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Hélio Schwartsman: A banalidade do impeachment
Desde que a abreviação do mandato tenha previsão legal, não vejo por que não usar o impeachment
A turma do deixa-disso alerta para o risco de banalização do impeachment. Nós, afinal, em apenas 35 anos de redemocratização, já afastamos dois presidentes por meio desse instituto. Os EUA, com uma história democrática de quase 250 anos, nunca chegaram a condenar um primeiro-mandatário pelos chamados "high crimes and misdemeanors", que nós traduzimos como crimes de responsabilidade.
Não vejo esse perigo. A principal razão para isso é a maioria de 2/3 dos deputados necessária para autorizar a abertura do processo seguida da maioria de 2/3 dos senadores necessária para a condenação. Para dar uma ideia do poder de uma maioria de 2/3, basta lembrar que com uma proporção menor de parlamentares, 3/5, seria possível, por exemplo, transformar o Brasil numa monarquia.
Trocando em miúdos, não há nada de banal num governante que consegue mobilizar contra si 2/3 do Congresso. Na verdade, quando um dirigente não é mais capaz de convencer 1/3 dos parlamentares a salvar seu mandato ou apenas a ficar em casa no dia da votação (dá rigorosamente no mesmo), é porque seu governo já acabou faz algum tempo. O impeachment torna-se mais o reconhecimento de um fato político do que qualquer outra coisa.
Não sou o maior fã do filósofo Paul Virilio (1932-2018), mas acho que ele captou algo importante quando, já nos anos 70, identificou a velocidade e a aceleração (da vida, da política, das relações econômicas) como elementos definidores da modernidade —tendência que só se acentuou com o advento da internet.
A sociedade tem cada vez menos paciência para operar com os prazos fixos de resolução de conflitos políticos do regime presidencialista. Quando sente que um dirigente pisou muito fora da linha, prefere despachá-lo mais cedo para casa a esperar o próximo pleito. Desde que a abreviação do mandato tenha previsão legal, como ocorre no impeachment, não vejo por que não usá-lo.
Cristina Serra: O centrão e a pauta da pilhagem
Bolsonaro é obcecado por garimpo, agropecuária e hidrelétricas em terras indígenas
A nova configuração de poder no Congresso é a mais favorável em tempos recentes à agenda do "correntão", que pretende legalizar crimes já em curso na Amazônia, como grilagem de terras, desmatamento e garimpo em áreas indígenas.
Bolsonaro terá em Arthur Lira, experiente colecionador de infrações ao Código Penal, um parceiro à altura para conduzir a pauta da pilhagem. Em sua campanha à presidência da Câmara, o líder do centrão serviu-se de jatinho da Rico Táxi Aéreo, de Manaus. Em seu site, consta que a Rico cresceu no setor de transporte com "pequenas aeronaves que serviam ao garimpo na região". A mesma empresa doou R$ 200 mil à campanha de Lira a deputado, em 2014.
Uma das maiores obsessões de Bolsonaro é o projeto que libera mineração, garimpo, agropecuária, construção de hidrelétricas e extração de petróleo e gás em terra indígena. O projeto trata os povos nativos com a mesma lógica do colonizador europeu: dividir para governar. Estimula conflitos em torno da repartição de poder e do dinheiro das indenizações que vierem a receber.
Na essência, é um projeto etnocida. Os cupins da manipulação política e econômica têm o potencial de desestruturar essas sociedades por dentro. É também genocida porque os povos terão, forçosamente, contato com todas as desgraças levadas pelos invasores: doenças, drogas, violência. E alguém acredita que os órgãos de fiscalização terão condições de agir nos confins da Amazônia se não foram sequer capazes de monitorar barragens em Minas Gerais ?
O projeto viola o preceito constitucional de respeito à integridade das terras "tradicionalmente" ocupadas pelos indígenas, criado durante a Constituinte em árduo processo de negociação entre a direita e a esquerda. Pela direita, pasme, o negociador foi o então senador Jarbas Passarinho, ex-ministro da ditadura. Mas aqueles eram tempos de diálogo e de gestação de um pacto para a reconstrução do país.
Hoje, estamos diante da destruição desse pacto e da ruína civilizatória.
Demétrio Magnoli: Biden tem oportunidade de converter vacina em bem público global
Presidente dos EUA tem oportunidade de converter vacina em bem público global
George W. Bush será sempre lembrado pelo desastre humano e geopolítico que provocou com a guerra no Iraque. Contudo, uma iniciativa singular do ex-presidente salvou algo como 17 milhões de vidas: o Pepfar (Plano Presidencial Emergencial para Assistência à Aids). Joe Biden tem a oportunidade de se inspirar no plano de Bush para liderar a imunização global contra a Covid-19.
O Pepfar nasceu em maio de 2003, à sombra da invasão do Iraque, que começara dois meses antes. Sob a coordenação do Departamento de Estado, o programa direcionou, de lá para cá, mais de US$ 85 bilhões para os países foco e para o Fundo Global de Combate à Aids. A lúgubre curva de mortes por Aids na África Subsaariana começou a ser achatada graças aos recursos e à assistência técnica providenciados pelos EUA. O modelo do Pepfar oferece a melhor resposta americana à "geopolítica vacinal" chinesa.
Segundo estimativas do Duke Global Health Institute, os países ricos, que abrigam 16% da população mundial, contrataram 60% das vacinas prometidas até agora. A iniciativa Covax, da OMS, destinada a prover imunização global, prevê a entrega, até junho, de apenas 140 milhões de doses para a África, onde vive 1,3 bilhão de pessoas. A célere vacinação da população mundial é um imperativo moral. Mas é, igualmente, a única ferramenta capaz de domar a pandemia, reduzindo as probabilidades de surgimento de incontáveis mutações do vírus pela persistência prolongada dos contágios. "Ninguém está a salvo até que todos estejam a salvo", explica o slogan da Covax.
O triunfo do nacionalismo vacinal teria efeito bumerangue, castigando tanto os países pobres quanto os ricos. A União Europeia, apesar da insistência na retórica da solidariedade global, não parece preocupada com isso. A Comissão Europeia tenta ocultar seu atraso na imunização com ataques despropositados à AstraZeneca, única farmacêutica que distribui vacinas a preço de custo, e com a ameaça de bloquear a exportação de doses produzidas no seu território. Sob Trump, os EUA agiram ainda pior, abandonando a OMS e negando-se a contribuir com o financiamento da Covax.
A China opera no vácuo gerado pelo nacionalismo hipócrita de americanos e europeus. O governo chinês definiu suas vacinas como bens públicos globais e lançou-se a uma diplomacia da imunização, estratégia seguida também pela Índia. Contudo, os discursos humanitários chineses e indianos mal escondem a cuidadosa seleção dos países beneficiários, que obedece a nítidas prioridades de política externa.
Biden promete patrocinar, ainda em 2021, uma "cúpula das democracias". O conceito, em estágio inicial de formulação, inscreve-se na moldura da rivalidade global entre EUA e China. Seria uma articulação diplomática destinada a contrapor os valores das democracias representativas ao sistema de poder totalitário. A ideia enfrenta uma coleção de dificuldades práticas. Mas, para além delas, como superar a percepção de que o conclave de democracias ricas forma o mapa completo das nações privilegiadas pelo acesso preferencial às vacinas?
Os EUA só podem triunfar na "guerra de valores" se conseguirem provar que a democracia funciona melhor que a tirania, especialmente quando o mundo enfrenta uma dramática emergência sanitária. A superpotência injeta nos seus cidadãos vacinas de alta tecnologia, baseadas em mRNA, que tem elevada eficácia e cuja fabricação é mais simples e rápida. Estima-se que, com meros US$ 4 bilhões e uma rede de parcerias público-privadas, o governo americano poderia instalar capacidades produtivas suficientes para imunizar a população mundial no horizonte de um ano.
Os chineses dizem que a vacina deve ser um bem público global. Biden tem a oportunidade de converter essa visão em realidade. É bem melhor que reunir os acumuladores de vacinas numa redoma sanitizada.
Raul Jungmann: Nem golpe, nem impeachment
Iniciado o governo do atual Presidente, com elevada participação de militares, um sobressalto tomou conta da mídia, formadores de opinião, organizações da sociedade civil e órgãos de controle: estaria em marcha um golpe? As falas do Presidente, seus apoiadores e algumas declarações de ministros de origem militar despertavam suspeitas.
Sempre que pude, divergi dessa possibilidade. Primeiro, porque generais da reserva em postos do Executivo, não falam pelas Forças Armadas e imaginar o contrário revela ignorância dos códigos e conduta das Forças Armadas na atualidade. Em segundo lugar, porque sabíamos por experiência e conhecimento dos atuais e ex-comandantes das Forças e respectivos Altos Comandos, que a possibilidade de descumprir a Constituição era algo fora de cogitação.
Certamente, o “presidencialismo de colisão” adotado pelo presidente, constrangendo e pressionando o Congresso e o Supremo Tribunal Federal com a ameaça da invocação das massas e o poder da espada, que estariam ao seu lado, dava corda a interpretações de que um projeto autoritário estaria em curso.
Ao cabo de um ano e meio de governo, restou cabalmente comprovado que o modus operandi da “colisão” não dobraria o parlamento, nem a suprema corte. Processos rondavam a família presidencial, o inquérito do “fim do mundo” apontava conexões entre o bolsonarismo raiz e as fake news – e a pandemia, com suas repercussões imprevisíveis e a sombra de um impeachment, ainda que distante, rondavam o planalto.
Em 17 de junho de 2020, Fabrício Queiroz é preso na casa de Fred Wassef e o governo de “colisão” principia rapidamente a mudar, sendo o seu símbolo o acordo com o Centrão na Câmara dos Deputados. Daí em diante o governo irá se assemelhar mais e mais a governos anteriores, até certo ponto.
Militares no Executivo silenciam e um presidencialismo de coalizão progressivamente vai tomando as rédeas políticas. Com a conquista das presidências das casas do Congresso, um Procurador Geral amigável e um pé no STF (em junho serão dois), além da impossibilidade de manifestações dada a pandemia, o impeachment, salvo a ocorrência de um “cisne negro,” está conjurado.
O presidente Jair Bolsonaro e seu ministro Paulo Guedes têm uma chance real de tocar as reformas e manter o auxílio emergencial, em que pese a conjuntura econômica e social complexa e difícil pela frente.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Bolívar Lamounier: Sonâmbulos e furibundos
Não podemos descartar um retrocesso abrupto, muito cruel para as almas mais frágeis
O espetáculo circense encenado no Congresso Nacional na última segunda-feira causou grande impacto, mas não diferiu em natureza de tudo a que temos assistido há vários anos no próprio Congresso, na Presidência da República, no Supremo Tribunal Federal e na Procuradoria-Geral da República.
A impressão é de que nada faz sentido; de que somos um país de sonâmbulos, incapazes de perceber o que acontece à nossa volta e, principalmente, o que nos aguarda ao longo desta década. Sonâmbulos, mas sonâmbulos furibundos. Subjacente a essa estranha coreografia, há uma briga de foice. Ou uma batalha entre dragões-de-comodo, se preferirem. Batalha por cargos, verbas e, sobretudo, vantagens eleitorais, cada um já pensando em reeleição.
E quem são os dragões? Por hábito, ou por preguiça mental, nos acostumamos a dizer que são partidos políticos, não nos dando conta de que o Brasil já não tem partidos. Ter 20 e tantos partidos na Câmara, o maior deles mal ocupando 15% das cadeiras, e não ter nada é a mesma coisa. Tal coreografia talvez até fosse engraçada se não fosse macabra, pois, entre agressões e afagos, os furibundos dançam sobre os mais de 220 mil cadáveres da pandemia, sujeitando a um cruel sarcasmo milhões de cidadãos que sobrevivem graças aos auxílios emergenciais, 20 e tantos milhões sem trabalho e o desencanto permeando a quase totalidade dos lares.
O leitor talvez pense que exagero quando afirmo que o Brasil já não tem partidos políticos. Dá-se que, na acepção que me parece aceitável, partido político é uma organização capaz de conter o apetite dos grupos corporativistas, dentro e fora da máquina pública, transcendendo-os, agregando-os e direcionando-os para o bem público. No Brasil de hoje, o que vemos é precisamente o oposto. Vemos interesses estreitos – alguns empenhados num “liberou geral” contra o ambientalismo, outros em erodir a hierarquia das Polícias Militares, outros, capitaneados pelo próprio capitão, em armar a população civil –, cada um mais forte que a maioria dos partidos. Por essas e outras é que, se o governo tivesse um norte inteligível, não teríamos abandonado o debate sobre a reforma política, sem dúvida a mãe de todas as reformas.
Até recentemente, o grande mal político brasileiro era o chamado patrimonialismo. Grupos incapazes de tocar uma verdadeira economia de mercado se incrustavam (incrustam-se) no casco do Estado e dele se apropriaram, mantendo aparências de legalidade, e às vezes nem tanto, como vimos poucos anos atrás na Petrobrás. Grupos incapazes, grupos falidos e oligarquias de diversos tipos invertem a ordem lógica das coisas, valendo-se do poder político para granjear poder econômico, quando o normal, ou relativamente normal, seria o oposto. Inspirados no grande clássico de Raymundo Faoro Os Donos do Poder, pensávamos que o patrimonialismo era um mal em decadência, nos estertores, abrindo espaço para um grande bem que denominávamos “modernidade”. Não reparamos que tal história pode ser contada ao contrário. Desde os famigerados tempos da ditadura getulista, a apropriação do público pelo privado só fez aumentar, dando corpo ao que, com dor na alma, somos obrigados a designar como um “patrimonialismo moderno”. Infelizmente, sabemos hoje que “patrimonialismo” é só uma parte da perversa história política brasileira. Agora temos o corporativismo, um patrimonialismo “democratizado” e dividido entre n grupos, que cedo ou tarde tornará o País virtualmente ingovernável.
Voltemos aos sonâmbulos. Nunca vi um deles caminhando numa casa, mas imagino que ele possa meter a cabeça num armário ou se cortar seriamente numa cristaleira. Se forem vários, e furibundos, poderão quebrar toda a casa e sucumbir entre seus escombros. Essa, justamente, é a hipótese que me ocorre quando vejo o governo mais preocupado em importar revólveres do que em empreender uma abrangente reforma do Estado, uma reforma administrativa séria e um amplo programa de privatização, assestando, assim, um golpe de morte no patrimonialismo e no corporativismo.
“Ora, direis, ouvir o Guedes! Decerto perdeste o senso.” O bravo quixote que se propunha a destruir os moinhos mais dispendiosos por ora mal consegue dar palpites na formatação dos auxílios emergenciais. De fato, o presidente que se elegeu prometendo extirpar a “velha política” acaba de trazê-la com mala e cuia para dentro da máquina do Estado. Na última segunda-feira, a prometida austeridade fiscal levou uma banana, pois o que vimos foi o presidente jogar alguns milhões aos nossos furibundos gladiadores, com o objetivo de impedir um eventual impeachment e debilitar aquele que parece ser seu principal contendor na eleição de 2022.
Excetuada a hipótese de alguma luz desconhecida iluminar as mentes brasilienses, infiro que os próximos dez anos não nos serão benfazejos. Num cenário ameno, teremos mais do mesmo. Mas não podemos descartar um retrocesso abrupto, muito cruel para as almas mais frágeis.
Miguel Reale Júnior: A História se repete como farsa
O ministro da Justiça revive Armando Falcão com Lei de Segurança Nacional contra críticas
Em janeiro de 1970, sendo ministro da Justiça Alfredo Buzaid, o governo militar editou o Decreto-Lei n.º 1.077, estabelecendo a censura, visando a “preservar a moral e os bons costumes”. O obscurantismo cresceu no governo seguinte com Armando Falcão no Ministério da Justiça, quando se montou plano de combate sistemático a publicações “obscenas e subversivas”, propondo aplicar a Lei de Segurança Nacional, pois a censura e a “benigna” Lei de Imprensa seriam insuficientes na guerra psicológica adversa (confira-se: Douglas Atilla Marcelino, Subversivos e Pornográficos: censura de livros e diversões nos anos 1970).
Livros extraordinários foram proibidos e inquéritos policiais-militares, instaurados por crime contra a segurança nacional, como sucedeu com Rose Marie Muraro (A Mulher na Construção do Mundo Futuro), Renato Carvalho Tapajós (Em Câmara Lenta) e Lourenço Diaféria, sendo os últimos até presos.
Em maio de 2018 escrevi nesta página que com Bolsonaro haveria risco da volta da ditadura. Hoje o ministro da Justiça revive Armando Falcão, aplicando a Lei de Segurança Nacional a críticas jornalísticas.
Em parecer conjunto ofertado ao Conselho Federal da OAB, Alexandre Wunderlich e eu analisamos a origem e o significado do conceito de segurança nacional, como próprio de regime autoritário, razão por que deve haver nova lei de defesa do Estado. Segurança nacional vinha a ser uma estratégia para garantia da consecução dos “objetivos nacionais permanentes”, visando, primordialmente, a assegurar a mantença do regime militar por via da contenção de qualquer efetiva oposição nos campos político, econômico, psicossocial e militar, reprimindo opiniões, emoções e atitudes contrárias ao sistema vigente.
A Lei de Segurança Nacional hoje em vigor, editada em 1983, guarda graves resquícios autoritários, bastando lembrar que os artigos 16 e 17 admitem ser a lei apropriada para tutela do regime excepcional vigente.
Numa democracia, a crítica ao presidente não se inclui como lesão ao Estado de Direito, pois não abala a estrutura do sistema democrático, inserindo-se no campo da liberdade de expressão como questão de interesse público. Essa teleologia não corresponde à postura do ministro da Justiça ao representar para enquadramento de crítica como crime contra a segurança nacional ou crime comum.
Hélio Schwartsman, em artigo na Folha de S.Paulo (Por que torço para que Bolsonaro morra), pondera que o presidente, em seu negacionismo, prejudica a vida de muitos, argumentando que, sob a ótica do consequencialismo, o sacrifício de indivíduo pode ser válido, se dele advier um bem maior. O ministro da Justiça viu nesse texto, cujo título é de mau gosto, crime contra a segurança nacional onde há mera avaliação crítica, longe de causar qualquer abalo à estrutura democrática.
Foi, aliás, nesse sentido a decisão do ministro Mussi, do STJ, ao apreciar habeas corpus: “Não é possível verificar, em análise preliminar, que tenha havido motivação política ou lesão real ou potencial aos bens protegidos pela Lei de Segurança Nacional, capaz de justificar o eventual enquadramento de Schwartsman”.
Sem aprender a lição, o ministro de Justiça requisitou inquérito contra o advogado Marcelo Feller em vista de opinião exarada em debate na televisão sobre a frase do ministro Gilmar Mendes de estar o Exército se associando, na pandemia, a um genocídio. Para o advogado, “o discurso e a postura do presidente da República são diretamente responsáveis por pelo menos 10% dos casos de covid no Brasil”. É, alias, o entendimento de muitos infectologistas.
O procurador federal João Gabriel Morais de Queiroz solicitou o arquivamento do inquérito, com judiciosas considerações: “A lei de segurança não pode ser empregada para constranger ou perseguir pessoa que se oponha licitamente externando opiniões desfavoráveis ao governo (...) a lei de segurança nacional, como instrumento de defesa do estado, deve ser reservada para casos extremos(...)”. A Justiça Federal arquivou o inquérito.
Mas o incansável ministro da Justiça requisitou inquérito policial agora pelo crime de induzimento ao suicídio contra os jornalistas Ruy Castro e Ricardo Noblat, que replicara artigo de Ruy no qual se aventava ser o suicídio a forma de o presidente Trump entrar para a História como herói, tal como Getúlio Vargas, argumentando que “se Trump optar pelo suicídio, Bolsonaro deveria imitá-lo”.
O ministro viu nessa frase “desrespeito à pessoa humana, à nação e ao povo de ambos os países”. E mais: um crime de induzimento ao suicídio, que vem a ser criar na mente da vítima a vontade firme de se aniquilar, atuando no plano psíquico com potencialidade para a levar ao suicídio.
A requisição de inquérito por crime de induzimento ao suicídio, em vista de ideias jocosas em artigo de jornal, seria apenas de um ridículo atroz se não consistisse em abuso de poder do ministro da Justiça, por perseguir criminalmente críticos do governo com tipificação penal forçada de fato absolutamente anódino.
Até quando?
Ricardo Noblat: ACM Neto acerta o tiro que deu no próprio pé
DNA fala mais alto
Bem-sucedido prefeito de Salvador por oito anos e forte candidato a governador da Bahia em 2022, ACM Neto haverá de recordar para sempre o tiro que deu no próprio pé ao deixar suas impressões digitais na disputa entre Baleia Rossi (MDB-SP) e Arthur Lira (PP-AL) pelo comando da Câmara dos Deputados.
Na condição de presidente nacional do DEM, sob forte pressão de deputados divididos entre Rossi e Lira, ele concordou em deixá-los à vontade para que votassem como quisessem, embora o partido fizesse parte do bloco de apoio a Rossi montado por Rodrigo Maia (DEM-RJ). Em cima da hora, tirou o partido do bloco.
Sua decisão beneficiou Lira, candidato do Centrão e de Bolsonaro, e selou a derrota de Rossi e de Maia. Desde então, diante do anúncio feito por Maia de que abandonará o DEM e que levará com ele para outro partido um numeroso grupo de aliados, ACM Neto tenta reparar o estrago que produziu. Não será fácil.
No primeiro momento, ainda chegou a admitir que daria passe livre para a saída de Maia do DEM antes da abertura, no próximo ano, da janela partidária – um período às vésperas de eleições em que parlamentares podem trocar de partido sem risco de perder o mandato. Recuou, depois, com medo de uma fuga em massa.
Para completar sua infelicidade, em entrevistas que concedeu esta semana, embora tenha insistido em dizer que o DEM é um partido independente, antecipou que na eleição presidencial do ano que vem não descarta a hipótese de apoiar a reeleição de Bolsonaro. Foi uma afirmação desastrosa a essa altura do jogo.
O DEM nasceu de uma costela da ARENA, partido que apoiou a ditadura militar de 64. Com a redemocratização do país, passou a se chamar PFL (Partido da Frente Liberal) e fez parte dos governos José Sarney, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. Como estava se desmilinguindo, foi rebatizado de DEM.
Muito devido à atuação de Maia e de outros poucos nomes, o DEM parecia descolar-se da direita extrema para uma posição futura de centro-direita. A essa altura, graças a ACM Neto, tudo indica que o futuro pode ter sido abortado. Com genética não se brinca.
Lula nada aprendeu de novo e nada esqueceu
Cheiro no ar de 2018
Saibam desde já os interessados em buscar entendimento com o PT sobre a eleição presidencial do ano que vem que o partido terá candidato próprio no primeiro turno. E que só em caso de derrota, uma vez aceitas suas condições, apoiará o nome que no segundo turno enfrente Jair Bolsonaro. Estamos conversados.
Foi assim que soou, aqui fora, a decisão de Lula de reunir-se no último sábado com o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e de orientá-lo a pôr na rua o “bloco” de sua candidatura. Uma vez autorizado pelo xamã do PT, ao qual todos do partido reverenciam, é o que fará Haddad em breve. Missão dada, missão cumprida.
Certamente pesou na decisão de Lula, que não consultou as instâncias do partido para tomá-la, informações dos seus advogados sobre a tendência do Supremo Tribunal Federal de anular sua condenação no processo do triplex do Guarujá, mas ignorar por ora sua condenação no processo do sítio de Atibaia.
O alvo do Supremo é o ex-juiz Sérgio Moro, que usou o triplex para condenar Lula, retirando-o da disputa pela presidência da República em 2018 e impulsionando a eleição de Bolsonaro. Há farto material que fortalece a convicção dos ministros de que Moro foi parcial. Mas da segunda condenação, Moro pouco participou.
Os demais partidos de esquerda e da centro-esquerda imaginaram que Lula teria aprendido alguma coisa com o fato de o PT ter concorrido praticamente sozinho na eleição vencida por Bolsonaro. O partido só admitia aliança no primeiro turno em torno de Haddad, que mal teve tempo para fazer campanha.
Preso em Curitiba, Lula acreditou até a última hora que o candidato poderia ser ele, e que se fosse, como apontavam todas as pesquisas de intenção de voto, a vitória seria certa. Desde então nada parece ter aprendido com o que aconteceu, e nada esqueceu do tempo em que dava as cartas e acumulava fichas.
Vozes lúcidas da oposição defendem que a escolha de um nome capaz de derrotar Bolsonaro fique para depois. Para depois que todos com igual propósito discutam um projeto de novo país a ser oferecido aos eleitores e tentem aparar suas diferenças. Quando nada, isso facilitaria a união no segundo turno.
Pelo jeito, não será assim. Ou no que depender do PT e do xamã que se recusa a sair de cena, não será.
Ascânio Seleme: A praça do negro
A prefeitura de Bragança Paulista, cidade de 170 mil habitantes, deu o nome de Oswaldo de Camargo a uma nova praça que está acabando de construir na cidade
Pode parecer singelo, bonito e politicamente apropriado, mas batizar uma praça de uma cidade do interior de São Paulo com o nome de um poeta, escritor e ativista negro vivo é mais do que isso. A prefeitura de Bragança Paulista, cidade de 170 mil habitantes, deu o nome de Oswaldo de Camargo a uma nova praça que está acabando de construir na cidade e que vai abrigar também um terminal rodoviário. Antes disso, o único vereador de oposição da cidade, Quique Brown (PV), aprovou a concessão de uma placa de prata a Camargo, a mais alta honraria oferecida pela Câmara Municipal.
Oswaldo de Camargo tem 84 anos, é neto de escravos e filho de pais analfabetos. Aos seis anos, colhia café nas fazendas locais. Para chegar às plantações, caminhava oito quilômetros todas as manhãs, passando num largo despovoado onde hoje está sendo construída a praça que levará o seu nome. Trabalhou até perder os pais, Martinha e Cantiliano, que morreram de tuberculose. Muito jovem ainda, foi mandado para o Preventório Imaculada Conceição, onde foi alfabetizado. Religioso, foi recusado por diversos seminários, por ser negro. Até conseguir vaga no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto. Mas não foi ordenado, por ser preto.
Foi então para São Paulo. Lá trabalhou no jornal “O Estado de S. Paulo”, como revisor e resenhista, dos 23 anos até se aposentar. Escreveu diversos livros de poesia, história, contos e ensaios. Participou do movimento literário que publicou os “Cadernos Negros” e organizou uma antologia de literatura negra. Foi um dos fundadores de um grupo de ativistas negros, o Quilombhoje, dedicado a incentivar a literatura e dar visibilidade a textos de autores afrodescendentes. Oswaldo de Camargo foi e continua sendo um ativista literário. Segundo ele, a homenagem de Bragança não é para ele apenas. Numa entrevista a Shel Almeida, do UOL, disse que os homenageados “são todos os pobres, todos os negros que ajudaram a construir a cidade”.
O escritor merece com sobras a homenagem da sua cidade. Sua biografia prova o seu valor e a qualidade da sua obra não deixa dúvidas, segundo críticos e pensadores como Florestan Fernandes, que prefaciou seu primeiro livro “15 Poemas Negros”, que será relançado este ano pela Companhia das Letras. Só há uma questão, que embora lhe seja muito próxima, absolutamente não macula sua imagem. Oswaldo é o pai de Sérgio Camargo, o atarantado presidente da Fundação Palmares.
Sérgio tem ódio ao ativismo negro, como se sabe. Numa gravação feita sem o seu conhecimento, chamou o movimento negro de “escória maldita”. Disse que deveria ser extinto. Ele também é contra o Dia da Consciência Negra porque “celebra a escravização de mentes negras pela esquerda”. Um dos mais entusiasmados defensores do presidente Bolsonaro e de suas políticas, o filho de Oswaldo foi quase profano quando disse em rede social que “a escravidão foi benéfica para os descendentes dos escravos”. Segundo ele, os negros no Brasil vivem hoje melhor do que os negros na África.
O filho envergonha o pai. Embora evite falar sobre Sérgio, Oswaldo disse a Shel Almeida o seguinte: “Meu filho não tem nada a ver comigo nessa questão ideológica. A única coisa que eu torço é que este processo de apagar a História da qual eu faço parte não chegue tão longe que eu seja obrigado, como escritor, a confrontar-me com o que está acontecendo na Fundação (Palmares)”. O nome de Oswaldo de Camargo ficará na História, não apenas pela praça de Bragança, mas em razão da literatura que produziu e dos movimentos dos quais participou. O de Sérgio escorrerá pelo mesmo esgoto de onde um dia aflorou.
O Brasileiro vende voto
Se alguém ainda tinha dúvida, as últimas pesquisas sobre o governo do Bolsonaro provam que muito brasileiro vende seu voto. É absolutamente normal que um presidente ganhe o respeito e o apoio dos eleitores se governar bem, para todos, com rigor fiscal, honesta e democraticamente. O que se vê no Brasil, desde a instituição da política de bolsas, é o voto em troca de mesadas oficiais. Não se discute a necessidade das bolsas. O Brasil é muito pobre e não pode delas prescindir. Mas vejam como elas viram rapidamente um instrumento político. Nos governos do PT, os melhores resultados eleitorais do partido foram justamente nos lugares mais fortemente alcançados pelas bolsas. Agora, com Bolsonaro, o auxílio emergencial virou combustível para elevar a popularidade do presidente. Com o seu término em dezembro, o apoio ao capitão despencou. Por isso, aliás, ele quer urgentemente o seu retorno.
Última promessa
A imagem de político liberal de Bolsonaro é a última que resta a ser desmontada na sua saga para destruir todas as promessas de campanha. Paulo Guedes jamais vai confirmar. Se perguntado diretamente, vai negar, mas está com saco cheio. Tem gente no Ministério da Economia dizendo que ele não acredita mais no sucesso do projeto que o levou ao governo. A pauta liberal, que já vinha cambaleando e deu sinais de fadiga extrema com a demissão do presidente da Eletrobras, parece que não vai andar com Arthur Lira e o Centrão no comando da Câmara. Gente próxima a Guedes diz que esse grupo é egoísta, não pensa no país e que dificilmente vai apoiar privatização de empresas com centenas de cargos de livre indicação.
Dispensável
Até outro dia intocável, Paulo Guedes virou apenas mais um na Esplanada dos Ministérios. Bolsonaro, que já jogou no lixo até mesmo o combate à corrupção, a mais cara promessa aos eleitores não radicalizados, não tem por que segurar um ministro turrão, que vai fazer tudo o que estiver ao seu alcance para impedir a criação de novos ministérios e desembolsos, emergências ou não, desestruturados e sem compensações adequadas. O prazo de Guedes está chegando. Sua paciência também.
Mentirosa
Não sei por que ainda se dá bola e microfone para Bia Kicis, reconhecida como a maior disseminadora de fake news no Congresso. Fake news significa notícia falsa em português. Ou informação inventada. Trata-se, portanto, de uma mulher que inventa história, de uma mentirosa. Não é a única, muita gente diz que todo político mente. Mas no caso dela, trata-se de uma mentirosa patológica. Para quê ficar ouvindo mentira, não é mesmo?
Quem odiar
Em alguns meses Arthur Lira vai ganhar antipatia parecida com a do seu inspirador, o ex-deputado preso por corrupção Eduardo Cunha. Num determinado momento da História política nacional, Cunha tinha praticamente todo o Brasil contra ele. Foi o homem mais odiado do país. Mais do que os ex-presidentes Michel Temer e Dilma Rousseff, para ficar apenas na História mais recente. Lira tem tudo para seguir os passos do seu velho guia. Primeiro, tocando a pauta da Câmara, que na prática é a agenda nacional, com a truculência com que iniciou o seu mandato. Depois, quando começar a retaliar Bolsonaro, que não vai conseguir conter a sua gula e a gula do Centrão.
A prova
A eleição de Arthur Lira prova definitivamente aquela máxima de que o que é ruim pode sempre piorar. O fundo do poço é sempre mais fundo do que se pensa. No caso do Congresso, fica para lá do pré-sal.
Bola dentro
Está bem, você pode dizer que se trata de protocolo. Mas vale ressaltar que eventualmente até o ministério de Ernesto Araújo acerta. O Itamaraty distribuiu comunicado entre todas as embaixadas, consulados e outras missões estrangeiras acreditadas no Brasil explicando que todos podem e devem fazer uso dos serviços nacionais de saúde, especialmente o SUS, para enfrentar qualquer inconveniência em razão da pandemia. Explica ainda que estrangeiros têm direito à vacinação, atendendo os critérios de idade e comorbidades. Tudo bem, tudo certo. O problema é quando as vacinas chegarão. A Embaixada de Israel estuda repatriar seus servidores em escala para serem vacinados no país para depois retornarem imunizados ao Brasil.
Militares no poder
Além dos nove ministros militares do governo Bolsonaro, sabe-se que o Executivo abriga em seus ministérios e autarquias 2,7 mil oficiais e praças cedidos pelas três Forças Armadas. Dados do Movimento Acredito mostram que na Presidência da República, 15,1% dos cargos de natureza especial em funções de DAS e similares são ocupados por militares. No Ministério das Minas e Energia eles ocupam 10,8% dos cargos; na Ciência e Comunicações, 10,1%; no Meio Ambiente, 8,3%; e na Saúde, 7,3%. No final do governo Dilma, os militares somavam 2,7% dos cargos comissionados no Palácio do Planalto.
Esquecimento
Se a polêmica sobre o direito ao esquecimento passar no Supremo, os bisnetos de Getulio Vargas vão poder pedir para que se esqueça que o velho ditador deu um tiro no próprio peito. E os descendentes de Emílio Garrastazu Médici poderão exigir que não se fale mais da carnificina de civis promovida em seu governo.
Pablo Ortellado: Transigência que mata
Depois da invasão do Congresso americano, as plataformas de mídia social endureceram a implementação de suas políticas de moderação de conteúdo —e não apenas nos Estados Unidos.
No Brasil, o presidente Bolsonaro e o Ministério da Saúde tiveram tuítes sobre tratamento precoce filtrados (conteúdo borrado, acompanhado de alerta de publicação enganosa), e o YouTube removeu um vídeo sobre ivermectina de Eduardo Bolsonaro.
Apesar disso, ainda há milhares de publicações nas plataformas promovendo o uso de cloroquina, criticando o uso de máscaras e difundindo desinformação sobre as vacinas. Um levantamento feito por pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo apontou que 98% dos vídeos recomendados no YouTube sobre tratamento precoce eram desinformativos.
Em tese, nenhum conteúdo desse tipo deveria estar on-line. O Twitter diz que removerá conteúdos que apresentem “um risco direto para a saúde ou o bem-estar das pessoas”; o YouTube diz que “não é permitido o envio de conteúdo que dissemine informações médicas incorretas que contrariem as orientações da OMS”, e o Facebook diz que vai proteger “contra conteúdo prejudicial relacionado à Covid-19”.
O problema é que as regras de aplicação dessas diretrizes genéricas não são transparentes —elas existem e orientam a ação dos algoritmos e dos moderadores humanos, mas não são públicas. É permitida a publicação de conteúdo promovendo a ivermectina e a cloroquina? É permitido fazer publicações desestimulando o uso de máscaras?
Também não há transparência na escala de sanções de Facebook e Twitter para quem viola as políticas. Que gravidade de violação é punida com um rótulo, com a diminuição da distribuição, com a remoção da publicação ou a suspensão da conta?
Como a aplicação da política não é transparente, ela pode se dar de forma arbitrária, e não uniforme. Tudo leva a crer que essa opacidade está sendo utilizada como margem de manobra, que permite às empresas operar discricionariamente num ambiente em que as políticas de saúde foram politizadas.
Embora haja consenso científico contrário ao uso da cloroquina e da ivermectina no tratamento contra a Covid-19, levantamento da Associação Médica Brasileira mostrou que 35% dos médicos brasileiros consideram eficaz a cloroquina, e 41% consideram eficaz a ivermectina. Esses índices, não por acaso, são parecidos com os índices de aprovação do presidente, que defende o uso dessas drogas.
Assim, as empresas precisam impor políticas de moderação a um meio que as rejeita. Não se trata apenas dos usuários comuns, mas também das autoridades políticas e de parte dos médicos.
Não é possível saber em que medida a falta de rigor na aplicação das políticas de moderação de conteúdo ligado à Covid se deve à incapacidade das empresas de moderar uma grande quantidade de conteúdo, ao medo de perderem usuários polarizados ou ao medo de receberem retaliações do governo.
Seja como for, a difusão desse tipo de conteúdo está contribuindo para ampliar a contaminação —sem exagero, está tirando vidas.
Benito Salomão: Riscos para 2021
O ano de 2021 começou como uma extensão do ano de 2020, os problemas vividos pelo país até o último dia 31/12 permanecem e tendem a ser agravados por um conjunto amplo de novas dificuldades que surgem no contexto pandêmico. A vacina contra o COVID-19 finalmente apareceu, no entanto, dada a magnitude da crise, a demanda mundial ainda é infinitamente maior do que a oferta. Sobre isto, surge a primeira dificuldade, a capacidade de expansão da oferta de imunizantes contra a doença é rígida a curto prazo e este é um problema que levará boa parte de 2021 para ser solucionado.
No Brasil este problema será ainda mais agravado pela incompetência do Ministério da Saúde em coordenar um plano nacional de imunização célere e pela incompetência do Ministério das Relações Exteriores em posicionar o país na corrida mundial pelas vacinas disponíveis. Os casos recentes envolvendo China e Índia mostram como estamos atrasados em termos de tornar a vacinação uma realidade nacional.
Sem vacinas para todos, o Brasil está a mercê de quarentenas intermites que devem começar a se intensificar na mudança de estação no final do mês de março. Na presença destas quarentenas, como se comportarão as famílias de baixa renda atendidas pelo auxílio emergencial ano passado? O governo sinaliza a recriação do auxílio emergencial para lidar com a situação, mas novamente, é lento e titubeante. Já se sabia em novembro de 2020 que uma segunda onda na América Latina seria inevitável, o governo deveria ter agido naquele momento para prorrogar o auxílio.
Não é tarefa trivial, o gasto público no Brasil está submetido ao teto de gastos, de forma que um novo auxílio emergencial depende de uma prévia preparação legal. Em março do ano passado sob iniciativa da Câmara as condições legais foram implantadas, primeiro no decreto de calamidade pública e em seguida pela aprovação da PEC do orçamento de guerra. Se isto for repetido agora, um novo auxílio será realidade (em um cenário otimista) apenas em meados de março.
O pagamento desta extensão do auxílio emergencial necessário para a realidade, cria dois problemas adicionais para o médio prazo: primeiro, o problema fiscal. Em um contexto de dívida pública próxima a 90% do PIB, há um certo limite para o pagamento de benefícios. Quanto mais a vacinação atrasar, mais tempo o governo terá que transferir recursos às famílias carentes para fazer face à pandemia. Com isto o quadro fiscal tende a se agravar muito nas proximidades da eleição de 2022.
O segundo problema que pode emergir do pagamento do auxílio emergencial é uma inflação persistente no teto da meta. Para 2021 a meta de inflação é de 3,75% e sua banda superior é 5,25%. Em 2020 o IPCA fechou muito próximo disto (4,52%), isto não seria um problema se o produto não tivesse apresentado um tombo próximo a 5% e o desemprego não tivesse avançado de 11,2% para 14,3% ao longo do ano.
Uma expansão da inflação diante de uma elevação brutal do desemprego mostra que o componente forward looking da inflação está se sobrepondo, em outras palavras, a inflação no presente está se guiando predominantemente pelas expectativas futuras de inflação vinculadas a um cenário de incerteza sobre a dinâmica fiscal do país. Este comportamento da curva de Phillips mostra que o Banco Central terá que aplicar uma dose cavalar de juros para segurar o comportamento dos preços ao longo do ano.
É possível que a Selic feche 2021 em 4%, ou acima disto. O desemprego é o 7° risco de 2021, sem o auxílio emergencial um conjunto grande de pessoas que estava fora do mercado de trabalho (os desalentados) tendem a iniciar a busca por emprego. Em um cenário sem o auxílio emergencial, esta taxa pode bater em 16,6% em dezembro deste ano, no cenário com o auxílio ela pode permanecer em torno de 14,2%.
Até aqui considero riscos para 2021: 1° falta de vacinas, 2° quarentenas intermitentes, 3° aumento da pobreza e miséria pela ausência do auxílio emergencial, 4° risco fiscal pela extensão do auxílio emergencial, 5° risco inflacionário, 6° aumento da taxa de juros, 7° aumento do desemprego. Há um oitavo risco que não pode ser negligenciado, o Brasil pode ser surpreendido em meados deste ano com um racionamento de energia elétrica, isto irá depender das condições climáticas, mas convém lembrar que o país está em bandeira amarela em pleno período de chuvas, pode entrar em breve em bandeira vermelha e na fase mais aguda de estiagem pode faltar energia. Os episódios recentes do Amapá são sinais de que o sistema elétrico brasileiro está trabalhando no limite da capacidade e se as atividades econômicas retomarem fortemente estas probabilidades vão aumentar muito.
*Benito Salomão é economista, doutorando em Economia pela Universidade Federal de Uberlândia.
Monica de Bolle: O teorema do economista infinito
Escolha número infinito de economistas brasileiros com passagem pelo mercado financeiro e formação tradicional. Peça para produzir um texto de 4 mil caracteres com espaços. Todos defenderão as reformas, a manutenção do teto de gastos, a importância da responsabilidade fiscal
Deu na BBC. Em 2020, o risco de morrer de Covid-19 no Brasil foi três vezes maior do que no resto do mundo. Os cálculos, feitos pelo economista Marcos Hecksher, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), dimensionam aquilo que muitos de nós já sabemos: no Brasil, prevalece a visão torpe de que a economia é mais importante do que qualquer outra coisa, como se a economia pudesse dispensar essas outras coisas.
Enquanto o resto do mundo convergiu para o entendimento acertado de que a saúde é soberana e que ignorá-la, sobretudo o seu caráter público, equivale a remar em direção ao colapso, tal lição passou longe do Brasil. Mas isso não é sequer o mais estarrecedor. O mais estarrecedor é que hoje, na fase mais crítica da pandemia, com as três variantes virais que assombram o mundo em circulação no país, nada mudou.
No Brasil, tudo se engessa com o tempo, nada se molda a ele. O Brasil é um lugar espetado no tempo, rígido, imóvel.
Dia desses, instigada por algo que alguém escreveu nas redes, fiquei pensando no glossário dos economistas brasileiros — os que têm colunas em jornais de grande circulação. Hoje não há ninguém que escreva nessas publicações e não gaste linhas falando em “responsabilidade fiscal”, “manter o teto de gastos”, “reformas”, “déficit fiscal”, “dívida pública elevada”, “riscos inflacionários”, “confiança”, “expectativa”. Trata-se de uma liturgia da mesmice. Veio-me à mente o Teorema do macaco infinito. Sabem qual é? Aquele que diz que um macaco que tecle de modo aleatório por um período infinito de tempo quase certamente produzirá qualquer tipo de texto, até as obras completas de Shakespeare. Acham inverossímil? Pois o teorema possui prova matemática.
No caso do economista, ele assume forma bem mais simples. Escolha número infinito de economistas brasileiros com passagem pelo mercado financeiro e formação tradicional — tradicional, conforme uso a palavra aqui, é sinônimo incongruente de “liberal”. Ponha todas essas pessoas diante de infinitos teclados e forneça-lhe os termos e trechos listados no parágrafo anterior. Em seguida, peça aos infinitos economistas para produzir um texto de 4 mil caracteres com espaços — o tamanho-padrão em jornais impressos. Quase certamente todos os textos escritos serão absolutamente idênticos.
Todos defenderão as reformas, a manutenção do teto de gastos, a importância da responsabilidade fiscal. Todos afirmarão que o déficit e a dívida elevados inevitavelmente aumentarão os riscos inflacionários. Caso você, leitor, ouse pedir aos infinitos economistas que tratem também do auxílio emergencial, haverá de receber infinitos textos idênticos apontando os enormes riscos de reinstituí-lo. O auxílio haverá de aumentar ainda mais o déficit, a dívida pública, dizimar a confiança dos investidores internacionais e provocar expectativas negativas quanto ao futuro do país. Não é hora de falar em auxílio emergencial, concluirão.
Não vou tentar provar matematicamente o Teorema do economista infinito nessa coluna pois faltará espaço — afinal, disponho de pouco mais de 4 mil caracteres com espaços. Mas insistirei, para quem ainda tiver paciência, que leia o óbvio pela enésima vez. O Brasil atravessa o pior momento da pandemia. Sistemas de saúde estão colapsando em vários estados do país. As mortes se amontoam e variantes mais transmissíveis do vírus circulam sem qualquer tentativa de contê-las. Há, portanto, uma calamidade. O óbvio seria decretar estado de calamidade.
Com tal decreto em mãos, novas quarentenas seriam instituídas em diversas localidades país afora. Recursos seriam destinados para a Saúde com maior liberdade, já que, com o decreto, o teto de gastos estaria suspenso. As medidas econômicas para apoiar as de saúde pública, como a ressureição do auxílio emergencial, poderiam ser adotadas. Desse modo, teríamos alguma chance de evitar o colapso tal como conseguimos fazer no ano passado, e lembro que a queda do PIB provavelmente será bem menor do que se imaginava por causa do auxílio emergencial.
Contudo, acredito que não faremos nada disso. Acredito que, por ora, o Brasil espetado no tempo é compatível tão somente com o Teorema do economista infinito. A vantagem? O Teorema do economista infinito, no futuro, não vai requerer uma equação sequer. Sua prova estará na catástrofe brasileira. Q.E.D.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
El País: Nelly e Erik, as inquietantes mutações do coronavírus em Manaus
Três novas variantes do vírus poderiam ser mais contagiosas e capazes de reinfectar graças a uma combinação semelhante de alterações em seu genoma
Os cientistas que vigiam a evolução do novo coronavírus estão inquietos. Depois da aparição no final do ano de duas variantes aparentemente mais contagiosas, detectadas no Reino Unido e África do Sul, um grupo de pesquisadores publicou em 12 de janeiro a descrição de uma terceira variante suspeita em Manaus, relativamente similar às duas anteriores. Os autores sugerem uma possibilidade preocupante: a evolução convergente, o mesmo fenômeno que fez os morcegos e aves desenvolverem asas de maneira independente, milhões de anos atrás. O coronavírus também poderia estar mudando na mesma direção em diferentes lugares do mundo: rumo a versões mais transmissíveis e inclusive capazes de reinfectar algumas pessoas que já tiveram covid-19, conforme adverte a equipe que descobriu a variante brasileira, encabeçada pelo epidemiologista Nuno Faria, do Imperial College de Londres.
A nova variante brasileira apresenta uma combinação singular de mutações, mas duas delas são velhas conhecidas. Alguns geneticistas as denominam Nelly e Erik, pela semelhança com seus nomes técnicos: N501Y e E484K. Nelly e Erik são duas mutações que afetam a espícula do coronavírus, a chave com a qual o vírus entra nas células humanas. A mutação Nelly está presente nas três variantes inquietantes, e Erik se soma a ela na sul-africana e brasileira.
O virologista espanhol Rafael Delgado expressa sua “preocupação” com essa possível evolução convergente, envolvendo combinações de mutações que talvez se repitam porque representam uma vantagem para o vírus. Um estudo preliminar do bioquímico norte-americano Jesse Bloom sugeriu há algumas semanas que a mutação E484K multiplica a capacidade do coronavírus de escapar dos anticorpos do plasma sanguíneo de alguns doadores que já superaram a covid-19. E outro estudo publicado nesta terça-feira sustenta que “a maioria” das pessoas que foram naturalmente infectadas pelo novo coronavírus e se recuperaram poderiam se contaminar novamente com a variante sul-africana. O trabalho, ainda um esboço pendente de revisão, foi assinado pela virologista Penny Moore, do Instituto Nacional de Doenças Contagiosas da África do Sul.
A variante britânica —com Nelly, mas sem Erik— surgiu aparentemente no Reino Unido, em setembro, e já foi registrada em 40 países. As autoridades britânicas calculam que é entre 30% e 50% mais transmissível. Na Espanha, foi identificada pela primeira vez na época do Natal, no Hospital 12 de Octubre, em Madri. “Estamos detectando atualmente entre 2% e 3% [de variantes britânicas com relação ao total de casos]. A porcentagem é pequena, por enquanto, mas claramente vem crescendo”, explica Rafael Delgado, chefe do Serviço de Microbiologia desse hospital. Na Dinamarca, a variante britânica representava 2,4% das amostras analisadas há duas semanas, e agora já chega a 7%.
A variante britânica não produz uma forma mais grave da doença, mas é mais contagiosa, segundo todos os indícios, de modo que o resultado final seria também um maior número de mortos. “Os hospitais lotam antes, Portanto, é um perigo, sobretudo na situação em que estamos agora, que já de ruim. É preocupante”, opina o biólogo Iñaki Comas, codiretor do consórcio que sequencia os genomas do coronavírus na Espanha. Comas calcula que a variante britânica só alcança atualmente uma frequência de 1% a 5% em todo o território espanhol.
A variante sul-africana já apareceu em 13 países, entre eles a França e a Alemanha. A de Manaus só foi identificada no Brasil, Japão e Coreia do Sul. Em outros países, como a Espanha, a atual onda da pandemia é causada por versões anteriores do SARS-CoV-2. “A atual onda na Espanha não se deve a nenhuma dessas variantes, e sim às que já tínhamos”, salienta Comas. Pode ser questão de tempo. Os Centros para o Controle e a Prevenção de Doenças (CDCs) calculam que a variante britânica será a dominante nos EUA em março.
Alguns especialistas, como o norte-americano Trevor Bedford, acreditam que estas novas variantes surgiram em pessoas com uma infecção crônica, um processo em que as defesas lutam contra o coronavírus durante meses, até que aparece um mutante que invade melhor as células humanas e consegue escapar. Bedford, do Centro de Pesquisas Fred Hutchinson, baseia-se no caso de um homem de 45 anos que, por um problema em seu sistema imunológico, passou cinco meses internado com covid-19 no Hospital Brigham and Women’s, em Boston (EUA). Os médicos que o trataram relataram “uma evolução acelerada do vírus” até que o paciente acabou morrendo. Entre as mutações detectadas figuravam Nelly e Erik.
É muito raro que uma única mutação mude o rumo de um vírus, mas há precedentes. Uma só mudança no vírus do chikungunya o tornou capaz de se instalar em uma nova espécie de mosquito, aumentando assim seu potencial epidêmico, segundo um estudo da Universidade do Texas. O que mais preocupa os cientistas, entretanto, é o efeito sinérgico de várias mutações relevantes. Delgado, do 12 de Octubre, teme sobretudo a coincidência de Nelly e Erik nas variantes sul-africana e brasileira.
Um estudo preliminar com 20 voluntários, publicado nesta terça, também sugere que os anticorpos gerados por vacinas (nesse estudo, as da Pfizer e Moderna) sejam ligeiramente menos eficazes contra as novas variantes com as mutações Nelly e Erik. “É possível que seja necessário atualizar periodicamente as vacinas para evitar uma potencial perda de eficácia clínica”, concluem os autores, encabeçados pelo imunologista Michel Nussenzweig, da Universidade Rockefeller (EUA). Os pesquisadores salientam que o efeito observado é “modesto”.
O geneticista Fernando González Candelas, codiretor do consórcio espanhol, recorda o excessivo alarme gerado no ano passado com outras mutações, como a D614G, apontada em meados de 2020 como talvez mais contagiosa, e hoje absolutamente dominante em todo o mundo. González Candelas, catedrático da Universidade de Valência, é muito cético quanto à hipótese de que o coronavírus esteja evoluindo em uma mesma direção. “É preciso ter muito cuidado com os vírus. Mesmo que a mesma mutação apareça várias vezes, não significa que haja uma evolução convergente. A probabilidade de aparecer uma mesma mutação de forma independente é muito alta”, argumenta. “Há muito alarme antecipado a respeito”.
González Candelas acredita, no entanto, que poderiam estar se formando as condições para o surgimento de cepas avantajadas do vírus. “À medida que vai aumentando o número de pessoas vacinadas ou com imunidade gerada por uma infecção prévia, favorece-se a infecção por aqueles vírus que podem evitar essas defesas imunológicas”, explica. O comitê de emergências da Organização Mundial da Saúde afirmou em 15 de janeiro que o risco é “muito alto” e fez um apelo aos países para que dediquem mais recursos a vigiar as mutações do coronavírus. Quase ninguém contempla a possibilidade de que as vacinas deixem de funcionar repentinamente, e sim que perca progressivamente sua eficácia atual, em torno de 95%, até que seja necessário atualizá-las, como ocorre todos os anos com a vacina da gripe.
“O problema é que muito do que sabemos sobre os efeitos das mutações procede de experimentos com mutações individuais: você coloca uma mutação [em uma réplica do vírus em laboratório] e vê o que acontece. Mas nos falta muita informação experimental sobre como todas estas mutações interagem entre si: qual é o impacto de pôr Nelly e Erik juntos”, explica Iñaki Comas, do Instituto de Biomedicina de Valência, ligado ao CSIC (agência espanhola de pesquisa científica).
Comas, no entanto, se diz otimista. “Talvez, tanto a variante da África do Sul quanto a do Brasil tenham algum efeito sobre a imunidade devido a essa mutação E484K, mas não esperamos que nenhuma destas variantes, tampouco a britânica, afete as atuais vacinas. A imunidade que conseguimos com as vacinas é muitíssimo maior que a imunidade natural depois de uma infecção”, tranquiliza. O próprio Jesse Bloom, um dos cientistas que mais estudaram a mutação E484K, declarou que confia em que “as atuais vacinas serão úteis durante bastante tempo”.
“O mais importante agora em relação às vacinas não é nos preocuparmos com as variantes, e sim com a vacinação: que chegue a todas as populações em todas as partes do mundo”, opina Comas. Quanto às novas variantes, o pesquisador espanhol recorda a estratégia básica para freá-las: “Ainda não se inventou uma variante que seja capaz de saltar uma máscara”.