briga

Está uma farra danada

A conquista da chefia da Casa Civil, coração do governo, é o caminho mais seguro para as ambições do Centrão

Zeina Latif, O Globo

É amplamente reconhecido que a excessiva fragmentação partidária constrange a governabilidade do presidente, pois dificulta a conquista de apoio majoritário no Legislativo. Como aponta Carlos Pereira, a saída encontrada pelos constituintes para conciliar multipartidarismo e presidencialismo foi delegar mais poderes ao Executivo.

 Permitiu-se assim coalizões pós-eleitorais, ao que Sérgio Abranches denominou “presidencialismo de coalizão”. Trata-se de dividir recursos políticos com aliados, como cargos e recursos, em troca de apoio. Não é uma exclusividade brasileira, mas talvez aqui a dependência seja maior.

As reformas eleitorais dos últimos anos começam a surtir efeito, mas há um longo caminho adiante. As cláusulas de desempenho e a proibição de coligações eleitorais para cargos legislativos têm levado à redução do número de partidos. Em 2018, atingiu-se o pico de 30 partidos no Congresso; atualmente são 24 — cifra muito distante dos 12 em 1986.

Os cientistas políticos ensinam que o presidencialismo de coalizão é inevitável; não é uma escolha do presidente. O que varia é sua qualidade: se está associado a um projeto de governo estruturado; o quanto um presidente cede a pressões, a depender de sua força e habilidade política; e seu desenho — por exemplo, ao ceder mais cargos, respeitando o peso legislativo de cada partido aliado, despende-se menos recursos.

Sendo inevitável, era uma questão de tempo Bolsonaro abandonar o discurso da “nova política”. No primeiro ano de governo, com capital político elevado, foi possível driblar a realidade, contando ainda com um Congresso reformista.

Em 2020, porém, assistimos à sua aproximação com o centrão; não por compreender a essência do presidencialismo de coalizão, mas porque precisou ceder, frente à desidratação precoce de sua popularidade.

Do outro lado do balcão, Bolsonaro encontra agora aliados com, aparentemente, menor apetite por ministérios (setoriais e sociais) de um governo mal articulado e com chances limitadas de reeleição. A principal moeda de troca é outra: dinheiro na mão, para beneficiar currais eleitorais e elevar as chances nas urnas em 2022. É o caso das emendas parlamentares.

A novela começou no governo Dilma, que tinha a fama de não honrar acordos políticos. Em 2015, uma Emenda Constitucional (EC) fixou valor para emendas individuais (1,2% da receita corrente líquida prevista no Projeto de Lei Orçamentária). Com Bolsonaro, mais desconfianças.

Em 2019, uma EC definiu que os recursos devem ser transferidos diretamente aos estados e municípios, sem controle da União, e outra tornou obrigatórias as emendas de bancada (equivalem a 1% da receita corrente líquida realizada no exercício anterior).

A baixa confiança nos presidentes levou, provavelmente, os congressistas a blindarem seus recursos. O resultado foi o aumento da rigidez orçamentária e a redução dos instrumentos de negociação do presidencialismo de coalizão, já que essas emendas estão garantidas.

Assim, foram necessárias novas concessões. Foi criada a emenda do relator para o orçamento de 2020 — mantida para 2021. Não é impositiva, mas consome valor expressivo (R$20 bilhões em 2020).

No total, as emendas parlamentares alcançaram R$35 bilhões em 2020. Seria importante reduzi-las, mas não se resolveria o problema. Os parlamentares buscariam outros caminhos para obter recursos políticos. Se aperta aqui, escapa ali. Exemplos recentes disso são a proposta de fundo eleitoral inflado, a reforma tributária populista que o Congresso quer chamar de sua e o novo Bolsa Família mal desenhado.

Isso sem falar do que já foi aprovado, como os jabutis no projeto de capitalização da Eletrobras. O Orçamento de 2022 promete dor de cabeça.

A conquista da chefia da Casa Civil, coração do governo, é o caminho mais seguro para as ambições do Centrão. Não se trata de prover governabilidade em benefício de uma agenda de governo estruturada, mas sim de um casamento de conveniência em que o presidente-refém sobrevive e o grupo maximiza seus ganhos.

A fraqueza de Bolsonaro aumenta o poder de barganha do Centrão, mas o impeachment não o interessa, pois demandaria a repactuação de acordos com alguém desconhecido.

Bolsonaro fere o espírito de um bom presidencialismo de coalizão. Em um cenário de renovação política, caberá ao próximo presidente acabar com essa farra.


Brigar com vice é mau negócio. O Brasil não precisa de mais esse rolo

Elio Gaspari /O Globo

Em apenas dois meses, Bolsonaro ameaçou não realizar eleições, insultou senadores da CPI, disse que faltou maconha nos protestos contra seu governo e queixou-se da Receita Federal por ter ido “com muita sede ao pote” num projeto que não é dela, mas do ministro da Economia do seu governo. É compreensível que uma pessoa capaz de acreditar que a cloroquina remedeia a Covid-19 e que as vacinas são experimentais acredite em bizarrices. Ex-aluno da Academia Militar das Agulhas Negras, somou -4 com +5, obteve um +9 e viu no desempenho econômico do seu governo “um milagre”: “É inacreditável”.

Atitudes inacreditáveis, porém pontuais, são uma coisa, mas presidente atacando seu vice publicamente é coisa perigosa, que, além de tudo, traz falta de sorte. Bolsonaro disse que seu vice, Hamilton Mourão, “por vezes atrapalha”. Comparou-o a um cunhado: “Você casa e tem de aturar (...), não pode mandar o cunhado embora”. Ao contrário do que acontece com seus cunhados, quem escolheu Mourão para vice foi ele. Aturá-lo faz parte da ordem constitucional.

Fernando Henrique Cardoso e Lula tiveram nos vices Marco Maciel e José Alencar colaboradores exemplares. Nos últimos 50 anos, dois presidentes encrencaram com seus vices: Dilma Rousseff e João Baptista Figueiredo. Ambos se deram mal. Ela foi retirada do cargo, e Michel Temer tomou-lhe o lugar. Figueiredo saiu do palácio por uma porta lateral, enquanto o vice Aureliano Chaves tomava posse no ministério escolhido por Tancredo Neves. Indo mais longe, Jânio Quadros não se dava com João Goulart e renunciou achando que ele não seria empossado. No mínimo, brigar com vice não dá sorte.

Mourão foi escolhido às pressas (o preferido era o príncipe Luiz Philippe de Orleans e Bragança ) e acreditou que teria uma função relevante no governo, talvez cuidando da infraestrutura. Esqueceu-se da lição de Stanislaw Ponte Preta, o inesquecível personagem do jornalista Sérgio Porto: “Vice acorda mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada”.

Mourão está acima da média da equipe de Bolsonaro e poderia ter ajudado em tarefas mais meritórias do que embarcar para Angola numa missão municipal. Ademais, ele só foi colocado na chapa porque traria consigo um apoio militar. Fosse qual fosse o tamanho desse apoio, também não dá sorte perdê-lo. Sobretudo numa fase durante a qual, para um militar, a associação com Bolsonaro pode trazer vantagens, mas cobra prestígio.

O pior que pode acontecer a um país com mais de 550 mil mortos numa pandemia e 14,7 milhões de vivos desempregados é ter um capitão na Presidência desentendido com um general na Vice. Mourão e Bolsonaro não conseguiram criar uma relação parecida com as dos dois presidentes da ditadura que tiveram vices militares. O almirante Rademaker (vice de Emílio Médici) e o general Adalberto Pereira dos Santos (vice de Ernesto Geisel) dormiam até tarde e foram felizes para sempre.

É sabido que o presidente e seu vice afastaram-se. Contudo uma separação pública de Bolsonaro e Mourão conduzirá inevitavelmente a um reflexo no meio militar. Quando esse veneno entra nos quartéis, a desintoxicação custa caro e demora anos para cicatrizar.


Malu Gaspar: Cortes no Orçamento podem render a Bolsonaro nova briga com o Congresso

tesourada que o Ministério da Economia deu no Orçamento de 2021 não encerra o impasse com o Congresso. Pelo contrário, deve criar novos focos de conflito. Ao cortar da peça orçamentária os R$ 29,8 bilhões necessários para reequilibrar os gastos do governo, Guedes mexeu num vespeiro.

Ao invés de tirar da previsão de gastos do governo apenas as despesas que haviam sido acrescentadas pelo relator, o senador Márcio Bittar (MDB-AC), a equipe do ministro Paulo Guedes mexeu em outras dotações orçamentárias que, até agora, não estavam em discussão. 

Do total de cortes, apenas um terço eram de Bittar. O resto foi retirado de outras verbas, dos quais R$ 3,2 bilhões de reais em outros tipos de emendas parlamentares. 

Desse total, R$ 1,8 bilhão ia atender às emendas de bancadas estaduais, definidas em conjunto por deputados e senadores. Os estados que mais sofreram reduções foram o Amazonas (R$ 216 milhões), Piauí (R$170 milhões) e Goiás (R$ 159 milhões), segundo levantamento do Instituto Nacional de Orçamento Público (Inop) a pedido da coluna. 

Outro R$ 1,4 bilhão era destinado às emendas de comissão, que são escolhidas por 16 parlamentares encarregados de distribuir os gastos de acordo com a área de atuação de cada ministério, como as da educação, da segurança pública e da saúde. Entre o envio do Orçamento para o Congresso e a versão sancionada pelo presidente, os recursos para essas emendas simplesmente desapareceram. 

Delas, um terço tinha sido reservado para despesas do Ministério de Desenvolvimento Regional, o mais afetado pela tesoura de Guedes e comandado por seu ri val Rogério Marinho. Outros cortes aconteceram no Ministério da Saúde (R$ 216 milhões), Educação (R$ 325 milhões) e o da Defesa (R$ 153 milhões). 

Com esse movimento, o ministério da Economia, que estava em atrito sobre os cortes com os chamados ministros políticos do governo, com o presidente da Câmara, Arthur Lira, e com o relator Márcio Bittar,  agora comprou briga com dezenas de parlamentares - todos envolvidos na elaboração dessas emendas. 

“Parece que Guedes foi buscar novos adversários”, afirma Renato Melo, diretor do Inop. “O governo jogou no lixo 16 relatórios setoriais do Orçamento, feitos a partir de acordos no Legislativo. E cometeu o absurdo de cortar emendas que não eram objeto de insatisfação do Ministério da Economia. Assim, o ministro arrumou novos inimigos, que não tinham nada a ver com a manobra do relator e foram punidos mesmo assim”. 

A justificativa do Ministério da Economia para o corte de emendas que seriam destinadas à Covid-19, por exemplo, é a de que elas serão substituídas por gastos do próprio governo, distribuídos ao longo do ano e sem as travas do teto de gastos porque, na semana passada, o governo conseguiu aprovar outro projeto de lei excepcionalizando as despesas com a pandemia das regras fiscais. 

Melo diz, porém, que não são gastos equivalentes. As emendas seguem a lógica política, visam a atender aliados de deputados e senadores nos estados, enquanto os gastos do governo seguirão as regras e as prioridades do Ministério da Saúde. 

Por isso, desde sexta-feira, vários parlamentares estão analisando se derrubam ou não parte dos cortes, feitos por meio de vetos do presidente Jair Bolsonaro. Conforme o tamanho e a agressividade da reação, a estratégia de Guedes pode estar arruinada. 

Não apenas por causa dos 3,2 bilhões – parte até pequena perto dos 29,8 bilhões cortados do Orçamento –, mas porque o governo também precisa do apoio dos Congressistas para concluir a segunda parte da manobra programada pelo Ministério da Economia para consertar o "orçamento inexequível" que o governo recebeu do Congresso. 

Na primeira parte, a dos vetos, o governo diz onde vai cortar despesas. Na segunda, que tem de ser feita por projeto de lei, o governo indica como vai remanejar as emendas. Esse projeto foi enviado ao Congresso na última quinta-feira, junto com os vetos, e tem de ser aprovado por maioria simples para passar a vigorar. Para isso, o governo vai precisar dos líderes partidários que viram suas verbas cortadas sem aviso ou negociação.

Essa etapa do "conserto" do Orçamento é crucial para o presidente da República. Sem o remanejamento de verbas, o presidente continuará sob o risco de vir a responder a um processo por crime de responsabilidade. 

Isso porque o impasse começou quando Bittar, o relator, incluiu R$ 29 bilhões em emendas sob sua responsabilidade, que atendiam aos caciques partidários, mas para isso cortou despesas obrigatórias com a Previdência Social. Ao receber o texto, Bolsonaro tinha duas opções: ou vetava tudo, provocando o Congresso, ou mantinha como estava, correndo o risco de sofrer um processo de impeachment por crime de responsabilidade.  

risco de impeachment passou a ser o principal argumento de Paulo Guedes para convencer Bolsonaro a vetar o Orçamento. O movimento provocou uma batalha dentro do governo: de um lado, Guedes querendo cortar tudo. De outro, líderes do Congresso e os chamados "ministros políticos", defendendo a manutenção das emendas. 

Esses últimos diziam que as despesas foram incluídas no texto em razão de um acordo feito com o próprio Guedes, no início de março, mas o ministro da Economia argumentava que ele tinha concordado em acomodar emendas de R$ 16 bilhões e não os quase R$ 30 bilhões. 

Com a sanção do Orçamento já recortado, ficou evidente que Paulo Guedes preferiu distribuir os danos em outras pastas, como a da Educação, e grupos políticos, como o baixo clero do Congresso.  Dessa forma, ele pode até ter conseguido adiar o enfrentamento com os líderes partidários. Mas não conseguirá evitar uma batalha com o Congresso logo mais.