Bruno Carazza

Bruno Carazza: ‘O povo’ contra Zuckerberg

Redes sociais enfrentam resistência regulatória

Durante a segunda metade da década de 1990, a internet se popularizou e um mundo de possibilidades parecia se abrir. O índice Nasdaq, a bolsa de valores onde a maioria das pequenas e médias empresas de tecnologia emitiam seus títulos, saltou de 1.288,37 em janeiro de 1995 para 7.092 pontos cinco anos depois, quando nos demos conta de que o mundo não havia acabado por causa das profecias religiosas e nem pelo bug do milênio. Mas logo depois a bolha pontocom estourou.

Uma série de motivos levou a uma forte desvalorização das ações de empresas de tecnologia, como o aperto monetário promovido pelo Fed entre 1999 e 2000, a conscientização dos investidores de que muitas daquelas startups não tinham fôlego para transformar em lucros as promessas miraculosas de valorização e escândalos corporativos em que empresas forjavam seus resultados para atrair novos aportes de recursos.

A primeira menção ao Facebook nas páginas do Valor Econômico foi numa reprodução de uma reportagem da BusinessWeek que tratava justamente do renascimento das empresas do Vale do Silício. O texto trazia uma lista de novas firmas que poderiam ser alvo de aquisições pelas gigantes da época, como Microsoft, HP, SAP e (veja só!) Yahoo. Nele, especulava-se que “o site Facebook, especializado em confraternização de estudantes universitários, poderia ser atraente para uma empresa como a News Corp”.

Mark Zuckerberg e seus colegas de quarto em Harvard haviam lançado o TheFacebook em 4 de fevereiro de 2004. Quando o Valor publicou essa matéria, em setembro de 2005, a empresa havia acabado de perder o “The”, e o que se viu nos anos seguintes foi a pequena “rede social de estudantes” passar de caça a predadora, lançando-se numa sequência de aquisições de mais de 80 negócios, sendo as mais famosas o Instagram (2012) e o WhatsApp (2014).
Movimento similar foi realizado pelas outras quatro tech giants (Google, Microsoft, Apple e Amazon), que deglutiram criações promissoras como YouTube, Skype, Waze, LinkedIn, Picasa e GitHub. Somando essas incorporações aos produtos desenvolvidos internamente, esses conglomerados controlam hoje a forma como nos informamos, comunicamos, consumimos e até mesmo nos movimentamos por aí.

No mês passado Cielo e Facebook anunciaram ao mercado que pretendem lançar no Brasil uma ferramenta de pagamento diretos por meio do WhatsApp. Mas a associação entre a empresa líder em operações por cartões (com 40% do “market share” nacional) com o principal aplicativo de mensagens do mundo (que possui mais de 120 milhões de usuários ativos só no Brasil) foi suspensa preventivamente pelo Cade e pelo Banco Central - embora na última semana o órgão de defesa da concorrência tenha revisto provisoriamente sua posição.

Na queda de braços entre empresas e órgãos reguladores, são bilhões de reais em jogo e um dilema de princípios e objetivos de política econômica: de um lado, promessas de comodidade e facilidade para o usuário, com a possibilidade de realização de transações por um meio simples e acessível por todas as classes sociais; de outro, a preocupação em preservar o ambiente concorrencial, garantir a eficiência do sistema de pagamentos.

Esta não é a única frente de batalha do Facebook. Depois das acusações de quebra de privacidade e fornecimento de dados para a consultoria Cambridge Analytica desenvolver estratégias eleitorais para políticos como Donald Trump, a empresa de Zuckerberg agora é o principal alvo do movimento #StopHateForProfit. Uma mobilização de organizações sociais questiona o Facebook e outras mídias de serem lenientes com o discurso de ódio e o extremismo, em troca de cliques e tempo de tela de seus usuários. Sensibilizadas pela repercussão, grandes anunciantes como Pfizer, Microsoft, Starbucks e Unilever suspenderam a compra de espaço nas redes sociais durante o mês de julho numa tentativa de forçá-las a rever seus algoritmos e melhorar a política de moderação de comentários.

Aqui no Brasil, além dos ecos dessa mobilização nos Estados Unidos, há a discussão em torno do projeto de lei das “fake news”. De autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e batizada com o pomposo nome de Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, a proposta acabou de ser aprovada no Senado e deve mobilizar os debates nas próximas semanas.

A leitura do artigo 3º do projeto revela o quão complexo é esse assunto. Afinal de contas, é virtualmente impossível equilibrar, na letra fria da lei, princípios e direitos tão fluidos e muitas vezes conflitantes como liberdade de expressão, respeito às preferências políticas individuais, privacidade, acesso universal aos meios de comunicação e informação e transparência.

Na sua essência, o projeto amplia a responsabilidade dos provedores de redes sociais (como Facebook, Instagram, Twitter, TikTok etc) e de mensagens privadas (WhatsApp, Telegram e Messenger, entre outros) em relação a identificação dos titulares das contas, restrições à atuação dos famosos “bots” que amplificam o alcance de mensagens e criação de procedimentos para a retirada de conteúdos ofensivos.

Enquanto a pandemia acelera uma tendência que já parecia irreversível de inserção dos negócios e das relações profissionais no mundo virtual, o projeto de lei nº 2.630/2020 determina que os provedores dos serviços devem limitar o envio de mensagens e adotar políticas de transparência quanto aos conteúdos impulsionados e à veiculação de publicidade. E nestes tempos em que os políticos elegem as redes sociais como o fórum para se comunicar com eleitores e representados, medidas ainda mais restritivas são direcionadas à propaganda política.

Não há dúvidas de que nossa vida se tornou bem fácil com o advento das maravilhas desse mundo tecnológico. Mas à medida que nossos relacionamentos, negócios e expressões políticas acontecem predominantemente no ambiente virtual, mais difícil se torna equilibrar interesses, objetivos e princípios divergentes - é alto o preço que temos de pagar por esse admirável mundo novo.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Os números estarão certos desta vez?

Temporada de pesquisas nos EUA favorece Biden

George Gallup chegou a Madison Avenue muito antes de Donald Drapper, o fictício publicitário da aclamada série Mad Men. Aos 31 anos ele foi contratado para ser diretor da agência Young and Rubicam, levando para o centro criativo da publicidade em Nova York o seu revolucionário método de aferir a opinião pública por meio de levantamentos por amostragem.

Gallup aplicava suas técnicas para medir a efetividade de anúncios e comerciais de produtos em jornais, revistas e rádio, mas naquele ano (1932) resolveu fazer um experimento familiar. Sua sogra, Ola Babcock Miller, iria se candidatar a um cargo em Iowa, e o estatístico começou a realizar algumas pesquisas de opinião para aferir suas chances. Ela acabou vencendo, pegando carona na onda democrata de Franklin Roosevelt, com suas propostas para tirar o país da Grande Depressão - e Gallup percebeu que estava diante de uma grande oportunidade de negócios.

Nas eleições presidenciais seguintes veio a sua consagração. Uma revista popular na época, a The Literary Digest, enviou 10 milhões de formulários para seus assinantes pedindo que eles respondessem em quem votariam: no presidente Roosevelt ou no republicano Alf Landon. 2,27 milhões responderam à enquete e, quatro dias antes da eleição, a revista anunciava que o desafiante Landon venceria com 57,1% dos votos.

George Gallup trilhou um caminho diferente. Sua equipe foi a campo e, consultando apenas 50.000 pessoas, chegou à conclusão de que Roosevelt seria reeleito. Ao abrirem as urnas, Gallup tinha razão: Roosevelt venceu, arrebatando 62% dos votos.

A façanha de Gallup ao prever o resultado das eleições presidenciais americanas tinha explicação. Apesar de se apoiar numa amostra muito grande, a pesquisa da Literary Digest sofria de dois problemas graves. O primeiro é que, ao se basear apenas nas respostas de seus assinantes, sua enquete deixava de fora o imenso contingente de desempregados da crise de 1929 - havia, portanto, um viés de seleção a favor de respondentes mais ricos. Mais do que isso, os respondentes tinham que se dirigir aos correios para enviar o formulário de volta à revista, somente aqueles mais motivados participaram e, assim, a amostra não era aleatória.

Ao conduzir sua pesquisa com técnicas modernas de amostragem, Gallup provou que era possível obter resultados muito mais confiáveis a um custo consideravelmente menor - bastava desenhar corretamente uma amostra que refletisse a composição da população em relação às suas principais características de distribuição geográfica, renda, idade e assim por diante.

A partir de então o instituto Gallup reinou absoluto por muitas décadas, expandindo seus negócios para diversos países. Essa trajetória, porém, também teve seus fracassos retumbantes.

No pleito de 1948, Gallup aferiu 45 dias antes da eleição que o presidente Harry Truman seria derrotado pelo republicano Thomas Dewey por uma diferença de 46,5% a 38%. Baseando-se na experiência passada de que os eleitores decidem seus votos logo após as primárias e as convenções dos partidos, Gallup descartou a possibilidade de uma virada no placar às vésperas da votação.

Fiando-se na opinião de Gallup e de outros analistas políticos, o jornal pró-republicano Chicago Daily Tribune chegou a estampar na primeira página, no dia seguinte à eleição, a manchete “Dewey derrota Truman”. Contados os votos, Truman venceu por 49,6% a 45,1% - e sua foto sorridente, segurando a capa do jornal que anunciou equivocadamente a sua derrota, entrou para a história das eleições americanas.

E então chegamos a 2016. Ainda há controvérsia sobre as razões do fracasso dos institutos de pesquisas em prever a vitória de Trump. Algumas hipóteses são quase consensuais. A primeira delas é que, como em 1948, muitos eleitores decidiram seu voto na última hora, e os levantamentos não conseguiram captar esse movimento.

Também contribuiu para o erro uma taxa de comparecimento à votação mais alta do que a média histórica entre os republicanos, ao mesmo tempo em que aconteceu o contrário entre os apoiadores de Hillary Clinton - é sempre bom lembrar que as eleições nos EUA são voluntárias e ocorrem em dias úteis. Por fim, os institutos falharam ao não ajustar suas amostras para levar em conta as diferenças de escolaridade do eleitorado, uma clivagem que foi muito mais acentuada em 2016.

A praticamente quatro meses das eleições, está aberta a temporada de pesquisas para tentar descobrir quem ocupará a Casa Branca a partir de 20 de janeiro de 2021. Na última semana, o jornal NYTimes publicou seus primeiros resultados, mostrando uma expressiva liderança de 14 pontos percentuais entre Joe Biden (com 50% das intenções de voto) e o presidente Trump (36%).

Além de ter ampliado a margem de apoio em redutos tradicionalmente dominados pelos democratas (como negros, latinos e jovens), Biden parece estar roubando importantes fatias de eleitores que foram decisivos para a vitória de Trump em 2016, como brancos com baixa escolaridade, idosos e moradores dos chamados swing states - aqueles sem uma inclinação partidária definida e que, no último pleito, fecharam com Trump por uma pequena margem, como Michigan, Flórida, Pensilvânia, Wisconsin, Arizona e Carolina do Norte.

A revista inglesa The Economist, por sua vez, divulgou um modelo que combina levantamentos de intenção de votos e diversos indicadores econômicos para estimar as probabilidades de vitória de cada candidato. Com dados atualizados diariamente, a publicação concluiu que o apoio a Biden começou a subir em meados de março e hoje atinge uma surpreendente taxa de 90% de chance de derrotar Trump em 04 de novembro. Os dados deixam claro que a gestão da crise da covid-19 e a reação aos protestos contra a discriminação após o assassinato de George Floyd têm pesado bastante na popularidade de Trump.

Há poucos meses ninguém poderia imaginar que o mundo viraria de ponta a cabeça por causa de um vírus; extrapolar esses resultados para novembro, portanto, seria uma temeridade. Mas, como Gallup diria, quando um político analisa os resultados de pesquisa, ele está ouvindo as visões das pessoas. E, neste momento, a maioria dos americanos parece estar se afastando de Donald Trump.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: De João 8:32 ao art. 211 do Código Penal

Bolsonaro se parece cada vez mais com aqueles que criticava

Todo-poderoso da economia cubana desde a revolução socialista, Ernesto Che Guevara foi escolhido por Fidel Castro para comandar o Banco Central (1959-1961) e depois o recém-criado Ministério das Indústrias (1962-1967). No final de 1963, a diretoria executiva do Fundo Monetário Internacional enviou a Cuba uma carta denunciando o descumprimento de uma série de obrigações, entre elas o não fornecimento de dados sobre balanço de pagamentos e estatísticas financeiras e monetárias desde julho de 1961. Incomodada com as cobranças por maior transparência sobre a evolução da economia do país, a ditadura caribenha retirou-se do FMI em 2 de abril de 1964.

Quem assistiu à premiada série “Chernobyl” se lembra das imensas dificuldades enfrentadas pelo cientista Valery Legasov (interpretado por Jarred Harris) na sua tentativa de implementar um plano de mitigação das consequências do acidente nuclear. Temendo a repercussão negativa, tanto em termos internacionais quanto no apoio popular ao regime comunista, o governo soviético demorou não só a admitir a ocorrência do desastre, mas também em reconhecer sua gravidade. Até hoje não há um consenso sobre o número de mortes decorrentes do “acidente” - as estimativas variam de dezenas a milhares.

As denúncias sobre interferências no Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) - o IBGE da Argentina - remontam ao falecido presidente Néstor Kirchner. As acusações, que iam da falta de transparência à descarada manipulação de dados, tiveram continuidade nos mandatos subsequentes de sua esposa Cristina Kirchner. Chegou-se até mesmo a interromper o cálculo do índice de pobreza da população, sob a justificativa de que isso “estigmatizaria” as pessoas.

No Brasil, após perder apoio político e popular, Dilma Rousseff sofreu impeachment ao ficar demonstrado que o Tesouro Nacional mascarava artificialmente a situação de nossas contas públicas - as famosas “pedaladas fiscais”.

Em fevereiro deste ano, a morte de Li Wenliang causou revolta na população chinesa. Tendo sido um dos primeiros a identificar o surgimento de um novo tipo de coronavírus em Wuhan, o médico foi alvo de uma investigação da polícia por espalhar notícias falsas na internet. Hoje se sabe que a falta de transparência das autoridades locais na divulgação de alertas sobre o surto de Sars-Cov-2 foi determinante para o vírus se espalhar pelo mundo.

No início da pandemia de covid-19, fez sucesso nas redes sociais um meme que apresentava o número de mortos pelo coronavírus na Coreia do Norte. A contagem era a seguinte: 1, 0, 1, 0, 1, 0… A piada fazia alusão à ditadura de Kim Jong-um, capaz não apenas de ocultar as informações sobre a evolução da epidemia em seu território, como também de executar os contaminados para evitar a disseminação da doença. Brincadeiras à parte, a Coreia do Norte é hoje o único país para o qual não existem dados sobre a quantidade de casos e óbitos no site da Organização Mundial da Saúde (OMS).

No fim de maio, tanto a Universidade Johns Hopkins, que produz um dos mais reputados levantamentos de dados sobre a covid-19, quanto a organização Human Rights Watch denunciaram a Venezuela de Nicolás Maduro por maquiar as estatísticas. “Em um país onde os médicos não têm água nem para lavar as mãos nos hospitais, onde o sistema de saúde colapsou totalmente, onde há superlotação em favelas e cadeias, não nos parece crível o país só registrar mil infectados e dez mortos”, disse o diretor da HRW para as Américas, José Miguel Vivanco. Segundo os dados de ontem, os números oficiais eram de 2.316 contaminados 22 mortos.

Já houve candidato no Brasil que se elegeu com o slogan “50 anos em 5”, outro tinha uma vassoura como símbolo. Em tempos mais recentes, foram usados “gente em primeiro lugar”, “sem medo de ser feliz” e “mais mudanças, mais futuro”. Mas Jair Bolsonaro inovou ao adotar um versículo bíblico como mote de sua campanha: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.

Paradoxalmente, desde o início de seu mandato, o presidente se esforça em impedir que a verdade venha à luz. No primeiro mês de seu governo, editou um decreto ampliando a possibilidade de se classificar documentos públicos como secretos e ultrassecretos - que, felizmente, foi derrubado pela Câmara dos Deputados. No início da pandemia, uma medida provisória tentou suspender a tramitação de pedidos de informações amparados por lei - e desta vez quem impôs um freio ao ímpeto obscurantista foi o STF.

Incomodado com a fiscalização e as críticas da imprensa, Bolsonaro recorreu à velha tática petista de destinar dinheiro público para alimentar blogs e sites pelegos, assim como canais de televisão de pouca audiência e muito puxa-saquismo. Tentando asfixiar financeiramente parte da imprensa que não é condescendente com seus atos, tentou proibir que órgãos públicos assinassem determinados jornais e publicou medida provisória dispensando a publicação de balanços de empresas em periódicos de grande circulação - e novamente foi barrado pelo Judiciário.

Incapaz de gerenciar as graves crises econômica e de saúde pública causada pelo coronavírus, Bolsonaro resolveu agora brigar com os dados. Ao omitir o acumulado de casos e óbitos e retirar do ar a ferramenta que apresentava os microdados da evolução da doença, o governo cobre o país de trevas no momento em que milhares de pessoas morrem diariamente pela pandemia, enquanto governadores, prefeitos e empresas buscam uma saída para a retomada das atividades.

Confiança é um dos ativos mais valiosos com os quais um governante pode contar. Ao ocultar os cadáveres da pandemia, Bolsonaro não apenas prejudica a gestão da crise, como também enterra a credibilidade internacional da nação, construída a duras penas ao longo de décadas - que o diga o longo processo para sermos aceitos na OCDE.

Acuado e buscando governar apenas para aqueles que cegamente lhe apoiam, Bolsonaro a cada dia se parece mais com os tiranetes esquerdistas e autoritários que seus eleitores sempre criticaram.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”


Bruno Carazza: 70 contra 30

Impasse estatístico imobiliza e leva o país ao confronto

Em 11 de outubro de 2013, poucos meses após as manifestações de rua que sacudiram o país, o Datafolha foi a campo para mapear o perfil ideológico dos brasileiros. Naquele momento, 29% dos entrevistados consideravam que possuir uma arma deveria ser um direito de todo cidadão para se defender da violência e 46% acreditavam que a pena de morte seria a melhor punição para indivíduos que cometessem crimes graves.

O mesmo levantamento ainda indicava que 33% associavam a pobreza à preguiça de quem não queria trabalhar. E 26% defendiam que a homossexualidade deveria ser desencorajada por toda a sociedade.

Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 porque soube como ninguém captar o sentimento da maioria do eleitorado quanto à corrupção revelada pela Lava-Jato, à enorme recessão de 2015/2016 e aos temores gerados por um eventual retorno do PT ao poder.

O que muita gente esquece de levar em conta - ou teima em não reconhecer - é que a chegada do ex-capitão ao Palácio do Planalto foi a vitória, sobretudo, de uma parcela de 25% a 30% da população que comunga plenamente com sua visão conservadora e autoritária - um contingente expressivo de pessoas que defendem o uso da força militar para manter a ordem, prega a defesa da “moral e dos bons costumes” e é contrária às políticas de proteção social e redistribuição de renda.

Decorrido um terço de seu mandato, Bolsonaro perdeu o apoio de boa parte dos 57,8 milhões de eleitores que o elegeram em novembro de 2018 - seja porque não entregou o crescimento econômico espetacular prometido por Paulo Guedes, pela saída de Sergio Moro acusando-o de interferir na Polícia Federal em favor dos filhos ou ainda pela sua flagrante incapacidade de gestão em meio à grave crise do coronavírus. Se um mês após a posse 40% dos brasileiros consideravam seu governo ótimo ou bom, a última pesquisa realizada pela XP/Ipespe revelou que sua aprovação minguou para o patamar de 26%.

Em 13 de março de 2017, praticamente 18 meses antes de ser eleito presidente da República, Jair Bolsonaro deu uma entrevista à “Folha de S.Paulo”. Naquela ocasião, o então deputado afirmou duas vezes que iria indicar militares para metade dos cargos nos ministérios. E ao ser questionado sobre os processos que respondia por incitação ao crime de estupro e injúria, declarou: “Não é a imprensa nem o Supremo que vão falar o que é limite para mim”.

Da mesma forma que o presidente não mudou sua concepção sobre a democracia desde que foi investido no cargo mais importante do país, existe um eleitorado-raiz que continua firme e forte defendendo o presidente. Independentemente do contexto, entre 20% e 30% dos brasileiros concordam com a conduta de Bolsonaro, seja no que diz respeito à sua atuação no combate ao coronavírus (20% a consideram ótima ou boa), à avaliação do vídeo da reunião ministerial (30% de aprovação), à oferta de cargos ao Centrão (20% apoiam a guinada no discurso do presidente) ou à declaração de que “o povo armado não é escravizado” (24% concordam com a afirmação).

Nos últimos dias ganhou força nas redes sociais a hashtag #somos70porcento, tentando mobilizar a população contra o governo sob o argumento de que a maioria (resultante da soma dos percentuais que avaliam a atual gestão como regular, ruim ou péssima na maioria das pesquisas) discordam das principais políticas conduzidas por Bolsonaro.

Durante o fim de semana, o recém-criado Movimento Estamos Juntos também se valeu da estatística para pressionar Bolsonaro. Seu manifesto, assinado por políticos, artistas e personalidades de diferentes posições ideológicas, afirma que “somos a maioria e exigimos que nossos representantes e lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país”.

Com o acirramento da situação política e social, estamos paralisados por um impasse entre os 30% de bolsonaristas radicais e os 70% de rivais, críticos e insatisfeitos com sua administração.

De um lado, mesmo contando com a adesão das Forças Armadas e das suas milícias virtuais, Bolsonaro não dispõe de uma base social capaz de garantir sucesso incondicional numa eventual ruptura institucional, como ocorreu em 1964. Basta lembrar que, naquela época, o golpe militar contou com a contribuição ou a complacência de boa parte da imprensa, da classe política, do empresariado e da população em geral - situação que nem de longe se assemelha ao Brasil de 2020.

Da mesma forma, muito dificilmente os autoproclamados 70% de oposição conseguiriam apear o presidente do poder nas atuais condições. Em primeiro lugar, Bolsonaro, como qualquer outro político, jamais renunciaria ao poder tendo um apoio cego e irrestrito de 30% das pessoas. Também é pouco provável que o Congresso tenha disposição de levar até o fim um processo de impeachment com um presidente com essa base de sustentação: só para se ter uma ideia, Fernando Collor e Dilma Rousseff foram processados quando suas aprovações tinham se esvaído para o nível de 10%. Por fim, um processo de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão no Tribunal Superior Eleitoral como decorrência do processo de “fake news” geraria uma forte resistência do 1/3 que aprova cada ato e declaração seus.

As manifestações e confrontos ocorridos no sábado e no domingo são um prenúncio do caminho sombrio que poderemos trilhar caso os extremos não sejam contidos. Com uma pandemia ainda fora de controle e tendo à frente uma recessão econômica sem paralelos em nossa história, os riscos de uma convulsão social se potencializam.

Com o país caminhando perigosamente à beira do precipício, as lideranças dos Poderes Legislativo e Judiciário, das Forças Armadas e da Procuradoria-Geral da República precisam ter equilíbrio para evitar que, em busca de emparedar ou garantir o poder a Bolsonaro, acabem empurrando o Brasil para a barbárie.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Todos os homens do presidente

O vídeo da reunião ministerial expôs o governo como ele é

Richard Nixon certamente não imaginou que sua decisão de instalar microfones para gravar secretamente as conversas no Salão Oval da Casa Branca o deixaria marcado como o primeiro presidente americano a renunciar ao mandato. Entre fevereiro de 1971 e julho de 1973 foram mais de 3.500 horas de registros que envolveram assuntos de Estado, como a guerra do Vietnã, suas visitas à China e à União Soviética e, claro, o escândalo que causou sua ruína: o caso Watergate.

A existência do sistema de escuta no gabinete presidencial foi revelada por um assessor perante a comissão do Senado que investigava o envolvimento de Nixon na instalação de grampos telefônicos ilegais no escritório do partido Democrata nas eleições de 1972. A partir daí seguiu-se uma intensa batalha judicial, com o presidente se recusando a entregar as fitas. Na sua defesa, Nixon alegava razões de segurança nacional e recorria ao princípio da separação de Poderes para manter o sigilo sobre as gravações.

O ministro Celso de Mello recorreu ao caso United States v. Nixon para embasar sua decisão de tornar públicos os vídeos da reunião ministerial realizada no Palácio do Planalto em 22/04/2020. Por meio do seu famoso sistema de negritos, sublinhados e itálicos, o decano do STF deu ênfase ao posicionamento da Suprema Corte americana, que determinou que as fitas de Nixon fossem entregues, pois o chefe do Poder Executivo não tem o privilégio absoluto de estar acima da lei e ficar imune à produção de provas num processo criminal.

Nas últimas décadas capítulos importantes da história brasileira vêm sendo contados por conversas telefônicas, escutas ambientes e vídeos obtidos ilegalmente ou com a autorização da Justiça. De nebulosas transações durante o processo de privatização no governo FHC às articulações entre Dilma e Lula para nomeá-lo ministro e evitar sua prisão, passando pelas propostas indecentes feitas pelo empresário Joesley Batista a Michel Temer, as vísceras da República brasileira vêm sendo expostas rotineiramente em alto e bom som.

Na sexta-feira passada o Brasil parou para assistir ao vídeo da reunião de Bolsonaro. A contar pela repercussão nas redes sociais, o resultado foi plenamente favorável ao presidente. A íntegra da gravação não revelou muito mais do que já circulava na imprensa a respeito da suposta interferência do chefe do Poder Executivo em investigações conduzidas pela Polícia Federal. Sem “bala de prata”, os apoiadores de Bolsonaro cantaram vitória contra o antigo aliado Sergio Moro e todos que torciam pelo aparecimento de evidências robustas contra seu clã.

Todavia, em meio às dezenas de palavrões proferidas na reunião, o vídeo apresentou ao público um rico panorama do funcionamento interno da cúpula governamental. Pudemos observar de camarote que há um racha na equipe ministerial em relação às medidas necessárias para reativar a economia após a crise da covid-19: Paulo Guedes criticou de sonhador e político o plano Pró-Brasil, elaborado por Braga Netto (Casa Civil) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), comparando-o à agenda de Dilma e Lula. Em outro momento, a ministra Damares Alves chamou a atenção para os riscos de lavagem de dinheiro e classificou como “pacto com o diabo” a proposta de Marcelo Álvaro Antônio (Turismo) de atrair para o país empreendimentos que integrem hotéis e cassinos.

A gravação ainda revela Abraham Weintraub admitindo sua militância política no exercício do cargo e defendendo “botar esses vagabundos todos na cadeia, começando pelo STF”. Mais adiante, Paulo Guedes fez coro ao ministro da Educação, deixando clara sua visão sobre a articulação institucional do governo: “enquanto eles estiverem no trilho conosco, no caminho fazendo as reformas que nós prometemos, nós tamo junto. Na hora que o cara soltou a mão e passou pro lado de lá, a gente deixa o cara ir sozinho e vai procurar outra conversa, em outro lugar”.

A decisão do ministro Celso de Mello de liberar o acesso à reunião ministerial consistiu, para muitos, numa desnecessária intervenção do Poder Judiciário, expondo ao público discussões internas travadas entre o presidente e seus principais auxiliares em torno de medidas governamentais em estudo ou suas percepções sobre a situação política do país.

Em 1974, logo após a renúncia de Richard Nixon, o Congresso americano determinou que suas fitas secretas fossem colocadas em custódia, de forma a evitar a sua destruição. Posteriormente, em 1978, foi aprovado o Presidential Records Act, uma lei que estabeleceu que todas as gravações em áudio e vídeo realizadas pela autoridade máxima dos EUA fossem consideradas de propriedade pública, sendo colocadas à disposição de qualquer interessado ao final do mandato.

Não há dúvidas de que é de interesse geral da sociedade conhecer a posição do ministro da Economia sobre a privatização do Banco do Brasil ou a defesa do ministro do Meio Ambiente de aproveitar o momento de comoção causado pela epidemia de coronavírus para aprovar “de baciada” a desregulamentação das normas ambientais.

Numa reunião em que ministros e presidentes de bancos estatais criticaram duramente o controle externo realizado pelo Tribunal de Contas da União - sob o silêncio constrangedor do chefe da CGU - fica cada vez mais clara a importância de se submeter ao escrutínio da sociedade não apenas os documentos internos ou a agenda pública das autoridades, mas também o que elas discutem sob portas fechadas e longe dos holofotes da imprensa. Esse tipo de informação é fundamental, inclusive, para apurar se houve dolo ou erro grosseiro dos agentes públicos em suas decisões (vide MP nº 966/2020).

Assim como o Watergate aumentou a transparência no governo americano, o vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro deveria estimular a adoção de uma legislação mais abrangente de gravação e divulgação futura das reuniões governamentais. Afinal, é muito melhor conhecer a história do país de forma institucionalizada do que por meio de grampos, vazamentos à imprensa ou decisões judiciais esporádicas.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Nau à deriva

Estamos perdidos entre o #fiqueemcasa e as manifestações de Bolsonaro

Passei o sábado esperando o pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV. Anunciado pelo próprio presidente da República na sexta-feira, o comunicado oficial poderia indicar os novos rumos da estratégia do governo no combate à covid-19 depois da segunda troca de ministro da Saúde em menos de um mês. Perdi o meu tempo.

Perder tempo, aliás, tem sido a tônica dos governos no Brasil quando se trata do enfrentamento da pandemia. A Organização Mundial da Saúde alertou sobre a detecção de casos de pneumonia provocados por um novo tipo de coronavírus em Wuhan, na China, em 10 de janeiro. Somente doze dias depois o Ministério da Saúde brasileiro se manifestou oficialmente, por meio de uma nota à imprensa declarando que estava acompanhando o assunto junto à OMS.

Após a publicação da Lei nº 13.979, de 06/02, que declarava emergência de saúde pública em todo o país, o governo federal só começou a se mexer em 11/03. Por meio da Portaria nº 356, o Ministro da Saúde orientava as secretarias estaduais e municipais sobre como proceder em relação ao isolamento de casos suspeitos e a decretação de quarentenas. Àquela altura, já haviam sido confirmados 52 casos no Brasil.

A partir da confirmação da primeira morte em território nacional, em 16/03, o que se viu foi uma proliferação de medidas descoordenadas sendo tomadas em âmbito municipal, estadual e federal com o propósito de “achatar a curva” de contágio. Nesta data Bolsonaro criou um comitê de crise para supervisionar e monitorar os impactos da covid-19 - apenas com seus ministros, sem nenhum representante dos governos regionais ou locais.

Para se ter ideia do tempo perdido no início da pandemia, foi só em 27/03 que uma portaria da Anvisa restringiu a entrada de estrangeiros no país. Naquele momento, já havia 597.457 casos confirmados no mundo.

Enquanto isso, governadores e prefeitos passaram a decretar quarentenas e medidas de distanciamento social. Ganhar tempo passou a ser a principal estratégia adotada em todo o país - para não dizer a única. Dois meses e mais de 16 mil óbitos depois, o país está dividido entre a vontade do presidente de decretar o fim do isolamento para reativar a economia e a cautela de governadores e prefeitos que temem o colapso do sistema de saúde. Nenhum dos lados, porém, dispõe de um plano sobre o que fazer depois.

Bolsonaro fritou dois ministros da Saúde em um mês devido à sua obsessão com a reativação da economia. O presidente minimiza os riscos sobre a saúde e despreza a dor de parentes e familiares de milhares de mortos acreditando no poder de uma droga sem comprovação científica. Por outro lado, esquece que só haverá recuperação econômica significativa quando consumidores e investidores não só do Brasil, mas de todo o mundo, se sentirem confiantes de retomar a sua vida e seus negócios com segurança de não serem infectados.

Governadores e prefeitos acusam Bolsonaro de agir contra as recomendações científicas, mas afora a insistência na importância do distanciamento social, decisões são tomadas em nível estadual ou municipal sem qualquer suporte em dados ou evidência empíricas.

Não há protocolos ou mesmo uma sinalização clara para a população sobre o que pode e o que não pode em relação à circulação em espaços públicos e ao uso de máscaras, por exemplo. Não se reformulou o sistema de transporte público para diminuir a concentração de pessoas nos horários de pico do trajeto entre casa e trabalho. Rodízios de automóveis são impostos sem prever seus efeitos sobre o deslocamento de quem não pode ficar em casa.

Enquanto Bolsonaro, governadores e prefeitos se digladiam sobre o fim ou a continuidade da quarentena, o Brasil continua sendo um dos países mais atrasados na aplicação de testes à sua população. Também não conseguimos rastrear o círculo de contatos dos contaminados a fim de isolá-los preventivamente para conter o ritmo de propagação da doença. Sem conseguir identificar quem já está imune e quem não foi infectado, continuamos num voo cego que inviabiliza um possível plano de isolamento vertical.

Em meio à guerra de narrativas sobre o que mata mais, se a fome ou o coronavírus, ainda não temos estratégia de identificação de quais regiões ou setores poderiam retomar gradualmente as atividades normais. Tampouco foi sugerido um plano com possibilidade de utilização de hotéis ou imóveis ociosos para abrigar idosos e outros integrantes de grupo de risco caso seus familiares tenham contraído o coronavírus. Também não sabemos o que fazer caso a situação saia do controle e o sistema hospitalar não aguente o aumento de demanda. Entre o #fiqueemcasa e os que aplaudem o presidente e seus ministros participando de aglomerações, continuamos sem adotar práticas tentadas pelos principais países do mundo.

Bolsonaro elogia a Suécia por não ter determinado o encerramento obrigatório de atividades econômicas, mas dados de movimentação de pessoas medidos pelo Google revelam que na capital do país, Estocolmo, houve uma redução de 23% nos deslocamentos a centros de comércio e lazer e uma queda de 29% do público em estações de transporte. Mesmo sem lockdown, o medo e a conscientização das pessoas, associados às perdas com o comércio internacional e o turismo, farão a economia sueca cair entre 6,9% e 9,7% segundo seu Banco Central - situação nem um pouco melhor do que seus vizinhos europeus que implementaram medidas mais rigorosas de isolamento.

Dois meses depois das primeiras mortes, a população segue perdida entre um presidente que pensa que tudo se resolveria na base de um decreto reabrindo o comércio e governadores e prefeitos que parecem empurrar a curva adiante, em vez de achatá-la. A única evidência científica que dispomos nesta altura dos acontecimentos é o total despreparo de nossos governantes em enfrentar a crise e propor soluções para superá-la. No falso dilema entre a saúde e a economia, caminhamos para um cenário com dezenas de milhares de mortos e dezenas de milhões de desempregados.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: O powerpoint, os tweets e os guarda-costas

Na aventura autoritária de Bolsonaro, não há projeto de país

Ao longo das últimas semanas Bolsonaro e seus seguidores têm flertado com uma quebra institucional. A presença do presidente em manifestações pedindo a intervenção militar e um novo AI-5, a intimidação ao Supremo Tribunal Federal (STF) com uma visita inesperada escoltado por representantes da elite industrial, os ataques reiterados à imprensa, a demissão de seus ministros civis com maior apoio popular e a nomeação de militares da ativa em toda a Esplanada dos Ministérios, a cooptação da base parlamentar mais fisiológica, a interferência na Polícia Federal, o incitamento de suas milícias virtuais para que invadam as ruas em meio às recomendações de isolamento social - são muitos os movimentos na direção de uma solução autoritária para a crise criada por sua própria incompetência gerencial.

Aqui e ali, nas duas bolhas que dividem o país, ressurgem comparações entre o momento que atravessamos e o clima que levou ao golpe de 1964. Sem dúvida a tática de Bolsonaro de se cercar de militares, das forças políticas mais conservadoras e de parte da elite empresarial para testar os limites de nosso regime republicano guarda semelhanças com o que aconteceu no início dos anos 1960. No entanto, três episódios ocorridos nas últimas semanas ilustram o vazio dessa aliança militar, política e empresarial que Bolsonaro pretende construir em torno de seu projeto autoritário de poder.

No último dia 22 de abril o ministro da Casa Civil, general Braga Netto, anunciou numa coletiva de imprensa o lançamento do programa Pró-Brasil, “iniciativa proativa do governo federal que tem como propósito reduzir os impactos do coronavírus nas áreas social e econômica com foco no período pós-pandemia”. Apresentado em exatos cinco minutos, o arquivo powerpoint com sete slides do “Plano Marshall” bolsonarista chocou pelo vazio de dados e de projetos.

No campo legislativo, nada é mais sintomático do retorno de Bolsonaro ao seu berço político, o Centrão, do que o perfil do ex-deputado Roberto Jefferson no Twitter. Condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro pelo STF e tendo seu mandato cassado pelo plenário da Câmara dos Deputados em 2005, o velho cacique do PTB assumiu a defesa do ideário mais extremista do bolsonarismo, posando de arma em punho, atacando governadores que defendem o distanciamento social e pregando o fechamento do Supremo.

Para completar a trinca, em troca de medidas de estímulo econômico e do afrouxamento do combate à pandemia de covid-19, representantes de 15 entidades do setor industrial se prestaram ao papel de guarda-costas numa das mais intimidatórias demonstrações de força contra a autoridade do Poder Judiciário nestes 35 anos de nossa história democrática.

Longe de querer defender o indefensável - não há justificativas para uma ruptura institucional que suprimiu por três décadas nossa liberdade e o exercício da cidadania, sem falar nos crimes cometidos contra a humanidade - a tentativa bolsonarista de ameaçar a democracia se diferencia do movimento golpista de 1964 pela ausência de um projeto de país.

A aliança entre as Forças Armadas, a elite empresarial e os grupos políticos conservadores que derrubou João Goulart em 1964 foi forjada ao longo de anos no seio de instituições como a Escola Superior de Guerra (ESG), o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e as fileiras da União Democrática Nacional (UDN) e de setores do Partido Social Democrático. O golpe de 31 de março levou ao poder uma elite militar, empresarial e política que se ancorava não apenas numa ideologia de direita, mas numa agenda geopolítica e econômica alicerçada em projetos encomendados a intelectuais e técnicos de renome.

Nesses 56 anos que nos separam do golpe de 1964, muita coisa mudou nas Forças Armadas, na política e na economia brasileira. Não se trata das pessoas, mas das instituições.

Os militares que assumiram o poder em 1964 constituíam, junto com diplomatas do Itamaraty, a elite do setor público brasileiro à época. Selecionados por concurso, recebiam treinamento contínuo e as melhores remunerações - além de gozarem de grande prestígio político e social. Dada a importância brasileira no xadrez geopolítico do pós-guerra, os oficiais das Forças Armadas receberam treinamento militar norte-americano e construíram seu projeto para o país no contexto da Guerra Fria.

Um cenário muito diferente se vê hoje. Com a retomada da democracia, as Forças Armadas perderam muito do seu protagonismo político, ao mesmo tempo em que orçamentos minguados e o congelamento de soldos tornaram suas carreiras cada vez menos atrativas. Os atuais ministros Wagner Rosário e Tarcísio de Freitas são exemplos de militares que pediram baixa do Exército depois de terem sido aprovados em concursos para carreiras civis. A pressão dos militares sobre Bolsonaro para ficarem de fora da reforma da Previdência e do esforço fiscal no combate à covid-19 demonstram que seu projeto corporativista está acima das necessidades do país.

Mesmo diante de tudo que vimos durante o mensalão e a Lava-Jato, a associação de Bolsonaro com o pior do Centrão, representado por Roberto Jefferson, escancara a voracidade com que se atacam os recursos públicos em troca de apoio político, agora numa nova roupagem do velho presidencialismo de cooptação.

Por fim, a fila de empresários de pires na mão se colocando a serviço de um presidente que ameaça o STF é o melhor retrato de uma indústria que, ao longo de décadas, não aprendeu a ser eficiente e a enfrentar as crises sem a proteção generosa do Estado, oferecendo fechamento de mercado, crédito subsidiado do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e incentivos fiscais. Para tirar seus CNPJs da UTI, vale até mesmo marchar contra o STF.

Nada ilustra melhor o vazio e o oportunismo da aventura autoritária de Bolsonaro do que o powerpoint de Braga Netto, os tweets de Roberto Jefferson e a passeata da “Coalizão Indústria” do Palácio do Planalto ao Supremo Tribunal Federal.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: O mundo mudou, o Brasil nem tanto

Dá melancolia ler a edição nº 1 do “Valor”, há 20 anos

Eu me lembro exatamente quando e onde estava quando li a edição nº 1 do Valor Econômico, há 20 anos. Eu era praticamente um estagiário de luxo no Ministério da Fazenda quando me mandaram assistir a um seminário sobre a reforma da Previdência em Curitiba. Era a primeira vez que eu viajava de avião, e ao entrar na aeronave a comissária de bordo me entregou um exemplar do jornal de economia que acabara de ser lançado no Brasil.

Muita coisa mudou desde então. Não há mais Varig, três reformas da Previdência foram aprovadas (e ela continuava em déficit), o ministério trocou de nome e (quem diria?) o economista recém-formado - que naquele dia não sabia se olhava pela janela do avião ou lia fascinado o novo jornal escrito por um supertime de jornalistas, com layout inovador e cheio de dados - hoje assina uma de suas colunas.

Vinte anos depois folheio a primeira edição do Valor e reflito sobre as voltas que o mundo e o Brasil deram. Em 2/5/2000, o Valor custava R$ 1,50, e os R$ 5,00 de hoje refletem exatamente os 238% de variação do IPCA no período - um alerta para quem acredita que a inflação deixou de ser um problema no Brasil. Naquele tempo o dólar valia R$ 1,80 e a meta da Selic estava em 18,5%. “Bons tempos”, muitos dirão.

Era um outro mundo. Na página A14 há uma foto dos líderes de então: Tony Blair, Fernando Henrique, Massimo D’Alema, Bill Clinton, Lionel Jospin e Gerard Schröder propondo uma Terceira Via que prometia conciliar justiça social e livre mercado num mundo cada vez mais globalizado. Deu ruim.

Mas muita coisa continua como dantes: Ribamar de Oliveira chamava a atenção para a carga tributária que alcançava 30,3% do PIB graças a uma perniciosa concentração em contribuições sociais aplicadas em cascata, uma distorção de nosso federalismo disfuncional.

O exemplar inaugural traz ainda assuntos que se tornaram recorrentes ou premonitórios de crises nos anos seguintes: Claudia Safatle e Marli Olmos cobriam uma greve de servidores da Receita Federal por aumento de salários e Francisco Góes relatava as ameaças de paralisação dos caminhoneiros por causa do preço do frete e tarifas dos pedágios. E na mesma semana em que seria sancionada a Lei de Responsabilidade Fiscal, o Congresso debatia um projeto de renegociação de dívidas dos Estados, enquanto Rodrigo Maia e Eduardo Paes discutiam uma proposta de constituir um fundo de R$ 700 milhões para financiar campanhas eleitorais. No Rio de Janeiro, o governador Garotinho prometia a privatização da Cedae, a companhia estatal de saneamento que sempre foi um locus de corrupção e hoje distribui água contaminada aos cariocas.

A edição traz também uma longa reportagem sobre suspeitas de fraude no sistema bancário e uma discussão sobre uma suposta vantagem de bancos estrangeiros no leilão de privatização do Banespa. Duas décadas depois, nosso sistema financeiro está muito mais sólido, apesar de a insegurança jurídica do país ter espantado a maioria dos gringos e a concorrência bancária ainda desafiar o Banco Central e o Cade.

E nestes tempos em que Bolsonaro procura desesperadamente o apoio do Centrão para sobreviver, fica o alerta do então presidente do Senado, o cacique baiano Antonio Carlos Magalhães, que demonstrava sua força em entrevista a César Felício: “Eu tenho o governador, os três senadores, 95% dos prefeitos, 30 dos 39 deputados federais. Me mostre alguém que tenha um poder como este onde faz política”.

Nada, porém, mudou tanto quanto a tecnologia. No artigo de apresentação do projeto, a equipe do Valor se orgulhava dos seus 200 computadores, “sendo 21 notebooks”. Também pudera: outra reportagem informava que o mundo àquela época tinha apenas 140 milhões de usuários de internet - sendo 2 milhões no Brasil. E Cristiano Romero, de Washington, anunciava a intenção dos Estados Unidos entrarem com uma ação na OMC contra o Brasil. O motivo? CDs piratas. Mas é bom não se iludir: o primeiro número traz ainda entrevista de Bill Gates defendendo-se das acusações de domínio do mercado, nada muito diferente do que hoje vemos hoje com as chamadas “tech giants” Google, Apple, Amazon, Facebook e… Microsoft.

No entanto, a melhor indicação dos efeitos do tempo são os artigos das principais lideranças políticas do país na época, escritos especialmente para a estreia do Valor. Fernando Henrique Cardoso, àquela altura no sexto ano do seu governo, tecia loas ao recém-lançado tripé macroeconômico e apostava num ciclo de crescimento contínuo de crescimento na casa dos 4% por pelo menos 5 anos. Só não contava com o apagão, cujos riscos foram apontados em reportagem da página A6 - mas com declarações do ministro de Minas e Energia e dos presidentes da Aneel e da ONS negando essa possibilidade.

No artigo de Lula, o “sapo barbudo” ainda brigava com o “Lulinha paz e amor”. Ao mesmo tempo em que acusava FHC e o FMI de tornarem o país “uma nau sem rumo que navega ao sabor dos ventos da globalização neoliberal” e propunha controle de capitais para tirar o Brasil da crise, seu artigo é um prenúncio do que os futuros governos do PT teriam de bom e de ruim: medidas voltadas aos mais pobres (renda mínima, aumento do salário mínimo e estímulo ao crédito ao consumidor) e políticas econômicas que desaguaram em ruína fiscal e grandes escândalos de corrupção, como colocar o BNDES para conceder crédito subsidiado às empresas, estimular a formação de multinacionais brasileiras e lançar um grande programa habitacional.

Em tempos de ameaças autoritárias e “fake news”, chegar aos 20 anos fazendo jornalismo diário comprometido com fatos, dados e informação de qualidade é a principal notícia do dia. Vida longa ao Valor e ao seu excelente time de jornalistas e funcionários!

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: No que vai dar a crise?

28 anos depois, a mesma pergunta e as mesmas opções

A capa da revista “Veja” de 1º de julho de 1992 trazia uma pergunta que voltou a circular no Brasil desde sexta-feira: “No que vai dar a crise”? As opções eram as seguintes: a) impeachment; b) renúncia; c) parlamentarismo já; d) Collor continua, forte; e) Collor continua, fraco. Àquela altura dos acontecimentos, a revista cravava a última alternativa como a mais provável.

A despeito das fortes denúncias de corrupção envolvendo o então presidente e seu tesoureiro de campanha PC Farias, a princípio pouca gente acreditava que a CPI criada para investigá-los realmente levaria ao fim prematuro do governo.

Desde que seu irmão Pedro o acusou, Collor articulava nos bastidores para encontrar uma saída. Uma trama de negociações começou a ser costurada com os poderosos Antonio Carlos Magalhães e Jorge Bornhausen (caciques do PFL, atual DEM), Ulysses Guimarães (presidente do PMDB, hoje MDB) e Mário Covas (líder do PSDB) e tudo parecia indicar que fechariam um acordo: lançariam PC Farias aos leões da CPI e da opinião pública, enquanto Collor seria poupado, loteando seu ministério à coalizão formada pelos maiores partidos de então.

Nas últimas três semanas Bolsonaro movimentou-se intensamente na direção de partidos que podem lhe dar proteção para enfrentar a crise. De acordo com sua agenda oficial, divulgada na página do Palácio do Planalto na internet, o presidente recebeu recentemente lideranças do PP (Ciro Nogueira), Republicanos (Marcos Pereira), PSD (Gilberto Kassab), Democratas (ACM Neto), MDB (Eduardo Braga e Baleia Rossi) e PL (Jorginho Mello). Dada a frequência das visitas dos deputados Fábio Faria (PSD-RN) e Arthur Lira (PP-AL), ambos herdeiros de famílias tradicionais de políticos, Bolsonaro está buscando não apenas uma conexão com o Centrão, mas também com os clãs nordestinos.

Um acordo entre Bolsonaro e os principais partidos do Centrão sempre fez sentido. Eles partilham de uma visão conservadora da sociedade, encaram a política como um meio de perpetuar seu poder e de sua família e não têm pudores de trocar de lado caso as circunstâncias mudem. A grande questão que se coloca, hoje, é o timing dessa aproximação.

Bolsonaro poderia ter feito essa opção assim que tomou posse - afinal de contas, um contingente enorme de deputados e senadores foi eleito com o apoio dos mesmos “ismos” que o conduziram ao Palácio do Planalto, como o antipetismo, o lavajatismo, o liberalismo na economia e o conservadorismo nos valores morais. Com popularidade em alta, o ex-capitão poderia ter abrigado em seu ministério representantes dessas correntes vindos do Centrão, e assim teria consolidado sob a sua liderança uma base governista praticamente imbatível.

Mas não foi esse o caminho escolhido, e agora o preço subiu bastante. Desgastado nas últimas semanas, o presidente senta-se à mesa de negociações com muito menos cacife do que possuía em janeiro de 2019. Uma parte de seus apoiadores originais já tinha abandonado o barco com a condução errática do país em meio à pandemia e um outro tanto desertou junto com Sergio Moro. Após 16 meses maldizendo o “toma lá dá cá” e a tal “velha política”, será difícil para Bolsonaro explicar para o seu eleitor-raiz essa mudança de rumo - e uma nova leva de bolsonaristas pode virar a casaca.

Hoje em dia Bolsonaro também tem muito menos a oferecer ao Centrão. É óbvio que sempre existirão cargos e orçamento a distribuir, mas com uma severa recessão mundial à espreita, o butim encolheu significativamente. Em vez de sócios na época de prosperidade e fartura prometida por Paulo Guedes há bem pouco tempo, deputados e senadores do Centrão poderão se tornar devedores solidários num governo quebrado em meio a milhões de desempregados e empresários falidos.

Em qualquer curso de negociação aprende-se como a credibilidade é importante. Desde o fim da ditadura, a maioria dos presidentes brasileiros enfrentou graves crises econômicas ou de governabilidade que colocaram em risco o comando do país. Collor e Dilma sucumbiram - e não por acaso, eram aqueles com menor habilidade política. Sarney, FHC, Lula e Temer, todos eles macacos-velhos em lidar com o Congresso, de uma forma ou de outra driblaram as adversidades e chegaram ao fim dos seus mandatos.

Em quase três décadas como deputado, Bolsonaro nunca se notabilizou pela liderança - ao contrário, o baixo clero foi sempre a sua casa. Alçado à Presidência do país, nunca se empenhou em criar um clima positivo com o parlamento. Diante desse histórico, os partidos do Centrão não têm quaisquer garantias de que seu apoio terá como contrapartida estabilidade e segurança por parte do Palácio do Planalto.

Para completar o quadro, a incerteza quanto ao futuro é outro obstáculo à celebração de um pacto com o Centrão. Depois das denúncias apresentadas pelo ex-ministro Moro, ninguém sabe o que ainda pode sair da caixa de Pandora das investigações levadas a cabo pela Polícia Federal a respeito do envolvimento de seus filhos com a disseminação de “fake news”, o escândalo das rachadinhas e a atuação das milícias.

Na crise do governo Collor, a negociação com os principais partidos ruiu à medida que se acumularam evidências do relacionamento do ex-presidente com as atividades criminosas de PC Farias e o favorecimento de sua família - e a população, em massa, foi às ruas pedir a sua cabeça. Poucas semanas após a publicação da capa da revista “Veja”, as apostas rapidamente mudaram do prognóstico “Collor continua, fraco” para “impeachment”. E ao final resultaram em “renúncia”.

Pouca credibilidade, apoio popular em queda, uma forte recessão à frente e incertezas quanto à lisura das atividades de seus filhos - por mais lucrativo que seja fazer parte do governo, é difícil vislumbrar o que o Centrão teria a ganhar com uma associação a Bolsonaro nas condições atuais de seu mandato.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: Não existem mocinhos e bandidos

Votação sobre o Carf ilustra jogo de interesses

Reducionismos são muito perigosos, principalmente em tempos de crise. Por trás de expressões bonitas como “interesse público”, “bem comum”, “proteção social”, “eficiência e produtividade” podem estar escondidas perigosas armadilhas. Em meio à comoção coletiva e com o noticiário dominado pelo mono assunto da covid-19, é preciso atenção redobrada. Os oportunistas estão à espreita.

Outro risco é acreditar em estereótipos e rotulagens. Frequentemente caímos no conto do mocinho versus bandido, do bem contra o mal. Relações sociais em geral são desiguais, e a maioria dos países busca aprovar legislações para evitar abusos contra o lado mais frágil, como empregados, tomadores de empréstimos e locatários. Quando erramos a mão na tentativa de regular a vida em sociedade, ocorrem distorções com consequências severas - imóveis vazios num país de enorme déficit habitacional, crédito caro e escasso, 40 milhões de trabalhadores informais. Mas isso é assunto para outras colunas.

O pior dos mundos acontece quando grupos de interesses muito bem articulados se valem de simplificações maliciosas e de um falso discurso de boas intenções para impor grandes prejuízos para a sociedade. A história aconteceu nas últimas semanas, e quando percebemos o leite já havia sido derramado.

Em outubro de 2019, muito antes de um simples vírus colocar de joelhos toda a humanidade, o governo Bolsonaro editou a Medida Provisória nº 899, que tinha por objetivo estabelecer as condições para que a União e seus devedores pudessem sentar na mesma mesa e encontrar uma solução consensual para seus litígios. A iniciativa, proposta pelos ministros Paulo Guedes (sob cujas asas está a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) e André Luiz de Almeida Mendonça (titular da Advocacia-Geral da União), visava aumentar a probabilidade de recuperar os créditos da dívida ativa da União.

De acordo com os números apresentados na Exposição de Motivos encaminhada ao Congresso, o governo tem uma carteira de quase R$ 3 trilhões de reais de dívida questionada na Justiça, além de outros R$ 600 milhões em disputa administrativa, no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o Carf (guarde esse nome). Como boa parte desse crédito é de difícil recuperação - pois até que o processo judicial seja encerrado, as empresas já faliram, ou os devedores deram o seu jeito de desviarem o patrimônio -, a proposta era estimular uma solução negociada entre as partes, em que o devedor pague a dívida imediatamente, mesmo que com um desconto. Ao propor a MP, o governo seguia a velha máxima de que “um mau acordo é melhor do que uma boa demanda”. Cabia, porém, regular essa transação, revestindo-a de legalidade e dos devidos controles para evitar casos de corrupção e outros crimes contra a Administração.

Quando se trata de assuntos envolvendo tributação, os interessados ficam de olho. Durante a tramitação, os parlamentares fizeram 220 sugestões para “aprimorar” o texto. Duas delas merecem atenção. A emenda nº 9, de autoria do deputado Heitor Freire (PSL-CE), pretendia acabar com o voto de desempate do representante do Fisco nos processos do Carf que estabelecem o crédito tributário e o seu valor. Já a emenda nº 162, apresentada por seu colega Gilberto Nascimento (PSC-SP), buscava regular o pagamento do Bônus de Eficiência e Produtividade aos auditores e analistas fiscais da Receita Federal.

Nenhuma dessas duas sugestões foi acatada pelo relator da MP, o deputado Marco Bertaiolli (PSD-SP). Mas quando a matéria foi à votação, no dia 18/03, todos os olhos já estavam voltados para o coronavírus. Foi aí que o deputado Hildo Rocha (MDB-MA) propôs ressucitá-las, e o plenário da Câmara aprovou a sugestão sem qualquer resistência.

Com o Senado já realizando votações virtuais, a questão foi resolvida em uma única seção, no dia 24/03. Após ser alertado pelos senadores Fabiano Contarato (Rede-ES), Carlos Viana (PSD-MG), Chico Rodrigues (DEM-RR) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE) que os dois dispositivos incluídos pela Câmara traziam matérias estranhas à MP original, e por determinação constitucional não poderiam ser aprovados, o presidente em exercício da Casa, Antonio Anastasia (PSD-MG), colocou as questões em discussão. O bônus da Receita caiu, mas a mudança no critério de decisão do Carf não.

Bolsonaro teve a oportunidade de vetar o dispositivo do Carf. Dizem até que Sergio Moro se mostrou preocupado com os danos sobre a corrupção e as investigações ainda em curso da Operação Lava-Jato, mas a Lei nº 13.988 foi sancionada integralmente pelo presidente no último dia 14.

Essa história maçante sobre tramitação legislativa ilustra bem como se arruína um país com movimentos sutis. Sob argumentos nobres como a proteção do contribuinte, o princípio do “in dubio pro reu” (na dúvida, a favor do réu) e a necessidade de conter a voracidade do Fisco brasileiro, aumentou-se ainda mais o risco de corrupção. Se antes da mudança a Operação Zelotes já apresentava fortes evidências de beneficiamento indevido de grandes empresas nos julgamentos do Carf, não é difícil imaginar o que acontecerá com o voto de desempate agora contando a favor dos devedores.

Não há dúvidas de que o modelo tributário brasileiro precisa ser completamente revisto. A legislação é caótica, há muita margem para a interpretação do Fisco e o modelo ibérico de decisões administrativas passíveis de questionamento na primeira instância da Justiça traz insegurança e ineficiência. Mudanças sorrateiras feitas na legislação, porém, não têm o propósito de reformá-lo, e sim dar ainda mais poder para quem dispõe de grandes escritórios de advocacia e redes de lobistas para pagar menos impostos.

A história talvez também teria sido diferente se os órgãos de representação dos fiscais da Receita Federal tivessem utilizado sua pressão no Congresso Nacional para defender o interesse da sociedade e não para defender um penduricalho de até 80% nos seus já elevados salários. De boas intenções, o Congresso está cheio. Mas, no inferno, quem reside é a maioria da população brasileira.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”


Bruno Carazza: O antes e o depois de Bolsonaro

Coronavírus marca o fim da primeira fase do governo

James Carville é um consultor político que em 1992 assessorou Bill Clinton na disputa pela Presidência dos EUA, então ocupada por Bush pai. Reza a lenda que Carville afixou numa das paredes do comitê de campanha um cartaz com três lembretes para que o candidato democrata não perdesse o foco durante os debates. Diziam eles: “Não se esqueça do sistema de saúde”, “Mudança vs Mais do Mesmo” e “A economia, estúpido”.

Muito antes de Carville, economistas e cientistas políticos já estudavam as íntimas relações entre a política econômica e seus impactos nas urnas. Políticos normalmente se esquecem disso, mas além de eleitores, somos empregados, empresários, profissionais liberais ou aposentados. E percepções sobre crescimento, desemprego e inflação afetam nossas decisões de votar tanto ou mais do que preferências ideológicas ou inclinações por este ou aquele candidato.

William Nordhaus, vencedor do prêmio Nobel de economia em 2018, lançou em 1974 a hipótese de que políticos são tentados a se valer da política econômica como estratégia para se reelegerem ou fazerem seus sucessores. De acordo com sua teoria dos ciclos político-econômicos, governantes tendem a adotar políticas restritivas no início do governo, aprovando reformas e apertando o cinto das despesas enquanto sua popularidade está alta. À medida em que o mandato se aproxima do fim, é hora de afrouxar as rédeas e expandir os gastos e o crédito, apostando que o crescimento dos empregos e dos lucros lhes trarão mais votos.

Em 2018, ao se colocar à disposição de Bolsonaro para ser o seu Posto Ipiranga, Paulo Guedes prometeu mundos e fundos. Com números espetaculosos, convenceu o ex capitão de que valeria a pena apoiar um programa amargo de reformas no primeiro ano de governo (Previdência, privatizações e cortes de despesas), pois dali em diante os investimentos iriam bombar e o crescimento, deslanchar.

Seguindo a receita de bolo do ciclo econômico-eleitoral, Guedes persuadiu Bolsonaro de que as medidas liberais se reverteriam em uma fácil reeleição em 2022.

No entanto, o mesmo antigo compositor baiano que dizia que “tudo é divino, tudo é maravilhoso” também nos alertava que “a vida é real e de viés”. E se no início do ano, quando tudo parecia tranquilo, Bolsonaro já estava incomodado com a demora de Guedes em entregar os resultados prometidos, a pandemia causada pelo novo coronavírus torna ainda menos provável que os planos de Guedes se concretizarão.

Analisando as pesquisas de opinião pública conduzidas pelo Ibope nos últimos 35 anos, fica evidente como a gestão da economia foi determinante para as ambições eleitorais de praticamente todos os presidentes brasileiros. José Sarney, por exemplo, viu sua aprovação cair da casa dos 70% no lançamento do Cruzado para menos de 10% após os sucessivos fracassos de seus planos heterodoxos. O mesmo aconteceu com Collor: engana-se quem imagina que sua popularidade despencou com as denúncias de corrupção. Com a inflação subindo e a economia em recessão, sua avaliação positiva já estava abaixo de 20% quando Pedro Collor contou tudo. Daí em diante foi só ladeira abaixo.

FHC segurou o quanto pôde para se reeleger, mas viu a sua reprovação crescer de 20% para 50% com a liberação do câmbio no início de 1999. A partir desse ponto seu segundo mandato se arrastou em meio a políticas fiscais e monetárias restritivas para salvar o Real, racionamento de energia e problemas externos como a crise na Argentina e os atentados terroristas nos Estados Unidos. Como resultado, o projeto de permanência do PSDB no poder foi abortado com a derrota de José Serra em 2002.

Lula foi o único presidente do atual ciclo democrático a conseguir aplicar as recomendações do manual da teoria do ciclo político-econômico. Com Antonio Palocci no Ministério da Fazenda, foi dada continuidade à política contracionista de Pedro Malan nos primeiros dois anos de governo, comprando credibilidade nos mercados interno e externo. Com o mensalão batendo às portas do seu gabinete, Lula abriu as torneiras do gasto público e do crédito dos bancos oficiais para estimular a economia e impulsionar sua popularidade. Sua aprovação subiu de 30% em meados de 2005 para atingir impressionantes 80% em 2010, atropelando a crise financeira de 2008 e elegendo com facilidade a sua sucessora para o Palácio do Planalto.

A história de Dilma na Presidência pode ser contada em três atos.

Enquanto a economia rodava acelerada pela política expansionista de Guido Mantega, seus índices de aprovação giravam em torno de 60%. A insatisfação popular com a classe política irrompeu com os protestos de rua de 2013, e dali até a reeleição Dilma se equilibrou entre 30% e 40% de popularidade.

Mas então a tempestade perfeita se formou: os excessos econômicos do passado cobraram seu preço no mesmo momento em que o maior escândalo de corrupção da história brasileira atingia o PT e os principais partidos da coalizão governista. Com sua reprovação batendo em 70% da população, todos sabem o que aconteceu.

A crise da covid-19 marca o fim prematuro da primeira fase do governo Bolsonaro. Ninguém sabe qual será o saldo macabro de mortes da pandemia no Brasil, e muito menos qual a duração e a gravidade dos seus efeitos econômicos. Simulações do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estimam que a economia brasileira crescerá de 2,3% a 4,4% menos do que o esperado, enquanto no mercado já há instituições financeiras que trabalham com uma recessão de 5%, segundo o boletim Focus do Banco Central.

Se o cenário de desemprego recorde e quebradeiras no setor privado se concretizar, e de mãos atadas pela piora fiscal provocada pelas medidas de socorro contra a pandemia, a maldição de Carville (“é a economia, estúpido!”) assombrará os 30 meses que separam Bolsonaro das eleições de 2022. Haja cloroquina para tentar evitar a queda na sua popularidade.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Bruno Carazza: O futuro é sombrio

Se nada for feito, no futuro a peste, a guerra, a fome e a morte continuarão a cavalgar nas costas da imensa desigualdade social brasileira

Com a recomendação de jejum nacional sendo alçada a política pública de combate à covid-19, é bom lembrar que, de acordo com João, o fim dos tempos chegará sob a liderança da Peste. Na sequência, virão a Guerra, a Fome e, finalmente, a Morte.

Walther Scheidel, professor de história antiga na Universidade de Stanford, também tem seus quatro cavaleiros do Apocalipse. Dois são os mesmos elencados pelo “discípulo que Jesus amava”: as epidemias e a guerra. Completam o quarteto o colapso do Estado e as revoluções socialistas.

Em “The Great Leveller: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century” (que nas próximas semanas será lançado no Brasil pela editora Zahar sob o título “Violência e a História da Desigualdade”), Scheidel analisa os principais fatores que levaram não ao Armagedon, mas sim à redução esporádica da desigualdade ao longo da história da humanidade.

Com abundância de exemplos e dados, o autor argumenta que, nas sociedades eminentemente agrárias que predominavam até o início do século XX, as epidemias exterminavam grandes contingentes de pessoas. Em resposta à escassez de mão de obra, o mercado de trabalho se reequilibrava com o aumento dos rendimentos dos sobreviventes - e, assim, a distância entre ricos e pobres diminuía.

Outras formas traumáticas de reduzir a desigualdade foram as guerras, as revoluções e a falência do Estado. Ao romperem a estrutura social, esses eventos levavam a uma redistribuição de poder e riqueza entre os diferentes grupos, podendo ocasionar um momentâneo efeito “nivelador” das condições de vida entre seus habitantes.

Com os intensos processos de urbanização, industrialização e aprimoramento educacional da população mundial ao longo dos séculos XX e XXI, o professor de Stanford deposita suas esperanças na mudança de preferências do eleitorado como uma solução menos violenta para as graves crises que enfrentamos. Em entrevista recente à BBC, Scheidel acredita que se a covid-19 for realmente devastadora, a população poderá demandar mudanças políticas e econômicas na direção de um Estado de bem-estar social mais forte, principalmente em países como Estados Unidos e Brasil.

A nova pandemia está expondo as diversas fragilidades do modelo brasileiro de (sub)desenvolvimento. Nossa resiliência à crise está sendo afetada pela crônica falta de dinamismo de nossa economia e à irresponsabilidade fiscal dos últimos anos. E à medida que a doença avança, outras deficiências ficam morbidamente mais claras: o baixo grau de formalização do mercado de trabalho, a precariedade de nossa rede de proteção social, as diferenças entre os sistemas público e privado de saúde e as mazelas de nosso saneamento básico e das condições habitacionais.

Ao que tudo indica, infelizmente, ainda passaremos as próximas semanas em isolamento social, acompanhando apreensivos a contagem de mortos e a deterioração econômica, enquanto a covid-19 chega cada vez mais próximo de nossos lares e famílias. Ainda não sabemos quando e nem como devemos afrouxar o distanciamento social para permitir uma retomada segura das atividades cotidianas. Muito mais importante, contudo, é pensar que tipo de país construiremos depois do coronavírus.

A opção proposta pelo professor Scheibel passa pela construção de um novo pacto social, em que os imensos déficits gerados pelos pacotes de estímulo serão cobertos por impostos cobrados daqueles com maior capacidade contributiva. Também haveria um estímulo ao aprimoramento dos sistemas de assistência médica à população e de maior proteção aos trabalhadores mais vulneráveis, eventualmente com a implementação de um programa de renda básica universal. Dessa forma, o efeito nivelador da covid-19 seria alcançado com políticas públicas e econômicas mais progressistas.

No caso brasileiro, tenho sérias dúvidas se conseguiremos fazer uma limonada desse amargo limão que é a pandemia provocada pelo novo vírus. Ainda é cedo para afirmar, mas as medidas do governo para resgatar a economia podem ter efeito negativo sobre a desigualdade.

Ao que tudo indica, a recessão será muito mais profunda e duradoura do que esperávamos, e auxílios emergenciais de R$ 600 ou frações de seguro-desemprego por três meses não serão capazes de neutralizar os severos impactos sobre a renda dos mais pobres e desamparados. Enquanto isso, aqueles que têm empregabilidade, economias e acesso ao crédito conseguirão superar os tempos ruins de forma muito mais suave.

Novas leis e decisões judiciais tomadas sob a pressão da emergência social também podem levar a ainda mais desigualdade. Nas últimas semanas centenas de novos projetos de lei foram apresentados no Congresso Nacional, boa parte deles pedindo proteção e tratamento especial para as mais variadas categorias. No Judiciário, medidas liminares suspendendo efeitos contratuais vêm sendo concedidas em todos os tribunais, influenciadas por uma perigosa lógica de curto prazo que tem efeitos bastante deletérios num horizonte mais largo.

Para piorar, a crise da covid-19 ainda teve a externalidade negativa de interditar o debate sobre reformas que poderiam contribuir para as condições de competitividade e até mesmo na distribuição de renda no Brasil. Com a recessão afetando principalmente o setor de serviços, será muito difícil retomar num curto intervalo de tempo a tramitação da reforma tributária, que previa um tratamento equânime na cobrança de impostos sobre o consumo. Com todas as energias concentradas nas medidas de saúde pública e econômicas, também serão adiadas as discussões sobre a reforma administrativa e os privilégios de certos segmentos do serviço público.

Quanto mais profunda a recessão, mais difícil será convencer os setores mais privilegiados da sociedade a aceitarem uma tributação mais progressiva; e quanto maior o crescimento da dívida, menos provável ampliarmos nossos programas sociais. Se nada for feito, no futuro a peste, a guerra, a fome e a morte continuarão a cavalgar nas costas da imensa desigualdade social brasileira.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.