brasileiros
Lula estuda anular medidas do governo Bolsonaro que facilitaram deportação de brasileiros dos EUA
Mariana Sanches,* BBC News Brasil
É o que dizem fontes especializadas em política externa ouvidas pela BBC News Brasil envolvidas na transição de governo e que devem assumir posições de relevo na nova gestão.
Entre outubro de 2019 e novembro de 2022, 7.549 brasileiros que entraram nos EUA sem vistos foram deportados em 80 voos fretados pelos americanos com destino final no Aeroporto de Confins, em Minas Gerais.
O levantamento inédito, ao qual a BBC News Brasil teve acesso, foi feito a partir de dados de desembarque desses passageiros no terminal internacional de Minas Gerais e compilados pelo sociólogo Gustavo Dias, professor da Universidade Estadual de Montes Claros.
Os voos fretados, autorizados pelo Brasil em 2019, são alvos de inúmeras denúncias de maus-tratos e abusos cometidos contra os deportados, que costumam ter os pés e as mãos algemados durante toda a viagem. Até mesmo um menor de idade brasileiro já ficou preso a algemas em um desses voos, o que provocou protestos verbais do Itamaraty junto ao Departamento de Estado americano.
"Eu não estudei atentamente essas medidas, mas, evidentemente, o governo do presidente Lula, como fez no passado, vai revisar e, se necessário, modificar ou anular, cancelar, revogar as medidas que sejam contrárias aos interesses dos cidadãos brasileiros. Como será feito isso é um detalhe que eu não tenho como responder agora", afirmou à BBC News Brasil o ex-chanceler Celso Amorim, que assessora o presidente eleito Lula no tema.
Auxiliares de Lula garantem que esse será um dos temas que o presidente eleito deve levar à mesa quando tiver sua primeira conversa de trabalho com o colega americano Joe Biden.
A revisão dessas regras, no entanto, poderá criar um dos primeiros espinhos na relação até agora positiva com o governo do democrata — já que a questão migratória é um dos assuntos mais delicados da política doméstica dos EUA e um dos pontos frágeis da gestão Biden.
Trump 'cerrou os punhos'
O número de brasileiros que se arriscam na travessia terrestre entre México e EUA deu um salto nos últimos anos, em meio a uma crise de milhões de migrantes que se avolumaram na fronteira americana sul neste mesmo período.
Ao todo, mais de 53,4 mil brasileiros foram localizados pelo serviço migratório na fronteira Sul dos EUA no ano fiscal de 2022 (encerrado em setembro passado) e 56,9 mil, em 2021, segundo o serviço de Proteção das Alfândegas e Fronteiras dos EUA (CBP, na sigla em inglês).
Estes são os números mais altos da série histórica desde 2007. De acordo com o sociólogo Gustavo Dias, que estuda as comunidades mineiras de onde saem boa parte dos jovens e adultos que decidem tentar entrar nos EUA sem visto e por via terrestre, a principal motivação desses migrantes é a busca por oportunidades de ascensão econômica, que essas pessoas se desiludiram de alcançar no Brasil.
"O governo Bolsonaro talvez seja um caso único no mundo de uma gestão que atua para dificultar a mobilidade de uma população que ele ajuda a expulsar do país", afirma Dias, em referência às medidas de facilitação de exportação.
Desde outubro de 2019, quando o republicano Donald Trump era ainda o presidente dos Estados Unidos, o Brasil passou a concordar com o envio de dois voos mensais - fretados pelos americanos - para repatriar brasileiros.
Excepcionalmente, os EUA chegaram a enviar até três voos em um mesmo mês. Na prática, isso resultou em uma devolução média de 204 brasileiros a cada 30 dias desde então.
Segundo relataram à BBC News Brasil três diplomatas brasileiros com conhecimento das negociações, o aceite para o envio de voos americanos com brasileiros ao Brasil veio depois que a gestão Trump "cerrou os punhos".
Considerado o maior aliado internacional de Bolsonaro, Trump comandou uma das políticas mais duras contra imigrantes da história dos EUA, que incluiu até mesmo a construção de um muro em trechos da fronteira com o México.
Ao Itamaraty, então comandado pelo chanceler Ernesto Araújo, a gestão Trump disse que o Brasil fazia parte de uma lista de países "pouco cooperativos" do Departamento de Segurança Interno (DHS, na sigla em inglês), porque não facilitava a deportação de nacionais que chegavam aos EUA.
E fez entender que isso afetaria o estreitamento de laços que o governo Bolsonaro buscava como prioridade. A negociação foi fundamental para que o Brasil voltasse a autorizar os voos fretados dos EUA, que não aconteciam nesses termos desde 2006.
Entre 2006 e 2019 - salvo em casos negociados especificamente - repatriações dependiam da disponibilidade de vagas em voos de carreira entre os dois países.
Como havia poucas vagas nas aeronaves de companhias aéreas comerciais, era relativamente comum que os americanos vissem estourar o prazo para que pudessem manter legalmente o migrante brasileiro detido em algum dos seus centros de detenção.
Assim, os brasileiros acabavam liberados em território americano, com uma notificação para comparecer em alguma corte migratória em alguma data específica. Parte desses migrantes jamais voltava a se apresentar às autoridades. Entre os agentes de migração dos EUA, a medida ganhou o apelido irônico de "notificação para desaparecer".
Mas os voos fretados não foram a única mudança feita pelo governo Bolsonaro para facilitar a deportação de brasileiros. Migrantes indocumentados costumam ter como estratégia se desfazer de seus documentos de identidade, para dificultar ou retardar o processo de devolução a seus países e tentar encontrar formas de não serem expulsos.
Sob Bolsonaro, os consulados brasileiros também passaram a expedir, a pedido de autoridades americanas e até mesmo contra a vontade dos cidadãos brasileiros, atestados de nacionalidade, para comprovar que se tratavam de brasileiros. E a permitir a entrada de deportados ao Brasil apenas com este tipo de documento.
Parte dos deportados brasileiros também afirma não ter sido atendido pelos americanos ao pedir assistência consular antes da deportação, o que é um direito dos migrantes. No ano passado, os EUA chegaram a deportar dezenas de crianças brasileiras filhas de haitianos para o Haiti sem o conhecimento de autoridades do Brasil, conforme mostrou a BBC News Brasil na ocasião.
"Um brasileiro ilegalmente fora do país é problema do Brasil, isso é vergonha nossa, para a gente", afirmou o deputado federal e filho do presidente Eduardo Bolsonaro, em visita a Washington em março de 2019, justificando as decisões que o governo já começava a tomar sobre o tema.
No mesmo período, a gestão Bolsonaro extinguiu a necessidade de vistos para a entrada de americanos no Brasil - em desacordo com o princípio da reciprocidade adotado até então pela diplomacia brasileira.
"Quantos americanos vão vir morar ilegalmente no Brasil, aproveitar essa brecha para entrar aqui como turista e passar a viver ilegalmente? Agora vamos fazer a pergunta contrária: se os EUA permitirem que o brasileiro entre lá sem visto, quantos brasileiros vão para os Estados Unidos se passando por turistas e vão passar a viver ilegalmente aqui?", disse Eduardo Bolsonaro, na mesma ocasião.
O fim dos vistos para brasileiros é um pedido antigo do Brasil, mas não há qualquer previsão para que isso ocorra atualmente.
Bolsonaro também desmontou a política estabelecida em decreto de Lula em 2010 para os migrantes brasileiros, com base nos princípios de não discriminação e garantia dos direitos humanos previstos na Convenção de Viena, da qual o Brasil é signatário. E desmantelou o Conselho de Representantes de Brasileiros no Exterior (CRBE), que servia como interface entre as comunidades e o governo.
"Olha, o que eu falar aqui vai dar polêmica, tá certo? Acho que, em qualquer país, as suas leis têm que ser respeitadas, né? Qualquer país do mundo onde pessoas estão lá de forma clandestina, é um direito daquele chefe de Estado, usando da lei, devolver esses nacionais. Lamento que os brasileiros foram buscar novas oportunidades lá fora e voltam para cá deportados. Lamento, mas temos que respeitar a soberania dos outros países", disse o presidente Jair Bolsonaro em janeiro de 2020, ao justificar as medidas.
Biden deportou mais brasileiros que Trump
Sob Bolsonaro, o Itamaraty tem apresentado reclamações constantes ao governo dos EUA em relação ao tratamento dado aos brasileiros devolvidos - especialmente ao uso de algemas de pés e mãos, que forçam a posição curvada das pessoas por horas seguidas.
Os americanos afirmam que trabalham em uma solução que seja customizada para o Brasil, já que não quer abrir o precedente para que outros países da região também possam contestar o uso de algemas em seus cidadãos.
"Ainda estamos tentando fazer um diagnóstico, mas o que percebemos é que esse governo só olhava pro migrante quando era pra fazer comício. Mas não cuidou, e permitir que o brasileiro seja algemado e enfiado de volta no avião não são medidas condizentes com uma política externa minimamente razoável", afirmou um integrante da equipe de transição sob condição de anonimato por não ter autorização para falar em público sobre o tema. A declaração é uma referência à motociata feita por Bolsonaro em Orlando em junho. A maioria da comunidade brasileira nos EUA votou em Bolsonaro.
Em tese, bastaria uma decisão unilateral de Brasília para que os voos americanos fossem vetados de adentrar o espaço aéreo brasileiro e para que os consulados interrompessem a emissão de atestados de nacionalidade.
A decisão, no entanto, é politicamente sensível e divide até mesmo os diplomatas do Brasil - que reconhecem o direito dos americanos de escolher a quem recebem em seu território.
E embora as medidas tenham sido negociadas por Bolsonaro com a gestão Trump, quem mais se beneficiou delas foi Biden. No período do republicano, segundo o estudo de Dias, apenas 985 brasileiros foram deportados, em 22 voos. Já com Biden na Casa Branca, foram 6.564 devolvidos em 58 voos.
"Uma coisa é falar sobre rechaçar essas regras em 2010, quando quase não entrava brasileiro nos EUA e não havia a pressão que tem hoje dos americanos para liberar documento e mandar de volta. Outra coisa é falar disso agora, a realidade mudou", disse à BBC News Brasil um embaixador que acompanha a questão consular Brasil-EUA.
Por pressão dos americanos, os mexicanos recentemente voltaram a exigir visto para a entrada de brasileiros no país. É uma tentativa de coibir o fluxo de cidadãos do Brasil na fronteira com os EUA.
O time de Lula afirma que tentará convencer os americanos de que a repressão a quem chega na fronteira não é o caminho, e sim atuar nas causas que levam esses latinos a partir de seus países. Um discurso que o próprio Biden defendeu na campanha, mas que se mostrou pouco eficiente em seu governo, quando ele lançou mão de expedientes semelhantes aos de Trump pra tentar controlar a onda migratória.
Em negociação para que os americanos façam aportes de dinheiro para a preservação da Amazônia, apoiem uma candidatura do Brasil numa eventual reforma do Conselho de Segurança da ONU e tentando reatar uma relação com os EUA abalada pelas tensões entre Biden e Bolsonaro, Lula terá que decidir se enfrentará os custos políticos que as mudanças para dificultar a deportação de brasileiros poderão acarretar.
Texto publicado originalmente na BBC News Brasil.
Revista online | Fome cai na boca de presidenciáveis e grita na barriga dos mais pobres
“Aqui em casa a mistura só é arroz e farinha. De manhã, meus meninos comem pão seco com água. Não tenho dinheiro para comprar leite”. O desabafo é da dona de casa Graziela dos Santos Pereira, de 27 anos, mãe solo de quatro meninos, de 11, 10, 8 e 6 anos, respectivamente. “Não consigo tomar nem remédio, porque dói com a barriga vazia”.
Moradora do Sol Nascente, favela no Distrito Federal e uma das maiores no Brasil, Graziela vive de “fazer bico de diarista”, como ela mesma conta, mas apenas quando consegue deixar as crianças aos cuidados de algum parente ou vizinho. “Não sobra para comer. A gente vive da compaixão das pessoas”, afirma. Ela se mudou do Maranhão para o DF, no ano passado, em busca de melhores condições de vida.
Sentada em uma cadeira de madeira de um barraco de lona, onde mora com os filhos, ela diz receber R$ 600 de auxílio do governo federal. Ela diz que “quebrar o jejum com pão de manhã”, “engolir a mistura no almoço” e repetir “arroz com farinha” na janta tem sido a realidade da família dela. “De vez em quando, a gente recebe ovo. Aqui não tem jeito de nem de guardar carne porque falta geladeira”, diz.
O retrato da miséria se estende a outras famílias brasileiras. Estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan), divulgado neste mês, mostra que três em cada dez famílias enfrentam insegurança alimentar moderada ou grave no país.
No total, em todo o país, 33 milhões de brasileiros sofrem com algum nível de insegurança alimentar, que tem três gradações: leve, moderada e grave. Famílias em insegurança alimentar grave passam fome, assunto regular nos discursos dos candidatos à Presidência da República e que mostra a gravidade do cenário brasileiro.
Negacionismo
No Brasil, a fome também é um dos assuntos que mais fazem os adversários cobrar explicações do presidente Jair Bolsonaro nos debates. Ele, porém, vai na linha do ministro da Economia, Paulo Guedes, que diz ser impossível ter 33 milhões de brasileiros passando fome no país.
Além disso, no mês de agosto, Bolsonaro vetou o reajuste de verbas para a merenda escolar aprovado pelo Congresso. Por isso, hoje o repasse para a compra de alimento para cada estudante do ensino fundamental e médio é de apenas R$ 0,36.
Se levar em conta a insegurança leve, de acordo com a pesquisa, o problema fica muito maior. No país, existem 125,2 milhões de pessoas com preocupação sobre a disponibilidade de alimentos, com algum grau de indisponibilidade deles ou passando fome. Equivale a seis em cada dez famílias brasileiras.
De acordo com o levantamento, as populações das regiões Norte e Nordeste são as que mais sofrem, em termos proporcionais, com a insegurança alimentar grave. No Maranhão, estado onde nasceu Graziela, por exemplo, quase dois terços (63,3%) das residências com crianças até dez anos apresentam insegurança alimentar moderada ou grave.
Em seguida, segundo a pesquisa, aparecem Amapá (60,1%), Alagoas (59,9%), Sergipe (54,6%), Amazonas (54,4%), Pará (53,4%), Ceará (51,6%) e Roraima (49,3%). As famílias com renda inferior a meio salário-mínimo por pessoa estão mais sujeitas à insegurança alimentar moderada e grave.
"Os resultados refletem as desigualdades regionais e evidenciam diferenças substanciais entre os estados de cada macrorregião do país. Não são espaços homogêneos do ponto de vista das condições de vida. Há diferenças socioeconômicas nas regiões que pedem políticas públicas direcionadas para cada estado que as compõem", diz Renato Maluf, coordenador da Rede Penssan.
Grave retrocesso
O ano de 2022 será lembrado como o marco de um grave retrocesso da segurança alimentar no Brasil com uma quantidade de pessoas passando fome ainda maior do que o registrado 30 anos atrás. O governo, porém, nega.
Se hoje 33 milhões de brasileiros passam fome no país, em 1993, eram 32 milhões de pessoas nessa situação, de acordo com levantamento semelhante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A população brasileira era 27% menor que a de hoje.
O governo alega que o consumo dos mais pobres está garantido com os programas de transferência de renda cujos valores aumentaram no último ano. O negacionismo do governo do presidente Jair Bolsonaro sobre a fome se comprova, inclusive, na falta de programa efetivo de combate ao problema ou de orientação da população relacionada ao consumo adequado de alimentos.
A Organização das Nações Unidas (ONU) orienta que reduzir desperdício de alimentos é a saída para combater a fome e a insegurança alimentar. O órgão estima que 17% de toda a produção global de comida é desperdiçada, a maior parte dentro das casas. Locais que servem comida, como restaurantes, totalizam 5% desse desperdício, e os varejos de alimentar, 2%.
O problema, que atinge principalmente quem vive em favelas ou outras áreas mais pobres do país, tem chamado atenção de líderes mundiais, que vem pedindo esforços contra a crescente insegurança alimentar, agravada pela convergência de crises, pela invasão russa e falta de fertilizantes.
Em declaração conjunta, publicada ao final de uma reunião ministerial à margem da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, neste mês, Estados Unidos, União Europeia, União Africana, Colômbia, Nigéria e Indonésia afirmaram seu "compromisso de agir de forma urgente, global e concertada para responder às extraordinárias necessidades alimentares de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo".
Graziela, que olhava seus filhos brincarem no terreno de chão batido onde fica seu barracão, diz não ter perspectiva de melhoria. “Está todo mundo falando disso agora como se estivesse preocupado porque é época de eleição, mas viver assim já é algo banalizado. Todo dia a gente ouve o estômago ‘roncar’ de fome em algum momento”, afirma.
“Fome tem solução”
O diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos no Brasil, Daniel Balaban, diz que o principal desafio no combate à fome no mundo é mobilizar países a criarem medidas que os façam parar de pedir ajuda externa. “Para isso, eles têm que investir em políticas públicas”, afirmou.
O diretor ressalta que a continuidade de políticas públicas possibilitará à população acesso a direitos básicos, como alimentação nutritiva e saudável. “A fome tem solução, e, para isso, temos que ter vontade política de resolver o problema. Sem esse investimento contínuo, há risco de os países continuarem a enfrentar cenários de insegurança alimentar e desigualdade social”, alertou.
Confira, a seguir, galeria de fotos:
Segundo Balaban, boas práticas de combate à fome devem ser ancoradas em quatro pilares principais: ajuda humanitária, investimento em educação, políticas de auxílio a pequenos produtores rurais e investimento em ciência e tecnologia. A orientação serve, sobretudo, para países que tiveram a situação da fome agravada pela pandemia da covid-19.
Assistente social e mestre em políticas públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Andreia Lauande ressaltou que a fome não é um problema que surgiu com a pandemia do coronavírus. “Infelizmente, não é só a pandemia responsável por esse processo. Nós passamos por uma crise extremamente complexa que se acentuou com a pandemia”, disse ela.
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Clube de Leitura Eneida de Moraes: acesso a livros e à cultura
Luciara Ferreira*, com edição da coordenadora de Mídias Sociais da FAP, Nívia Cerqueira
De acordo com a 5ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, lançada em 2020, o Brasil ocupa a 60ª posição entre 70 países que está abaixo da média mundial em leitura. O estudo constatou que 27% dos brasileiros, entre 15 e 64 anos, são analfabetos funcionais. 42% dos entrevistados alegaram que não leem porque não compreendem ou têm dificuldades; 44% não são considerados leitores (não leram nem mesmo um trecho de um livro) e 12% são leitores de romances/conto.
Criado com o objetivo de contribuir para o aumento do número de leitores ativos no Brasil, o Clube de Leitura Eneida de Moraes, promovido pela Biblioteca Salomão Malina, desenvolve encontros online desde junho de 2019 e conta com um grupo de 43 leitores participantes, que escolhem de forma democrática o livro que será debatido no mês com autores convidados.
Thalyta Jubé, coordenadora da Biblioteca Salomão Malina, ressalta a importância do estímulo à leitura no nosso país, onde o índice de pessoas que leem é muito baixo, se comparado a outros lugares. “É por meio da leitura textual que a pessoa desenvolve a capacidade de raciocínio crítico e habilidades de interpretação”.
Clube de Leitura
O Clube de Leitura Eneida de Moraes homenageia a jornalista e escritora paraense de nome homônimo, que morreu em 2003 aos 92 anos e foi destaque na literatura. Com 11 obras publicadas em várias traduções, Eneida cultivava amizades com grandes escritores modernistas como Carlos Drummond de Andrade, Dalcídio Jurandir e Graciliano Ramos. Dentre os seus livros mais famosos estão os de crônicas ‘Aruanda’ e ‘Cão da Madrugada’ e o autobiográfico ‘Banho de Cheiro’.
Confira, abaixo, galeria de fotos:
Neste mês, o clube de leitura debaterá a obra Amar se aprende amando, de Carlos Drummond de Andrade. O evento, que é gratuito e aberto ao público, acontecerá na próxima terça-feira (26/7), a partir das 19 horas, com transmissão ao vivo nas redes sociais da FAP e Biblioteca Salomão Malina.
A linguista Lorena Silva de Moura, que já foi mediadora do Clube de leitura Eneida de Moares, fala dos inúmeros benefícios desta iniciativa para iniciantes. “Os encontros e a leitura estimulam a troca de ideias e informações, além de fortalecer o nosso próprio conhecimento e sensibilidade, proporcionam a valorização da leitura e difusão do livro, num país extremamente desigual em que o acesso a livros e a cultura são muito escassos ", explica.
Sobre a Biblioteca Salomão Malina
A Biblioteca Salomão Malina, espaço que integra a Fundação Astrojildo Pereira (FAP) é um importante equipamento de incentivo à produção do conhecimento em Brasília e regiões do entorno.
Ao longo dos seus 14 anos de existência tornou-se ponto de cultura consolidado. Seu acervo, com mais de 5.000 títulos para empréstimo, é especializado em Ciências Sociais e Humanas, contando também com livros da literatura.
*Integrante do programa de estágio da FAP sob supervisão.
O retrato da disparada da inflação no 'prato feito' brasileiro
Da BBC News*
Imagine que uma pessoa vai a um supermercado para comprar todos os ingredientes necessários para fazer um típico prato feito brasileiro.
Os ingredientes para o prato variam de acordo com a região, mas para esse exercício estamos considerando sete alimentos: arroz, feijão carioca, tomate, alface, alcatra, batata e ovos.
Se hoje uma pessoa gastaria cerca de R$ 100 para comprar todos os ingredientes para esse prato feito, há um ano — em abril de 2022 — a mesma pessoa teria gasto apenas cerca de R$ 85 nos mesmos ingredientes, segundo os dados do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, a principal referência de inflação do IBGE no Brasil.
(Nesta compra não estamos levando em consideração o tamanho das porções, o que vai sobrar de cada alimento e nem o custo de outras variáveis, como temperos, óleo de cozinha e preço do gás para cozinhar.)
Os alimentos se tornaram o principal vilão da inflação brasileira — os preços gerais da economia subiram 12,13% nos últimos 12 meses, mas a alimentação no domicílio (que exclui comida comprada em restaurantes) subiu 16,12%. No último mês, a alimentação e transportes responderam por 80% da alta geral dos preços no país.
Alguns itens do prato típico brasileiro ficaram mais baratos em um ano, como é o caso do arroz e do feijão-preto. Mas eles são minoria — mais de 90% dos produtos encareceram, a maioria com altas superiores a 10%.
E para piorar, analistas acreditam que os preços devem subir ainda mais neste ano.
Substitutos?
Mesmo diante da escalada de preços, há formas de se atenuar o efeito da inflação no prato dos brasileiros buscando substitutos.
Alguns alimentos importantes da cesta básica tiveram queda. O arroz ficou 11% mais barato em um ano. O feijão-carioca encareceu 9,4%, mas ele pode ser substituído pelo feijão-preto, cujo preço caiu quase 7%.
A alcatra (que teve alta de 13%) é outro item que pode ser substituído — por carne de porco (cujo preço caiu quase 6% ao ano) ou carne-seca e de sol (cujo preço subiu 3%, um reajuste inferior à inflação média). Já o frango — que costuma ser alternativa mais barata de proteína — também teve inflação alta, de 21%.
A batata inglesa subiu 63%, mas a batata-doce teve reajuste bem menor, de 3,58%.
Na salada, a substituição é mais difícil. Tubérculos, raízes e legumes encareceram 69% em um ano; hortaliças e verduras subiram 36%.
Fora do almoço, a alimentação pode ser complementada com frutas cujos preços caíram em um ano ou registraram pouca inflação. É o caso do abacaxi e da banana-maçã (que estão 3% e 5% mais baratos, respectivamente) e a laranja-pêra (cujo preço subiu 4%). Mas outras variedades de banana e laranja tiveram reajustes grandes de preço.
É importante ressaltar também que essa inflação é nacional — ou seja, que os preços variaram de forma diferente de acordo com a região do Brasil.
Salário defasado e aceleração de preços
O mais recente boletim do IBGE revela três tendências: os salários não estão acompanhando a alta dos alimentos, os preços estão subindo de forma mais acelerada neste ano e a maioria dos alimentos nos supermercados teve reajustes grandes.
A alimentação no domicílio ficou 16,12% mais cara no Brasil, em média — entre abril de 2021 e abril deste ano. O aumento é bastante superior, por exemplo, ao reajuste de 10,18% no salário mínimo que aconteceu no começo de 2022.
Outro estudo confirma que a maioria dos brasileiros não está conseguindo "vencer a inflação". Em março, apenas 13,9% das negociações salariais no Brasil medidas pelo Dieese produziram ganhos reais para os trabalhadores, acima da inflação. Em 34% das negociações, as categorias conseguiram "empatar com a inflação" — e em 52% desses acordos os trabalhadores tiveram aumentos que não cobrem a subida de preços da economia.
Outra tendência preocupante é que os preços parecem estar subindo de forma mais acelerada neste ano.
O IPCA (que mede não só o preço dos alimentos, como de diversos bens e serviços) teve alta de 1,06% em abril — a maior variação para um mês de abril em 27 anos. A inflação acumulada dos últimos 12 meses é de 12,13% — acima dos 11,30% nos 12 meses anteriores.
E a alta dos alimentos é a que mais preocupa — alimentos e bebidas ficaram 2,06% mais caros em apenas um mês.
Quem vai ao supermercado consegue ver exatamente como o alimento se tornou o "vilão" da inflação brasileira.
Dos 159 alimentos cujos preços são monitorados pelo IBGE, apenas 9% (14 deles) tiveram queda nos preços nos últimos 12 meses (confira na tabela abaixo os preços que mais caíram e os que mais subiram). Os demais 91% ficaram mais caros — sendo que 54% (ou 84 itens) tiveram um aumento expressivo, de mais de 10%.
Três produtos — cenoura, tomate e abobrinha — mais que dobraram de preço em apenas um ano.
Por que mais caro?
O movimento da alta dos preços não é isolado no Brasil.
Até países ricos e com histórico de baixa inflação — como Reino Unido e EUA — estão enfrentando a maior escalada de preços desde 1982. O Reino Unido vive atualmente uma "crise do custo de vida", com disparada no preço de alimentos e energia.
Alguns motivos dessa disparada são comuns em todo o mundo: problemas nas cadeias globais de suprimento (que nunca se recuperaram totalmente da pandemia) e a guerra na Ucrânia (que fez o preço da energia disparar, com as sanções impostas à Rússia, além de problemas no fornecimento de cereais produzidos na Ucrânia).
No Brasil, essas variáveis todas impactaram diretamente no preço dos alimentos, também devido ao aumento no custo do transporte de cargas.
Os preços vão parar de subir?
Os preços devem ficar mais caros ainda neste ano, segundo alguns analistas.
A corretora XP aumentou sua projeção de inflação de alimentos para este ano — de 9,5% para 11,1% — em estudo divulgado em maio. Com isso, prevê que a inflação geral no Brasil vai fechar o ano em 9,2%.
"Nossa projeção para os preços de alimentos considerava os efeitos inflacionários da guerra na Ucrânia. Elevamos [agora] nossa projeção para englobar os efeitos secundários da alta de combustíveis e outros custos no grupo", diz o boletim.
Para o ano que vem, a corretora prevê que os alimentos continuarão subindo, mas em um ritmo menos acelerado: de 3,5%.
A XP elenca três motivos pelos quais a inflação seguirá alta: os severos lockdowns na China por conta da pandemia de covid (que provocam rupturas nas cadeias globais de suprimento), a grande probabilidade de novos reajustes de combustíveis no Brasil (segundo o estudo, o preço no Brasil ainda está defasado em 20% em relação ao exterior) e uma disparada na inflação de serviços (que encarecem os demais preços da economia, inclusive dos alimentos).
*Texto publicado originalmente no BBC News
Como envelhecimento do eleitorado brasileiro pode afetar as eleições
Leandro Prazeres, BBC News Brasil *
O Brasil, que já foi chamado de "país do futuro", tem eleitores cada vez mais velhos. Essa mudança reflete a transformação demográfica do próprio país como um todo e tem impactos diretos nos rumos da política nacional no curto, médio e longo prazos, dizem especialistas ouvidos pelas BBC News Brasil.
Segundo eles, esse envelhecimento do eleitorado brasileiro deve dificultar, por um lado, a aprovação de pautas consideradas "progressistas" e mais identificadas com a esquerda, como a legalização do aborto e das drogas.
Por outro lado, eles afirmam, pesquisas recentes mostram que os eleitores mais velhos no Brasil tendem a ser mais favoráveis à democracia.
Em um horizonte mais imediato, o aumento no número de eleitores mais velhos é um fator que pode ter bastante peso nas próximas eleições presidenciais, em outubro.
O envelhecimento do eleitor é uma boa notícia para o presidente Jair Bolsonaro (PL), que tenta a reeleição, que tende a ter uma maior aprovação entre os mais velhos. Do outro lado, é um desafio para seu principal rival e favorito nas pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que pontua melhor entre os mais jovens.
Dados do TSE evidenciam essa tendência. Em 1994, 21,46% dos eleitores aptos a votar tinha entre 16 e 24 anos. Em 2022, os jovens nessa faixa etária são apenas 13,78% do total.
Na outra ponta, o número de eleitores acima dos 60 anos cresceu. Em 1994, eles eram 11,6% do eleitorado. Em 2022, são 20,26%.
As mudanças também afetaram o "miolo" da pirâmide etária do eleitorado. Em 1994, o grupo que concentrava o maior percentual de eleitores tinha entre 25 e 34 anos de idade.
Naquele ano, eles representavam 27,6% do eleitorado. Em 2022, a faixa com o maior percentual de votantes está pelo menos 20 anos mais velha e vai dos 45 aos 59 anos de idade. Eles somam 24,8%.
Mas quais são as consequências de um eleitorado cada vez mais velho?
Conservadorismo e idade
O doutor em demografia e pesquisador aposentado do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) José Eustáquio Diniz Alves estuda o processo de envelhecimento do eleitorado brasileiro há vários anos.
Ele diz que esse fenômeno é uma tendência mundial resultante de uma combinação de fatores que afeta a demografia do país como um todo.
"Nas últimas décadas, a gente teve uma redução das taxas de natalidade e um aumento da expectativa de vida. Isso se reflete, também, na composição das pessoas aptas a votar", explica.
Segundo o Banco Mundial, a taxa de natalidade no Brasil em 1960 era de 6,06 crianças por cada mulher. Em 2019, ela caiu para 1,72. A queda acompanhou a tendência global. Em 1960, a taxa de natalidade mundial era de 4,98 crianças por cada mulher. Em 2019 ela ficou em 2,4.
Do outro lado dessa equação, o IBGE mostra que a expectativa de vida no Brasil saiu de 45,5 anos em 1940, para 76,8 anos em 2020.
Internacionalmente, alguns estudos apontam que o envelhecimento do eleitorado tende a favorecer partidos ou lideranças classificadas como conservadoras.
Em 2014, os professores James Tilley e Geoff Evans, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, publicaram uma pesquisa indicando que, à medida que o eleitorado britânico envelhece, aumenta a tendência de que ele vote em maior número no Partido Conservador, legenda teoricamente mais identificada com a direita e a defesa de valores tradicionais naquele país.
Estudos anteriores apontam que, à medida que a idade avança, a tendência é que os indivíduos sejam menos abertos a novas experiências e conceitos e deem preferência a produtos ou soluções (inclusive políticas) que já foram testadas previamente.
José Eustáquio avalia que, no Brasil, um dos efeitos do envelhecimento da população seria uma maior dificuldade para a implementação de políticas públicas classificadas como "progressistas".
"No resto do mundo, pessoas mais idosas tendem a ser mais conservadoras e o Brasil acompanha esse fenômeno. Nesse contexto, candidatos que defendam abertamente pautas como aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo e uma política mais branda em relação às drogas tendem a ter mais resistência com um eleitorado mais velho", explica o pesquisador.
Religião
A professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), Luciana Veiga, concorda com José Eustáquio.
Segundo ela, uma das chaves para explicar a relação entre conservadorismo e idade no Brasil é a religião.
Luciana cita a pesquisa Latinobarômetro, que coleta dados de países da América Latina sobre diversos temas.
Em 2020, de acordo com os dados mais recentes, a pesquisa aponta que, no Brasil, o percentual das pessoas que afirmam seguirem uma religião aumenta conforme a idade.
A pesquisa mostra que na população entre 15 a 25 anos de idade, 76% dos entrevistados afirmam professar algum tipo de religião. Entre as pessoas com 61 anos de idade ou mais, esse percentual sobe para 95,5%.
"Nesse contexto, é difícil imaginar, ainda que não seja impossível, que pessoas mais religiosas possam apoiar algumas pautas como o aborto, por exemplo", explica Luciana.
O aborto, aliás, voltou a ser tema das eleições presidenciais deste ano.
Em fevereiro, a senadora e pré-candidata à Presidência Simone Tebet (MDB-MS), disse ser contra o aborto.
Em abril, Lula disse que o aborto deveria ser tratado como uma questão de saúde pública e que todo mundo deveria ter direito ao procedimento.
A reação às declarações foi imediata. Lideranças religiosas e adversários políticos de Lula, entre eles o presidente Jair Bolsonaro, criticaram a fala do ex-presidente.
Dias depois, o pré-candidato disse que era pessoalmente contra o aborto e que ele havia apenas defendido que pessoas que teriam praticado o aborto deveriam ser atendidas pela rede pública.
"Essas pessoas pobres que por 'n' razões abortam, e eu não quero saber por que elas abortam, o Estado tem que cuidar. Não sei qual o mal entendimento que as pessoas têm disso. É apenas uma questão de bom senso. Ele (aborto) existe, por mais que a lei proíba, por mais que a religião não goste. Ele existe e muitas mulheres são vítimas disso", disse o petista.
Apoio à democracia aumenta com a idade
José Eustáquio e Luciana Veiga afirmam que o envelhecimento do eleitorado não é necessariamente ruim e que ele pode ter consequências positivas para o restante da população.
Analisando os dados do Latinobarômetro, Luciana Veiga diz que, no Brasil, eleitores mais velhos são os que mais tendem a valorizar o regime democrático.
A pesquisa mostra que entre as pessoas de 15 a 25 anos, 37,2% afirmam que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo. Entre os que têm 61 anos de idade ou mais, esse percentual sobe para 41,1%.
"Considerando o grande número de eleitores nessa faixa etária, isso é uma boa indicação porque, em tese, criaria mais dificuldades a aventuras antidemocráticas", explica.
José Eustáquio afirma que o envelhecimento do eleitorado é um processo aparentemente irreversível com o qual a sociedade terá que aprender a lidar. Segundo ele, isso só configura um problema se os eleitores envelhecerem sem se darem conta das suas responsabilidades com o futuro do país.
"Não é porque um país é mais velho que ele, necessariamente, terá políticas conservadoras. O Uruguai e a Argentina têm uma composição etária mais velha que a brasileira, mas aprovaram leis progressistas sobre o aborto e drogas. A questão é como nossos eleitores estão envelhecendo", disse o pesquisador.
De olho no voto
Nas últimas semanas, autoridades, políticos e até artistas de Hollywood como o ator Leonardo Di Caprio convocaram os jovens brasileiros a tirarem o título de eleitor e participar das eleições deste ano. O objetivo era aumentar a participação dos mais jovens na corrida eleitoral.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) comemorou um aumento de 42,7% no número de títulos emitidos para pessoas entre 16 e 18 anos de idade na comparação com 2018.
Apesar de toda a celebração, especialmente entre lideranças e artistas posicionados mais à esquerda, o cientista político e presidente do conselho científico do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe), Antonio Lavareda, aponta, que o envelhecimento do eleitorado no Brasil já é alvo de atenção das campanhas presidenciais neste ano.
Ele explica que esse fenômeno cria um desafio a mais para candidatos e candidatas: convencer aqueles que já não são mais obrigados a votar a irem às urnas. No Brasil, o voto é facultativo para quem tem mais de 70 anos de idade.
Segundo o TSE, o Brasil tem 12,9 milhões de eleitores nessa faixa. Eles equivalem a 8,64% do eleitorado. Como comparação, a outra faixa de voto facultativo, que compreende os eleitores entre 16 e 17 anos de idade, tem 1,62 milhão de pessoas aptas a votar e representa apenas 1,08% do eleitorado.
"Um dos principais trabalhos que os candidatos vão ter é encontrar uma maneira de atrair esse eleitor para as urnas. É muita gente que não pode ser abandonada nessa disputa", diz Lavareda.
Ao analisar o cenário eleitoral mais recente, Lavareda diz que um dos principais desafios de Lula é ampliar suas intenções de voto junto aos eleitores mais velhos.
"A nossa pesquisa mais recente mostra que a diferença entre Lula e Bolsonaro vai caindo conforme a idade dos eleitores aumenta. Entre os que têm 16 a 34 anos, Lula tem 17 pontos percentuais de vantagem. Já entre os que têm 55 anos ou mais, essa diferença é de apenas sete pontos", explica.
Lavareda avalia que, de certa maneira, a mera candidatura de Lula, que tem 76 anos de idade, já é uma sinalização do PT a esta faixa do eleitorado.
"Há 15 anos, a candidatura de alguém com essa idade talvez não fosse possível. Lula ser candidato aos 76 anos de idade já aponta para uma mudança na cultura sobre o que os idosos podem fazer. Isso já é um aceno para os mais velhos", defende Lavareda.
O cientista político afirma, ainda, que o aumento de idosos no eleitorado brasileiro vai obrigar os candidatos a criarem propostas e discursos que façam sentido para esse segmento.
"O mundo da política é como se fosse o mundo privado. Quem precisa se vender, não vai negligenciar um mercado tão grande e importante", avalia Lavareda.
*Texto publicado originalmente no BBC news Brasil
Merval Pereira: Os fatores de evolução
A consultoria Macroplan, do economista Claudio Porto, especializada em cenários prospectivos, mapeou os dez fatores que vão influenciar os rumos do país na próxima década no estudo recém lançado “O que será do Brasil pós-COVID: um Ensaio Prospectivo até 2030”. O resultado é baseado em uma pesquisa junto a 139 pessoas qualificadas, entre executivos, gestores, acadêmicos e especialistas dos setores privado, público e do 3º setor.
Os “aceleradores de transformações” têm, na visão da Macroplan, um forte potencial de impacto sobre Brasil nos próximos 10 anos. Se forem bem compreendidos e manejados por lideranças racionais e progressistas, o país tem grande chance de retomar uma rota saudável de recuperação sustentada.
O fato é que “nenhum executivo ou agente público, privado ou do terceiro setor terá chance de sucesso se ignorar esses vetores de mudança em sua navegação nos negócios públicos ou privados no Brasil ao longo desta década”, conclui Claudio Porto.
Os 10 vetores que, na visão da Macroplan, vão influenciar drasticamente o futuro do Brasil até 2030 são:
1) O endividamento público e privado. Até 2030 a dívida bruta do Governo Federal ( Em 2020 pouco superior a 90% do PIB) alcançará a proporção de 112% no cenário base ou 156% no pessimista, segundo projeções da IFI-SEnado.
2) O desemprego e a pobreza no país: mantidas as condições que prevaleceram nos últimos cinco anos e nos dias de hoje (14,4% desempregados), para o decênio de 2020-2030, a taxa média de desemprego provavelmente será maior do que na década passada. Para que a média seja similar à do período 2012-2019, será preciso que a taxa caia em torno de 5% ao ano até 2030 - o que não se dará naturalmente.
3) A segurança sanitária: há indícios de uma crescente valorização das medidas sanitárias e da saúde pública por parte da população, o que pode favorecer a ampliação de investimentos e a performance do sistema único de saúde (SUS). Um sinal relevante foi o bom desempenho eleitoral dos governantes e candidatos que mostraram melhor dedicação na prevenção ou mitigação da COVID-12 nos seus espaços administrativos, confirmando que a boa oferta de saúde pública gera votos.
4) A evolução da Educação: Até 2030, o modelo educacional brasileiro será mais diverso e integrado devido às inovações tecnológicas. O ensino a distância (ou semipresencial) deve consolidar-se. Desde 2010, o EAD vem crescendo a taxas de 20% ao ano sinalizando uma oportunidade para acelerar o passo e reduzir o enorme atraso do país neste campo.
5) Os investimentos em dados, Big-Data e Analytics: para 2020-2022, estima-se um investimento de R$ 142,7 bilhões (23% a.a) em computação em nuvem e R$ 68,8 bilhões (13% a.a) em Big Data e Analytics. O digital se consolidará como a plataforma dominante, mesmo com todas as nossas precariedades.
6) O trabalho remoto: até setores com trabalho humano intensivo, como o agrícola, aderiram ao novo modelo. A tendência mais provável é que o “modelo home office” reflua e um modelo híbrido passe a se constituir um novo padrão.
7) Os negócios digitais no país: o acesso à internet do Brasil já alcançou 70% da população em 2020, e irá ampliar o alcance dos negócios digitais principalmente Fintechs, Streamings e Marketing de conteúdo.
8) Os investimentos em automação e robotização - Internet 5G e impressoras 3D serão comuns até 2030. E robôs vêm sendo utilizados em trabalhos anteriormente feito por humanos, sobretudo nas indústrias.
9) A aceleração do comércio eletrônico- Até 2030, o faturamento do comércio eletrônico no Brasil alcançará a marca de R$ 315 bilhões, mantida a taxa média de 16% crescimento anual entre 2011 e 2019.
10) Os impactos das conexões virtuais e das redes sociais na sociedade - Os brasileiros estão entre as populações mais conectadas do mundo (mais de nove horas por dia), e nas primeiras colocações entre os que mais usam plataformas de mídia social. Um fato portador de futuro que está emergindo é a aceleração da melhoria dos filtros críticos da sociedade em relação às chamadas “fake news”. Neste terreno, a mídia convencional está sendo revalorizada e tem desempenhado um papel educacional de massa muito construtivo e decisivo.
Arnaldo Jordy: Brasileiros na fronteira
Os brasileiros ficaram chocados nas últimas semanas com as imagens de crianças aprisionadas em abrigos nos Estados Unidos, detrás de grades, muitas delas chorando, amedrontadas porque haviam sido separadas dos seus pais, levados para outras prisões distantes, em um desespero que lembrava um campo de concentração. Entre elas, hoje se sabe que há 51 crianças brasileiras, ainda sem perspectiva de rever os pais ou outros parentes.
Esse foi o resultado imediato do endurecimento da política de imigração dos Estados Unidos, uma promessa de campanha do presidente Donald Trump, que elegeu os ilegais como inimigos preferenciais. O crime dos país dessas crianças foi sair em busca de uma vida melhor em outro país. Trump é o porta-voz de uma tendência isolacionista e nacionalista, na contramão do sentimento de colaboração entre as nações surgido após a Segunda Guerra Mundial e que levou ao surgimento das Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Trump acirra o protecionismo no comércio exterior dos Estados Unidos e provoca instabilidade na economia global. Na questão migratória, elegeu-se com a promessa de construir um muro para separar os Estados Unidos do México, como se fosse possível, em um mundo globalizado, isolar um país e impedir a livre circulação de pessoas. Os Estados Unidos, por ter a economia mais forte e ser a principal potencial militar, é favorecido pela economia globalizada. Isso, no entanto, precisa ser mediado para que o aspecto humano seja considerado, até que, num futuro próximo, a figura do estrangeiro não mais exista e ninguém seja diminuído pelo local de nascimento.
Esta semana, encaminhei requerimento ao Itamaraty para que o governo brasileiro solicitasse informações sobre a situação das crianças brasileiras aprisionadas na fronteira com os Estados Unidos, inclusive sobre um jovem de 17 anos que poderá ser transferido para o sistema penal daquele país. É lamentável, no entanto, que ao receber a visita do vice-presidente dos Estados Unidos, esta semana, o governo brasileiro tenha sido bem pouco incisivo na cobrança de uma solução para a situação dos brasileiros, enquanto Mike Pence, muito à vontade, dirigia palavras duras aos países latino-americanos, no que muitos viram uma indelicadeza diplomática, ainda mais em um país formado por imigrantes de todas as partes do mundo, como é o Brasil, que recebeu tantas contribuições étnicas em sua formação e que deve cultivar a tolerância.
A fronteira dos Estados Unidos com o México é só uma das frentes de uma grande crise migratória que atinge o mundo e que também leva milhares de pessoas à Europa e ameaça implodir a União Europeia, já que os países têm visões diferentes sobre permitir ou proibir a entrada de fugitivos da fome e da guerra vindos da África e do Oriente Médio. Dependendo da posição política dos governos europeus, os imigrantes são aceitos ou descartados.
A crise migratória está em todos os continentes, incluindo a América do Sul, onde milhares de migrantes vindos da Venezuela, sobretudo indígenas, fugindo da pobreza e da crise econômica naquele país, cruzam as fronteiras brasileiras e chegam também a Belém. Em nome do sentimento de humanidade, não podemos descartar essas pessoas, mas apoiá-las para que consigam sobreviver e retornar ao seu país com seus direitos fundamentais e sociais minimamente respeitados.
Toda essa crise migratória é, também, decorrente de uma ordem econômica internacional injusta, na qual alguns são extremamente bem aquinhoados, enquanto outros estão na miséria. Os Estados Unidos tem responsabilidade por esse quadro de desigualdade que gera o fluxo migratório que se vê hoje. Esses fatores tornam o momento atual crucial para a humanidade, que precisará decidir se adota uma política de solidariedade global para resolver a crise, ou se irá se isolar dentro de suas fronteiras para tentar evitar uma contaminação que é inevitável. Vivemos todos no mesmo planeta e devemos torná-lo o melhor lugar possível. Os países precisam pensar em uma nova ordem econômica na qual os mercados financeiros não sejam os únicos atores principais.
*Arnaldo Jordy é deputado federal pelo PPS-PA
Itamar Montalvão: Quem somos nós?
Uma consulta popular sobre a 'identidade do brasileiro', sobre os traços comuns ou predominantes que conferem a todos os nascidos nesta terra uma distinção entre os povos, provavelmente ensejaria tantas respostas quanto for o número de respondentes
Uma consulta popular sobre a “identidade do brasileiro”, sobre os traços comuns ou predominantes que conferem a todos os nascidos nesta terra uma distinção entre os povos, provavelmente ensejaria tantas respostas quanto for o número de respondentes. Há quem diga que só é possível falar em “nação brasileira” no que tange à narrativa única que é comumente ensinada nas escolas, pois tal é a multiplicidade de “brasis” que convivem e interagem dentro do mesmo território e falam a mesma língua que, na prática, é difícil apontar origens históricas, culturais e religiosas que sejam comuns a essa miríade de comunidades que compõem o Brasil. Estaríamos mais próximos, portanto, da ideia de um povo submetido às mesmas leis de um Estado único do que propriamente a de uma nação, vale dizer, um conjunto de indivíduos que reconhece a existência de um passado formador comum e, sobretudo, comunga as mesmas aspirações em relação ao futuro.
Os múltiplos tremores políticos e sociais que na segunda década do século 21 vêm embaralhando as cartas que até então explicavam o Brasil e a natureza de sua gente, com especial destaque para as chamadas lutas identitárias, expuseram ainda mais essa fragmentação. Das grandes (e difusas) manifestações de junho de 2013 – que se repetiriam dois anos mais tarde pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff – sobreveio um profundo sentimento de inquietação que permeia diferentes estratos sociais. Foi precisamente essa angústia coletiva que levou o senador Cristovam Buarque, o jornalista Francisco Almeida e o sociólogo Zander Navarro a formularem uma única e singela pergunta a 14 dos mais respeitados pensadores brasileiros da atualidade: por que somos assim?
O resultado está no livro Brasil, Brasileiros. Por que Somos Assim? (Verbena Editora, 2017, 338 páginas), uma riquíssima coletânea de 16 textos – assinados por Alberto Aggio, Augusto de Franco, Bolívar Lamounier, Flávio R. Kothe, John W. Garrison II, José de Souza Martins, Loreley Garcia, Lourdes Sola, Luís Mir, Marco Aurélio Nogueira, Marcus André Melo, Mércio Pereira Gomes, Paulo César Nascimento e Socorro Ferraz – que oferece aos leitores variadas interpretações sobre o Brasil e o nosso modo de ser. A organização da obra foi feita pelo trio citado no parágrafo anterior. A propósito, Cristovam Buarque e Zander Navarro também são autores de dois ensaios, Como somos e O Brasil contra si mesmo, respectivamente.
O livro parte de uma ideia central segundo a qual o Brasil não passa por uma crise, como muitos pensam, pois “crise” pressuporia uma ruptura de tal forma da estrutura política, social e econômica que, pouco a pouco, ela se tornaria absolutamente ineficaz, “mergulhada crescentemente em processos que não apontam para a sua finalização”, como fica bem explicado na apresentação do livro. De fato, uma crise com esse grau de comprometimento do tecido social e das instituições não traduz com acuracidade o caso brasileiro. Em que pese a fragilidade das “pontes” entre os diferentes estamentos, não há nada que indique, pelo menos por enquanto, que as eventuais hostilidades possam extrapolar o limite das contraposições narrativas próprias das lides políticas. Da mesma forma, nada pode ser dito contra a higidez do Estado Democrático de Direito no Brasil. Nossas instituições estão de pé e têm se prestado a tratar das mais prementes questões nacionais, sem prejuízo de eventuais reparos que possam ser feitos à atuação de alguns de seus membros, bem como da desconfiança que parte dos que ocupam posições de autoridade nos três Poderes possam despertar, em maior ou menor grau, em seus concidadãos.
Com efeito, em Os bruzundangas e as possibilidades da República Marcus André Melo reflete exatamente sobre o vigor institucional brasileiro ante os inúmeros desafios que se lhe impuseram nos últimos anos. “Malgrado o sentimento público de rejeição a tudo que aí está, a democracia não vai mal. (…) A doença política no país resulta do confronto entre instituições robustas de controle e o fortalecimento da capacidade da sociedade civil em monitorar governos e representantes. Assemelham-se às dores do parto de uma nova ordem”, escreve o cientista político.
Aos autores não foi dada nenhuma orientação sobre a condução dos trabalhos. Todos tiveram absoluta liberdade para oferecer suas respostas à indagação fundamental, inclusive quanto ao formato. No livro, o leitor encontrará artigos acadêmicos, ensaios e pensatas. John W. Garrison II deu um tom biográfico a seu texto, O Brasil e os brasileiros: um olhar externo (otimismo é preciso!), fazendo uma interessante correlação entre as suas experiências no Brasil, para onde veio ainda recém-nascido com os pais, um casal de missionários da Igreja Metodista, e diversos acontecimentos de nossa História a partir de 1954.
O texto de Garrison destoa dos demais não só pelo estilo, mas também pelo olhar. Em geral, predomina o pessimismo em relação ao atual estado da sociedade brasileira, sobretudo por se tratar de cientistas sociais, em sua maioria, que são “leitores críticos das realidades sociais e seus condicionantes históricos.”
Da frustração e da desconfiança hoje presentes em amplos segmentos sociais surgiu um perigoso sentimento de rejeição da política dita tradicional como meio eficaz para a composição dos conflitos sociais e, principalmente, para direcionar os passos para o futuro.
Não por acaso, observa-se a busca desenfreada por uma “novidade” que não se sabe exatamente quem nem o que é. Esse mar de incertezas que hoje banha nossas visões sobre o País enseja, entre outras razões, uma série de reflexões sobre o presente e o futuro. Algumas delas o leitor encontrará em Brasil, Brasileiros. Por que Somos Assim?, um excelente ponto de partida para quem deseja se situar nestes tempos peculiares.
* Itamar Montalvão é jornalista
https://www.facebook.com/facefap/videos/1438432542933869/
FAP lança "Brasil, Brasileiros – Por que Somos assim?" nesta terça (23), em Brasília
Lançamento será no Espaço Arildo Dória, no Conic, e terá transmissão ao vivo por meio do canal da Fundação Astrojildo Pereira no Facebook
A Fundação Astrojildo Pereira (FAP) convida para o lançamento em Brasília, nesta terça-feira (23), do livro “Brasil, Brasileiros – Por que Somos assim?”, organizado e publicado pela FAP e Verbena Editora. O lançamento, que vai ocorrer a partir das 18h no Espaço Arildo Dória (Edifício Venâncio III, loja 52 - Conic - Em frente à Praça Vermelha), terá debate e sessão de autógrafos com dois dos três organizadores da coletânea: o senador Cristovam Buarque (PPS-DF) e Francisco Almeida. O professor de História (Universidade de Brasília - UnB), Antônio José Barbosa, também será um dos participantes do debate.
Em recente artigo publicado na Revista IstoÉ (https://istoe.com.br/como-nos-tornamos-o-que-hoje-somos/), o sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier comentou a obra. Confira a íntegra do artigo abaixo:
"Durante a primeira metade do século passado e até algumas décadas atrás, numerosos escritores tentaram compreender o “caráter nacional” brasileiro. Uns o descreviam como otimista, alegre, bondoso e cordial; para outros seríamos justo o contrário: pessimistas, tristes, egoístas, violentos. Prepotentes para uns, subservientes para outros.
Tais tentativas nunca deram bons resultados, pela singela razão de que partiam de uma premissa insustentável: a de que o caráter de um povo seja imutável ao longo do tempo e possa ser retratado por meio de um traço ou de um pequeno conjunto de traços comuns.
Auxiliado por Francisco Almeida e Zander Navarro, o senador Cristovam Buarque retomou a questão mencionada de uma forma instigante e inovadora no livro “Brasil, brasileiros: por que somos assim?” (Editora Verbena, 2017). Na condição de organizadores, os três convidaram dezesseis autores renomados a responder a questão, oferecendo cada um sua definição daquele “assim” do título – sua imagem dos brasileiros como povo – e tentando explicar como se formaram nossos traços predominantes.
Por que somos como somos: eis a indagação que permeia os dezesseis ensaios. Não vou contar o fim do filme. Vou apenas insistir em minha tese de que todo povo é heterogêneo e mutável. Os traços que o definem mudam ao longo do tempo, em função das circunstâncias. Por exemplo: acho razoável dizer que a maioria dos brasileiros tem um jeito cordial, pacífico, avesso à violência, mas o fato é que, de umas três ou quatro décadas para cá, passamos a viver em redutos fortificados, protegidos por grades de ferro, muito arame farpado e cães que não brincam em serviço. Somos contraditórios; podemos ser ao mesmo tempo bondosos e cruéis.
Na economia, não somos aquele povo preguiçoso e sem iniciativa imortalizado por Mário de Andrade no romance “Macunaíma”; basta ver o pujante agronegócio que construímos no transcurso do último meio século. Somos, isso sim, uma gente impedida de empreender e trabalhar, pois até hoje não conseguimos nos livrar do Estado patrimonialista, essa máquina que nos reduz à impotência a fim de preservar o que alguns chamam de capitalismo de Estado e que eu prefiro chamar de capitalismo de compadrio, de corruptos e de burocratas incompetentes."
A coletânea também foi lançada no último dia 14 de dezembro, em São Paulo, na Fundação FHC. O evento foi antecidido de um diálogo entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o senador Cristovam Buarque. A íntegra do debate pode ser conferida em http://fundacaofhc.org.br/iniciativas/debates/brasil-brasileiros-por-que-somos-assim---um-dialogo-entre-cristovam-buarque-e-fhc.
O evento será transmitido ao vivo pelo canal da FAP no Facebook: http://www.facebook.com/facefap.
Serviço
Lançamento do livro "Brasil, Brasileiros – Por que Somos assim?"
Data: 23/01/2018, das 18h até as 20h30
Local: Espaço Arildo Dória (Edifício Venâncio III, loja 52 - Conic - Em frente à Praça Vermelha)
Informações: (61) 3011-9300
Miriam Leitão: Os brasileiros que vi
Os brasileiros que têm projetos e sonham. Verônica, 17 anos, é aluna de escola técnica pública em Franca. “Você vai entrevistar só homens, ou vai falar também com mulheres na sua série?", perguntou em tom de desafio. E avisou: “sou feminista". O barco deslizava no Rio Negro e eu quis saber de Roberto, o barqueiro, o que ele fazia antes da atual ocupação. “Era madeireiro, meu pai e meu avô também foram. Hoje trabalho pela sustentabilidade."
O ano de 2017 foi todo cheio de conversas marcantes. Passei o ano viajando pelo Brasil para gravar uma série para a GloboNews. Os encontros me protegeram contra o pessimismo natural derivado da crise política e econômica. Hoje é o último dia do ano e eu deveria publicar aqui uma coluna sobre o balanço do que houve na economia em 2017. Escrevi o balanço. O leitor poderá encontrá-lo no meu blog. Mas preferi dedicar o espaço para falar de alguns brasileiros que conheci no ano.
O país visto de perto arrebata e emociona. Marivaldo, jovem, negro, violinista, sentado debaixo de uma árvore, falava com entusiasmo e visível sinceridade. Ele perdeu o irmão em um acidente de moto. O pai morreu logo depois. Está no projeto Neojibá desde o início, há dez anos. O projeto protege jovens e crianças na Bahia através da música clássica. Hoje Marivaldo é um multiplicador, porque além de tocar na orquestra, ele ensina nos núcleos de estudantes mais jovens. Perguntei sobre o futuro.
— Só vejo música, multiplicação. Todo mundo tocando junto. Porque na música não tem diferença, todo mundo é igual. A gente pensa num Brasil em que todo mundo é igual, todo mundo buscando o mesmo objetivo que é um país sem diferença.
Foi assim o meu ano. Uma parte de mim acompanhava a conjuntura, outra se deixava levar pelas conversas sempre surpreendentes com brasileiros de todas as regiões, das mais variadas atividades. Conheci muita gente. Walter, trabalhador de Santa Catarina, que aos 95 anos vai entrar agora em janeiro no livro “Guinness” como a pessoa há mais tempo numa mesma empresa. Sua carteira de trabalho mostra a devastação monetária que o Brasil viveu no século XX: há registros em nove moedas.
No Rio Grande do Norte, conheci um produtor rural que gosta de ser chamado de Zé Peneira. Sua renda aumentou desde que as torres de energia eólica começaram a ser instaladas na região. Ele primeiro forneceu matéria-prima, depois arrendou parte da terra para a empresa de energia. O dinheiro foi investido na propriedade e nos estudos dos netos.
— Tinha uma neta minha estudando pra ser médica. Eu já estava para cansar. Com o dinheiro eu ajudei e ela, daqui a dois meses, já está cortando gente.
A neta cirurgiã, e o avô inventando tecnologias para aumentar a produtividade da sua lavoura. Costuma apontar para a cabeça e dizer “tudo saiu daqui" quando vai contar alguma solução engenhosa. Saía da sua fazenda em Parazinho, já com os equipamentos na van para retomar a estrada, quando José Peneira me convidou:
— Se a “incelência” me der o prazer de voltar, vai encontrar tudo “meorado".
No Acre, a jovem Sarah Evellyn criou uma organização social, o Impacta Jovem, para divulgar informações sobre oportunidades de intercâmbio. Em Belo Horizonte, Laura Leal fez parte do Impacta Jovem e depois criou seu próprio movimento, que quer ampliar as chances das meninas nas ciências exatas. Em Roraima, a jovem estudante Ariene Wapixama quer que seu povo e outros indígenas elejam um representante do estado para o Congresso.
O país mergulhado no pessimismo com que atravessou o ano, e seu Zé Peneira tem certeza de que tudo estará melhor no futuro, Marivaldo sonha com um país sem diferença, Roberto, o barqueiro, ensina a importância de manter em pé as árvores que no passado derrubaria, Verônica quer ser advogada e defender a causa feminista.
Entrevistei tanta gente interessante que não cabe neste espaço. Foi o trabalho de transformar o meu livro “História do Futuro” em uma série de dez episódios para a GloboNews. As reportagens foram sobre as possibilidades e tendências do Brasil, mas fiquei marcada pelas conversas com esses e outros brasileiros. Por isso, neste último dia do ano quis trazê-los a este espaço para falar de esperança. Feliz 2018.
El País: Brasileiros culpam a si mesmos pela corrupção, diz pesquisa Ipsos
De 1.200 pessoas entrevistadas, 55% diz que corrupção "é culpa do povo que elege políticos corruptos". Estudo mostra grau de saturação com o tema, mas também uma demanda para debate de soluções
Por Felipe Betim, do El País
A maioria dos brasileiros culpam os próprios brasileiros pela corrupção na política. É o que aponta o estudo Pulso Brasil, do instituto Ipsos, realizado entre os dias 1 e 14 de novembro deste ano. Das 1200 pessoas entrevistadas, 55% acreditam que "a corrupção no Brasil é culpa do povo que elege políticos corruptos", 42% discordam da frase e 2% não souberam responder. "Não sei se é um mea culpa, porque o brasileiro coloca a culpa nos outros. Ela acha que as outras pessoas estão fazendo um voto de baixa qualidade", explica Rupak Patitunda, gerente da Ipsos Public Affairs.
Os números pouco variam quando se faz um recorte por idade e por classe social. A maior diferença se dá quando analisado o grau de escolaridade: entre os entrevistados considerados sem instrução, 67% concordam que o culpado pela corrupção é o próprio eleitor brasileiro, enquanto que entre as pessoas que possuem desde o Fundamental I até ensino Superior, esta porcentagem varia entre 52% e 59%.
Além disso, a cifra geral, de 55%, é uma porcentagem menor que a registrada em abril de 2016, quando o Ipsos apontou que 61% dos brasileiros creditavam ao eleitor o problema da corrupção. "Após todo o noticiário da Lava Jato, existe uma maturação na percepção da população. Ela está mais informada e percebe que o problema é sistêmico", argumenta Patitunda.
População "saturada com o tema"
A Operação Lava Jato e a consequente enxurrada de informações a respeito fizeram com que a corrupção permanecesse no centro do debate nacional dos últimos anos. Passou a fazer parte da rotina dos brasileiros as imagens impactantes de políticos e grandes empresários sendo presos ou conduzidos coercitivamente pela Polícia Federal. Grandes figuras públicas caíram e malas de dinheiro foram descobertas, mas ainda assim a população parece saturada com o tema. Isso porque 50% acreditam que ele é mais discutido do que se deveria. Já 17% acreditam que ele é discutido na medida adequada e 32% disseram que é menos discutido do que se deveria.
Ao mesmo tempo, as cifras praticamente se invertem quando se chega a questão de "como acabar com a corrupção", isto é, como buscar soluções para ela. 51% acreditam que o assunto é menos discutido na sociedade brasileira do que se deveria, enquanto 16% acreditam que é debatido de forma adequada e 31% disseram que é mais falado do que se deveria.
"Há um certo grau de saturação com relação a simples exposição desse tema. Mas existe uma demanda para que outras dimensões do mesmo assunto ainda não tocadas sejam abordadas. A gente não esperava e é animador", explica Patitunda. "A maior parte dos entrevistados está cansado, acha que o tema já deu, mas ao mesmo tempo valoriza o discurso sobre causas e consequências", completa.
Outros dados
Outros resultados coletados pela pesquisa mostram que o brasileiro é, em sua maioria, intolerante com a corrupção. Também chega a conclusão de que "quanto mais instruído o grupo pesquisado, menor os percentuais que indicam tolerância"."A pessoa com grau maior de instrução se sente mais empoderada, se sente com mais poder para decidir sobre o próprio governo e entende melhor que há instrumentos para resolver o problema", explica Patitunda.
Assim, 70% acreditam que é possível governar sem corrupção. Entretanto, os mais pobres são mais céticos com relação a este último ponto: 64% dos entrevistados das classes D e E concordam com esta afirmação. O dado geral também mostra uma população mais cética, já que em abril de 2016 83% concordavam com ela.
Além disso, apenas 23% acreditam que "o que realmente vale são políticos e partidos que roubam mais fazem". 73% discordam desta afirmação e 5% não souberam responder.
O Ipsos realiza estudos mensalmente desde 2005 para monitorar a opinião pública sobre política, economia, consumo e questões sociais. A pesquisa sobre a corrupção abrangeu 72 municípios e tem uma margem de erro de três pontos percentuais.
Clóvis Rossi: O Brasil, esse 'sem vergonha'
Abro "Brasil, brasileiro. Por que somos assim?", uma coletânea de 16 ensaios editada pela Verbena Editora, por inspiração da Fundação Astrojildo Pereira (FAP). Seus autores são acadêmicos do mais alto nível com a vantagem adicional de que não participam da pirotecnia que, em geral, caracteriza o debate público no Brasil.
Já na apresentação, vem o choque: "O Brasil é um país curioso, é um país extremamente sem vergonha".
O choque não é tanto pela frase em si. Também acho que o Brasil é sem vergonha, mas eu não sou ninguém, ao passo que Antonio Callado, que a pronunciou, é um intelectual do maior respeito, um escafandrista da alma brasileira, autor de obras primas como "Pedro Mico" e "Quarup".
Que seja capaz de um julgamento tão severo obriga a pensar, ainda mais que a frase completa é assim: "Quando chega a hora de as coisas mudarem, as coisas não mudam. Não tenho mais esperanças".
O choque é também pela época em que a frase foi pronunciada: em entrevista à Folha, no dia 26 de janeiro de 1997, quando fazia 80 anos e dois dias antes de morrer.
Se a constatação fosse feita hoje, seria auto-explicativa: a sem-vergonhice desfila todos os dias pelas páginas dos jornais, no horário nobre dos telejornais (e até nos horários não tão nobres). Mas, em 1997, o Brasil ainda vivia um pouco da ilusão de estabilidade que o Plano Real introduzira, a crise cambial só apareceria no ano seguinte e o "apagão" que destruiu o prestígio de Fernando Henrique Cardoso demoraria mais uns quatro anos.
Agora, constatações tão negativas são, digamos, normais. "Os ensaios, em sua maioria, são pessimistas em relação ao estado atual da sociedade brasileira, e mesmo em relação ao futuro próximo", escrevem os organizadores na apresentação (o senador Cristovam Buarque, Francisco Almeida e Zander Navarro, doutor em Sociologia pela Universidade britânica de Sussex).
A exceção ao pessimismo, curiosamente, vem do único não-brasileiro convidado a escrever: o americano John W. Garrinson 2º, que, no entanto, viveu anos suficientes no país para se considerar "brasileiro por opção e não por nascença".
Nos demais, aparecem sentenças tão duras quanto as de Callado. Escreve, por exemplo, José de Souza Martins, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP: "Não sobrevivemos sem mediadores, condutores, abridores de caminho. Estamos sempre à espera de que um deles apareça para nos dizer o que somos e o que queremos. Neste 2017 estamos perdidos, mais uma vez à espera de que ele chegue para abrir o caminho que nos levará a 2018".
Agora que ninguém está olhando, confesse: você também não está se sentindo perdido, esperando alguém?
Há mais: "O brasileiro perdeu a guerra para si mesmo. [...] Ele foi incapaz de organizar e fazer funcionar bem o seu aparelho de Estado e a sua economia", escreve Flávio Kothe, professor na Universidade de Brasília e presidente da Academia de Letras do Brasil.
Se há 20 anos, Callado enxergava um país sem vergonha, hoje Cristovam Buarque, senador e único político presente no livro, chora "o nosso [do Brasil] desprezo a um rumo para o futuro. [...] Não conseguimos formular metas e estratégias".
Nessa toada, daqui a 20 anos, tais avaliações talvez pareçam otimistas. Ou será que o Brasil tomará vergonha?
* Clóvis Rossi é repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano.