brumadinho
STJ anula denúncia sobre tragédia de Brumadinho e federaliza o caso
Ministério Público informou que irá recorrer da decisão
Léo Rodrigues / Agência Brasil
Tramitando há um ano e oito meses, o processo criminal que julga responsabilidades da tragédia de Brumadinho (MG) perdeu validade. A decisão é do Superior Tribunal de Justiça (STJ): os cinco integrantes da sexta turma entenderam, de forma unânime, que a Justiça estadual não tem competência para analisar o caso. O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) já informou que irá recorrer.
O relator do julgamento foi o desembargador Olindo Menezes, convocado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). Ele considera que o caso deve ser federalizado por envolver acusação de declarações falsas prestadas à órgão federal, descumprimento da Política Nacional de Barragens e por possíveis danos a sítios arqueológicos, que são patrimônios da União. Seu voto foi acompanhado pelos ministros Laurita Vaz, Sebastião Reis Júnior, Rogerio Schietti Cruz e Antonio Saldanha Palheiro.
Com a decisão, os 16 denunciados na Justiça estadual não são mais considerados réus. O caso será enviado à 9ª Vara Federal de Minas Gerais, que precisará reavaliá-lo. O Ministério Público Federal (MPF) poderá reapresentar a denúncia do MPMG ou formular uma nova denúncia.
A tragédia de Brumadinho ocorreu em janeiro de 2019, quando a ruptura de uma barragem da mineradora Vale se rompeu, deixou 270 mortos e provocou degradação ambiental em diversos municípios mineiros. O processo criminal tramitava desde fevereiro de 2020, quando a Justiça mineira aceitou denúncia do MPMG e transformou em réus 11 funcionários da Vale e cinco da Tüv Süd, consultoria alemã que assinou o laudo de estabilidade da estrutura que se rompeu. Eles respondiam por homicídio doloso e diferentes crimes ambientais.
As duas empresas também eram julgadas. Investigando o caso em parceria com a Polícia Civil, o MPMG ofereceu a denúncia quando considerou que já existia farto material probatório, que comprovaria os riscos assumidos deliberadamente pela Vale, pela Tüv Süd e por seus funcionários.
Diante da complexidade do caso, a tramitação do processo seguia um ritmo lento. Ainda havia um funcionário da Tüv Süd que sequer tinha sido citado, pois não foi localizado nos endereços informados pelo MPMG. A própria consultoria alemã também não estava funcionando nos locais apontados. E apenas no mês passado havia sido finalmente aberto prazo para que os réus apresentassem suas defesas. Como a denúncia é extensa, a juíza Renata Nascimento Borges deu a eles 90 dias. Ela também havia concordado que os espólios de 36 vítimas atuassem como assistentes da acusação do MPMG.
O julgamento no STJ se deu a partir de um habeas corpus apresentado pela defesa do ex-presidente da Vale, Fábio Schvartsman, que era um dos réus. Seus advogados questionaram a competência da Justiça estadual. A tese foi aceita, sob discordância do MPF, que se alinhou ao entendimento do MPMG. “Não há descrição de crime federal, não há crime federal, não há bem jurídico da União atingido aqui na denúncia”, disse no julgamento a subprocuradora-geral da República, Luiza Frischeisen.
O mesmo STJ já havia, em junho do ano passado, julgado um conflito de competência e mantido o processo na esfera estadual. Na época, os integrantes da terceira sessão negaram, por sete votos a um, outro pedido que havia sido formulado pela defesa de Fábio Schvartsman. Entre os ministros que participaram de ambos os julgamentos, dois mudaram de opinião: Laurita Vaz e Rogerio Schietti Cruz que, no ano passado, votaram por manter o caso na Justiça estadual e concordaram agora em remetê-lo à Justiça federal.
Federalização
As causas da tragédia de Brumadinho suscitaram apurações em diferentes frentes. Além dos trabalhos do MPMG e da Polícia Civil, o caso mobilizou Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), na Câmara dos Deputados e no Senado.
Um inquérito também foi aberto pela Polícia Federal (PF) e ainda não foi concluído. Ele foi desmembrado em duas partes e, em setembro de 2019, sete funcionários da Vale e seis da Tüv Süd foram indiciados por falsidade ideológica e uso de documentos falsos. Eles teriam forjado relatórios de revisão periódica e de inspeção de segurança e a declaração de estabilidade da barragem, ignorando parâmetros técnicos.
A segunda parte do inquérito, que continua em andamento, envolve a apuração de crimes ambientais e contra a vida. Segundo a PF, para definir se alguém deve ser indiciado por homicídio, seria necessário identificar qual foi o gatilho da liquefação, ou seja, o que fez com que sedimentos sólidos passassem a se comportar como fluídos e sobrecarregassem a estrutura. Em fevereiro de 2021, foram divulgadas informações preliminares da investigação: uma perfuração em um ponto crítico da barragem teria desencadeado a tragédia. O procedimento, que estava sendo realizado no momento da ruptura, tinha como objetivo instalar instrumentos para medir a pressão da água no solo.
A mesma conclusão apareceu no relatório final de um estudo conduzido pela Universidade Politécnica da Catalunha e divulgado há duas semanas. Trata-se de um trabalho de modelagem e simulação por computador contratado por meio de um acordo firmado entre o MPF e a Vale. “Sob condições de tensão e hidráulicas semelhantes às do fundo do furo B1-SM-13 durante a perfuração, as análises numéricas mostram que, usando o modelo constitutivo e os parâmetros adotados para os rejeitos, pode ocorrer a liquefação local devido à sobrepressão de água e sua propagação pela barragem”, diz o relatório.
O inquérito da PF está sob sigilo. Segundo os policiais, a conclusão da investigação sobre o gatilho da liquefação subsidiará a decisão sobre a realização de novos indiciamentos, os quais poderão ser levados em conta pelo MPF em uma eventual denúncia criminal a ser apresentada na Justiça federal.
Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2021-10/stj-anula-denuncia-sobre-tragedia-de-brumadinho-e-federaliza-o-caso
Perfuração levou à tragédia em Brumadinho, diz universidade catalã
Pago pela Vale, estudo foi divulgado pelo Ministério Público Federal
Léo Rodrigues / Agência Brasil
O relatório final de um estudo conduzido pela Universidade Politécnica da Catalunha, divulgado hoje (4) pelo Ministério Público Federal (MPF), associa uma perfuração em um ponto crítico da barragem da Mina Córrego do Feijão à tragédia ocorrida em 25 de janeiro de 2019 na cidade de Brumadinho, em Minas Gerais. O procedimento, que estava sendo realizado no momento da ruptura, é considerado o potencial gatilho da liquefação, processo em que os sedimentos sólidos passam a se comportar como fluídos e sobrecarregam a estrutura.
Com sede em Barcelona, na Espanha, a Universidade Politécnica da Catalunha realizou um trabalho de modelagem e simulação por computador para identificar as causas do rompimento da barragem, que deixou 270 mortos e provocou degradação ambiental em diversos municípios mineiros. A instituição foi escolhida pelo MPF com base em sua expertise, e o estudo foi custeado pela Vale, conforme ficou estabelecido em um acordo firmado com a mineradora.
“Sob condições de tensão e hidráulicas semelhantes às do fundo do furo B1-SM-13 durante a perfuração, as análises numéricas mostram que, usando o modelo constitutivo e os parâmetros adotados para os rejeitos, pode ocorrer a liquefação local devido à sobrepressão de água e sua propagação pela barragem”, diz o relatório.
De acordo com o estudo, o perfil do solo no local da perfuração era especialmente desfavorável. Os modelos que sugerem o procedimento como responsável por desencadear o rompimento mostraram-se consistentes com as imagens captadas no momento da tragédia. "O mecanismo de colapso obtido mostra uma ruptura dentro da barragem começando na crista e se estendendo até um local logo acima do dique de partida."
Investigações sobre a tragédia foram feitas em diversas frentes. Comissões parlamentares de inquérito (CPIs) foram abertas no Senado, na Câmara dos Deputados e na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. A Polícia Civil também realizou um inquérito que serviu de base para a denúncia do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), aceita pela Justiça em fevereiro de 2020. Por meio dela, 16 pessoas tornaram-se rés – 11 funcionários da Vale e cinco da Tüv Süd, empresa alemã que assinou a declaração de estabilidade da barragem.
Em todas as frentes de investigação, reconheceu-se que o rompimento ocorreu após um processo de liquefação. No entanto, como este é um fenômeno que pode ter múltiplas origens, diversas hipóteses foram levantadas, desde fortes chuvas até abalos sísmicos artificiais provocados por detonações na mina. O estudo da universidade catalã buscou compreender melhor o que de fato aconteceu.
A investigação foi conduzida pelo Centro Internacional de Métodos Numéricos em Engenharia da instituição espanhola e resultou em uma análise de mais de 500 páginas. “É incontroverso que o rompimento da Barragem I envolveu o fenômeno do fluxo por liquefação. A liquefação é um processo associado ao aumento da poropressão, pelo qual a resistência ao cisalhamento é reduzida à medida que a tensão efetiva no solo se aproxima de zero. Apenas materiais contráteis estão sujeitos à liquefação. A liquefação está intrinsecamente relacionada ao comportamento frágil não drenado do solo”, diz o relatório.
Para viabilizar um modelo computacional verossímil, foi feita uma campanha de coleta de amostras dos rejeitos que foram examinados para que se compreendessem suas características geotécnicas. "Eram fofos, contráteis, saturados e mal drenados e, portanto, altamente suscetíveis à liquefação”. Procurada pela Agência Brasil, a Tüv Süd informou que não fará comentários sobre o relatório neste momento.
Já a Vale destacou que o estudo da instituição catalã reforça o entendimento de que não houve nenhum indicativo prévio à ruptura da estrutura.
"[O estudo] também atesta que teria havido uma conjugação particularmente desfavorável de circunstâncias no momento e no local em que se fazia a perfuração do 13º poço vertical por uma empresa especializada, operação essa que se destinava à instalação de equipamentos mais sofisticados para leitura do nível de água no interior da barragem e à coleta de amostras, sendo que, sem essa perfuração, a barragem, nas condições específicas em que se encontrava (inclusive paralisada há mais de dois anos), segundo as simulações matemáticas realizadas para um período de 100 anos, permaneceria estável", afirmou a mineradora.
As conclusões da Universidade Politécnica da Catalunha coincidem com constatações do laudo de engenharia assinado por peritos da Polícia Federal (PF). Produzido no âmbito do inquérito que investiga a tragédia, o documento está sob sigilo. Algumas informações, no entanto, foram divulgadas em fevereiro deste ano em entrevista coletiva. Os peritos testaram seis hipóteses como gatilho de liquefação e também concluíram que a perfuração desencadeou a ruptura abrupta.
As investigações conduzidas pela PF ainda estão em andamento. Em setembro de 2019, anunciou-se o desmembramento dos trabalhos, e 13 pessoas foram indiciadas por falsidade ideológica e uso de documentos falsos. Para a PF, houve fraude na emissão de relatórios técnicos, incluindo a declaração de estabilidade da barragem, que desconsiderou os parâmetros de engenharia.
A apuração de crimes ambientais e contra a vida teve sequência. A identificação do gatilho da liquefação era considerada fundamental para que houvesse uma definição sobre a possibilidade de haver indiciamentos por homicídio. Procurada pela Agência Brasil, a Polícia Federal informou que o inquérito ainda está sob sigilo. "Deve ser concluído em breve, pois, para tanto, depende da conclusão de diligências pendentes", acrescenta.
Deformações internas
O relatório analisou várias outras hipóteses para o gatilho da liquefação. Uma delas era defendida por auditores externos contratados pela Vale. Um painel de especialistas internacionais da área de geotecnia foi organizado pela mineradora. Em dezembro de 2019, foi apresentado um relatório no qual se conclui que um fenômeno conhecido como creep contribuiu para a liquefação. Trata-se do acúmulo de pequenas deformações internas. Em combinação com chuvas fortes no fim de 2018, esse processo teria levado ao rompimento da barragem.
No entanto, as simulações descartaram tal possibilidade. "A magnitude dos efeitos da taxa de deformação medidos nos rejeitos foi sempre pequena e não indicou um papel relevante do processo de creep no rompimento", diz o estudo.
De acordo com os pesquisadores, as precipitações também não se mostraram capazes de abalar a estabilidade. Conforme as análises, foi necessário algum fator, ou evento adicional, para que a barragem se rompesse. Além da perfuração que ocorria no dia da tragédia, não foi identificado nenhum outro potencial gatilho de liquefação. "Em particular, os cálculos realizados incorporando apenas os efeitos de aumento da precipitação e do creep, isoladamente ou em combinação, não resultaram em um rompimento geral da barragem.”
Segundo o estudo, registros sismográficos sugerem que uma liquefação contida pode ter ocorrido em junho de 2018, sete meses antes da tragédia. Na época, houve um incidente considerado grave durante procedimento em que a Vale buscava drenar água do lençol freático. "Foram causados vazamentos visíveis de lama em vários pontos da barragem, que foram rapidamente contidos. O incidente provocou um aumento local e temporário nas pressões piezométricas da água e algum abatimento na barragem", diz o relatório.
Processo criminal
Os 16 reús respondem por homicídio doloso e diferentes crimes ambientais. Mesmo sem elucidar qual foi o gatilho da liquefação, o MPMG os denunciou por considerar que já existia farto material probatório capaz de identificar responsabilidades e omissões por parte da Vale e da Tüv Süd.
Investigando em parceria com a Polícia Civil, os promotores que assumiram o caso concluíram que as duas empresas tinham conhecimento da situação crítica da barragem, mas não compartilharam as informações com o poder público e com a sociedade e assumiram os riscos. No fim do mês passado, foi finalmente aberto prazo para que os réus apresentem suas defesas. Como a denúncia é extensa, a juíza Renata Nascimento Borges deu a eles 90 dias.
Ao concluir o inquérito, a Polícia Federal pode indiciar outras pessoas. Mas, para que estas também passem à condição de rés, precisariam ser alvo de denúncias do MPMG ou do MPF aceitas judicialmente. No último caso, poderia ser criado um conflito de competência com julgamentos paralelos na Justiça estadual e Justiça federal.
Dois anos e oito meses após a tragédia, ainda não foram encontrados os restos mortais de nove vítimas. Neste sábado (2), os bombeiros localizaram um corpo, mas ainda serão feitas análises para confirmar se pertence a alguma das vítimas. As buscas continuam. No mês passado, foi encontrado o corpo de Juliana Creizimar de Resende Silva, que tinha 33 anos quando perdeu a vida. O reconhecimento se deu pela arcada dentária.
Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-10/perfuracao-levou-tragedia-em-brumadinho-diz-universidade-catala
Cristina Serra: Cinco anos de lama e impunidade
Ninguém foi responsabilizado criminalmente pela hemorragia de lama em Mariana
Cinco anos depois do maior desastre socioambiental do Brasil —o colapso da barragem de Fundão, em Mariana (MG)—, os atingidos vivem uma tragédia judicial. Até hoje ninguém foi responsabilizado criminalmente pela hemorragia de lama e de descaso que matou 19 pessoas em 5 de novembro de 2015. Dos 22 denunciados, 15 já se livraram do processo.
Além disso, as vítimas têm que lidar com uma disparidade de forças descomunal no Judiciário para tentar obter justas reparações. É difícil entender que as duas maiores mineradoras do mundo, Vale e BHP (controladoras da Samarco, dona da barragem), não tenham sido capazes de realizar estudos sobre o impacto da lama de rejeitos de minério na saúde dos moradores da bacia do rio Doce.
Sem esses estudos, como estabelecer valores adequados para as compensações? É sobre esse pano de fundo que se desenrola a trama judicial. Um episódio recente é esclarecedor. O Ministério Público Federal entrou com mandado de segurança contra atos do juiz Mário de Paula Franco Júnior, encarregado dos processos cíveis.
Segundo o MPF, nos acordos de indenizações, homologados pelo juiz, as pessoas só recebem os pagamentos se assinarem a quitação definitiva e a desistência de qualquer ação no exterior. A cláusula chama atenção porque a Justiça britânica está para decidir se aceitará uma ação bilionária contra a BHP, que tem uma de suas sedes no Reino Unido. Um escritório de lá representa 200 mil atingidos, alegando a morosidade do Judiciário brasileiro.
As indenizações, segundo o MPF, foram fixadas em tempo recorde, sem prévia análise de danos e em valores irrisórios. O dano moral, por exemplo, foi calculado em R$ 10 mil. Os procuradores levantam suspeitas de "lide simulada" entre o escritório de advocacia que lidera os pedidos de indenização (formado em junho deste ano) e as mineradoras, que, de forma inusual, não contestaram as sentenças. O juiz Mário Franco Júnior disse que não se manifestará.
Cristina Serra: A (in)segurança das barragens
Nova lei não alterou brecha crucial na fiscalização
O Congresso aprovou, e o presidente sancionou, a nova política nacional de segurança de barragens de mineração. Perdeu-se uma excelente oportunidade de aperfeiçoar a fiscalização para tentar evitar a repetição de tragédias como a de Mariana (2015) e a de Brumadinho (2019).
A nova lei não alterou uma brecha crucial na fiscalização. Investigações revelaram graves suspeitas de irregularidades na elaboração dos laudos de estabilidade das barragens das mineradoras Samarco e Vale.
Por que o laudo é essencial? Porque é o documento que as empresas apresentam aos órgãos fiscalizadores atestando que sua barragem está segura.
Aí temos dois problemas. Primeiro: o laudo é elaborado por auditor contratado pela mineradora, configurando relação comercial que pode gerar conflito de interesses. Segundo: se o laudo atesta a segurança, a barragem vai para o fim da fila da inspeção in loco. Na prática, esse sistema autodeclaratório faz com que a própria empresa determine se receberá ou não a visita dos fiscais. Nos dois casos, as empresas tinham os laudos em ordem. Deu no que deu.
A solução desse nó não é fácil. Mas o Congresso nem sequer enfrentou a questão. Dado o peso econômico e político das mineradoras, não é difícil imaginar o porquê. É bem verdade que a nova lei aumentou o valor das multas, antes um trocado. Mas Bolsonaro vetou o trecho que destinava o dinheiro para o caixa do órgão federal fiscalizador, a Agência Nacional de Mineração, que se vê à míngua para inspecionar mais de 700 barragens.
Os dois desastres somados mataram 299 pessoas e poluíram dois importantes rios do Sudeste: Doce e Paraopeba. Daqui a menos de dois meses, Mariana completará cinco anos. Os três povoados mais atingidos não foram reconstruídos, e indenizações ainda são discutidas. Estudos recentes mostram altos níveis de toxicidade no rio e em sua foz, no Atlântico, com graves impactos para a saúde humana, flora e fauna. O processo criminal anda a passos de cágado, e a tragédia se perpetua dia após dia.
Brumadinho: a dor quase um ano depois da tragédia
Reportagem especial da revista Política Democrática online de dezembro detalha sofrimento de famílias atingidas por rompimento de barragem da Vale
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Quase um ano depois do rompimento da barragem em Brumadinho, que deixou 257 mortos e 13 desaparecidos, a maioria dos atingidos ainda não foi indenizada pela Vale, responsável pelo empreendimento. A multinacional ameaça cortar pela metade a ajuda de custo paliativa a até 98 mil moradores da região, a partir do dia 25 de janeiro de 2020, revela reportagem dos enviados especiais da revista Política Democrática online de dezembro. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP (Fundação Astrojildo Pereira)
» Acesse aqui a 14ª edição da revista Política Democrática online
No dia 5 de dezembro, conforme mostra a reportagem, a população se reuniu no MP-MG (Ministério Público de Minas Gerais) para contestar um acordo firmado com a multinacional, na 6ª Vara da Fazenda Pública Estadual e Autarquias, e reivindicar a manutenção do pagamento a todos, sem redução.
O acordo, realizado no dia 28 de novembro com a presença de representantes do Estado e de órgãos do sistema de Justiça, garantiu aos atingidos o direito à prorrogação do pagamento emergencial, que iria terminar em janeiro de 2020, quando a tragédia completará um ano. O pagamento foi estendido por dez meses, mas será reduzido.
Hoje, de acordo com a reportagem especial da revista Política Democrática online, a Vale paga um salário mínimo para adultos, metade do valor para adolescentes e um quarto para crianças, para todos os residentes da cidade de Brumadinho e pessoas que viviam a até 1 km da margem do rio Paraopeba na área atingida.
A partir de janeiro do próximo ano, o valor integral deverá ser mantido somente a moradores de cinco comunidades atingidas (Córrego do Feijão, Parque da Cachoeira, Alberto Flores, Cantagalo e Pires), quem vive às margens do córrego Ferro-Carvão e pessoas atingidas cadastradas em programas de apoio da Vale, como auxílios moradia e assistência social.
Os valores serão reduzidos pela metade para todas as demais pessoas que recebem o pagamento, como os moradores da cidade de Brumadinho. De acordo com a Vale, a redução atingirá de 93 mil a 98 mil beneficiários entre as 106 mil pessoas que recebem a verba emergencial. Em protesto no início deste mês, o comércio de Brumadinho chegou a fechar as portas como represália.
Em nota, a Vale informa que já celebrou mais de 4 mil acordos, indenizando integralmente as pessoas. Nestas ações, segundo a multinacional, já foram provisionados pagamentos de cerca de R$ 2 bilhões. A empresa diz que realiza encontros regulares com representantes legítimos dos atingidos pelo rompimento da barragem em Brumadinho, com o objetivo de garantir “uma reparação célere e respeitosa”.
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Revista Política Democrática || Reportagem especial || Vale quer cortar metade de auxílio a 98 mil atingidos por tragédia em Brumadinho
Quase um ano após um dos maiores crimes ambientais do País, que deixou 257 mortos e 13 desaparecidos, famílias reclamam de falta de indenização da mineradora
Cleomar Almeida, enviado especial a Brumadinho (MG)
Luto intenso, medo, sofrimento e desamparo castigam sobreviventes e famílias vítimas do rompimento da barragem B1, da mineradora Vale, na mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, a 50 quilômetros de Belo Horizonte. Quase um ano depois da tragédia, que deixou 257 mortos e 13 desaparecidos, a maioria dos atingidos ainda não foi indenizada pela multinacional, que ameaça cortar pela metade a ajuda de custo paliativa a até 98 mil moradores da região, a partir do dia 25 de janeiro de 2020.
Pesadelos e noites mal dormidas marcam o dia a dia da população de Brumadinho, como é o caso do produtor rural Isterides de Oliveira, 65 anos. “Fiquei meio bobo. Só penso no tanto de gente que conhecia e morreu. Não perdi familiares, mas não existe mais paz aqui. A gente vive com uma confusão mental danada”, afirma. A cerca de 100 metros da casa dele, cuja estrutura foi comprometida e desvalorizada, máquinas buscam corpos no mar de lama e deixam a paisagem ainda mais pesada.
Isterides viu a lama engolir amigos, animais, casas e a vegetação. Ele é um dos que recebem o pagamento emergencial da Vale, chamado de “bolsa tragédia” por alguns moradores e que tem aumentado a tensão entre eles e a mineradora, conforme apurou equipe de reportagem da revista Política Democrática enviada a Brumadinho.
No dia 5 de dezembro, a população se reuniu no Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) para contestar um acordo firmado com a multinacional na 6ª Vara da Fazenda Pública Estadual e Autarquias, e reivindicar a manutenção do pagamento a todos, sem redução.
O acordo, realizado no dia 28 de novembro com a presença de representantes do estado e de órgãos do sistema de Justiça, garantiu aos atingidos o direito à prorrogação do pagamento emergencial, que iria terminar em janeiro de 2020, quando a tragédia completará um ano. O pagamento foi estendido por dez meses, mas será reduzido.
Hoje, conforme prevê o acordo firmado em fevereiro, a Vale paga um salário mínimo para adultos, metade do valor para adolescentes e um quarto para crianças, a todos os residentes da cidade de Brumadinho e pessoas que viviam a até 1 km da margem do rio Paraopeba, na área atingida.
A partir de janeiro do próximo ano, o valor integral deverá ser mantido somente a moradores de cinco comunidades atingidas (Córrego do Feijão, Parque da Cachoeira, Alberto Flores, Cantagalo e Pires), a quem vive às margens do córrego Ferro-Carvão e pessoas atingidas que são cadastradas em programas de apoio da Vale, como auxílio moradia e assistência social.
Os valores serão reduzidos pela metade para todas as demais pessoas que recebem o pagamento, como os moradores da cidade de Brumadinho. De acordo com a Vale, a redução atingirá de 93 mil a 98 mil beneficiários entre as 106 mil pessoas que recebem a verba emergencial. Em protesto, no início deste mês, o comércio de Brumadinho chegou a fechar as portas como represália. A atividade já foi normalizada.
“É uma aberração a ousadia dessa mineradora, que praticou um grave crime ambiental que matou muitas pessoas”, reclama a produtora rural Maria Helena da Silva, 56 anos, que perdeu dois irmãos e um sobrinho na tragédia. “A justiça deverá ser feita porque a gente não pode ficar à própria sorte, recebendo migalhas para tentar amenizar a dor que vai marcar o resto de nossas vidas”, acrescenta.
O promotor de Justiça da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social do MPMG, André Sperling, reforça que a população considera o acordo insuficiente e, por isso, tentará reabrir as negociações. “O MP está do lado da população. Se as pessoas entendem que o acordo é insuficiente, o pedido é para que a Vale reabra as negociações. Vamos esperar a mineradora dar nova resposta, mas não temos a data da reunião”, afirma.
Insatisfeita, a população atingida tem-se mobilizado cada vez mais. “É evidente que a população está se mobilizando e um acordo pode ser mudado a qualquer tempo”, ressalta Sperling. “Esperamos que a Vale tenha sensibilidade e veja que o acordo, para a população, está sendo insuficiente neste momento”, assevera.
A Secretaria Municipal de Saúde de Brumadinho estima que houve um aumento da população cadastrada ao longo do ano. Apesar de o levantamento não ter a validade de um censo, dados oficiais apontam que a cidade passou de 38 mil para 43 mil moradores registrados no período. O prefeito de Brumadinho, Avimar de Melo Barcelos (PV), diz que o município “sofre muito com o crime praticado pela Vale”.
Desolado, o produtor Isterides diz que sofre profundamente por causa da tragédia. “A região tinha muitas cachoeiras, córregos onde a gente tomava banho, peixes para pescar. Acabou tudo”, afirma. “Só quem é daqui sente na pele o que todo esse crime da Vale causa na vida da gente”, acentua.
Em nota, a Vale informa que já celebrou mais de quatro mil acordos, indenizando integralmente as pessoas. Nestas ações, segundo a multinacional, já foram provisionados pagamentos de cerca de R$ 2 bilhões. A empresa diz que realiza encontros regulares com representantes legítimos dos atingidos pelo rompimento da barragem em Brumadinho, com o objetivo de garantir “uma reparação célere e respeitosa”.
Os valores do pagamento emergencial não poderão ser descontados de indenizações individuais a serem pagas pela mineradora no futuro, apenas do montante de possíveis indenizações coletivas.
O defensor público Antônio Lopes de Carvalho Filho, do Núcleo Estratégico de Proteção aos Vulneráveis em Situação de Crise da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPE-MG), diz que não há dinheiro que possa reparar as perdas provocadas pela tragédia. “O pagamento emergencial é uma medida paliativa. A dor de perder uma pessoa na família ou amigos é extrema. Outra dor é a da pessoa que tinha vínculo com a comunidade e foi obrigada a se deslocar. As pessoas perdem um pouco o chão. Fica uma comunidade abalada”, lamenta.
Perdeu a casa própria, vive em ‘situação de pânico’
Na porta de uma casa alugada pela mineradora Vale, onde mora, Adélia Oliveira de Souza Gomes, 56 anos, é o retrato da desolação. Aguarda todos os dias por uma resposta da multinacional que considere digna e justa para reparar os danos decorrentes da tragédia em Brumadinho. Até hoje, vive uma espera em vão.
“Eu estava almoçando na varanda de casa. Nós escutamos um barulho, achamos que era alguma explosão. Meu marido foi lá fora e disse que a barragem tinha estourado. A gente saiu correndo e deixou tudo para trás. Não pegou nada”, lembra a dona de casa. “Houve muita gritaria. Saímos desesperados. Em menos de dez minutos, vimos a lama destruir a nossa casa, tudo o que a gente conquistou ao longo da vida”, lamenta.
Adélia e a família recebem pagamento emergencial. Ela nasceu em Ibirité, a 32 quilômetros de Brumadinho, para onde se mudou porque foi o único lugar em que conseguiu comprar um lote, na parte mais afastada do centro da cidade. Constituiu família. Criou sete filhos com o marido. Em poucos segundos, viu a lama destruir tudo.
“Vivemos um momento de pavor. A lama engoliu tudo, felicidade, sonhos, bem-estar. Aqui, ninguém tem mais paz”, diz a moradora, que ainda aguarda indenização definitiva. “Hoje, vivo em situação de pânico. Quando começa a chover, fico assustada. Olho para o telhado e parece que está querendo descer em cima de mim”.
Assim como Adélia, muita gente ainda não se sente segura para fazer um acordo extrajudicial com a Vale. Além disso, reclama do caos que virou a cidade. Como muita gente ainda trabalha na região para reconstruí-la, o trânsito é caótico. O tráfego de caminhões da mineradora é intenso. Alguns profissionais também se dirigem ao local para tentar amparar as famílias, de alguma maneira. Nada, porém, será capaz de resgatar a tranquilidade em que viviam os moradores, antes da tragédia.
O defensor público Antônio Lopes de Carvalho Filho reconhece a dificuldade das pessoas, de reconstruir a vida no local. “O luto vivenciado pelas famílias atingidas dura um certo tempo, e cada uma delas precisa ser respeitada”, afirma.
Para tentar diminuir a dor dos moradores, o órgão foca em uma iniciativa que visa à reparação individual, conforme termo de compromisso firmado com a Vale no dia 5 de abril, sem a necessidade de protocolar processo judicial. No total, segundo o defensor público, apenas 230 pessoas foram indenizadas pela mineradora por meio dessa iniciativa.
“O valor médio das indenizações é em torno de R$ 600 mil”, afirma Antônio. “No geral, até o momento, houve indenização entre R$ 680, no caso de gastos com combustível, até R$ 3 milhões, envolvendo bens imóveis”, diz ele.
O termo de compromisso se baseia em critérios de justiça social. O valor, portanto, deve considerar a possibilidade de a pessoa comprar um bem idêntico ou de adquirir outro parecido com o mínimo de garantia de dignidade. “Tudo é valorado, inclusive o vínculo que o morador tinha com o local ou o bem”, explica.
Sem expectativa, Adélia passa o dia em casa. Tenta manter sob controle os problemas de saúde, como a hipertensão. Na cabeça resta apenas a memória da vida que tinha na região e que foi cruelmente dilacerada, deixando em todos um profundo vazio e uma aflição contínua.
Barragem da maior mina da Vale em MG continua em alerta
A Barragem Laranjeiras, em São Gonçalo do Rio Abaixo, a 130 quilômetros de Brumadinho, está com as operações paralisadas temporariamente desde o dia 2 de dezembro, quando entrou em nível 1 de emergência. A estrutura integra o complexo da Mina de Brucutu, a maior da Vale em Minas Gerais, conforme apuração da equipe de reportagem da revista Política Democrática enviada ao local.
A paralisação temporária da barragem pode levar até dois meses e suspende a disposição de rejeitos na barragem, advindos da mina de Brucutu. A Vale informa que, nesse período, deverá realizar avaliação sobre as características geotécnicas da barragem. A multinacional não informou quais são os problemas que causaram a interrupção do lançamento de rejeitos no local.
O protocolo de emergência em nível 1, de acordo com a Agência Nacional de Mineração (ANM), não requer a retirada de moradores da área de risco nem toque de sirene. A barragem teve a sua Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) emitida em 30 de setembro de 2019, que permanece válida.
No período em que a disposição de rejeitos estiver suspensa, a usina de Brucutu opera com cerca de 40% de sua capacidade por meio de processamento a úmido com rejeito filtrado e empilhado. De acordo com a Vale, o impacto estimado da paralisação temporária é de 1,5 milhão de toneladas de minério de ferro por mês.
Em fevereiro, a Justiça já havia determinado a paralisação da Barragem Laranjeiras, assim como a de outras sete. A decisão atendeu a uma ação civil pública que tramita em segredo de Justiça. A mineradora chegou a voltar a operar, mas houve nova suspensão no dia 6 de maio.
Em junho, a Vale obteve o direito de retomar as atividades. Na ocasião, a Prefeitura de São Gonçalo do Rio Abaixo alegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) que a paralisação de qualquer estrutura que impossibilite a operação da mina afeta diretamente a economia da cidade. Desde a tragédia de Brumadinho, segundo a Defesa Civil, mais de 20 barragens estão em estado de alerta em Minas Gerais.
Resíduos de Brumadinho já matam os peixes do rio São Francisco
Dados da Fundação S.O.S. Mata Atlântica mostram que alguns trechos do Velho Chico já estão com água imprópria para uso da população . Concentração de ferro, manganês, cromo e cobre estão acima dos limites permitidos por lei
Um dos maiores temores dos ambientalistas depois do rompimento da barragem da Vale Córrego do Feijão, em Brumadinho, no dia 25 de janeiro, concretizou-se: os rejeitos da barragem já contaminaram o rio São Francisco. Os dados recolhidos pela Fundação S.O.S. Mata Atlântica —que monitora o impacto ambiental da tragédia através de uma expedição pelo rio Paraopeba (afluente do Velho Chico)— mostram que alguns trechos do Alto São Francisco já estão com água imprópria para uso da população.
Ribeiro explica que "o medo é que aconteça o mesmo que ocorreu com o rio Doce no desastre de Mariana": em novembro de 2015, o rompimento de duas barragens da mineradora Samarco gerou um tsunami de rejeitos, matou 19 pessoas e deixou um rastro de destruição ao longo de mais de 600 quilômetros da Bacia do Rio Doce, até o litoral do Espírito Santo. "Depois de percorrer 120 quilômetros no Alto São Francisco com pescadores locais, observamos muitos trechos com perda de fauna aquática. As aves também desapareceram do entorno", lamenta a pesquisadora.
Os dados da S.O.S Mata Atlântica mostram que o Reservatório de Retiro Baixo está segurando o maior volume dos rejeitos de minério que vem sendo carreados pelo Paraopeba. Mas, apesar das medidas tomadas, os contaminantes mais finos estão ultrapassando o reservatório e descendo o rio. Segundo Ribeiro, apesar de não conter rejeitos de minério pesado, essa pluma contaminante representa um risco para a população. "Como a cor do rio não mudou em alguns trechos, os ribeirinhos podem ter a falsa sensação de segurança em relação à sua qualidade. Os pescadores mais experientes já deixaram de pescar nesses locais, mas os leigos ainda podem consumir a água sem conhecer o perigo. É um conta-gotas de veneno".
A pesquisadora explica que há possibilidade de limpeza do São Francisco, mas que isso vai depender da capacidade dos reservatórios de Três Marias e Retiro Baixo, que devem funcionar como barreira para conter os rejeitos mais pesados, e de um plano das autoridades para recuperar as nascentes da região. "É um processo que pode levar décadas", afirma Ribeiro. Ela e companheiros da ONG entregaram o relatório à Câmara dos Deputados e ao Ministério Público na quarta-feira e pretendem retomar a expedição para conversar com os ribeirinhos. "Nosso objetivo é levar respostas e instrumentos para as comunidades que não estão sendo informadas dos riscos que correm", diz a especialista.
Míriam Leitão: É preciso haver uma nova Vale
Não basta um novo presidente, após Mariana e Brumadinho, é preciso haver um comando que consiga fazer a transição para uma nova Vale
A queda de Fabio Schvartsman é condição necessária, mas não suficiente para começar a trabalhar por uma nova Vale. As duas tragédias foram tão devastadoras para o país e para a companhia que a reconstrução da imagem só será possível com uma mudança radical na mineradora. A Vale precisava de um nome forte e significativo que iniciasse uma revolução de valores, atitudes e administração da empresa.
A licença do presidente, e sua substituição por pessoa da própria empresa, sem qualquer referência à necessária mudança, não reconstrói a reputação, nem encaminha a solução de qualquer dos inúmeros problemas nos quais a empresa continua soterrada. Em nota divulgada ontem, a Vale disse que a escolha de Eduardo Bartolomeo para diretor-presidente foi uma forma de trazer um “executivo sênior” para o comando. Mas ele ocupa o cargo interinamente.
A comparação é imperfeita, mas vamos lembrar a Petrobras. Atingida por casos de corrupção, por má gestão, interferência política, a empresa teve crise reputacional, alto endividamento e prejuízos. Houve um momento que não conseguia sequer fechar um balanço. Não adiantou trocar duas vezes de presidente. Foi preciso recomeçar com novos parâmetros, a partir da gestão de Pedro Parente. O processo ainda não terminou, mas a companhia voltou ao lucro e tem regras de conformidade mais rígidas.
A Vale provocou duas tragédias ambientais por não ter como fundamentais os valores da preservação do meio ambiente e até da vida humana entre seus parâmetros. O rompimento da Barragem de Fundão em Mariana poderia ter acendido todas as luzes vermelhas no painel corporativo. Houve apenas a troca de presidente, depois que Murilo Ferreira foi se esvaindo em cada aparecimento público pela inépcia como lidou com o problema. Saiu sem prestígio e com os bolsos cheios de milhões de reais dados pela empresa pelo fim antecipado do contrato.
Fábio Schvartsman chegou com fama de midas. Transformara a Klabin e garantia que faria muito mais pela Vale. Em todas as manifestações públicas ele mostrou excesso de autoconfiança, como no dia em que garantiu, diante de um entusiasmado mercado financeiro, que a solução do caso de Mariana era exemplar.
Nunca foi solucionado o caso Mariana, e ele está na raiz de Brumadinho. Foi exatamente por não ter feito o que devia que a tragédia se repetiu. A empresa deveria ter seguido roteiro básico: rever todas as barragens, enfrentar, ao custo que fosse, a mudança de tecnologia de armazenagem nos velhos e novos depósitos de rejeitos, trabalhar com o princípio da precaução em cada caso onde houvesse risco. Além, é claro, de ter reparado os danos humanos e ambientais de Mariana, mostrando estar realmente comprometida com a mudança.
Pelos detalhes divulgados após Brumadinho se vê que a empresa fez a revisão das barragens mas preferiu acreditar que jamais aconteceria o pior cenário. Foi capaz de manter nas proximidades, e na linha de risco, até seus funcionários. Deixou que instâncias inferiores detivessem informações essenciais para a tomada de decisão. Criou uma entidade, a Renova, como forma de se distanciar do problema. A recuperação dos danos do desastre de Mariana passou a ser de responsabilidade da Renova, e a direção da Vale criticava a entidade como se não fosse parte do problema.
Será preciso muito mais do que foi feito até agora para a empresa começar a mudar de fato. Sua relação com o meio ambiente, do qual extrai seus produtos, tem sido predatória, seu descuido com a vida humana é criminoso. Essa é a principal mudança que precisará fazer.
O mercado financeiro tem um olhar peculiar. Quer saber de ativos e passivos, fluxo de caixa e cotação das commodities. A Vale perdeu agora o grau de investimento não pelos crimes que cometeu, mas porque tem um passivo potencial muito grande que pode reduzir sua rentabilidade no futuro. O valor da ação caiu quando o mercado quantificou esses danos e subiu diante da alta do preço do minério de ferro.
O mundo é muito maior que isso. E a mudança da Vale tem que mirar esse objetivo mais amplo e permanente: transformar sua relação com as comunidades nas quais atua, com o meio ambiente e com os rios. Se ela não mudar de fato, ela morre. Empresas deixam de existir quando não sabem reagir às grandes crises. A mudança tem que ir muito além da alteração de nomes ou novos truques de publicidade. É preciso um comando para a empresa que consiga fazer uma transição real para uma nova Vale.
Hélio Schwartsman: Qual crime?
Direito distingue dois tipos principais de homicídio, culposo e doloso
Não há dúvida de que o desmoronamento da barragem da Vale em Brumadinho envolve um ou mais crimes. Se o desastre tivesse se seguido a um terremoto ou coisa parecida, ainda poderíamos invocar a figura da força maior, terceirizando a responsabilidade para Deus. Não sendo este o caso, é lícito concluir que alguém pisou feio na bola. Investigações para apurar as responsabilidades penais são uma necessidade.
Não obstante, leio que a promotoria mineira quer imputar a funcionários da Vale "centenas de crimes" de homicídio qualificado com dolo eventual. O Direito distingue dois tipos principais de homicídio. Quando o autor não tem a intenção de matar, mas, agindo com imprudência, negligência ou imperícia, acaba por fazê-lo, o homicídio é culposo. As penas para ele são menores.
Quando o autor tem a intenção de matar ou assume o risco de fazê-lo, o homicídio é doloso. Se o método utilizado pelo assassino é cruel, como asfixia ou envenenamento, o homicídio, além de doloso, é qualificado, permitindo pena de até 30 anos, a maior admitida no Brasil.
De uns anos para cá, na tentativa de obter condenações mais vistosas, delegados e promotores vêm abusando da figura do dolo eventual, que ocorre quando o acusado, embora não desejasse a morte da vítima, assume o risco de causá-la, revelando verdadeiro desprezo por sua vida.
As discussões sobre a diferença entre dolo eventual e culpa consciente podem ficar bem metafísica, mas há uma regra heurística eficaz para distingui-los. Vou revelá-la ao leitor, mas precisarei uma palavra chula pela qual já me desculpo.
Imagine um cidadão de bem, armado, que quer dar um susto no ladrão, atirando em sua direção. Se ele tem consciência de que pode acertar um órgão vital e matar o bandido, mas diz "foda-se" e atira, temos dolo eventual. Se, ao contrário, depois de atirar e matar o gatuno ele exclamar "fodeu", ocorre a culpa consciente. Brumadinho parece mais um caso de "fodeu" do que de "foda-se".
O Globo: Novo presidente da Vale terá o desafio de recuperar confiança do mercado na empresa
Com saída de Fabio Schvartsman após tragédia de Brumadinho, Eduardo Bartolomeo terá de reorganizar a operação
Rennan Setti e Glauce Cavalcanti, de O Globo
RIO — A saída do presidente da Vale, Fabio Schvartsman, e de mais três diretores da companhia — que passa por seu momento mais difícil depois do rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, que fez mais de 300 vítimas, entre mortos e desaparecidos — pegou de surpresa analistas que acompanham a empresa. A gestão financeira de Schvartsman era elogiada pelo mercado e as medidas adotadas pelo executivo após a tragédia eram vistas como adequadas pelo Conselho de Administração. Se, por um lado, o afastamento dele pode ser visto como uma boa estratégia de redução de riscos, com a Vale evitando atritos com o Ministério Público, por outro há o temor de que a troca de parte da diretoria, em plena crise, crie ruídos na gestão e dificulte a volta à normalidade da mineradora.
A troca de comando representará mais um teste para a mineradora no mercado financeiro. Não há pregão no Brasil nesta segunda-feira por causa do carnaval, mas analistas avaliam que haverá impacto nos papéis da Vale negociados no exterior, como na Bolsa de Nova York. Schvartsman havia assumido a Vale em 2017 com o lema “Mariana nunca mais”, numa referência ao rompimento da barragem da Samarco (da qual a Vale é sócia) naquela cidade mineira, em 2015. Acabou tragado por uma tragédia similar, mas com mais vítimas.
Caberá ao novo presidente interino, Eduardo de Salles Bartolomeo , que até sábado respondia pela diretoria de Metais Básicos, lidar não apenas com a gestão da crise aberta por Brumadinho, mas também reorganizar a operação com a paralisação de outras unidades de produção em Minas. Ele terá ainda de atuar na recuperação da credibilidade da mineradora no mercado, que já perdeu o grau de investimento — espécie de selo de bom pagador — concedido pela agência de classificação de risco Moody’s. Para analistas, o rebaixamento pode ser acompanhado pelas concorrentes Fitch e S&P, o que pode levar investidores institucionais, sobretudo estrangeiros, a ter de vender as ações. Desde a tragédia, em 25 de janeiro, a Vale já perdeu quase R$ 50 bilhões em valor de mercado.
Ações judiciais e medidas prudenciais levaram a Vale a reduzir em 70 milhões de toneladas sua produção anual de minério de ferro, 17,5% dos 400 milhões de toneladas estimados para 2019. Por outro lado, a alta do preço da commodity beneficia a empresa.
Bartolomeo foi anunciado como novo presidente na noite de sábado, após o Conselho da Vale aprovar o pedido de afastamento temporário de Schvartsman e dos diretores executivos Gerd Peter Poppinga (Ferrosos e Carvão), Lucio Cavalli (Planejamento e Desenvolvimento de Ferrosos e Carvão) e Silmar Silva (Operações do Corredor Sudeste). O afastamento foi recomendado por integrantes da força-tarefa que investiga o rompimento da barragem de Brumadinho, integrada pelo Ministério Público Federal e o de Minas, além das polícias Federal e Civil mineira. Em comunicado ao Conselho, as autoridades recomendaram ainda o afastamento de outros dez executivos e funcionários da Vale, o que, segundo a empresa, será analisado no prazo de dez dias estipulado no documento.
Preocupação no exterior
Ainda no fim de semana, investidores e analistas no exterior levantaram dúvidas sobre a mudança no comando da Vale, destacando que Bartolomeo é pouco conhecido nos mercados, diferentemente de Schvartsman, cuja gestão financeira vinha sendo aprovada pelo mercado antes do desastre. O novo presidente é visto como um executivo mais focado na operação, embora pese a seu favor a experiência no ramo.
Engenheiro, ele está em sua segunda passagem pela Vale. Na primeira, entre 2004 e 2012, dirigiu o Departamento de Operações Logísticas e chegou à diretoria executiva. Depois foi presidente do grupo de hotelaria BHG e da Nova Transportadora do Sudeste (NTS), rede de gasodutos vendida pela Petrobras a consórcio liderado pela Brookfield. Também tem no currículo uma passagem pela Ambev. Voltou à Vale em 2017 como conselheiro indicado pelo BNDES, quando chegou a ser cogitado para a sucessão do então presidente da empresa, Murilo Ferreira. Com a escolha de Schvarstman, foi escalado para a diretoria de Metais Básicos, baseado no Canadá.
— Minha preocupação é que dispensar esses altos executivos deixe a companhia sem comando ou com menor experiência em liderança e isso acabe contribuindo para aumentar a crise — disse à agência Reuters John Tumazos, da John Tumazos Very Independent Research, consultoria do setor de mineração nos EUA.
‘Perda relevante’
Um analista de banco de investimentos, que não quis se identificar, disse que muitos clientes entraram em contato demonstrando preocupação. Ele qualificou a mudança na diretoria como uma “perda relevante” para a Vale dado o “alto calibre e proximidade dos mercados” de Schvartsman.
No Brasil, Pedro Galdi, da Mirae Asset corretora, diz ser natural a apreensão de investidores no exterior, o que, na visão dele, deve se repetir na reabertura da Bolsa brasileira, na tarde de quarta-feira.
— É mais uma trovoada na nuvem negra que paira sobre a Vale. Quando há uma tragédia como essa, não tem jeito, a liderança precisa se afastar. Mas são o presidente e mais três executivos de alto escalão se afastando. Não é nada trivial e não vai passar despercebido — afirmou Galdi. — A tendência é que se trate de ajuste pontual, já que o papel já havia sofrido muito desde Brumadinho.
Para Adeodato Volpi Netto, da Eleven Financial, o afastamento dos executivos pode ter dois efeitos distintos no mercado: a postura colaborativa com as autoridades pode ser vista como positiva. Porém, o afastamento pode ser interpretado como sinal de problemas na governança da Vale.
— O mercado pode entender a mudança como gestão de risco, evitando criar resistência no Ministério Público em negociar com aqueles que, em teoria, estariam mais envolvidos com a situação do acidente — diz o analista. — Bartolomeo e os executivos que assumem cargos interinamente são qualificados e não trazem comprometimento técnico às áreas. Em tese, deveria ter impacto neutro ou até positivo aos papéis, mas é assunto tão sensível que fica difícil prever.
Conselho decide agir rápido
Assim que recebeu a recomendação da força-tarefa de Brumadinho para afastar Fabio Schvarstman, na sexta-feira, o Conselho da Vale resolveu agir rápido. Segundo uma fonte, embora estivessem avaliando bem a condução da crise pelo executivo, os conselheiros logo concordaram que deveriam afastá-lo, com os outros diretores, para evitar qualquer rota de colisão com as autoridades. Isso precipitou a carta em que Schvarstman pede afastamento temporário e manifesta “absoluta convicção da retidão de minha conduta.”
Embora o estatuto social da Vale determine que, em caso de afastamento do presidente, o comando da Vale deve ficar com o diretor executivo de Finanças — cargo ocupado por Luciano Siani desde 2012 — Bartolomeo foi escolhido pelos conselheiros porque já havia um plano de sucessão definido com o nome dele para o caso de uma crise como essa.
Apesar de interino, Bartolomeo terá “carta branca” do Conselho, disse uma fonte, como forma de mitigar possíveis dúvidas do mercado sobre a gestão. Uma possível efetivação dele, no entanto, só deverá ser definida em abril, quando uma assembleia de acionistas renovará o Conselho.
José Goldemberg: Licenciamento e desastres ambientais
É possível ser mais rigoroso e proteger a população sem impedir o desenvolvimento
Os desastres ambientais de Mariana e Brumadinho põem na ordem do dia, com alta prioridade, o problema do licenciamento ambiental. Isso significa uma séria inversão de prioridades do governo federal.
A reorganização administrativa promovida em janeiro levou à extinção e realocação de várias áreas ligadas a questões ambientais, o que indicava uma visão desenvolvimentista em que o licenciamento ambiental parece ser um obstáculo ao desenvolvimento.
Essa era explicitamente a visão do governo militar em 1972, por ocasião da primeira Conferência Internacional sobre Meio Ambiente, em Estocolmo, que levou à criação de Ministérios do Meio Ambiente (ou órgãos equivalentes) na maioria dos países do mundo. A visão do governo na época era a de “desenvolver primeiro” e se preocupar depois com as consequências sociais e ambientais decorrentes.
Apesar disso, o professor Paulo Nogueira Neto, da Universidade de São Paulo (USP), conseguiu convencer o presidente Médici a criar, em 1973, a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema) no Ministério do Interior, à frente da qual permaneceu até 1985 e onde conseguiu introduzir toda a legislação e os órgãos administrativos da área ambiental no País.
A criação da Sema deveu-se mais ao prestígio pessoal de Paulo Nogueira Neto, integrante de tradicional família paulista, e sua reputação científica do que a uma compreensão clara da necessidade do governo militar de conciliar desenvolvimento com proteção ambiental.
Ele era visto com reservas por grupos interessados na expansão da ocupação da Amazônia, mas com seu perfil não confrontacional conseguiu introduzir no País legislação ambiental moderna, copiada de países da Europa e dos Estados Unidos. O melhor exemplo é o da criação da Companhia Estadual de Tecnologia e Saneamento Ambiental (Cetesb), em São Paulo. O sucesso em resolver o problema ambiental de Cubatão, no governo Montoro (1986-1989), deu à Cetesb estatura e prestígio para enfrentar outros desafios.
Isso não ocorreu, contudo, em muitos outros Estados e certamente não no governo federal, em que órgãos como o Ibama frequentemente não tiveram apoio para pôr em prática a excelente legislação criada por Paulo Nogueira Neto.
Estamos pagando hoje o preço disso com os desastres de Mariana e Brumadinho. E o governo Bolsonaro não ajudou nada, até agora, a resolver os problemas reais do setor ao reduzir o status do Ministério do Meio Ambiente (que até cogitou de extinguir) e tolerar entrevistas e declarações de membros de sua administração desqualificando a defesa do meio ambiente como inspirada por agentes internacionais e de modo geral “xiita” nas suas reivindicações.
A realidade é outra e esta é uma boa hora de recolocar o problema nos termos corretos.
A legislação atual tem basicamente dois instrumentos para forçar o cumprimento das normas ambientais adequadas: multas e interdições. A aplicação de multas revelou-se insuficiente, como o próprio presidente Bolsonaro tem declarado, porque a judicialização dos processos tornou-a inoperante. O único instrumento eficaz é o poder das agências ambientais de interditar empreendimentos. Foi o uso dela que permitiu à Cetesb “limpar” Cubatão, 40 anos atrás.
Sucede que a decisão de interditar é suscetível a influências políticas: se os órgãos ambientais não tiveram respaldo e apoio ativo dos prefeitos (nos municípios), dos governadores (nos Estados) e do presidente da República (na área federal), a interdição não é eficaz.
Exemplo na área federal é dado pela redução dramática do desmatamento na Amazônia conseguida pela ministra Marina Silva entre 2005 e 2010, que contou com o apoio entusiástico de setores importantes da sociedade, o que intimidou os promotores do desmatamento. Algo semelhante ocorreu no governo Collor, em 1991, quando a ação da Polícia Federal e o monitoramento do desmatamento feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) - que foi tornado público - levaram a uma redução do desmatamento, que recomeçou a subir no governo Fernando Henrique. Em ambos os casos foi a firmeza e a coragem do governo federal que apoiou os técnicos da área ambiental a cumprir suas tarefas. Não foi preciso criar novas leis, mas decidir cumpri-las.
Esta é uma situação parecida com a Operação Lava Jato e o papel do juiz Sergio Moro. A legislação anticorrupção, com delação premiada e outros dispositivos legais, já existia, mas foi a coragem do juiz em aplicá-la que fez toda a diferença.
Isso não significa que a legislação ambiental não possa ser aperfeiçoada e simplificada - sem perder o rigor -, sobretudo definindo melhor as características específicas dos empreendimentos. Licenciar uma pequena central hidrelétrica numa fazenda no interior não precisa ter a complexidade de licenciamento de uma grande usina hidrelétrica.
Para evitar novos desastres, como em Mariana e Brumadinho, o governo federal precisa demonstrar claramente que vai aplicar as leis vigentes, “doa a quem doer”. Somente assim os técnicos e engenheiros responsáveis pelos projetos e pela fiscalização ambiental se sentirão respaldados para propor a interdição de projetos inadequados e não conceder novas licenças sem a permissão de medidas protetoras da população.
Licenciar uma barragem como a de Brumadinho, permitindo que abaixo dela fossem instalados uma pousada e um refeitório da Vale, ultrapassa as raias do absurdo na sua irresponsabilidade. E poderia ter sido evitado por uma simples medida administrativa.
Não é possível, como querem alguns, resolver os problemas da pobreza no País mantendo a natureza intocada. Mas é possível fazer um licenciamento ambiental mais rigoroso e ágil, que proteja a população sem impedir o desenvolvimento.
* José Goldemberg, professor emérito da USP, foi ministro do Meio Ambiente e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo
El País: 2,6 milhões de dólares, o valor de uma vida exposta ao risco das barragens da Vale
Documento da mineradora estima indenização de potenciais vidas perdidas em rompimento de barragens. Estudo é utilizado na avaliação de companhias sobre quais os riscos elas estão dispostas a aceitar
Uma morte em caso de rompimento de barragem da Vale tem o valor de 2,6 milhões de dólares —9,8 milhões de reais, no câmbio atual—. É o que aponta um documento interno no qual a mineradora analisa os riscos de suas barragens e quantifica uma série de consequências econômicas de um eventual rompimento, incluindo as indenizações por morte. Este tipo de estudo é um procedimento normal das empresas cujas atividades são consideradas de risco e é utilizado na avaliação e valoração das companhias sobre quais os riscos de suas atividades que elas estão dispostas a aceitar. Nele, são avaliadas desde as implicações econômicas e ambientais até os prejuízos à imagem da empresa e os custos com saúde e segurança em caso de um eventual rompimento. A empresa estimou em 1,5 bilhão de dólares o custo de um rompimento hipotético.
Segundo a Vale, todas as informações contidas no documento, produzido em 2015, partem de "situações hipotéticas" e o valor da indenização que a empresa deverá pagar às famílias das vítimas fatais de Brumadinho ainda está em discussão com as autoridades brasileiras. A empresa insiste que a barragem I da Mina do Feijão, que ruiu no último dia 25 de janeiro, não apresentava riscos de ruptura e que nos últimos quatro anos aumentou em 180% o investimento em segurança nas suas barragens. Até a última quinta-feira, haviam sido contabilizadas 166 mortese 155 desaparecidos por conta do desastre.
O documento em que a empresa estima o valor das potenciais vidas humanas que podem ser perdidas no caso de rompimento de barragens é intitulado Análise Quantitativa de Riscos em Barramentos — Definição das Consequências. Ele registra que a “indenização por perdas de vidas humanas é o tema com maior divergência de opiniões, elevado grau de incerteza e questões éticas associadas”. E discute três metodologias para chegar a um valor de indenização. No fim, a Vale adota como base a chamada "curva de tolerabilidade de riscos", uma abordagem proposta pelo engenheiro norte-americano Robert Whitman na década de 1980 e que leva em consideração um gráfico que inclui consequências tanto em termos financeiros quanto em termos de potencial de perda de vidas humanas.
Com base nisso, essa metodologia instituiu na década de 1980 que o valor de uma vida é igual a um milhão de dólares. A própria Vale, no seu documento interno de 2015, corrige o valor para aquele ano e determina que a indenização por perdas de vida a ser considerada pela empresa deve ser de 2,6 milhões de dólares. "Esse valor deve ser convertido de dólar americano para reais conforme a cotação da moeda norte-americana na data de realização do cálculo do custo da indenização", aponta o documento. Com isso, a indenização por morte conforme os cálculos admitidos pela Vale poderia chegar a 9,2 milhões reais na cotação atual. Este cálculo, porém, não inclui uma correção monetária para 2019.
Os cálculos da Justiça brasileira
O valor estipulado pela mineradora é superior às indenizações determinadas pela Justiça brasileira em casos de morte, que têm variado entre 300 a 500 salários mínimos nos últimos anos (ou de 15.000 reais a 152.000 reais). Esta foi uma das opções ventiladas pela Vale no seu estudo, mas a própria empresa avaliou o valor pequeno. "Observa-se que, considerando a política e valores da Vale, nas quais a vida humana está em primeiro lugar, cabe destacar que os valores que vem sendo arbitrados são bastante reduzidos", argumenta a própria empresa no documento. A terceira metodologia considerada pela empresa tem como base de cálculo a quantia gasta para reduzir o risco ou quantia compensatória para se aceitar o risco, mas os valores eram tão discrepantes se aplicados a casos históricos que foram rechaçados pela mineradora.
Apesar de prever um valor superior de indenização à média determinada pela Justiça, não há como estimar o valor real das indenizações pagas pela Vale. No caso do rompimento da barragem de Mariana em 2015 — de propriedade da Samarco, empresa controlada pela Vale— foi feito um acordo extrajudicial para indenizar as vítimas que determina a confidencialidade dos valores. Parte das vítimas espera há três anos a reconstrução de suas casas. Também não é possível saber se o cálculo antes projetado pela Vale será considerado para indenizar os familiares das vítimas de Brumadinho. Questionada pelo EL PAÍS sobre isso, a mineradora disse apenas que "os estudos de risco e demais documentos elaborados por técnicos consideram, necessariamente, cenários hipotéticos para danos e perdas". E insistiu, em nota: "Não existe em nenhum relatório, laudo ou estudo conhecido qualquer menção a risco de colapso iminente da Barragem I da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. Pelo contrário, a barragem possuía todos os certificados de estabilidade e segurança, atestados por especialistas nacionais e internacionais".
Impasses na negociação para indenizar vítimas
Chegar a um acordo sobre como será a indenização dos parentes das vítimas de Brumadinho não tem sido fácil. A Vale diz que os cálculos contidos no seu documento interno são apenas hipóteses e que os valores ainda estão em discussão com as autoridades. Na semana passada, o Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais propôs à mineradora uma indenização de 2 milhões de reais ao grupo familiar dos trabalhadores mortos ou desaparecidos. Apesar do valor ser bem inferior aos 9 milhões de reais considerados em 2015 pela empresa em seu documento, a Vale não aceitou e fez uma contraproposta com o pagamento de indenização por danos morais de acordo com o parentesco com as vítimas. Seriam 300.000 reais ao cônjuge e a cada filho, 150.000 a cada pai e mãe e 75.000 a cada irmão. A empresa também pagaria plano de saúde para os familiares da vítima fatal, além de dois terços do salário líquido do trabalhador por mês até a data em que ele completaria 75 anos. Os familiares, porém, não aceitaram essa proposta. Nesta sexta-feira, a Vale acordou com os familiares que os salários dos funcionários mortos e desaparecidos continuarão sendo pagos até que se chegue a uma definição sobre as indenizações, cujos valores ainda estão em aberto.
O professor de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Carlos Edison Monteiro, lamenta que empresas que desenvolvem atividades que podem pôr em risco a vida de pessoas quantifiquem as indenizações por mortes e muitas vezes usem este dado simplesmente como uma das referências para tomar decisões econômicas, aceitando riscos. "A vida humana não pode ser objeto de precificação, não pode ser [tratada como] um fator econômico que as empresas considerem para realizar atividades que põem em risco a vida das pessoas", afirma. "O sistema jurídico brasileiro repudia o entendimento de que a morte de seres humanos vale a pena. É muito errado fazer este cálculo e assumir o risco por questões econômicas. Infelizmente, isso faz parte da cultura do país", acrescenta.
Monteiro explica que o Código Civil brasileiro prevê na indenização material uma compensação por dano emergente (que inclui as despesas dos familiares logo após a morte, como despesas médicas anteriores ao óbito e funerais) e outra por lucro cessante (que visa compensar financeiramente os dependentes da pessoa que morreu). Mas a legislação prevê outra indenização, mais difícil de ser mensurada, que são os danos morais. Neste cálculo, há condicionantes. Em relação ao dever do responsável pela morte ao sustento dos dependentes, deve ser considerado quanto a vítima ganhava. Esse valor vai ser maior para dano material para alguém com um salário elevado que outro que ganhava apenas um salário mínimo, por exemplo. Já o dano moral é o mesmo para todas as vítimas.