news. Chegaram a anunciar, por redes sociais, que os caixões que vemos serem enterrados pelo Brasil afora, fazendo sofrer tanta gente, estão vazios ou carregados de pedras. O desfile de caixões serve apenas para agravar as consequências irrelevantes da “gripezinha”.
De tanto se dedicar às porradas inconsequentes e às picuinhas tão vazias sobre o governador de São Paulo, Bolsonaro acabou se tornando o cabeça de ponte no lançamento da candidatura de João Doria, para 2022. Ninguém melhor para promovê-lo. O que mais nos confunde é que a ideologia do PR não tem muita tradução lógica em seus atos. Agora mesmo, ele vetou, mais uma vez, a proteção ao audiovisual brasileiro na televisão paga, pois isso nos prejudicaria a sorte que temos de assistir às formidáveis obras estrangeiras (sobretudo americanas) que elas, as emissoras, nos oferecem diariamente. Um gesto de extremo “globalismo”, realizado por um político que não perde a oportunidade de se declarar antiglobalista. E aí, Olavo de Carvalho, você não vai se manifestar? Ou o guru talvez esteja se reservando para a estranha defesa da cloroquina, um milagroso remédio para a Covid-19, praticamente vetado por todos os médicos do mundo.
O organizado serviço de fake news, em todas as redes sociais, promovendo desprezo e desrespeito pela ciência, parece uma campanha sem direção. Não havendo um centro de discussão, nem um alvo iluminado para onde se destina, só existe a trajetória e, portanto, o desejo de crise, estado humano que se caracteriza pela possibilidade de várias alternativas propulsoras. Apenas o capricho do poder.
Cacá Diegues: Sempre demais
Foi como se Moro estivesse reescrevendo um final de filme
Uma das cenas mais comoventes na história moderna do audiovisual brasileiro está na despedida de um jovem casal, na novela “Totalmente demais”, de Rosane Svartman e Paulo Halm, atualmente em reprise, às 19h, na TV Globo. Aquela é a última noite juntos de Eliza (Marina Ruy Barbosa) e Jônatas (Felipe Simas), no amplo salão de poltronas abalroadas, iluminado por luzes frouxas e com cartazes esquecidos pelas paredes, de um cinemão abandonado onde eles vivem. O rapaz dá à moça, como presente de despedida, a primeira sessão de cinema da vida dela, exibindo pedaços de película que achou por ali e juntou, trechos dilacerados de “Luzes da cidade”, filme de Charles Chaplin, o Carlitos.
Como o final do filme não estava entre os restos que Jônatas havia encontrado, ele conta a Eliza um que ele mesmo inventara. Ela o recusa e cria sua própria versão, o desenlace adorável que julga mais coerente com o que vira e imaginara. Naquela noite, eles finalmente transam, a primeira vez de Eliza. Há tempos não me emocionava tanto com uma construção dramática que, materializando um filme possível, poetizasse de tal maneira o cinema como arrebatamento.
Vivemos num país em que 100 milhões de cidadãos não têm esgoto tratado no lugar em que moram, a mais de 35 milhões lhes falta água, 12 milhões estão desempregados, e todos morrem de doenças que, em muitos outros países, já foram até extintas.
Quando o governo oferece, a esses cidadãos, um salário emergencial, para que possam continuar a carregar as pedras da sociedade, paga o vexame de descobri-los invisíveis, sem saber onde vivem ou por onde andam, sem nome e, imagine!, sem CPF. Vivemos num país em que a realidade impede qualquer ilusão, em que o cinema, para ser bom e valer a pena, parece condenado a ser cruel.
Vi a entrevista coletiva do ex-ministro Moro como um rompimento com essa hipocrisia social. Ali, um herói da Lava-Jato, com peito para mandar prender um ex-presidente tão popular, nos dizia que se enganara e que jogara fora, sem volta, seus 22 anos de magistratura tão bem-sucedida, em nome de uma ilusão que jurava sincera. Como se Moro estivesse reescrevendo um final de filme com o qual não contara, sem o mesmo entusiasmo ilusionista de Eliza. Mas certamente com a mesma fé no que bate na tela.
Desta vez, o vilão não apareceu em cena, como tantas outras vezes, em tantos outros filmes. Ele reapareceu mais tarde, em mais uma entrevista coletiva em que ninguém tem o direito de fazer perguntas. O presidente Bolsonaro, cercado por seus ministros, alguns muito tensos, negou quase tudo o que o demissionário dissera de manhã. Mas nem tudo. Por exemplo, deixou no ar a história de que exigia tomar conhecimento das investigações do STF no processo das fake news e no das manifestações antidemocráticas. A certa altura, me lembrei de matéria da “The Economist”, a revista de quem acredita que o capitalismo ainda pode se modernizar, chamando-o de “BolsoNero”. Um blockbuster — de produção caseira.
Todo país tem que honrar suas Forças Armadas. Depois dessa pandemia da Covid-19, então, o mundo será necessariamente muito diferente do que foi antes dela. Nossas Forças Armadas, no estado em que estiverem, terão um papel decisivo na construção do novo normal, para dentro e para fora da nação. Mas nosso capitão parece não entender assim, pois está sempre cobrando delas uma espécie de indiscutível apoio pessoal. Logo ele, que foi reformado tão cedo e chamado pelo general Ernesto Geisel de “um caso fora do normal, um mau militar”.
O Brasil precisa encontrar seu rumo, como Eliza e Jônatas procuraram o seu. Com empenho, mas também com uma certa modéstia para saber recuar ou avançar, conforme o que for necessário. O fundamental é que o país se construa comovente e para todos, como esse audiovisual, que Bolsonaro tanto despreza e prejudica. Somos sempre demais.
Cacá Diegues: O delito maior
Numa hora em que precisamos nos livrar da peste planetária, o ministro foi vítima de suas virtudes
E lá se vai o Mandetta embora. Numa hora em que mais de 2 milhões de pessoas, no mundo inteiro, estão infectadas pela Covid-19, e por volta de 150 mil já morreram. Numa hora em que precisamos nos livrar da peste planetária, o ministro foi vítima de suas virtudes. Como a defesa intransigente do distanciamento social, um dos motivos pelo qual, neste momento, se tornou o homem público mais amado do Brasil (76% de aprovação popular). Na quinta-feira passada, dia de sua demissão, três discursos nos contaram o que estava acontecendo.
No primeiro depoimento, um ministro, virtualmente demitido há muito tempo, sorria glorioso, satisfeito com tudo o que propusera, inclusive a política que havia provocado a sua demissão. Esperei ouvir, a qualquer momento, o célebre pensamento do padre Antonio Vieira, que entendia dessas coisas: “Nessa terra, não há delito maior do que ser o melhor”. Mandetta convocava seus auxiliares, sobretudo os mais fiéis, a cooperarem entusiasticamente com o nomeado, os incentivava a colaborar com o novo ministro. No outro, o novo ministro improvisava uma fala técnica, um pouco convencional, justificável pelo pouco prazo da decisão. Nelson Teich expôs um programa muito pouco dessemelhante ao do exonerado. E completava com uma declaração de “alinhamento” que, por contraste com o que dissera, só podia ser para acalmar o ego excitado do chefe.
Entre os dois depoimentos, estava a figura principal do espetáculo, o protagonista do drama em cena, o nosso presidente Jair Bolsonaro. Todo mundo tem o direito (e até mesmo o dever) de procurar ser reconhecido pelos outros. Essa obsessão pelo sucesso pessoal não é necessariamente um sinal de psicopatia. Pelo contrário, ela pode até ser considerada uma característica natural do ser humano, que precisa ser domada para que ele possa viver em sociedade, outra característica natural do ser humano. O limite dessa obsessão é o reconhecimento do lugar do outro. Isso, porém, não estava no discurso lento e sem entusiasmo de Bolsonaro, como se estivesse dopado pelas circunstâncias, apesar do tratamento respeitoso com o demitido.
Para Bolsonaro, o debate não é nunca o esclarecimento entre duas ou mais afirmações distintas e opostas em conflito, mas a imposição de um poder sobre outro. De preferência, do mais forte sobre o mais fraco. E o mais forte, para ser o mais forte, tem sempre que sair vitorioso. Essa é a sua regra do jogo.
O que impressiona no ego de Bolsonaro é a sua capacidade de fazer o que lhe é visivelmente desagradável, para poder prejudicar aqueles que o incomodam. Se Mandetta tem enorme popularidade por sua política de saúde, é preciso então fazer o contrário do que ele sugere fazer. Mesmo que seja apenas para implicar com ordenamentos que não tenham sido promulgados por ele. Não conheço o presidente pessoalmente e sei que Bolsonaro jamais me daria um depoimento sobre o assunto. Acho que a ninguém. Mas não vejo nele, em seu rosto ou nas suas mãos, em seu corpo nervoso ou em seus sorrisos forçados, em seus diversos tiques faciais ou no que for, nenhum prazer em abraçar, dar a mão, beijar a testa de quem quer que seja, homem ou mulher, jovem ou idoso, gente bonita ou feia, quando o presidente sai às ruas para provocar aglomerações. Vejo, em seu comportamento, muito mais um recado de sacrifício aos correligionários, do que de algum prazer. Às vezes, quando assisto àquelas cenas na televisão, corro até o perigo de sentir pena do coitado.
Os delírios de Bolsonaro são sempre mais ricos quando se tornam limítrofes. Depois de uma tentativa de sobretaxar a crescente energia solar no país, Bolsonaro, no dia 7 de janeiro deste ano, em encontro com jornalistas (classe de gente que ele ama, mesmo que fale tão mal), quando perguntado pelo assunto, olhou para cima e disse: “Sol, fique tranquilo, não serás taxado”. O jornalista Elio Gaspari, no dia seguinte, publicou um artigo em que dizia: “O reino das trevas quis taxar o sol”.
Os amigos e colaboradores do presidente devem participar intensamente da construção de sua personalidade. No ano passado, em cerimônia no Ministério das Relações Exteriores, o chanceler Ernesto Araújo, de estrita confiança sua e de seus três filhos, comparou-o, com os olhos marejados, a Jesus Cristo. Há quem garanta que Bolsonaro também verteu algumas tantas lágrimas de emoção.
Cacá Diegues: O normal como problema
Vírus é resposta, embora brutal, à nossa pretensão, uma chamada de atenção aos limites de nossa íntima convivência
Não pensem que um dia a gente volta ao normal. Não é só que o vírus ainda pode matar muita gente, não sei quantos. Mas é que o mundo já não é mais o mesmo, e nunca mais será. Tudo muda tão depressa, diante de nossos olhos. O que aprendemos de manhã, já não serve para o fim da tarde. A cada momento, o vento sopra de um modo diferente para nos dizer o que se passa mais adiante ou um pouco atrás de nós.
Esse tempo do vírus é um tempo de desgraças, não é pra gente comemorar nada. Só um louco ou um ignorante pode preferir isso ou aquilo, no meio da incontrolável tempestade. Nós temos é que ficar atentos, vigiar a direção para onde o barco vai, depois que ela passar.
Levamos a vida provocando a Natureza, como se ela tivesse que nos obedecer e se manter sob nosso controle para sempre, agora que sabemos quase tudo dela. O vírus é uma resposta, embora brutal, à nossa pretensão, uma chamada de atenção aos limites de nossa íntima convivência. Como foram no passado a peste na Guerra do Peloponeso, a Negra no fim da Idade Média, a Gripe Espanhola na Primeira Guerra Mundial. É como se a Natureza, com muita sofisticação apesar da brutalidade, estivesse nos dizendo que fomos longe demais.
Bertrand Russel nos disse que “o amor é sábio e o ódio é tolo”. Mas nós, há tanto tempo, tentamos construir um mundo baseado na tolice do ódio, contra os semelhantes que sempre julgamos mais frágeis e talvez inferiores. Invisíveis eram as famílias moradoras de favelas, elas podiam ser substituídas de pronto em nossos serviços, tipo varejo ou mão de obra. Agora que o vírus ameaça maltratar preferencialmente essas populações, indefesas porque ignoradas, clamamos contra a hipótese e assustados pedimos socorro. Porque não podemos ficar sem seu papel, já milenar, de justificar por inércia nossos privilégios, nosso conforto pessoal. Com a pandemia se alastrando, os políticos procuram proteger a quem representam, fazendo sobreviver os que nos servem. Ao contrário do que podíamos supor, os invisíveis se tornam visíveis para seguirem servindo os mesmos, nos novos tempos.
E ainda nos dizem para evitar a “politização do vírus”. Está bem, não temos que politizar o vírus para defender ou atacar mandatos e candidaturas, não temos que nomear heróis, graças à maldade do vírus. Mas como podemos saber quem nos faz bem e quem nos faz mal, se não podemos politizar o evento? A ialorixá e educadora Wanda d’Omolú, em recente entrevista ao GLOBO, nos iluminou com a declaração de que “a Terra está passando por uma limpeza” e que “daqui a pouco, ela estará limpa e nós teremos oportunidade de fazer diferente”. Portanto, diz ela, “não podemos voltar ao normal, porque o normal era justamente o problema”.
O normal era países em guerra permanente, uns sufocando os outros; era a divisão do mundo entre uma esquerda e uma direita que, tirando muito pouco, era tudo a mesma coisa; era a superioridade da abstração religiosa de uma ideologia sobre a realidade; a exploração do trabalho, sem reconhecimento ou recompensa; a imensa desigualdade social e o racismo, que quase sempre a justifica; o julgamento do sonho, como uma negação do mundo real em que queremos viver. Tudo isso que faz da humanidade um projeto tão bonito, que ainda não deu certo. Não posso achar que voltar a esse normal seja um avanço, uma vitória da felicidade que buscamos durante a vida inteira.
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Em 30 de março, o Sinditelebrasil, sindicato das empresas de telecomunicações, pediu e conseguiu, junto ao Tribunal Regional da 1ª Região, uma decisão liminar que suspende o recolhimento da Condecine pelas empresas do setor. A Condecine é uma taxa devida por essas empresas, para o desenvolvimento do audiovisual brasileiro, responsável por 80% do orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Como todo mundo sabe, Condecine e FSA são responsáveis pela existência atual de nosso cinema. Sem eles, em breve, não existirão mais filmes brasileiros de qualquer natureza.
Já as empresas de telecomunicações no Brasil nunca ganharam tanto dinheiro como agora. Sobretudo depois de declarado o justíssimo isolamento social, a quarentena que nos faz usar, muito mais vezes ao dia, nossos telefones e outros meios de comunicação. O crescimento do faturamento dessas empresas, nesse período, é de 300% .
As teles alegam à Justiça que, nesse momento de crise, seus lucros devem ser preservados como garantia de “manutenção de empregos”. Que tal comparar esses riscos com os de produtores, distribuidores e exibidores brasileiros, com a totalidade de salas de cinema no Brasil fechadas por causa dessa mesma crise? Está aí um bom exemplo do tal “normal” a que eles querem sempre voltar.