Breno Altman
Breno Altman: Por que o STF está enfrentando a Lava Jato?
Corte tenta se redimir da chancela dada ao que resultou numa anarquia da ordem constitucional promovida pela operação, inclusive com aval do ministro Gilmar Mendes, que hoje lidera as críticas contra seus métodos
Houve um tempo em que a República de Curitiba, com suas regras e procedimentos atípicos, comandada pelo ex-juiz Sergio Moro, recebia a bênção da Corte Suprema. Apesar de um ou outro reparo, o STF parecia avalizar os mecanismos de excepcionalidade que marcavam os processos em curso na 13ª Vara Federal, a sede da Lava Jato. Deslanchada em 2014, a operação viveria sua primavera até o final de 2017. Sob as luzes e aplausos dos principais veículos de comunicação do país, transformados em correias de transmissão do espetáculo exibido a partir do Paraná, a Lava Jato dominava a cena política. Os partidos que compunham a oposição de direita, particularmente PSDB e DEM, entusiasmavam-se com a escalada repressiva contra o Partido dos Trabalhadores e seu líder histórico. Derrotados em quatro eleições presidenciais seguidas, os tucanos apostavam que Moro poderia carimbar seus passaportes de retorno ao comando do Estado.
Forjou-se ambiente de indomável euforia antipetista, semeado por amplos setores da imprensa, a começar pela poderosa Rede Globo, açulando as camadas médias e contagiando as instituições. Sob a bandeira do combate à corrupção, eram corroídas as garantias constitucionais e democráticas. Sequer tratava-se de uma situação nova. A maioria do STF, desde a Ação Penal 470, o chamado “mensalão”, concluída no final de 2012, abdicara da guarda do Estado de Direito, aceitando ou inventando manobras que pudessem solapar o Governo Lula. Alguns dos ministros agiam de forma consciente, talvez acreditando nas denúncias apresentadas pela promotoria. Outros decidiam com a faca no pescoço. Absolver chefes petistas poderia significar um penoso ostracismo.
Somente resistiam algumas vozes isoladas, especialmente o ministro Ricardo Lewandowski. Mesmo a maioria dos indicados durante os mandatos petistas iria aderir à onda das excepcionalidades. O clamor popular fabricado pela mídia de massa, contra um inimigo ao gosto das elites que regem a sociedade, mostrou-se capaz de estimular incontido espírito de manada, cujo ápice ocorreria em 2016, entre a condução coercitiva de Lula e o golpe parlamentar que derrubaria a presidenta Dilma Rousseff.
O ex-juiz Sergio Moro, exatamente nesse período, divulgaria gravações de conversas entre a chefe de Estado e seu antecessor, jogando para a plateia de verde e amarelo. Mais que uma irregularidade, tratava-se de crime escancarado. O STF, no entanto, contentou-se com um muxoxo do ministro Teori Zavascki (1948-2017), criticando a atitude do magistrado curitibano. Seu colega, Gilmar Mendes, agiu no sentido contrário. Com base nos diálogos difundidos, emitiu decisão contrária à nomeação de Lula para a chefia da Casa Civil, em inédita usurpação de atribuição exclusiva do Poder Executivo.
A subversão e a anarquia da ordem constitucional eram chanceladas, entre outras razões, porque jogavam água no moinho da oposição de direita liderada pelo tucanato. O PSDB inegavelmente era a legenda do coração e o bastião dos interesses da imensa maioria dos empresários e banqueiros, dos integrantes da alta burocracia estatal, dos barões da comunicação e das classes médias. Também eram conhecidos e comprovados os vínculos dessa agremiação com os democratas norte-americanos, que governaram a grande potência ocidental até o início de 2017.
Um novo fenômeno, porém, emergiria da potente mobilização golpista contra Dilma, capaz de levar milhões às ruas por sua derrubada. A teia sobre a qual se desenvolveu esse movimento era formada por grupos disseminados nas redes sociais durante os anos anteriores e que tinham mostrado sua musculatura nas chamadas jornadas de junho, em 2013, tomando da esquerda o comando das ruas e as incendiando contra o Palácio do Planalto.
Esses grupos, embora sem coordenação central e com fortes divergências entre si, eram bastante influenciados pela combinação, em diversos graus, de ideias neoliberais com paradigmas neofascistas. Não se reportavam às velhas legendas de direita, fundadoras da VI República, configurada pela Constituição de 1988. Seu papo era outro, misturando nostalgia da ditadura militar, culto às Forças Armadas e antigos credos anticomunistas, um viés autoritário que também embalava valores racistas, sexistas e homofóbicos.
Tais patotas eram adoradoras da Lava Jato, sua principal arma na guerra contra o PT. A turma de Curitiba foi paulatinamente correspondendo a esse amor, se afastando do bloco que havia comandado o impeachment de Dilma e constituído o Governo Michel Temer. Os setores lavajatistas do sistema de justiça, em expansão para outros Estados, como o Rio de Janeiro, foram se incorporando ao caudal político que desaguaria no bolsonarismo. Esse deslocamento refletia a permanente busca por popularidade e a identidade crescente com o projeto de Estado policial representado pelo ex-capitão.
Os sinais práticos logo se manifestariam, entre 2017 e 2018, com investigações e processos abertos contra cardeais do PSDB e do PMDB, atingindo a Aécio Neves, Eduardo Cunha e o próprio Temer. Além de fortalecer o ramo político de sua nova preferência, a operação Lava Jato queria exibir provas de neutralidade, esvaziando parcialmente as críticas de perseguição à esquerda e preparando terreno para o bote final, a prisão e a interdição do ex-presidente Lula, fundamentais para a disputa presidencial.
Esse cenário levou a uma lenta, mas essencial mudança no STF, liderada por Gilmar Mendes, talvez o ministro menos preocupado em agradar a opinião pública. Um grupo importante de ministros começou a questionar os métodos e as ilegalidades da operação, tratando de colocar-lhe algum anteparo.
A alteração de forças começou a ter maior nitidez em abril de 2018, quando foi julgado habeas corpus que poderia impedir o encarceramento de Lula. O receio de uma derrota levou o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, a desembainhar espada e ameaçar veladamente com a reação dos quartéis. A faca no pescoço deixava de ter sentido figurado e definia a batalha.
A vitória de Bolsonaro e a nomeação de Moro para a pasta da Justiça acabariam por fortalecer o mal-estar político e jurídico contra a Lava Jato dentro do STF, que passaria a ser defendida, com radicalidade, apenas por um trio de magistrados indicados por Lula e Dilma: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux. O apoio de Cármen Lúcia e Rosa Weber, também nomeações petistas, passou a ser incerto. Conquistava espaço a aliança entre Lewandowski, Mendes, Dias Tóffoli e Alexandre de Moraes, muitas vezes acompanhada por Marco Aurélio de Mello e Celso de Mello.
Os fatos adquiriram outra velocidade em junho de 2019, com os diálogos sigilosos entre os integrantes da força-tarefa e o ex-juiz, revelados pelo site The Intercept e outros veículos. A ala garantistada Corte, junto com a defesa de Lula e a campanha por sua libertação, passava a ter munição de sobra para colocar a operação Lava Jato na berlinda, desarmando sua sustentação na sociedade e no Estado. O mecanismo estava nu, com a mão no bolso.
O tiro de misericórdia, no entanto, seria dado pelo principal beneficiário das arbitrariedades cometidas sob a batuta de Moro. O presidente Jair Bolsonaro, com pouco mais de um ano no governo, via com desgosto e temor a especulação de que seu ministro poderia ser candidato em 2022, enfrentando-o nas urnas em coalizão com a direita tradicional. Tratou de isolá-lo e desestabilizá-lo, até que saísse do governo, em abril de 2020. Para se assegurar da morte política de um perigoso rival, ao mesmo tempo em que tratava de proteger a si próprio e seu clã frente ao sistema judicial, já tinha nomeado Augusto Aras como procurador-geral, em setembro de 2019, com a tarefa de limar o legado da Lava Jato e construir pontes com os garantistas.
Esse giro seria selado em novembro de 2020, com a indicação de Kassio Nunes Marques ao STF, para o lugar de Celso de Mello, retirado por limite de idade. Essa substituição foi primordial, pois consolidava na Segunda Turma do tribunal, encarregada de todos os processos da Lava Jato, uma maioria crítica, formada por Mendes, Lewandowski e o ministro novato, contra Fachin, podendo atrair Carmen Lúcia para um quarteto dominante. Foi o que se viu no julgamento, em 9 de fevereiro, que liberou o acesso da defesa de Lula às conversas entre os procuradores da força-tarefa e o magistrado responsável.
Rompida com a direita tradicional e abandonada pelo bolsonarismo, a Lava Jato recebeu o beijo da morte, ainda que viúvas e órfãos lutem por sobrevida. Seu corpo, fétido, ainda precisa ser enterrado. A anulação das sentenças contra Lula, por suspeição do ex-juiz Sergio Moro, é a grande chance para o STF, redimindo-se, extirpar o “maior escândalo judicial da história humana”, nas palavras de um articulista do New York Times, repetidas pelo ministro Gilmar Mendes, presidente da Segunda Turma do STF, durante a histórica sessão que cravou mais um punhal no coração da República de Curitiba.
Breno Altman é jornalista e fundador do site Opera Mundi.
Breno Altman: Fora Bolsonaro e Mourão
Governo representa o perigo maior na guerra contra a pandemia e na reconstrução nacional
O Brasil atravessa a hora mais decisiva de sua história recente. A expansão do coronavírus desmascarou o governo como inimigo do povo, da pátria e da vida. Constituem provas de sua pérfida natureza a sabotagem contra o isolamento social e a fragilidade do socorro à imensa maioria da população, ao mesmo tempo em que recursos praticamente ilimitados são ofertados aos grandes bancos. Outro dos delitos cometidos é a permanente ameaça de solapar o que resta da institucionalidade, estabelecendo um regime ditatorial escancarado.
O senhor Jair Bolsonaro, de fato, sintetiza a fusão entre neofascismo e neoliberalismo. As elites brasileiras, incapazes de impor seu plano econômico através das velhas legendas partidárias da burguesia, abriram alas para que a extrema-direita fizesse o serviço sujo.
Ao bolsonarismo caberia concluir a transição para um Estado policial, travestido de democracia formal, que eliminasse o protagonismo das correntes de esquerda, destruindo ou aleijando partidos, sindicatos e organizações desse campo político.
O ponto de largada desse percurso foi o golpe contra a ex-presidente Dilma Rousseff (PT). A pavimentação da estrada esteve a cargo dos bandos que conduziram a Operação Lava Jato, até que se lograsse a prisão e a interdição do ex-presidente Lula (PT). Estavam postas, assim, as condições fraudulentas para a eleição do ex-capitão.
Forjou-se uma aliança entre grandes capitalistas, chefes das Forças Armadas e setores do sistema de Justiça, abençoada pelas frações mais reacionárias dos neopentecostais e tutelada pelos interesses geopolíticos da Casa Branca. Essa coalizão tem como meta a redução drástica dos custos diretos e indiretos das grandes corporações. Salários, direitos sociais e previdenciários, regulamentações estatais, serviços públicos e impostos patronais deveriam ser arrochados para a prosperidade dos mais ricos ser a locomotiva de uma falaciosa prosperidade.
Tal lógica tem impulsionado, desde 2016, a desidratação financeira do Sistema Único de Saúde, condenado a ser ofertado como carniça aos abutres da medicina empresarial, desonerando o Estado e transferindo verbas orçamentárias para o cassino do rentismo.
O atual governo radicalizou essa política. Tornou o país vulnerável à pandemia em curso. A leniência de Bolsonaro frente ao vírus mortal é apenas um dos crimes de responsabilidade que cometeu. Servil aos objetivos capitalistas mais nefastos, o líder neofascista representa o maior dos perigos para a guerra contra a pandemia e a reconstrução nacional.
Ele tem que ser colocado para fora, o mais rápido possível. Mas não se trata de substituí-lo por alguém que represente a mesma política, como é o caso de seu vice. Ou de colocar os rumos da nação sob as manobras de um Parlamento oligárquico, pilotando infindável processo de impeachment.
Apenas haverá saída democrática se o povo exercer sua soberania, com a derrocada do governo Bolsonaro-Mourão e a antecipação das eleições presidenciais, precedidas do cancelamento das farsas judiciais que impedem a participação de Lula.
Não há tempo a perder. Só uma ruptura com o processo que nos trouxe à beira do precipício pode impedir que um desastre irreparável seja o nosso destino.
*Breno Altman é jornalista e fundador do site Opera Mundi
Entrevista com o jornalista Breno Altman: onde Dilma, Lula e o PT erraram?
Neste 20 de agosto, dia em que o PT e algumas entidades anunciam mobilizações e passeatas como contraponto às manifestações populares e da oposição ao governo Dilma no domingo, 16 de agosto, o #ProgramaDiferente, da TVFAP.net, ouve uma das vozes que representam este movimento de resistência do petismo.
O jornalista Breno Altman, diretor editorial do site Opera Mundi, militante do PT, amigo pessoal de Lula e José Dirceu, vinculado a organizações políticas de esquerda no Brasil e no mundo, fala sobre a situação do país e a crise do governo petista nesta entrevista exclusiva. Assista.
Chamado nas redes sociais com as hashtags #NãoVaiTerGolpe e #EmDefesaDaDemocracia, o movimento desta quinta-feira tem à frente, além do PT, também a CUT, a UNE e o MTST. Os discursos são contra "a onda golpista que assola a política brasileira". Vamos acompanhar.
Porém, mesmo dentro deste movimento há divergências. Ainda que todos eles defendam a permanência da presidente Dilma Roussef no governo, a maioria ataca a política econômica e o ministro Joaquim Levy.
Na entrevista, Breno Altman chega a comparar a situação de Dilma à do ex-presidente soviético Mikhail Gorbachev. Durante seu governo, as tentativas de reforma, tanto no campo político, representadas pela Glasnost(abertura política), como no campo econômico, através da Perestroika (abertura econômica), deram fim ao poder do Partido Comunista, levando à dissolução da União Soviética.
"Sem uma mudança na política econômica, a presidente não se reconcilia com a base social petista, e sem se reconciliar com a base social petista ela corre o risco de viver uma situação parecida com o Gorbachev", afirma Breno Altman.
"Qual era a situação do Gorbachev? Ele já não interessava mais a nenhuma classe social. Os setores que defendiam a manutenção do socialismo, viam no Gorbachev um homem que desmontava o socialismo. E os setores desejosos de restaurar o capitalismo, viam o governo Gorbachev como tímido, medroso para as medidas restauradoras que eles desejavam. Era um governo na zona fantasma, e é um governo que vai se desidratando. Sua queda foi um peteleco."
"Não estou dizendo que isso vai acontecer com o governo Dilma, estou dizendo que, quando um governo progressista rompe com a sua base social, aprova uma política econômica que se confronta com a sua base social, esse é o risco que corre."
Assista a íntegra da entrevista com Breno Altman. É bastante reveladora da mentalidade do petismo em crise e dos movimentos partidários que vem sendo executados. Nesse sentido, recomendamos também as entrevistas comLeonardo Attuch (Brasil 247) e com o ex-deputado petista Adriano Diogo, o debate "O PT matou o petismo?" e a cobertura do 1º Ato do PT e do PCdoB "em defesa da democracia e contra o golpismo".