caatinga
Metade da superfície terrestre é ocupada por biomas não florestais
Apenas 12% deles são designados como áreas protegidas, tornando urgentes iniciativas para preservar biomas não florestais
Por WWF-Brasil
Um novo atlas mostra que 54% da superfície terrestre do mundo consiste em biomas diferentes das florestas. São áreas que abrigam alguns dos habitats mais preciosos da Terra e sustentam centenas de milhões de pessoas. É o caso, por exemplo, do cerrado brasileiro, dos pampas e da caatinga.
Mas, até agora, esses biomas não florestais raramente figuravam nas agendas internacionais: apenas 10% dos planos climáticos nacionais (como parte do Acordo Climático de Paris) incluem referências a essas áreas, ao passo que 70% incluem referências a florestas. Embora sejam conhecidos por desempenhar um papel fundamental no armazenamento de carbono, como habitat para diversos animais selvagens e origem para alguns dos maiores rios e pântanos do mundo, parte da razão pela qual foram subvalorizados é a falta de dados consolidados sobre sua extensão e valor.
O Rangelands Atlas preenche parte dessa lacuna. Biomas não florestais (rangelands, em inglês) consistem em sete biomas, incluindo pastagens, savanas, desertos, arbustos e tundra. O atlas, que engloba 16 mapas e será continuamente atualizado, foi publicado em conjunto pelo International Livestock Research Institute, a União Internacional para a Conservação da Natureza, o WWF, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e a Coalizão Internacional de Terras, com contribuições da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.
Cerrado
O Cerrado brasileiro é um bom exemplo da importância dos biomas não florestais. Uma das regiões de maior biodiversidade do mundo, estima-se que possua quase 5% de todas as espécies no mundo e 30% da biodiversidade do país. Ele também detém vastos estoques de carbono, principalmente no subsolo: aproximadamente 13,7 bilhões de toneladas.
O processo de conversão do bioma impediria, por exemplo, o cumprimento dos compromissos internacionais do Brasil nas Convenções do Clima e de Biodiversidade. Porém, sofrendo com a degradação, o Cerrado também abriga um dos seis locais reconhecidos pelo Estado como em processo de desertificação.
“Até o momento, os esforços de conservação e desenvolvimento têm se concentrado nas florestas, deixando de lado outros ecossistemas valiosos. Este atlas nos mostra, pela primeira vez, a extensão dessas áreas e destaca que devemos parar de negligenciá-las se quisermos enfrentar as crises climáticas e naturais do mundo e, ao mesmo tempo, atender de forma sustentável à demanda global de alimentos. A proteção, gestão e restauração dos ricos e variados ecossistemas que compõem os biomas não florestais são fundamentais e sua relevância deve ser refletida nas agendas de conservação global”, declarou Karina Berg, líder da iniciativa global Grasslands and Savannahs, do WWF.
Um exemplo recente de esforços de conservação dos biomas não florestais é o projeto CERES, iniciativa da União Europeia com as organizações WWF-Brasil, WWF-Paraguai, WWF-Holanda e ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza). Com quatro anos de duração e 5,5 milhões de euros de investimentos, ele visa encontrar, testar e alavancar soluções inclusivas de conservação da paisagem no Cerrado brasileiro que possam ser replicadas em outras savanas ao redor do mundo.
Boa parte do restante está ameaçada pela escalada da conversão, especialmente para agropecuária. Mais uma vez, o Cerrado brasileiro é um bom exemplo: entre 1 e 27 de maio deste ano foram desmatados 870 km², um aumento de 142% em comparação aos 360 km² registrados no mesmo período em 2020. No acumulado do ano, foram destruídos 2.065km² entre 1 de janeiro e 27 de maio deste ano, contra 1.685km² no mesmo período do ano passado - um aumento de 22%.
Devastação
A aceleração da devastação também é evidente quando se considera o acumulado desde agosto - quando começa a contagem oficial da temporada de desmatamento no Brasil. De agosto até o fim de maio, o Cerrado teve 3.868 km² destruídos, um aumento de 30% em comparação ao mesmo período em 2020, quando foram desmatados 2.981km². Entre agosto de 2019 e julho de 2020 a destruição foi de cerca de 7,3 mil km², um aumento de 12,3% em relação ao mesmo período do ano anterior.
O atlas mostra que nos últimos três séculos mais de 60% da vegetação nativa e florestas foram convertidas - uma área maior que a América do Norte - e uma área aproximadamente do tamanho da Austrália (7,45 milhões de km²) agora é usada para plantações. Essa mudança no uso da terra contribui para a crise climática e o atlas mostra que as áreas não florestais também sofrerão com o aquecimento global.
Os efeitos drásticos ocorrem em uma área com o dobro do tamanho da Europa, com a natureza sendo perigosamente desestabilizada e a capacidade de produzir alimentos, combustível e fibras sendo reduzida. Os novos dados do Atlas podem ajudar os formuladores de políticas a gerenciar melhor esses biomas, com grandes benefícios para as pessoas, a natureza e o clima.
No segundo semestre de 2021, líderes governamentais participarão de conferências anuais para as três Convenções do Rio: sobre mudança climática (UNFCCC), biodiversidade (UNCBD) e desertificação (UNCCD), juntamente com a primeira Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU. A publicação vem a público ao início da Década das Nações Unidas para a Restauração de Ecossistemas, podendo ajudar a orientar governos, organizações internacionais, ONGs e doadores na restauração, proteção e melhor gestão dessas áreas.
NE: mudança do clima acelera criação de deserto do tamanho da Inglaterra
O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado em 9/8, reforça que o Brasil abriga uma das áreas do mundo onde a mudança do clima tem provocado efeitos mais drásticos: o Semiárido
João Fellet /BBC News Brasil em São Paulo
O relatório aponta que, por causa da mudança do clima, a região — que engloba boa parte do Nordeste e o norte de Minas Gerais — já tem enfrentado secas mais intensas e temperaturas mais altas que as habituais.
Essas condições, aliadas ao avanço do desmatamento na região, tendem a agravar a desertificação, que já engloba uma área equivalente à da Inglaterra (leia mais abaixo).
Criado na ONU e integrado por 195 países, entre os quais o Brasil, o IPCC é o principal órgão global responsável por organizar o conhecimento científico sobre as mudanças do clima.
O documento apresentado nesta segunda (AR6) é o sexto relatório de avaliação produzido desde a fundação do órgão, em 1988.
'Área seca mais densamente povoada'
"O Nordeste brasileiro é a área seca mais densamente povoada do mundo e é recorrentemente afetado por extremos climáticos", diz o relatório.
O IPCC afirma que essas condições devem se agravar: se na década de 2030 o mundo deve atingir um aumento de 1,5°C em sua temperatura média, em boa parte do Brasil os dias mais quentes do ano terão um aumento da temperatura até duas vezes maior.
Em várias partes do Semiárido, isso significa verões com temperaturas frequentemente ultrapassando os 40°C.
Hoje, segundo o IPCC, o mundo já teve um aumento de 1,1°C na temperatura média em relação aos padrões pré-industriais.
Para limitar o grau do aquecimento, é preciso que os países reduzam drasticamente as emissões de gases causadores do efeito estufa — como o gás carbônico, produzido pelo desmatamento e pela queima de combustíveis fósseis, e o metano, emitido pelo sistema digestivo de bovinos.
Morte da vida no solo
Para o meteorologista e cientista do solo Humberto Barbosa, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), temperaturas extremas põem em xeque a sobrevivência no Semiárido de micro-organismos que vivem no solo e são cruciais para a existência das plantas.
Há dois anos, Barbosa diz ter encontrado temperaturas de até 48°C em solos degradados no interior de Alagoas.
"A vegetação não crescia mais ali, independentemente se chovesse 500 mm, 700 mm ou 800 mm. Não fazia mais diferença, pois toda a atividade biológica do solo não respondia mais", afirma.
Sem vida no solo, aquela região se tornou desértica, como tem ocorrido em várias outras partes do Semiárido.
Na Ufal, Barbosa coordena o Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), que desde 2012 monitora a desertificação no Semiárido.
Em 2019, o laboratório revelou que 13% de toda a região estava em estágio avançado de desertificação. Essa área engloba cerca de 127 mil quilômetros quadrados.
"Na nossa região, naturalmente não haveria um deserto, só que a gente tem hoje um deserto", ele diz.
Barbosa explica: segundo a ciência, climas desérticos (ou áridos) são aqueles onde o índice de chuvas é inferior a 250 mm por ano. Nessas condições, a sobrevivência de plantas e animais é bastante difícil — daí o aspecto vazio de boa parte das paisagens desérticas.
Mas essas condições climáticas não se aplicam a nenhuma região do Brasil, nem mesmo o Semiárido, que continua a receber entre 300 mm e 800 mm de chuvas ao ano.
Ainda assim, a mudança do clima e o desmatamento criaram paisagens desérticas na região.
"O solo dessas regiões foi perdendo a atividade biológica, embora as chuvas continuem acima do que se espera para uma região desértica. Esse é o paradoxo", diz Barbosa.
Ele afirma que, nesse estágio, é praticamente impossível reverter o fenômeno. "O custo da recuperação de áreas desertificadas é alto, e no Brasil não temos capacidade econômica para fazer esse tipo de investimento."
Maior seca da história
Entre 2012 e 2017, o Semiárido enfrentou a maior seca desde que os níveis de chuva começaram a ser registrados, em 1850. Essa seca, que é atribuída às mudanças climáticas, ajudou a expandir as áreas desertificadas.
Barbosa diz que a pandemia dificultou a realização de viagens para medir o progresso da desertificação após 2019, mas tudo indica que o fenômeno segue avançando.
A área já desertificada equivale ao tamanho da Inglaterra, cerca de três vezes o tamanho do Estado do Rio de Janeiro, ou a 23 vezes a área do Distrito Federal. Essas terras não são todas contíguas e ocupam diferentes partes do Semiárido. Enfrentam, ainda, diferentes graus de desertificação, embora em todas o fenômeno seja considerado praticamente irreversível.
Alguns dos principais núcleos de desertificação ficam em Gilbués (PI), Irauçuba (CE), Cabrobó (PE) e no Seridó (RN).
Imagens de satélite mostram como os núcleos têm crescido nas últimas décadas, enquanto as áreas verdes que os circundam vão rareando.
No núcleo de Cabrobó, que ocupa uma vasta área nas duas margens do São Francisco, as poucas manchas verdes na paisagem se devem a lavouras irrigadas com a água do rio.
Os Estados mais impactados pela desertificação são Alagoas (com 32,8% de sua área total afetada pelo fenômeno), Paraíba (27,7%), Rio Grande do Norte (27,6%), Pernambuco (20,8%), Bahia (16,3%), Sergipe (14,8%), Ceará (5,3%), Minas Gerais (2%) e Piauí (1,8%).
Região mais impactada do Brasil
A desertificação no Semiárido brasileiro foi citada pelo IPCC em seu relatório anterior, de 2019, que teve o pesquisador Humberto Barbosa como coordenador de um capítulo sobre degradação ambiental.
O relatório apontou que 94% da região semiárida brasileira está sujeita à desertificação.
"A região semiárida é a mais impactada (pela mudança do clima) no Brasil, e é a região onde você tem os índices de desenvolvimento humano mais baixos do país", afirma Barbosa.
Com o agravamento das condições climáticas, diz ele, tende a se acelerar o êxodo de moradores rumo a outras partes do país.
Os preocupantes sinais que unem frio recorde no Brasil a enchentes e calor pelo mundo
O papel do desmatamento
Para os cientistas, está claro que a desertificação tem sido acentuada pelas mudanças climáticas e tende a aumentar se as alterações continuarem se intensificando.
Porém, a degradação dos solos do Semiárido também se deve a outra ação humana: o desmatamento na Caatinga, o ecossistema natural da região.
Segundo Humberto Barbosa, ainda não se sabe quanto da desertificação se deve ao desmatamento e quanto se deve às mudanças climáticas. "É muito difícil separar os dois processos."
Quarto maior bioma do Brasil, abarcando 11% do território nacional, a Caatinga já perdeu 53,5% de sua cobertura original, segundo o MapBiomas, plataforma que monitora o uso do solo no país.
O bioma vem sendo destruído desde os primeiros séculos da colonização do Brasil, quando grandes áreas de vegetação nativa passaram a ser derrubadas para dar lugar principalmente a pastagens para bovinos.
A pecuária, aliás, é apontada com uma das principais causas para a desertificação no Semiárido.
O pesquisador Humberto Barbosa explica que, muitas vezes, os bois são criados em áreas relativamente pequenas, compactando o solo ao pisoteá-lo repetidas vezes.
Com o tempo, nem mesmo o capim cresce mais ali, e a terra fica totalmente exposta à radiação do sol. A degradação se completa quando a chuva atinge a terra nua, levando embora os últimos nutrientes do solo.
Embora a destruição venha ocorrendo há séculos, mais de um quarto do desmatamento da Caatinga ocorreu após 1985, segundo o MapBiomas.
E neste ano, os índices de desmatamento deram um salto preocupante. Segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), até 1° de agosto, houve na Caatinga 2.130 focos de queimadas— o maior número em nove anos e uma alta de 164% em relação ao mesmo período de 2020.
- Mudanças climáticas: cinco coisas que descobrimos com novo relatório do IPCC
- Por que a Caatinga vive explosão em número de queimadas
Os focos se concentram no oeste do bioma, onde a Caatinga se encontra com o Cerrado na região de fronteira agrícola conhecida como Matopiba (nome formado pelas iniciais dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).
Como em outros biomas, o fogo é geralmente usado na Caatinga para "limpar" uma área antes do plantio. Mas as chamas acabam degradando o solo e limitam sua vida útil para a agricultura, estimulando a busca por novas áreas quando ele se esgota.
Falta de políticas públicas
Humberto Barbosa diz que, apesar da gravidade da situação enfrentada pelo Semiárido e da perspectiva de piora, não há qualquer plano governamental para mapear a desertificação e combatê-la.
A última iniciativa do governo federal nesse campo, afirma, foi o Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAN), lançado em 2006, mas descontinuado.
Tampouco há um sistema nacional para monitorar o desmatamento na Caatinga e orientar ações de fiscalização e controle — diferentemente do que ocorre na Amazônia, que conta com os sistemas Prodes e o Deter, baseados em imagens de satélite.
E o futuro?
Segundo o relatório do IPCC, sem ações contundentes para conter a mudança do clima, a Caatinga e outras regiões semiáridas do mundo "vão muito provavelmente enfrentar um aquecimento em todos os cenários futuros e vão provavelmente enfrentar um aumento na duração, magnitude e frequência das ondas de calor".
"De forma geral, as secas se ampliaram em muitas regiões áridas e semiáridas nas últimas décadas e devem se intensificar no futuro", diz o texto.
Os maiores prejudicados pelas mudanças serão as populações locais: segundo o IPCC, elas tendem a enfrentar oscilações na quantidade e regularidade de água, o que impactará gravemente sua "segurança alimentar e prosperidade econômica".
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58154146
Caatinga vive explosão em número de queimadas
Nem Amazônia, nem Pantanal, nem Cerrado: o bioma brasileiro com maior crescimento no número de queimadas em 2021 até agora é a Caatinga
João Fellet /BBC News Brasil
Segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), houve até 1º de agosto 2.130 focos de fogo no bioma — o maior número em nove anos e uma alta de 164% em relação ao mesmo período de 2020.
Os focos se concentram no oeste do bioma, onde a Caatinga se encontra com o Cerrado na região de fronteira agrícola conhecida como Matopiba (nome formado pelas iniciais dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).
Especialistas atribuem o crescimento das queimadas à expansão da agricultura na região e à antecipação do período seco, fenômeno que pode estar ligado às mudanças climáticas e tende a se intensificar.
Entre 1985 e 2019, o tamanho da área desmatada na Caatinga cresceu 27,4%.
Hoje, há ainda 46,5% da vegetação nativa original do bioma, segundo o MapBiomas, plataforma que monitora o uso do solo no Brasil.
Fogo e desertificação
Como em outros biomas, o fogo é geralmente usado na Caatinga para "limpar" uma área antes do plantio.
O problema é que as chamas acabam intensificando a degradação do solo do bioma, que já é naturalmente pobre. E isso limita sua vida útil para a agricultura e estimula a busca por novas áreas quando ele se esgota. Além disso, muitas vezes o fogo foge do controle.
Segundo o Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélite da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), 13% da Caatinga está em processo avançado de desertificação. E as queimadas são uma das principais causas dessa desertificação, ao lado do desmatamento, do pastoreio intenso e das mudanças climáticas.
A Caatinga é o quarto maior bioma brasileiro, abarcando 11% do território nacional e parte dos seguintes Estados: Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais.
A região tem clima semiárido e vegetação adaptada a a secas intensas.
Em 2021, o Piauí foi o Estado com mais focos de incêndio na Caatinga (32,3%), seguido pela Bahia (26,1%), Ceará (16,8%), Pernambuco (8%), Rio Grande do Norte (6,8%), Paraíba (3,9%), Sergipe (2,2%), Alagoas (2,1%), Minas Gerais (1,4%) e Maranhão (1,1%).
Entre os dez municípios com mais focos, seis ficam no Piauí. O primeiro da lista, Floriano (PI), responde por um quarto de todas as queimadas ocorridas na Caatinga em 2021.
Convivendo com o Semiárido
João Evangelista Santos Oliveira é o coordenador no Piauí da ASA (Articulação do Semiárido Brasileiro), uma rede de associações rurais que pregam a convivência com o Semiárido em oposição ao conceito de "combate à seca", que por décadas norteou as políticas públicas para a região.
Segundo ele, o período chuvoso deste ano se encerrou mais cedo que o normal, o que tem facilitado a ocorrência de queimadas.
Oliveira diz que o fogo costuma ser ateado de forma intencional para preparar a terra para o plantio.
As queimadas, segundo ele, são provocadas tanto por pequenos agricultores, que seguem métodos tradicionais, quanto por grandes proprietários, que buscam expandir cultivos mecanizados de commodities agrícolas, como soja, milho e algodão.
Mas muitas vezes as chamas fogem do controle e atingem áreas vizinhas. Os incêndios são alimentados pela grande quantidade de folhas secas na vegetação nativa nesta época do ano.
Oliveira afirma que pequenos agricultores têm sido orientados a substituir os métodos tradicionais que empregam queimadas por técnicas agroecológicas.
"Estamos tentando desconstruir o mito de que, com as queimadas, os solos ficam férteis", diz Oliveira, que é também o representante no Piauí da Cáritas, um braço da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Nas técnicas agroecológicas, a matéria orgânica não é queimada, e sim deixada sobre o solo, o que ajuda a mantê-lo úmido e amplia sua fertilidade.
Já o combate às queimadas ligadas à expansão da fronteira agrícola exige maior empenho dos órgãos de fiscalização, defende Oliveira.
Avanço do agronegócio no Piauí
Imagens de satélite mostram o avanço do agronegócio rumo ao interior do Piauí. No sudoeste do Estado, boa parte do Cerrado original já deu lugar a grandes plantações de soja, milho e algodão.
Oliveira diz que, quando as áreas de Cerrado disponíveis no Estado começaram a rarear, grandes proprietários rurais passaram a comprar terras mais a leste, na transição entre o Cerrado e a Caatinga.
"Agora, já começamos a ver soja na Caatinga", ele diz.
Floriano (PI), município que lidera o ranking de queimadas na Caatinga em 2021, fica nessa faixa de transição.
Banhado pelo rio Parnaíba e com um subsolo rico em água, o município em tese teria condições de abrigar a agricultura mecanizada que já se difundiu pelo sul do Piauí.
Do alto, ainda não se veem na paisagem do município as grandes manchas delimitadas por linhas retas que sinalizam a agricultura mecanizada de larga escala.
As manchas mais próximas ficam na região de Bertolínia (PI), a 150 km a oeste de Floriano.
Mas o grande número de queimadas em Floriano pode ser um indício de que o agronegócio está chegando: o fogo pode estar sendo usado para "limpar" terras a serem ocupadas pelas grandes lavouras, diz Oliveira.
Embora alguns associem esse modelo apenas a progresso e desenvolvimento, ele diz que a chegada do agronegócio tende a acirrar conflitos por água, concentrar terras em poucas mãos e contaminar solos e rios com agrotóxicos.
Pequenos focos em grande quantidade
O desmatamento e as queimadas na Caatinga foram tema de uma audiência na Câmara dos Deputados, em 13 de maio de 2021.
O evento teve a presença do geólogo Washington Franca Rocha, professor do Programa de Pós-Graduação em Modelagem em Ciências da Terra e do Ambiente na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), na Bahia.
Rocha coordena um sistema de monitoramento de desmatamento e queimadas na Caatinga desenvolvido em parceria com a organização MapBiomas.
Segundo ele, 80,2% dos focos de queimada na Caatinga entre 2000 e 2019 ocorreram em "formações savânicas", tipo de vegetação semelhante à do Cerrado.
Rocha afirma que, diferentemente dos incêndios na Amazônia e no Pantanal, as queimadas na Caatinga costumam ocorrer em pequenos focos, mas em grande quantidade — o que pode refletir o menor tamanho médio das propriedades rurais no bioma.
Ele disse que as queimadas contribuem com o processo de desertificação na Caatinga.
"Quando falamos de desertificação, nos vem a imagem de montes de areia, mas o processo de desertificação é invisível", diz ele.
"É uma quebra de produtividade ecológica, na qual o solo não consegue mais sustentar a vida. Aquele cenário da areia é o estado mais avançado, onde a desertificação já é irreversível", afirma.
Normalmente, diz ele, o processo de desertificação na Caatinga segue o seguinte caminho:
1 - A vegetação nativa é desmatada;
2 - Ateia-se fogo para preparar a área para o plantio de capim;
3 - A área é usada como pastagem para bois, que a pisoteiam intensamente;
4 - Com o solo bastante compactado pelos animais, nem mesmo o capim consegue se desenvolver mais, e a área é abandonada.
Rocha afirma que as mudanças climáticas estão deixando o bioma mais quente e seco, o que deve "ampliar a desertificação e criar megaincêndios".
Ele diz que as mudanças já estão alterando a fauna da região: espécies de aves que antes viviam somente na Caatinga estão se deslocando para o Cerrado.
Outra participante da audiência na Câmara foi Francisca Soares de Araújo, professora de Biologia na Universidade Federal do Ceará (UFC).
Araújo disse que, com as mudanças climáticas, prevê-se o aumento da temperatura média e uma redução de 30% no volume de chuvas no Semiárido — fenômenos que já estão em curso, segundo ela.
A bióloga diz que as mudanças exigem o abandono de atividades econômicas dependentes de água.
Segundo Araújo, técnicas agrícolas podem até ser adaptadas para produzir num cenário de escassez e garantir alguma oferta de alimento aos moradores, mas não se pode esperar que a agricultura ou a pecuária sustentem a região.
Ela diz que o insucesso do modelo econômico atual tem feito com que muitos homens busquem trabalho em outras partes do país.
"Hoje na zona rural, predominam mulheres e idosos que vivem de subsídios governamentais, porque não há recursos naturais suficientes."
Araújo defende mudanças na legislação para que as famílias que vivem na região possam vender energia solar produzida em suas propriedades.
"Enquanto os governantes não pensarem em alternativas fora do pensamento tradicional, o Semiárido caminhará cada vez mais para a degradação", diz.
Fonte:
BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58065453