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Luiz Sérgio Henriques: Crônica de uma nação descentrada
Rompe-se o tecido social e poucas vezes a imagem do País terá descido tão baixo
No quadro das ameaças de colapso da personalidade e também no das catástrofes sociais, recuperar o “centro”, seja só o de si próprio, seja o de toda uma comunidade, costuma ser o movimento que impede a descida aos infernos e a anomia generalizada. Não se trata de programa tímido ou moderado, embora a moderação, sem deixar de ir à raiz das coisas, esteja presente como um dos seus elementos constitutivos.
Em geral, a urgência de um movimento desse tipo sucede à percepção de um risco cuja natureza é, acima de tudo, existencial: vemo-nos, como indivíduos ou como coletividade, diante de forças que escapam ao nosso controle, com potencial de destruição que só podemos antever recorrendo às distopias mais contundentemente imaginadas. Em situações assim, podemos tocar Orwell com as mãos.
Como sociedade nacional, entramos num túnel alucinante com a mais grave crise sanitária em pelo menos um século. Uma crise verdadeiramente global, como é da natureza do nosso tempo de humanidade (contraditoriamente) unificada, mas que afeta cada uma das sociedades de maneira particular e quase única, a depender de fatores variadíssimos, como a demografia, a capacidade econômica ou a própria organização política.
“Escolhemos” enfrentar o grande drama abrindo mão, quase inteiramente, de vantagens preciosas, como a coesão social, a vontade democraticamente orientada para fins de saúde pública e defesa econômica, a mobilização consciente dos recursos científicos de que o País tradicionalmente dispunha e, certamente, ainda dispõe. Este, afinal, é o país de Oswaldo Cruz, de Carlos Chagas e da plêiade de médicos e gestores que ergueram, na redemocratização, o Sistema Único de Saúde.
Por decisão própria – e para espanto dos muitos amigos do Brasil em todo o mundo que nos percebiam, às vezes ingenuamente, como uma das possibilidades mais interessantes de criação de um soft power não só em escala regional, mas global – nos encerramos, desde 2018, numa aventura em que cotidianamente se conjugam, em doses colossais, atraso, fanatismo e irracionalismo.
Para alguma tentativa de explicação será preciso talvez recorrer a mais do que ao cansaço com a experiência do petismo no poder. Para remediar tal cansaço existiam, e existem, remédios políticos adequados, como a crítica severa, a tenaz construção de alternativas, a proposição de projetos concorrentes, mas certamente não a convocação de alguns dos piores traços recessivos da nossa formação como povo e como Estado nacional.
Uma parte das elites econômicas pretendeu que valia a pena difundir massivamente a mensagem do liberalismo extremado, associando-o ao fundamentalismo ideológico e religioso. Um liberalismo assim entendido dificilmente se poderia associar a qualquer ideia de “sociedade aberta”, como alguns chegaram a encenar, soletrando um Karl Popper aprendido de orelha. Como era previsível, antes daria origem a uma realidade atravessada por formações meramente reativas, entre elas a do “politicamente incorreto”, que sustenta ações e palavras particularmente cruéis em relação aos sujeitos socialmente “fracos”, negros, indígenas, mulheres. E, horror dos horrores, em relação aos mortos da pandemia, o que faz de nós um caso único de desprezo à vida e à dor humana no seu sentido mais elementar.
De fato, desequilibramo-nos, passamos a conviver com uma realidade anomalamente povoada de sociopatas. Individual e coletivamente, ao perder o “centro”, nos empobrecemos. Difunde-se em falas e documentos oficiais uma noção amputada de liberdade, só pela qual, segundo alguns, valeria sacrificar a vida. A liberdade que se proclama, com grau poucas vezes visto de irresponsabilidade, é aquela destituída de impedimentos de qualquer natureza, dando a cada indivíduo a possibilidade de se movimentar selvagemente entre outros indivíduos igualmente livres de freios e obrigações. Exercer tal liberdade seria rebelar-se, quem sabe com armas na mão, contra as limitações que nós mesmos livremente nos damos, a exemplo das que são indicadas consensualmente há séculos em situações de pestes e epidemias. Paradoxalmente, no entanto, a imposição de tal liberdade anárquica e prepotente não dispensa a mão pesada do Estado nem a difusão de bandos e milícias no corpo da sociedade civil.
O preço do “descentramento” e mesmo das excentricidades a que assistimos, bestificados, é de conhecimento geral: internamente, rompe-se o tecido social; externamente, poucas vezes a imagem do País terá descido a níveis tão baixos. Em meio a ruína ainda maior, intelectuais italianos de peso quiseram saber, antes da retomada da democracia no pós-guerra, se os 20 anos de fascismo teriam sido um “breve parêntese” ou, na verdade, a “autobiografia da nação”. Nós também logo acordaremos do pesadelo, mas por muito tempo não escaparemos de análogo exame da nossa História, tão marcada por “parênteses” autoritários, que, caso tornem a se repetir, terminarão por definir a fisionomia de uma nação recorrentemente enredada em terrores noturnos e medos infantis.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Fernando Gabeira: O som e a fúria em Brasília
Com um governo negacionista como o de Bolsonaro despontamos para o atraso
Não é fácil entender a política brasileira, mas quem se detiver, esta semana, nos dois mais intrincados nós a serem desatados em Brasília talvez chegue a algumas conclusões interessantes. Os dois nós são a CPI da pandemia e a inadequação do Orçamento da União.
No primeiro, o governo é acusado de omissão no processo de combate ao vírus que já nos custou mais de 360 mil vidas e poderá custar 600 mil até julho, segundo prognósticos da Universidade de Washington. Acusações e mesmo investigações sobre a atuação de Bolsonaro na pandemia não são novas. Há processos no Tribunal Internacional de Haia e inquéritos como o das mortes em Manaus, em que Eduardo Pazuello é o principal investigado.
Bolsonaro é acusado de negacionismo e, realmente, tem negado a importância da pandemia desde o início. Era previsível que surgisse uma CPI sobre o tema no Congresso, uma vez que os parlamentares estavam de quarentena, mas não mortos.
Eleito com apoio de Bolsonaro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, bloqueou a instalação da CPI. Quando, numa entrevista, perguntei a razão do bloqueio, ele respondeu com os argumentos usais de que é preciso união, foco no combate à doença. Na verdade, usou o argumento da própria pandemia para negar direitos legais, algo que muitos governos autoritários tentam fazer no mundo.
A reação de Bolsonaro à CPI foi uma nova forma de demonstrar seu negacionismo. Ele sabe que CPI, além do número legal de assinaturas, precisa de fato determinado. Na conversa gravada com o senador Kajuru, ele pede que a investigação seja estendida aos prefeitos e governadores. É preciso investigar tudo, diz ele. E nós sabemos que essa é a senha para não investigar nada.
A proposta é quase tão absurda quanto chamar a covid-19 de gripezinha ou insinuar que a vacina transforma gente em jacaré. O Senado teria de usar seus recursos limitados para investigar todo o Brasil, sabendo que 11 Estados já fazem essa investigação e em dois, Rio de Janeiro e Santa Catarina, os governadores investigados já foram afastados do cargo.
Isso tudo sem contar o fato de que a Polícia Federal trabalha no tema em nove Estados e já recuperou em torno de R$ 7 milhões desviados, até com incursões em gabinetes de governador, como no caso de Helder Barbalho, no Pará.
Bolsonaro convidou o Senado à dispersão de esforços para se proteger. E não satisfeito em lançar mão de Estados e municípios como escudo, quer que se abram processos contra ministros do Supremo.
São duas lições importantes sobre a política no Brasil. Acusados tentam sempre ampliar as investigações para desaparecerem nela, e quase sempre alegam que todos estão errados. No caso, a ideia é pôr a limitada estrutura do Senado a investigar todo o Brasil e, simultaneamente, tentar cassar membros do Poder Judiciário.
Em outras palavras, a melhor maneira de investigar a omissão criminosa de Bolsonaro é uma ofuscante e laboriosa atividade cujo resultado pode ser nulo. É uma nova pirueta do negacionismo. Não houve pandemia, muito menos responsáveis pela mortandade. A CPI seria apenas, como em Macbeth, uma história, contada por idiotas, cheia de som e fúria, significando nada.
O nó do Orçamento também é interessante, por mostrar que se tornou um instrumento tão precário que não serve nem para um desgoverno como esse que existe hoje no Brasil. Negociações medíocres entre governo e Congresso acabaram fazendo a balança pender para alguns ministérios e, sobretudo, para o lado dos parlamentares.
Não se sabe onde vai parar parte do dinheiro da Previdência, do seguro-desemprego, do financiamento da agricultura familiar. O próprio Paulo Guedes afirma que com esse Orçamento é impossível prosseguir e teme até o impeachment de Bolsonaro. Como sempre, a conta está um pouco mais alta: R$ 33 bilhões.
O que é esclarecedor sobre o Brasil são as soluções discutidas nos bastidores. Aí, sim, o observador conhecerá um pouco da nossa cultura, seguindo o debate. Uma das propostas para livrar Bolsonaro de processo é uma viagem ao exterior. O Orçamento seria assinado por Arthur Lira, que já está queimado mesmo e serviria de escudo para o presidente.
Também muito didática é a troca de ideias entre Guedes e os parlamentares. O ministro propõe que sejam cortados os R$ 33 bilhões e se façam ajustes lá na frente. Os parlamentares propõem que sejam mantidos e se façam ajustes lá na frente. Uma ausência tão completa de planejamento é também uma espécie de negação do governo. O Orçamento é apenas para tocar os assuntos correntes.
O problema é que essa ausência de governo real assusta até o mercado. Hoje apenas por ser uma dispendiosa ausência. Logo o próprio mercado sentirá falta de um governo com projetos de renovação pós-pandemia.
Nos Estados Unidos discute-se uma nova relação entre governo e forças produtivas, trabalha-se com a consciência de um desastre climático, aprofunda-se a experiência digital. O Brasil costuma levar alguns anos para se sintonizar com o mundo. Quase sempre foi assim, mas com um governo negacionista certamente despontamos para o atraso.
*Jornalista
Andrea Jubé: Está em curso uma operação de minimização de danos
Objetivo de parte dos ministros é salvar Lava-Jato
A maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu ontem o salvo-conduto para que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva concorra à Presidência da República em 2022, prerrogativa que lhe foi negada pela mesma Corte em 2018.
“Três anos depois” - dirá o PT, repetindo o comentário irônico do ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas à nota de repúdio divulgada pelo ministro Edson Fachin.
O relator da Lava-Jato reagiu à revelação, no livro de memórias do general, de que a cúpula do Exército atuou para pressionar a Corte a barrar a candidatura do petista naquele ano.
Em contrapartida, o voto de Fachin blindou a Lava-Jato, como fez questão de deixar claro o presidente do STF, Luiz Fux. Em seu voto, ele explicitou que os efeitos do julgamento de ontem não são “sistêmicos”, e que a operação está preservada.
O julgamento de ontem foi uma operação de redução de danos: se a maioria do plenário confirmar, na semana que vem, a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro nos processos contra Lula, conforme decisão da Segunda Turma, somente nesta hipótese a Lava-Jato estaria à deriva.
A maioria em torno da parcialidade de Moro anularia integralmente os processos contra Lula. A prevalecer exclusivamente a declaração de incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba, os processos serão retomados no juízo federal do Distrito Federal ou em São Paulo, conforme tese levantada pelo ministro Alexandre de Moraes.
Nessa hipótese, entretanto, é pouco provável que haja tempo hábil para nova condenação que tornasse Lula novamente inelegível. “A candidatura de Lula agora é de difícil reversão”, sentenciou o secretário-geral do PT e advogado de formação, deputado Paulo Teixeira (PT-SP). Ele avalia que o julgamento de ontem evidenciou que foi montada uma “farsa” para inviabilizar a candidatura de Lula em 2018.
“Ele só foi julgado lá atrás porque tinha um juiz suspeito, a incompetência é derivada da suspeição”, afirmou. Nem a defesa de Lula nem a cúpula petista espera para a próxima semana a reedição do placar de 8 a 3 em relação à análise da imparcialidade de Moro. Contudo, há expectativa por um placar favorável de 6 a 5. Três votos contra Moro são conhecidos por causa do julgamento na Segunda Turma: os de Gilmar, Lewandowski e Cármen Lúcia. A aposta para formar maioria volta-se para os votos de Dias Toffoli, Rosa Weber e Alexandre de Moraes. A conferir.
Talvez para evitar que à demora de três anos se somasse mais uma semana, os ministros Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, e Ricardo Lewandowski anteciparam ontem os seus votos, tornando fato consumado a decisão em relação à incompetência da 13ª Vara Federal para julgar os processos contra Lula. Do contrário, o impasse se estenderia até a retomada do julgamento no dia 22. O suspense ficou reservado ao desfecho da suspeição de Moro.
A esperança também move os petistas, embalados por uma declaração sintomática de Fachin, em agosto do ano passado, de que a candidatura presidencial de Lula em 2018 “teria feito bem à democracia”.
César Felício: A aposta de Lula no front externo
Apoio internacional é arma para se esquivar de mazelas
Em uma charge do jornal suíço “Neue Zürcher Zeitung”, publicação que está longe de ser de esquerda, o presidente Jair Bolsonaro foi retratado dentro de uma escavadeira, derrubando uma árvore. Atrás do presidente, em um gigantesca escavadeira vermelha, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva prepara-se para remover o rival, enquanto um pequenino tucano revoa apavorado.
Nesta semana, o francês “Le Monde” publicou um extenso material em que busca demonstrar que a Operação Lava-Jato foi muito influenciada por integrantes do governo e da Justiça dos Estados Unidos.
Em conversa por WhatsApp com o jornalista John Lee Anderson, da “New Yorker”, publicada dia 13, Lula pontificou: “É preciso que os países ricos esqueçam as divergências para discutir a produção de vacinas e a vacinação de todos”. Ao falar com o espanhol “El País”, no mês passado, abusou da soberba. “A Europa desapareceu na política. Tudo são comissões. Comissão para isto, comissão para aquilo... todos uns burocratas”, e arrematou: “Sejamos sinceros, meu tempo foi o melhor momento da América Latina desde Colombo”.
Se no Brasil o ex-presidente até o momento evitou conversar com veículos de imprensa de expressão nacional, salvo quando as entrevistas são conduzidas por jornalistas com quem tem afinidade pessoal no momento, no exterior o petista tem se sentido à vontade para falar, mesmo quando é contestado de modo mais contundente, como foi o caso de sua entrevista para a portuguesa “RTP” ou a italiana “Tg2 Post”. Na última, chegou a fazer um mea culpa, algo muito raro, por não ter extraditado o terrorista Cesare Battisti. O episódio faz com que sua imagem na Itália seja pior do que a que desfruta em outros países. Sobre Battisti, ele disse que se surpreendeu com a delação do italiano. “Mi sono sbagliato” [eu estava errado] disse Lula, na tradução livre feita por portais daquele país.
As entrevistas de Lula lá fora são semeaduras em um terreno já arado e adubado faz tempo. Um paciente trabalho de cultivo de relações fez com que o ex-presidente tenha vencido no exterior a disputa de narrativa com os artífices da Lava-Jato. O relato que prevalece é que a principal liderança de oposição ao atual presidente brasileiro foi alvo de perseguição judicial e política. Ele não é visto como o presidente em cujo governo se desenvolveu o maior esquema de corrupção conhecido no planeta.
Sua tarefa é ainda mais facilitada pelo fato de o Brasil ter um presidente como Bolsonaro. Segundo levantamento feito pela consultora política Olga Curado, com apoio da Universidade Federal de São Carlos, um grupo de sete publicações (“New York Times”, “Le Monde”, “El País”, “Der Spiegel”, “The Guardian”, “Economist” e “Washington Post”) editaram 1.179 matérias sobre o Brasil. Destas, 92% ressaltando aspectos negativos do país.
Em 52% dos casos, eram matérias sobre erros de gestão de Bolsonaro na condução da pandemia. Em 23% das situações, notícias sobre a fragilidade das instituições, em função de atos e palavras do presidente. Foi a tal personagem, com este tipo de imagem no exterior, que Sergio Moro serviu como ministro por um ano e meio. Não há como a Lava-Jato ser vista de maneira positiva no âmbito internacional, já que a sua consequência política concreta se chama Jair Messias Bolsonaro.
Isso contribui para que o ex-presidente se esquive de responder pelas mazelas de sua gestão e do governo da sua sucessora. Mais: ele se apresenta de volta ao cenário pautando o debate que lhe interessa.
É evidente que o brasileiro médio pouco se importa com a imprensa internacional e provavelmente nunca leu nada sobre o Brasil apresentado a estrangeiros. Mas Olga Curado ressalta que para o público doméstico a cobertura internacional de Lula serve como um reforço de argumento àqueles que já têm simpatia pelo presidente.
No imaginário de certos públicos, a grande mídia nacional carece da credibilidade que possui a mídia estrangeira, supostamente não envolvida com as circunstâncias domésticas. São validadores. Auditores independentes, por assim dizer.
Se os bolsonaristas lançam mão de blogueiros para responder ao noticiário negativo, Lula prefere dar recados em inglês, francês, espanhol ou italiano do que se submeter ao escrutínio da grande imprensa nacional.
O prestígio internacional de Lula é escorado no passado. Estão com ele ex-mandatários que foram seus contemporâneos, como o francês Nicolas Sarkozy e o espanhol José Luis Zapatero, o paraguaio Fernando Lugo, o equatoriano Rafael Correa e o panamenho Martín Torrijos. Os quatro últimos reunidos no Grupo de Puebla, que soltaram no mês passado uma nota definindo a decisão do ministro Luiz Edson Fachin em anular as sentenças de Curitiba como “um sopro de esperança no restabelecimento do devido processo legal”.
Mas Lula também tem seus aliados do presente. Ter sido recebido pelo papa Francisco não é trivial. E um conterrâneo, do pontífice, o presidente argentino Alberto Fernández soltou no dia 11 uma série de tuítes que, caso fossem de autoria de um general brasileiro, provocariam de certo uma crise com o Supremo, uma vez que publicados na antevéspera de um julgamento na corte.
“Vemos com preocupação que pretende reiniciar-se a perseguição a Lula utilizando as mesmas más práticas já usadas”, afirmou o argentino. “Dar marcha a ré na decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal por pressões midiáticas e políticas significaria um retrocesso institucional para o Brasil e um dano incalculável para os que reivindicam o Estado de Direito como base de sustentação à democracia”.
Correntes como esta para Lula são importantes porque há uma possibilidade de que ele se torne em 2022 um candidato a presidente que polarize com Bolsonaro tendo que se defender na Justiça de modo constante. O julgamento de ontem no STF, em que venceu por 8 a 3, em nada indica vida tranquila. O voto de Fux, por exemplo, sugere que a suspeição de Moro não é tema pacificado. Pode fazer uma campanha em meio a petições, liminares, alegações iniciais, alegações finais, sustentações orais, pronúncias, agravos, quem sabe sentenças em primeira instância. O petista precisará usar a vitimização como uma estratégia perene.
Ricardo Noblat: Um presidente assombrado pelo fantasma do impeachment
Bolsonaro impõe condições a Deus para deixar a presidência
Se não bastassem os problemas que ele mesmo cria em volume considerável, além dos naturais que costumam afligir qualquer governante, o presidente Jair Bolsonaro ganhou mais um de bom tamanho que certamente lhe subtrairá o sono até que se resolva.
A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, deu um prazo de cinco dias para que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), explique por que não aceitou até agora nenhum dos pedidos de processo de impeachment contra Bolsonaro.
São mais de 60 pedidos que repousam numa gaveta desde quando Rodrigo Maia (DEM-RJ) era o presidente da Câmara. Outros quatros foram arquivados pelo não cumprimento de formalidades. Maia sempre disse que não era a hora de examiná-los.
Lira, eleito presidente da Câmara contra a vontade de Maia, pensa a mesma coisa. A seu juízo, e por falta de conveniência no momento, o melhor é que fiquem adormecidos. A acordarem, só quando o governo estiver caindo pela tabela, o que ainda não está.
Foi por pensar nessa mesma linha que Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, havia deixado sem resposta o pedido de instalação da CPI da Covid, um direito da minoria parlamentar reconhecido pela Constituição.
Até que, na semana passada, o ministro Luís Roberto Barroso mandou que a CPI fosse instalada. O plenário do Supremo confirmou a ordem de Barroso. O requerimento de instalação foi lido em sessão do Senado, e indicados os 11 membros da CPI.
Há, de fato, um vácuo na legislação sobre o impeachment. Não cabe ao presidente da Câmara arquivar pedidos a seu gosto, mas não há prazo para que delibere a respeito. Se arquivar, abre brecha para que um recurso seja interposto e o plenário consultado.
O vácuo na legislação poderá ser preenchido se Cármen Lúcia determinar o exame dos pedidos de impeachment acumulados. É isso o que teme Bolsonaro e que o fez reagir na live semanal das quintas-feiras nas redes sociais. Bravateou:
– Eu não quero me antecipar e falar o que acho sobre isso, mas digo uma coisa: só Deus me tira da cadeira presidencial e me tira, obviamente, tirando a minha vida. Fora isso, o que estamos vendo acontecer no Brasil não vai se concretizar. Mas não vai mesmo.
Como cristão fervoroso que fez questão de se batizar nas águas do rio Jordão, Bolsonaro está cansado de saber que Deus concedeu ao homem o livre arbítrio. Pode observar tudo à distância segura, mas não se mete. Bolsonaro cairá ou não independente dele.
A frase “só Deus me tira da cadeira presidencial” é nada. Impor a Deus a condição de só tirá-lo da presidência tirando antes sua vida é escárnio com Deus. Bolsonaro não foi esfaqueado porque Deus deixou, nem Getúlio Vargas suicidou-se porque Deus quis.
Bolsonaro sente que o cerco se estreita em torno dele, e que talvez não se reeleja no ano que vem. É difícil, mas já não é mais impossível que seu mandato acabe abreviado. A culpa, a máxima culpa será sua, somente sua, e de mais ninguém.
Escaldado, Bolsonaro oscila no uso de pronomes sobre o Exército
Uma medida das dificuldades que ele enfrenta
O presidente Jair Bolsonaro pode não saber, ou porque faltou à aula ou porque nunca leu um livro como confessou, mas pronomes são palavras que acompanham os substantivos podendo substituí-los (direta ou indiretamente), retomá-los ou se referir a eles.
No momento, ele está às voltas com pronomes possessivos para designar o Exército ou as Forças Armadas. O que lhe causará menos problemas? Referir-se ao Exército como “meu Exército”? Ou como “nosso Exército”? Ou ainda como o “seu Exército”?
Há poucas semanas, ao demitir o ministro da Defesa, um general, e forçar a saída dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, ele chamou o Exército de “meu Exército”. Apanhou muito por isso e detonou uma crise militar.
Mais recentemente, valeu-se da expressão “nosso Exército”, mas ainda assim causou desconfiança. Ontem, finalmente, em discurso de passagem do comando militar do Sudeste, em São Paulo, evoluiu para “seu Exército”, como se nada tivesse a ver com ele.
Como presidente da República, quer se goste disso ou não, ele é o comandante das Forças Armadas, apesar de ter sido afastado do Exército por indisciplina e má conduta ética nos anos 1980. Chegou a planejar atentados terroristas a quartéis.
Cobrou dos novos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica que o tratem como “Supremo Comandante das Forças Armadas”. Só o comandante da Aeronáutica, um brigadeiro bolsonarista, já o fez.
Bernardo Mello Franco: Plano de desmonte
No início da pandemia, Ricardo Salles expôs um plano para desmontar o sistema de proteção ao meio ambiente. Segundo ele, era preciso aproveitar as atenções voltadas para o coronavírus e “ir passando a boiada”. O ministro pode ser acusado de muita coisa, menos de não fazer o que prometeu.
Desde a célebre reunião de abril de 2020, Salles revogou normas de licenciamento, perseguiu servidores e se aliou abertamente aos devastadores da Amazônia. O resultado foi o maior desmatamento da floresta em dez anos, de acordo com os dados do Imazon.
Encorajado pelo chefe, o ministro continuou a tabelar com os algozes da floresta. Em março, ele se solidarizou com os alvos da maior apreensão de madeira da história do Brasil. A atitude revoltou os investigadores que comandaram a operação. “Na Polícia Federal não vai passar boiada”, reagiu o superintendente da PF no Amazonas, Alexandre Saraiva.
O delegado não se limitou a protestar. Apresentou ao Supremo Tribunal Federal uma notícia-crime contra Salles e o senador Telmário Mota. O documento acusa a dupla de advocacia administrativa, participação em organização criminosa e infração contra a lei de crimes ambientais.
Para Saraiva, o chefe do Ministério do Meio Ambiente atacou a PF “de forma parcial e tendenciosa, comportando-se como verdadeiro advogado da causa madeireira”. A descrição também serve para ilustrar as relações do ministro com grileiros de terra e garimpeiros ilegais.
A ousadia de Salles mostra que ele não age sozinho: cumpre tarefas combinadas com Jair Bolsonaro. Ontem o presidente deu mais um sinal de apoio à devastação. Em vez de demitir o ministro, mandou afastar o superintendente da PF que o acusou.
Saraiva fez o que o procurador Augusto Aras se recusa a fazer: denunciou o desmonte ambiental e tentou laçar a boiada de Salles. O Congresso também tem sido cúmplice do ataque à Amazônia. Agora, o Supremo tem uma chance de frear as motosserras.
A Corte ainda ganhou novos elementos para o inquérito que apura a interferência do presidente na PF. A investigação completa um ano no próximo dia 28. Ao derrubar o superintendente, Bolsonaro escancarou, mais uma vez, o plano de capturar a polícia para defender seu grupo político.
Eliane Catanhede: O que Bolsonaro quis dizer com ‘providência’ e ‘sinalização’ contra o ‘barril de pólvora’ no Brasil?
Brasil convive com os absurdos e ameaças praticamente diárias do presidente, que ninguém leva a sério, mas irritam
“O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu devo tomar uma providência. Estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego está (sic) aí”, disse o presidente da República, Jair Bolsonaro, que vê um “barril de pólvora” no País. Atenção! Ele não estava falando dos mortos, nem de providências e sinalizações contra a covid-19.
Alvo do Supremo, da CPI do Senado, do TCU, do Ministério Público, da mídia, de epidemiologistas, psiquiatras e cientistas, de economistas e sociólogos, da OMS, de toda a comunidade internacional e, agora, de parte do empresariado, do mundo financeiro e até do Centrão, Bolsonaro reage à la Bolsonaro: ameaça.
O que ele quis dizer com essa frase enigmática? Quem é o “pessoal” que sugere providências? Filhos, olavistas, militares, poloneses, húngaros e Donald Trump? Que “providências” seriam essas? Atacar um ou todos os poderes, assumir o controle de polícias e milícias? Quem é “o povo”? O do Twitter, do Facebook, as vivandeiras virtuais? E, afinal, que “sinalização” o presidente está esperando?
É estranho, absurdo, obtuso e doentio que Bolsonaro ainda não consiga, nem queira, compreender qual é o real barril de pólvora no Brasil: uma pandemia que já provocou 360 mil mortes, colapso dos hospitais, pressão no sistema funerário, falta de medicamentos, impacto sobre indústria, empresas e serviços, desemprego e fome.
Ele fecha os olhos para todas as evidências, não tem capacidade para compreender a origem e o desenrolar da crise e nunca conseguiu sair da trilha da “gripezinha” nem admitir o óbvio, que a crise econômica e social não é resultado das medidas de isolamento social, mas sim do fracasso no combate à pandemia.
O Brasil se acostumou com uma rotina de contagem macabra de corpos, pessoas asfixiadas, sem oxigênio, sem leito, amarradas a macas por falta de medicamentos para intubação. E, além disso, convive com os absurdos e ameaças praticamente diárias do presidente, que ninguém leva a sério, mas irritam. Se há um “barril de pólvora”, é culpa dele.
A covid se fortalece, Bolsonaro se enfraquece. A CPI vem no pico da pandemia e na pior fase do presidente, com maioria para apurar de fato tudo o que ele deveria fazer e não fez e tudo o que ele não deveria fazer e fez. O material é farto e irrespondível: uma profusão de vídeos e áudios com aglomerações, “gripezinha”, “frescura”, “maricas”, “mimimi”, implicâncias com a China e nenhuma providência, campanha ou bom exemplo pelo isolamento, máscaras, vacinas.
Há, ainda, os depoimentos de quatro ministros da Saúde, de especialistas em vírus e epidemias, de médicos e enfermeiros, numa realidade de desdém, erros, incompetência e, sobretudo, de obsessão em favorecer o vírus, as infecções e as mortes. Ai do Brasil se dependesse do governo Bolsonaro para a imunização, ai do Brasil se não tivesse “a vacina chinesa do Doria”!
A CPI deixa Bolsonaro tonto, o STF está atento, o TCU e o MP estão na cola do general Eduardo Pazuello, que só obedeceu. A OMS, a revista Science, o parlamento europeu, a mídia internacional e até o papa apontam o dedo para o Brasil. O parlamento da França dá gargalhadas com Bolsonaro e sua cloroquina. E o neurocientista Miguel Nicolelis grita: “Basta!”.
Bolsonaro não ouviu os alertas, arrebentou a corda, exauriu a paciência nacional, destruiu a imagem do País e, na comparação, amenizou a ojeriza de muitos a Lula, que ontem confirmou sua elegibilidade no Supremo. Em 2018, a frase mestra foi: “Voto no Bolsonaro para derrotar o PT”. Em 2022, tende a ser: “Contra Bolsonaro, voto até no Cabo Daciolo”. A dúvida é o que acontecerá, até a eleição, no “barril de pólvora” chamado Brasil.
Vera Magalhães: Salles não é Ernesto nem Weintraub
Quem imagina que a pressão internacional pela adoção de políticas mais firmes no combate ao desmatamento, a demissão do superintendente da Polícia Federal no Amazonas ou os sucessivos indicadores de aumento dos desmates e das queimadas colocam em risco imediato a permanência de Ricardo Salles no governo deve atentar para uma diferença importante: Salles não tem nada a ver com Abraham Weintraub ou Ernesto Araújo.
A começar pela origem. Salles não é um fanatizado seguidor de Olavo de Carvalho, nem mesmo um cultor da imagem de Jair Bolsonaro como um “mito”. A associação entre ambos é uma conveniência de agenda, pragmática para ambos os lados.
O ministro não era o preferido do presidente eleito na transição. As primeiras reuniões entre eles foram cercadas de desconfiança, pelo fato de Salles ter integrado o governo de Geraldo Alckmin.
O paulista ganhou o posto ao se comprometer a implementar à risca a agenda de Bolsonaro, que logo nas primeiras conversas reclamou do excesso de fiscalização e de multas aplicadas por órgãos como o Ibama a madeireiros e produtores rurais. Disse que seu ministro teria a incumbência de acabar com a “indústria da multa” e enfraquecer o papel das ONGs, inclusive suas conexões no Inpe, no Ibama e no ICMBio.
Este é um ponto fulcral: diferentemente de Araújo e Weintraub, cujo comportamento caricato e cuja mente persecutória não permitiam que cumprissem nenhum planejamento de desmonte de seus órgãos sem que isso naufragasse como um plano infalível do Cebolinha, Salles sabe planejar e executar a agenda de Bolsonaro. Tem feito isso com extrema eficácia ao longo de dois anos e três meses.
O que ele propugnou na famosa reunião ministerial de 22 de abril do ano passado, aproveitar a pandemia para “passar a boiada” do desmonte da estrutura de fiscalização e a legislação ambiental, inclusive do arcabouço legal, está sendo implementado à risca. Basta pegar a lista de normas revogadas nos últimos meses, inclusive as concernentes à concessão de licença ambiental.
Salles não se furta a defender a agenda de Bolsonaro em entrevistas, reuniões com outros países e fóruns internacionais. Faz isso sem alterar a voz ou a fisionomia, supostamente esgrimindo dados, que distorce sem nem corar. Aperta os botões certos para demitir ou mandar afastar quem cruza seu caminho, como acaba de acontecer com o superintendente da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Saraiva — algo “já planejado”, segundo os envolvidos.
A queda de Salles dependeria de alguns fatores combinados. Primeiro, uma evidência que o ligasse à defesa dos interesses de empresas privadas que agem ilegalmente nos ramos de madeira, extração mineral ou agropecuária, como acusou Alexandre Saraiva na notícia-crime que enviou ao Supremo Tribunal Federal.
Portanto, se o STF abrir mais um inquérito para investigar um ministro de Bolsonaro, e exigir, como Alexandre de Moraes garantiu no caso das denúncias de Sergio Moro, um delegado da PF destacado para isso que não possa ser removido pelo diretor-geral Paulo Maiurino, a situação do titular do Meio Ambiente poderia se complicar.
O segundo fator que pode atrapalhar a permanência do extremamente eficiente (para Bolsonaro) Ricardo Salles é uma sanção mais concreta da União Europeia, da China ou dos Estados Unidos às exportações brasileiras pela nossa trágica gestão ambiental.
Isso faria com que o prejuízo pela manutenção do ministro se fizesse sentir no bolso daqueles que apoiam Bolsonaro: o agronegócio, o setor da mineração e os madeireiros. O presidente já perdeu sustentação em segmentos importantes, como o mercado financeiro e o empresariado industrial, em razão do desastre na resposta à pandemia e da economia que não decola. Se sentir que a própria cabeça estará na guilhotina, não se furtará a colocar a de seu dileto ministro no lugar.
Murillo de Aragão: O momento pré-eleitoral
O ambiente é de total indefinição e surpresas devem acontecer
Uma das lições de 2018 foi tirada do início prematuro da pré-campanha e da curta duração da campanha presidencial em si. A campanha curta decorreu da imposição de limites de gastos por candidatura e do fim das doações milionárias de empresas, bem como da decisão do Congresso Nacional de reduzir pela metade o tempo da campanha.
As decisões do Legislativo e o ambiente polarizado por causa da Operação Lava-Jato e pelo processo de impeachment de Dilma Rousseff aqueceram a pré-campanha. Ao mesmo tempo, a Lava-Jato, com seus acertos e excessos, devastou o mundo político.
Poucos, além de Jair Bolsonaro, perceberam o alcance das mudanças e o início prematuro da corrida eleitoral. No começo de 2017, ele já estava em plena atividade eleitoral. Aproveitava-se de três fatores: não ser levado a sério pelo mundo político como candidato, do desgaste do establishment político com o avanço das investigações de corrupção e o uso intensivo e eficiente das redes sociais.
Fato é que, às portas das eleições de 2018, remanesceram duas narrativas: Bolsonaro como o candidato anti-establishment e Fernando Haddad como o “procurador” do lulismo. O centro e as periferias não conseguiram se posicionar. Ficaram pelo meio do caminho.
“O espaço para candidaturas e alianças potencialmente improváveis ainda está em aberto”
Considerando o quadro atual, como estamos em termos de pré-campanha? Vale lembrar Juan Manuel Fangio, multicampeão argentino de Fórmula 1, que dizia: “Carreras son carreras, y terminan cuando se baja la bandera de cuadros”. A máxima é reforçada pelo fato de as circunstâncias de 2018 não mais estarem presentes. Temos um ambiente político muito diferente. Mas, como sempre, cheio de eventos inesperados.
Dois deles se destacam. O primeiro é a pandemia de Covid-19, tema que entrou na agenda no início de 2020 e que continuará a afetar a política e a economia até as vésperas das eleições. Tanto pelo aspecto sanitário quanto pela questão econômica. O outro é a entrada de Lula no rol de pré-candidatos.
A potencial polarização Bolsonaro versus Lula — que existiu em 2018 — e a desorganização política dos partidos de centro nos remetem a uma história conhecida. Mas, talvez, o cenário não seja tão óbvio.
A demora na queda da taxa de mortalidade e a lentidão no processo da vacinação terão reflexos sérios na construção de narrativas. E a CPI da Pandemia, mesmo que, eventualmente, seja tutelada por uma maioria governista, servirá de palanque para ataques ao governo. O governo, pelo seu lado, ainda enfrenta a indefinição sobre como a economia vai se comportar em 2022. No centro, a falta de um candidato natural e a desunião dos partidos são enigmas a ser resolvidos. A fragmentação da esquerda também é uma questão.
Todos os problemas hoje estão ocorrendo da porta para dentro nos arraiais políticos. Enquanto isso, o eleitor não polarizado assiste ao desenrolar da história e aguarda a passagem do tempo para tomar a sua decisão. O espaço para eventuais candidaturas surpreendentes e alianças potencialmente improváveis ainda está em aberto. Afinal, o Brasil não cansa de surpreender.
Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734
Eliane Brum: Biden ameaça sujar as mãos com Bolsonaro
Ao negociar com o extremista de direita que governa o Brasil, o presidente democrata se arrisca a cometer a maior interferência no destino do Brasil desde a ditadura
O apoio decisivo dos Estados Unidos às ditaduras da América Latina na segunda metade do século 20 é conhecido e bem documentado. O que não se esperava é que, justamente neste momento da história, em que os Estados Unidos acabaram de enfrentar o maior e mais traumático ataque à sua própria democracia, Joe Biden possa decidir fortalecer o autoritário Jair Bolsonaro. Os governos de Bolsonaro e de Biden conversam a portas fechadas sobre um bilionário investimento na Amazônia que poderá ser anunciado na Cúpula de Líderes sobre o Clima promovida na próxima semana, em 22 e 23 de abril, pelos Estados Unidos.
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Amplos setores da sociedade brasileira veem na negociação um movimento inaceitável para legitimar Bolsonaro no momento em que ele é tratado pelo mundo democrático como “ameaça global” e amarga uma queda na sua popularidade devido à media de mais de 3 mil mortes diárias por covid-19. Quem conhece Bolsonaro também tem certeza de que, se Biden botar dólares na conta do Governo brasileiro, o presidente e sua quadrilha encontrarão um jeito de abastecer os bolsos dos depredadores da Amazônia, uma importante base eleitoral para catapultar as chances de uma reeleição em 2022.
O impasse não é confortável para o Governo do democrata Joe Biden. Em seu discurso de posse, ele anunciou o combate à emergência climática como uma de suas maiores prioridades. Ainda na campanha eleitoral, já havia anunciado a intenção de investir 20 bilhões de dólares na proteção da Amazônia. Não há possibilidade de controlar o superaquecimento global, bandeira cara à ala mais progressista do Partido Democrata, sem a maior floresta tropical do mundo. Por outro lado, a deliberada inação do Congresso brasileiro, sentado sobre mais de 100 pedidos de impeachment de Bolsonaro, torna difícil qualquer ação por parte do líder americano: por um lado, a proteção da Amazônia já se tornou emergencial, dada a crescente savanização da floresta; por outro, a premência obriga o Governo americano a negociar com o principal responsável pela aceleração da destruição.
O que fazer, então? Certamente não negociar a portas fechadas com um Governo que, apenas entre agosto de 2019 e julho de 2020, desmatou mais de 11 mil quilômetros quadrados, o equivalente a riscar do mapa uma área de floresta do tamanho de sete cidades de São Paulo. Os índices de desmatamento de março de 2021, o último mês fechado, já são os maiores dos últimos seis anos, com a extinção de 367 quilômetros quadrados de mata. E, também, não negociar com um extremista de direita denunciado por povos indígenas e outros setores da sociedade brasileira e internacional como “genocida”, em comunicações ao Tribunal Penal Internacional. E, ainda, não negociar com um governante apontado por pesquisas internacionais como o pior gestor da pandemia, cujas ações para disseminar o novo coronavírus com o objetivo de atingir imunidade por contágio ameaçam hoje o controle global da covid-19, ao converter o Brasil num criadouro de novas variantes.
O primeiro a propagandear a surpreendente amizade com o Governo de Biden foi justamente o ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, um fraudador ambiental condenado. Salles, que anunciou com orgulho num programa de TV que assumiu a pasta sem nunca ter visitado a Amazônia nem saber quem era Chico Mendes, tem entre suas credenciais uma condenação por fraudar documentos e mapas para beneficiar mineradoras quando era secretário do meio ambiente do Estado de São Paulo. Quando a covid-19 atingiu o Brasil, defendeu numa reunião do governo que deveriam aproveitar que a imprensa estava distraída com a pandemia “para passar a boiada”, o que significava afrouxar ainda mais a legislação ambiental sem se arriscar à reação da sociedade. Em sua gestão, o marco legal de proteção, assim como os órgãos de fiscalização, foram enfraquecidos.
Chamado no Brasil e em parte do mundo de antiministro do meio ambiente ou ministro contra o meio ambiente, Salles estava tão afoito para divulgar as negociações com os americanos que deu uma entrevista à jornalista Giovana Girardi, repórter do jornal O Estado de S. Paulo, na casa da sua mãe. Fez questão de alardear que estava pedindo aos americanos 1 bilhão de dólares a cada 12 meses para reduzir o desmatamento da Amazônia em 40%. A trucagem de Salles não agradou aos negociadores americanos, que foram propositalmente expostos, e moveu uma forte reação contrária de amplos setores da sociedade brasileira.
Na semana passada, 199 organizações, de indígenas a cientistas, de ambientalistas a jornalistas, assinaram uma carta na qual afirmam: “O presidente americano precisa escolher entre cumprir seu discurso de posse e dar recursos e prestígio político a Bolsonaro. Impossível ter ambos”. Entre as várias surpresas da negociação entre os governos Biden e Bolsonaro está o fato de que nenhum dos protagonistas da sociedade civil, os que vêm lutando e morrendo pela Amazônia há décadas, foram chamados para participar.
Na segunda-feira, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou um vídeo em inglês direcionado ao presidente estadunidense: “Caro Joe, nós sabemos que a Casa Branca está fazendo um acordo climático secreto com Bolsonaro. Nós, brasileiros, precisamos te alertar: não confie em Bolsonaro. Não deixe esse homem negociar o futuro da Amazônia. Ele declarou guerra contra nós. Contra os povos indígenas. Contra a democracia. Ele está espalhando covid-19, mentiras e ódio”. E finaliza: “É a Amazônia ou Bolsonaro. Não dá para conciliar os dois. De que lado você está?”.
Diante da reação crítica, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, o texano Todd Chapman, se apressou a tentar virar a maré de constrangimento, afirmando, durante uma reunião virtual privada no domingo, da qual participaram políticos, diplomatas e empresários brasileiros convidados, que o Governo Bolsonaro vai precisar “mostrar preocupação ambiental para recuperar a confiança dos americanos e ampliar as relações com a Casa Branca”. Segundo a Folha de S. Paulo, o embaixador estadunidense classificou a cúpula do clima como “uma oportunidade” para o Brasil virar o jogo e resgatar a preocupação ambiental diante dos olhos do mundo. E aí vem a parte mais interessante. O embaixador afirmou que o país vai “se tornar herói” se fizer uma “declaração contundente”, retomando seu papel de protagonista no debate sobre o meio ambiente.
Como o Brasil hoje é governado e representado por Jair Bolsonaro, Chapman, uma escolha de Donald Trump para a embaixada brasileira, está acenando com um Bolsonaro herói da Amazônia. O problema é que nem na cabeça dos roteiristas mais imaginativos da HBO ou da Amazon essa transmutação soaria remotamente verossímil. O que está se desenhando, ao contrário, é mais um enredo no estilo de Al Capone. Bolsonaro e seu fiel lobista Salles desmontam a legislação ambiental e enfraquecem os órgãos de proteção, estimulam grileiros, madeireiros e garimpeiros a invadir as áreas públicas da floresta, deixam a covid-19 se alastrar pelos territórios indígenas e, quando a pressão internacional aperta, fazem um show pirotécnico com Exército e/ou Força Nacional, escanteando mais uma vez os fiscais do Ibama.
Os resultados estão aí para qualquer americano ver. Com a decisiva colaboração de Bolsonaro e de Salles, as pesquisas mais recentes mostram que áreas da floresta amazônica já começam a emitir mais carbono do que absorvem. Se a destruição da floresta que ainda está em pé continuar e se a floresta degradada não for recuperada, isso significa que em breve a Amazônia vai se tornar parte do problema e não mais parte da solução.
Bolsonaro e Salles destroem a Amazônia e atacam os povos da floresta em proporções só vistas na ditadura civil-militar (1964-1965) e depois pedem dinheiro para parar. Há ainda mais uma malandragem na proposta do também chamado “sinistro do meio ambiente”: apenas um terço dos recursos iriam diretamente para a proteção da floresta. Os outros dois terços seriam investidos em “desenvolvimento econômico” da região. Alguém já viu esse modus operandi em algum lugar? Pois é. Não para por aí o comportamento de gângster. Para alguns negociadores experientes, os Estados Unidos podem estar pagando também para que Bolsonaro não destrua qualquer possibilidade de acordo nas próximas cúpulas do clima.
Ricardo Salles, como alfineta um ambientalista, não levanta da cama pela manhã se não for para botar a mão em dinheiro que possa controlar. Esse foi justamente o problema dele com o Fundo Amazônia, que garantia ao Brasil um volume de recursos na casa dos bilhões da Noruega e também da Alemanha e que acabou sendo congelado porque Salles tentava desvirtuá-lo. Salles queria o que ele mesmo definiu como “uma mudança no modelo de gestão de recursos”. Os europeus desviaram da casca de banana.
Pode ser um tanto inusitado negociar com tal personagem. A repórter Marina Dias, da Folha de S. Paulo, conta que num dos slides apresentados por Salles em uma reunião com integrantes da equipe de John Kerry, Enviado Especial para o Clima do Governo Biden, havia a imagem do que os brasileiros chamam popularmente de “TV de Cachorro”: um vira-lata esfomeado olhando os frangos assando e girando numa máquina. As aves de Salles tinham cifrões estampados no corpo. Acima, estava escrito: “Payment Expectation” (expectativa de pagamento). É fácil imaginar quem é o cachorro e quem é o franguinho.
Poderia se cogitar que Biden e sua equipe não tenham aprendido o suficiente sobre como funciona a corja de populistas de extrema direita que corroem a democracia mundial, da qual Bolsonaro, depois da derrota sofrida por Trump, é o exemplo mais vistoso. Mas ninguém é ingênuo o suficiente para acreditar na ingenuidade de negociadores americanos. Nessa mesa há ainda muitas cartas nebulosas: entre elas, o temor da China avançando várias casinhas sobre a Amazônia brasileira e outras partes do planeta, o que já está acontecendo, os impasses em torno da tecnologia 5G e também a pressão das grandes corporações, que querem seguir lucrando sem sofrer boicotes por usar matérias-primas originadas no desmatamento. Nesse jogo, o mais lento voa.
É compreensível, necessário e desejável que Biden queira investir na proteção da Amazônia também pelas mais corretas e louváveis razões. É, porém, inacreditável, inaceitável e abjeto que Biden faça isso dando dinheiro ao maior inimigo da Amazônia e de seus povos. Em sua defesa, negociadores americanos têm dito que Bolsonaro foi eleito democraticamente e que é urgente proteger a Amazônia.
Sim, como Donald Trump, Jair Bolsonaro foi eleito democraticamente. Bolsonaro, porém, assim como Trump, não é um democrata, em nenhum sentido que esse termo possa ter. Bolsonaro e sua quadrilha só permanecem no Governo depois de todas as atrocidades que cometeram porque o Congresso é dominado por um grupo de parlamentares de aluguel chamado de “Centrão”. Também porque a massa de pessoas que clama pelo impeachment não pode ir às ruas porque o país está tomado pela covid-19 e, graças à diligência de Bolsonaro, sem garantia de vacinas em número suficiente.
Os olhinhos ávidos de Bolsonaro sempre brilharam diante de Donald Trump. Junto com o ditador norte-coreano Kim Jong-un, o brasileiro foi um dos governantes do mundo que mais demorou para reconhecer a vitória de Joe Biden sobre seu ídolo do topete laranja. Também justificou a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro, sustentando a mentira trumpista de “fraude” na eleição. Trump, porém, sempre afagou a cabeça do seu garoto, mas jamais cogitou dar o que os americanos chamam de “serious money” ―uma quantia decisiva de dinheiro―ao seu Governo. O investimento na Amazônia pretendido por Biden, nos moldes em que está sendo negociado, poderá significar um apoio ao governo Bolsonaro que nem o próprio sonhou.
Se a urgência de proteger a Amazônia não pode esperar o fim do governo predatório de Bolsonaro, é necessário garantir a participação nas negociações de quem realmente protege a floresta ―contra as agressões de Bolsonaro. Como as lideranças indígenas e as organizações socioambientais, essas que Bolsonaro chama de “câncer”. É também obrigatório condicionar a liberação do dinheiro a ações reais e resultados concretos. Fundamentalmente, nos campos da ética, da decência e dos direitos humanos, pouco populares em negociações internacionais, o desafio de Biden é dar uma resposta coerente à pergunta para lá de espinhosa: é possível negociar com um extremista de direita chamado de “genocida” por grande parte do seu povo, responsável por milhares de mortes evitáveis e pela aceleração do desmatamento da Amazônia?
Se as negociações seguirem na toada atual, Biden poderá sujar as mãos logo na arrancada de sua pretensão a liderar o mundo democrático no enfrentamento da crise climática. E, com a justificativa de proteger a Amazônia, realizar a mais decisiva interferência no destino do Brasil por um governo americano desde a ditadura. A Amazônia, cada vez mais perto do ponto de não retorno, precisa ser protegida pela sociedade global com urgência. Mas não se fará isso dando bilhões de dólares para seu maior predador e sua quadrilha de destruidores ambientais.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de ‘Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
El País: França suspende voos com o Brasil para evitar variante brasileira do coronavírus
Com a medida, que não tem prazo para acabar, país busca impedir a entrada da cepa de Manaus no país. “Notamos que a situação está piorando”, afirmou o primeiro-ministro francês
A França suspenderá “até novo aviso” todos os seus voos com o Brasil devido a preocupações geradas pela variante brasileira da covid-19, anunciou o primeiro-ministro Jean Castex nesta terça-feira. “Notamos que a situação está piorando e, portanto, decidimos suspender todos os voos entre o Brasil e a França até novo aviso”, disse. A medida vale tanto para voos que partem do Brasil como para os que saem do território francês e atende a pedidos de especialistas do país europeu, que alertavam para o perigo da entrada do vírus no país.
A crise de saúde no Brasil não para de se agravar desde fevereiro, especialmente pelo aparecimento da variante de Manaus do vírus, conhecida como P1, considerada mais contagiosa e perigosa. O país tem batido seguidos recordes de mortes diárias e já acumula 354.617 óbitos e 13,5 milhões de casos confirmados desde o início da pandemia. Nesta terça, é possível que um novo recorde de mortes seja registrado, já que houve represamento de informações por parte de Estados nesta segunda.
A nova variante brasileira já se tornou fator de preocupação em outras partes do mundo, como o Canadá, que registra o maior número de casos da P1 fora do Brasil. Na França, ainda que a variante brasileira seja minoritária, os profissionais de saúde vêm alertando há alguns dias para a disseminação da cepa. A oposição chegou a exigir que o Governo interrompesse os voos com o Brasil.
De acordo com informações do jornal Le Monde, na segunda-feira o ministro dos Transportes, Jean-Baptiste Djebbari, afirmou que o Governo havia decidido manter algumas linhas com o Brasil por respeito à liberdade de ir e vir dos franceses. Os viajantes que chegavam ao país vindos do Brasil tinham que apresentar um teste PCR negativo e se isolar por dez dias.
A situação de descontrole da pandemia vivida no Brasil causa preocupação no mundo não apenas pela existência da variante de Manaus. Mas a grande replicação do vírus torna o terreno fértil para o aparecimento de novas variantes cada vez mais contagiosas e, possivelmente, resistentes à vacina —o que a P1 ainda não é.
Felipe Salto: Alô, alô, planeta Terra chamando
O Brasil perdeu a capacidade de planejar. Esse é o pecado original não expiado
O ministro da Economia usou estranha analogia ao tratar do Orçamento de 2021: o pouso de uma nave em Marte. Não vale a pena transcrever o que foi dito. Nos anos 1990 a TV Cultura transmitia o programa Mundo da Lua. Lucas Silva e Silva, personagem principal, gravava suas histórias sempre começando com o bordão: “Alô, alô, planeta Terra chamando”.
O governo tem nas mãos verdadeiro imbróglio orçamentário a resolver até o dia 22 de abril, prazo final para sancionar ou vetar a Lei Orçamentária Anual (LOA). A subestimativa das despesas obrigatórias, a exemplo das previdenciárias, é expressiva, como mostrei no meu artigo de 30/4. Em que pese a incerteza intrínseca aos cenários futuros, é fato que o volume de despesas discricionárias (as mais suscetíveis de cortes) da LOA não caberá no teto dos gastos públicos.
O teto é uma regra constitucional. Não tem escapatória. Os créditos extraordinários ficam de fora, é verdade, mas só podem ser editados em situação específica, quando comprovada situação de imprevisibilidade e urgência, conforme o parágrafo 3.º do artigo 167 da Constituição. O auxílio emergencial, por exemplo, será pago por meio de crédito extraordinário. Outros gastos com saúde têm sido feitos na mesma base, como em 2020. Aí incluídas as verbas para a compra de vacinas.
Mas a despesa ordinária é limitada ao teto. Se as despesas obrigatórias projetadas pela Instituição Fiscal Independente (IFI) se confirmarem e as despesas discricionárias da LOA não forem cortadas, o gasto total sujeito ao teto ficará em R$ 1,518 trilhão, isto é, quase R$ 32 bilhões acima do limite constitucional. E atenção: o processo orçamentário não se desenrolou em um dia, o projeto da LOA foi apresentado em agosto.
É da natureza do Congresso buscar elevar as emendas parlamentares. Não é novidade. Em 1989, o presidente José Sarney viu-se diante de um dilema: vetar o primeiro Orçamento com receitas reestimadas pelo Congresso ou sancioná-lo e, dali em diante, consagrar uma prática que alteraria a lógica do processo orçamentário concebido na Carta de 1988. A correção desse sistema passa pela adoção de projeções independentes para as receitas públicas. A estimativa de arrecadação não deveria ser fruto de decisão política, mas de trabalho de especialistas com autonomia.
Quando o teto de gastos passou a limitar a estratégia do recálculo das receitas, partiu-se para o cancelamento de despesas como meio para abrir espaço fiscal. Seria legítimo se realista. Vale dizer, em 22 de março de 2021, antes da aprovação do Orçamento, o governo publicou documento com números atualizados para o cenário fiscal prospectivo que não batem com a LOA.
Em entrevista a Idiana Tomazelli, do Estado, o senador Márcio Bittar explicou: “Para mim é muito ruim ficar levando a responsabilidade de ter inventado o número e os cortes. Jamais eu faria isso. Não foi obra minha. Isso foi construído a todas as mãos”. De fato, o processo orçamentário – que tem rito próprio definido na Constituição, em razão de sua importância – sempre foi gestado pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso e pelo Poder Executivo. Foi assim em todos os governos.
Os que acompanham minimamente o processo orçamentário sabem que o trabalho é conjunto, como bem disse o senador Bittar. Não adianta, agora, gastar energia com o que não resolverá a confusão. É momento de construir soluções, que demandarão articulação, participação dos técnicos da área jurídica e orçamentária e coordenação com os órgãos de controle. Para ter claro, é a vez da experiente burocracia estatal.
A matemática é simples: as despesas de Previdência, abono salarial, seguro-desemprego e compensação ao regime geral de aposentadorias pela desoneração da folha de salários terão de ser suplementadas, pois vão ser realizadas. Caso contrário, quando faltar orçamento, os beneficiários não receberão suas aposentadorias e pensões, seus auxílios e transferências. Seria inimaginável operar sob esse risco.
Para suplementar as dotações orçamentárias desses gastos obrigatórios será preciso cortar as discricionárias, que incluem as emendas parlamentares. Uma solução seria o veto parcial da LOA combinado com o envio de projeto de lei do Executivo para o Congresso a fim de corrigir os problemas. Outra, a sanção da LOA sem alterações acompanhada de projeto de lei mais amplo. Esta segunda opção, a meu ver, é arriscada, pois pode envolver a sanção de uma lei em desacordo com os preceitos da responsabilidade fiscal.
Fernando Rezende, referência no tema das finanças públicas nacionais, defende, há anos, que se promova verdadeira reforma orçamentária e fiscal no País. Contudo os caminhos escolhidos têm sido pavimentados por pinguelas. Mais dia, menos dia, elas desabam. De remendo em remendo, tem-se um sistema fiscal pouco eficiente, rígido e sem transparência. O País perdeu a capacidade de planejar. Esse é o pecado original não expiado.
É hora de trazer a nave de volta. “Alô, alô, planeta Terra chamando.”