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Cristovam Buarque: Impeachment incompleto

O impeachment demonstra fracasso das forças de esquerda, que ficaram ultrapassadas nas ideias e propostas, perderam vigor transformador para reformar as estruturas sociais e se contaminaram com a corrupção na política; mas ficará incompleto, se limitado à substituição da presidente por seu vice-presidente. Precisamos fazer o impeachment do modelo que ficou arcaico: não percebeu as mudanças que ocorrem no mundo.

O impeachment só se justificará plenamente se servir para levar as forças progressistas na direção de sua atualização em relação às novas realidades e aos novos sonhos no mundo. A nova esquerda deve partir do reconhecimento de que o impeachment decorre do fracasso da esquerda velha, que deveria ter feito uma autocrítica, o que a arrogância e o acomodamento no poder não permitiram.

Deve perceber que a sociedade justa depende de uma economia eficiente; isto exige respeitar os limites fiscais e entender que a propriedade privada dos meios de produção e o mercado dinamizam a economia, criando os recursos a serem aplicados na sociedade. Entender que não há muita margem para influir no funcionamento da economia com base em vontade ideológica; que o espaço da esquerda está na definição do uso de recursos da economia eficiente para servir ao social; também que o populismo leva a desastres sociais.

Deve assumir e explicitar seu compromisso com a democracia, as liberdades individuais e de imprensa; deve entender que o capital está no domínio do conhecimento; substituir a proposta de estatizar os meios de produção pelo compromisso de universalizar o capital conhecimento, colocando os filhos dos trabalhadores em escola com a mesma qualidade dos filhos dos patrões; entender que não é mais o crescimento econômico e a distribuição de seu produto e renda que fazem o mundo melhor, mas a elevação do bem-estar social, em equilíbrio ecológico.

Para isto, a esquerda deve olhar para o futuro, e não para o passado; pelo para-brisa, não pelo retrovisor da história; assumindo a liderança das reformas necessárias: previdência, para garantir a futura aposentadoria dos jovens de hoje; trabalhista, considerando também os direitos dos desempregados; tributária, taxando os ricos e colocando os recursos a serviço dos interesses públicos; do Estado, para servir com eficiência ao público, e não ao próprio Estado ou aos grupos corporativos que se apropriam da máquina estatal; a reforma política, para fazer a sociedade participativa, as funções políticas regidas pela ética, tanto no comportamento dos políticos, como nas prioridades da política.

O governo substituto pode não fazer as reformas que os 13 anos de governo de esquerda não fizeram, mas poderá permitir a estabilidade e o diálogo necessários para a travessia em que uma nova esquerda vá se formando; o que seria difícil com o mesmo modelo arcaico no poder, impedindo o avanço conceitual e contaminando a moral das esquerdas e comprometendo ainda mais o funcionamento de uma economia eficiente. (Blog do Noblat – O Globo – 03/09/2016)


Fonte: pps.org.br


Perdas e danos

Em dez anos, Lei de Drogas superlotou presídios e foi incapaz de reduzir as redes de tráfico

Há dez anos o Brasil aprovava um novo marco legal para o combate às drogas. A Lei 11.343/2006 nascia com a perspectiva de intensificar penas para o crime de tráfico e reduzir a criminalização dos usuários. Seu efeito, porém, mostrou-se desastroso: cadeias superlotadas, mais mulheres nas prisões e criminalização da população negra e pobre. Por outro lado, não há nenhum indicador de que as redes de tráfico tenham sido coibidas.

De 2005 até dezembro de 2014, segundo dados do Ministério da Justiça, a população carcerária teve um salto vertiginoso de 111,4%, ultrapassando a marca de 620 mil presos. Isso colocou o Brasil na vergonhosa posição de quarto país com a maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos EUA, China e Rússia.

Em 2005, o porcentual de pessoas incriminadas por tráfico de drogas correspondia a 11% da população carcerária. Em 2014, segundo dados do Infopen, esse número alcançou 27%. Se considerarmos apenas as mulheres, o impacto foi ainda mais cruel: 64% das presas no Brasil respondiam por tráfico de drogas.

O grande responsável por essa desastrosa situação foi o aumento da pena mínima de três para cinco anos, mesmo para pequenos traficantes. Soma-se a isso a relutância dos juízes em aplicar a diminuição de pena para réus primários e a insistência no encarceramento, muito embora o Supremo Tribunal Federal já tenha decidido que a equiparação a crime hediondo não impede a aplicação de penas alternativas, como ocorre para outros crimes não violentos como o furto.

O resultado é uma distorção racista e classista, já enraizada na cultura brasileira, mas bastante escancarada no sistema prisional: embora não existam dados sociodemográficos específicos dos presos por tráfico de drogas, o perfil geral da população prisional brasileira é composto majoritariamente por negros (61,6%) e de baixa escolaridade (oito em cada dez estudaram, no máximo, até o ensino fundamental). O foco da atuação policial no combate à venda de drogas no varejo e ao transporte feito por "mulas" faz com que um contínuo fluxo de jovens desempregados sejam levados ao sistema prisional mesmo sem praticar qualquer ato violento, enquanto as grandes organizações têm seu complexo sistema de comércio e corrupção inalterado.

Política antidrogas vem promovendo um violento massacre às populações mais vulneráveis.

A lógica militar de combate às drogas faz com que 90% das prisões por tráfico sejam em flagrante e por pequenas quantidades. Esta pessoa provavelmente passará todo o processo no regime fechado de prisão por suposto "perigo à ordem pública" - pautado não na violência da pessoa, mas na ideia abstrata do "inimigo traficante" produzida pela mídia. A guerra às drogas é a grande responsável por manter em prisão provisória, ou seja, sem julgamento definitivo, 40% dos atuais presos do Brasil.

Em uma década, o Brasil acumulou conhecimento e dados suficientes para deixar claro que sua política antidrogas vem promovendo um violento massacre às populações mais vulneráveis e tornado cada vez mais insustentável o sistema prisional. Existe uma demanda crescente dentro e fora do país para a revisão da abordagem proibicionista e tratamento da questão dentro de seu devido lugar, que é a saúde pública.

Nesse sentido, o STF (Supremo Tribunal Federal) tem em suas mãos uma oportunidade histórica. Ainda nesse semestre deve ser retomado o julgamento sobre o Recurso Extraordinário nº 635.659, da Defensoria Pública de São Paulo, que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal.

Esperamos que os ministros do Supremo assumam para a si a responsabilidade de corrigir essa distorção, deixando de punir usuários e abrindo caminho para uma política de drogas menos violadora, menos encarceradora e menos seletiva.

Jessica Carvalho Morris e Henrique Apolinário, respectivamente diretora-executiva e assessor do programa de Justiça da ONG Conectas Direitos Humanos.


Fonte: El País


Cristovam Buarque: Voto pelo Brasil

Há momentos em que votamos com entusiasmo pelo futuro com que sonhamos; em outros, votamos para impedir um futuro que nos assombra. Se o julgamento da presidente afastada, Dilma Rousseff, fosse hoje, eu votaria pelo impeachment, não apenas por razões jurídicas ou só pelo conjunto da obra passada mas, sobretudo, pelos riscos que a volta de Dilma representa para o futuro do Brasil.

Não estou votando nem aderindo ao governo do presidente interino, Michel Temer. O impeachment decorre do descrédito do governo Dilma, da falta de apoio nas ruas e no Parlamento, dos erros cometidos na gestão da economia, da contaminação com a corrupção, dos crimes de responsabilidade.

Decorre, sobretudo, da percepção de que a volta dela ao poder, com o mesmo modelo político-econômico, significaria que o Congresso é conivente com erros, corrupção e ilegitimidades fiscais.

Em agosto de 2015, os senadores João Capiberibe (PSB), Randolfe Rodrigues (Rede), Lasier Martins (PDT), Acir Gurgacz (PDT), Lídice da Mata (PSB) e eu fomos ao Alvorada e entregamos uma carta à presidente Dilma, na qual dizíamos que o Brasil tinha três cenários negativos adiante: a continuação de seu governo, seu impeachment ou a cassação da chapa Dilma/Temer.

Para evitar as dificuldades que seu governo enfrentaria, sem cair no impeachment, sugerimos que reconhecesse seus erros, dissesse que seu partido era o Brasil e pedisse apoio a todos para governar até o fim do mandato. Nossas sugestões não foram consideradas.

Durante o longo processo de impeachment, que o Congresso Nacional seguiu dentro do rigor constitucional, Dilma não indicou o rumo que seria dado por um novo governo seu. Nada disse sobre como construir a necessária base de apoio parlamentar, como acalmar as ruas, que estratégia econômica adotaria para retomar o crescimento, gerar emprego, promover a estabilidade monetária e superar a crise fiscal.

Concentrou-se nos aspectos jurídicos, em chamar de golpistas dois terços dos deputados federais e senadores.

Estou cumprindo um dever que as circunstâncias históricas e meu compromisso com o país e seu futuro me impõem, de acordo com minha análise e consciência.

Carrego a esperança de que o governo sucessor seja capaz de recuperar o equilíbrio de nossas contas, resgatar a credibilidade necessária à volta do crescimento e do emprego, manter os bons projetos sociais, retomar o diálogo com o Parlamento e as ruas e fazer a travessia até 2018.

Tenho consciência de que meu voto provocará incompreensão e decepção em amigos e companheiros, eleitores e leitores, além de desprestígio no exterior. Sinto, entretanto, que esse é um ato necessário para reorientar o futuro do Brasil e, portanto, justifica o sacrifício.

Depois de tantos erros na economia, falsas narrativas do marketing político, tolerância com a corrupção, crimes de responsabilidade e descrédito imposto às forças progressistas, precisamos virar a página de um governo que ajudei a eleger e apoiei em parte de seu longo mandato de 13 anos.

Voto com a esperança de que surja uma nova esquerda dos escombros, sem o vício e o acomodamento dos últimos anos.

É com pesar, mas com a sensação de corrigir rumos, que voto pelo impeachment. Um voto triste, mas necessário. (Folha de S. Paulo – 20/08/2016)

Cristovam Buarque, 72, é senador (PPS-DF) e professor emérito da Universidade de Brasília. Foi governador do Distrito Federal e ministro da Educação (governo Lula)


Fonte: pps.org.br


Brasil concentra 20% da água do mundo, mas menos da metade da população tem acesso a saneamento

Apenas 39% das residências têm seus rejeitos tratados adequadamente. Falta de tratamento afeta saúde da população e polui fontes de recursos hídricos. No Brasil, água é fundamental para agricultura e setor de energia.

Por Nações Unidas no Brasil (ONU-BR)

O Brasil abriga um quinto das reservas hídricas do mundo, mas a abundância não significa acesso universal a água própria para o consumo, nem a saneamento. Menos da metade — cerca de 48,6% — da população brasileira é atendida por serviços de esgoto e apenas 39% das residências têm seus rejeitos tratados.

Os números são do Banco Mundial, que alertou na última quarta-feira (3) para as desigualdades na distribuição de água entre a população, a indústria e a agricultura no Brasil, além de detalhar a importância dos recursos hídricos para a economia brasileira.

Embora 82,5% dos brasileiros tenham acesso a água, apenas 43% dos domicílios entre os 40% mais pobres do país têm vasos sanitários ligados à rede de esgoto, segundo dados de 2013.

A falta de tratamento faz com que poluentes sejam jogados diretamente na água ou processados em tanques sépticos desregulados, com graves consequências para a qualidade dos recursos hídricos, bem como para o bem-estar da população.

O Banco Mundial chama atenção ainda para o desperdício registrado nas empresas de abastecimento — perdas chegam a 37%.

De acordo com a agência da ONU, o financiamento e subsídios do setor são baseados em uma estrutura tarifária ultrapassada que, somada ao excesso de pessoa e elevados custos operacionais, encarecem a oferta para os consumidores.

Os gastos com a produção inviabilizam novos investimentos, capazes de tornar a infraestrutura mais resistente a eventos climáticos extremos como secas e inundações.

Economia brasileira depende da água

O organismo financeiro destaca que 62% da energia do país é gerada em usinas hidrelétricas e 72% da água disponível para o consumo é destinada à irrigação na agricultura.

O Banco Mundial lembra que o Brasil é o segundo maior exportador de alimentos do mundo — sendo a agricultura e o agronegócio responsáveis por 8,4% do Produto Interno Bruto (PIB). Atualmente, apenas pouco menos de 20% da área de terras irrigáveis não contam com sistemas de água para o cultivo.

Segundo a agência da ONU, mesmo com a diversificação das fontes de energia prevista para as próximas duas décadas, as usinas hidrelétricas continuarão entregando 57% da eletricidade usada no Brasil.

Tamanha dependência significa que, em tempos de crise – como a vivida por São Paulo em 2014 e 2015 –, a produtividade de diversos setores econômicos pode ser ameaçada.

“Em São Paulo, por alguns meses, não ficou claro se as indústrias, como a de alumínio, grande consumidora de água, poderiam continuar produzindo no ritmo anterior à crise hídrica”, lembra o líder do programa de desenvolvimento sustentável do Banco Mundial no Brasil, Gregor Wolf.

Matéria publicada no portal da Nações Unidas no Brasil (ONU-BR).


Fonte: cidadessustentaveis.org.br


Os Jogos Olímpicos do Rio serão lembrados como os Jogos da exclusão?

As instituições democráticas poderiam ter protegido e amparado brasileiros na preparação para os Jogos. Mas isso não aconteceu

Em agosto, a cidade do Rio de Janeiro vai sediar pela primeira vez os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos em meio a um dos momentos políticos mais turbulentos que o país já viveu. A crise política e social no Brasil tem mostrado que muitas de nossas instituições democráticas ainda carecem de consolidação. Estas são as mesmas instituições que poderiam ter protegido e amparado brasileiros na preparação para os Jogos, assegurando um legado positivo. Isso não aconteceu.

No início deste ano, conheci e entrevistei lideranças comunitárias e moradores da Vila Autódromo, bairro do Rio localizado ao lado do Parque Olímpico. Acompanhada da Justiça Global, reconhecida organização de direitos humanos, presenciamos um protesto de moradores, com apoio de pessoas e organizações que lutam em favor da comunidade. O protesto era contra o fato de que moradores cujas casas estavam dentro da construção do Parque Olímpico estarem sendo impedidos pelas autoridades locais de entrar e sair livremente de suas casas.

Mulheres líderes, corajosas e fortes, deram seus testemunhos sobre as violações dos direitos humanos a que estavam sendo constantemente submetidas, devido às obras para sediar os Jogos. Famílias foram despejadas e removidas sem consulta ou acesso à informação. Foram deixadas sem voz para denunciar os problemas de sua comunidade, que costumava ser uma área tranquila e segura, cercada de natureza. Para algumas dessas famílias foram prometidas novas casas, e as chaves deveriam ter sido entregues na semana passada. Durante anos de construção para receber os Jogos, havia relatos frequentes de cortes de água e luz bem como de violência perpetrada pelas forças de segurança. A moradora Heloisa Helena, conhecida como Luizinha de Nanã, disse que por mais de dois anos teve o acesso restrito a sua casa e centro religioso. A casa mais tarde foi demolida.

Como afirmamos em outra ocasião, esses mesmos moradores já haviam denunciado que a prefeitura do Rio teria negociado com empresas privadas a construção de prédios a classe média no bairro onde vivem, causando com isso a remoção de ao menos mil famílias pobres. Segundo os moradores, as obras planejadas excluíam os pobres do que a prefeitura e empresas privadas têm chamado de “progresso”.

Além disso, muitas famílias perderam suas casas para a especulação imobiliária ou para reformas e construções classificadas pelo governo local como necessárias ao desenvolvimento da cidade e recebimento dos Jogos. Os atingidos pelas "remoções desnecessárias e injustas" nunca foram adequadamente consultados, tampouco participaram de tomadas de decisão, como afirmam Raquel Rolnik, ex-Relatora da ONU por Moradia Digna,RioonWatch e Lena Azevedo e Luiz Baltar em seu estudo sobre as remoções no Rio. Sem dúvida, os atingidos não estarão no público assistindo os Jogos; as construções transformaram suas vidas para sempre, não apenas no período das Olimpíadas. Acrescente-se a este legado sombrio, os trabalhadores que morreram durante as obras de construção para as Olimpíadas e para a Copa do Mundo.

Aqueles que têm resistido bravamente em protestos nas ruas em oposição aos abusos relacionados aos Jogos têm muitas vezes sofrido com violência policial e das forças de segurança. Infelizmente isso provavelmente ocorrerá novamente com grupos e também membros do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadasque estão organizando mais uma vez importantes debates e protestos, dias antes dos Jogos começarem, para mostrar o quanto tais jogos excluíram pessoas e direitos. Neste contexto cabe lembrar que a lei de antiterrorismo, recentemente aprovada, já tem sido usada infelizmente para deter manifestantes e continuará a colocar em riscos direitos humanos muito tempo depois de terem terminado as Olimpíadas.

A promessa de proteger o meio ambiente durante a preparação para os Jogos também não foi cumprida. Muitas árvores foram derrubadas, piorando a já comprometida qualidade do ar, afetando diretamente as comunidades do entorno. Exemplos tristes e perturbadores do descaso com o meio ambiente sãoa Baía de Guanabara contaminada e rios poluídos, os quais o governo havia prometido limpar. E chama a atenção a construção controversa de um campo de golfe em área de proteção ambiental, o que revela planejamento e políticas equivocadas, para dizer o mínimo.

Os Jogos receberam altos investimentos públicos mas que prioritariamente favorecem interesses privados. Para muitos brasileiros, isto maculou o que poderia ter sido um momento de orgulho para o país. É lamentável que uma vez mais a oportunidade de deixar um legado duradouro e positivo tenha sido totalmente perdida. Recentemente até o prefeito do Rio assumiu ser esta uma oportunidade perdida, embora pouco tenha feito para impedir que isso acontecesse. Ainda está por saber se haverá algum legado positivo decorrente dos dois grandes eventos esportivos que o Brasil sediou a Copa do Mundo 2014 e Jogos Olímpicos 2016. No momento, identificamos algumas instalações esportivas novinhas em folha e algumas melhorias de transporte, resta saber porém se esses novos estádios e outras construções terão de utilidade pública após os eventos.

Tanto o governo como as empresas deveriam ter feito muito mais e tragédias não teriam ocorrido. Más condições de trabalho e mortes teriam sido evitadas se os direitos humanos e os princípios e as boas leis trabalhistas que o país tem tivessem sido respeitados. O mesmo pode ser dito sobre as remoções e outras violações já mencionadas. Infelizmente, porém, parece que os Jogos Olímpicos Rio 2016 serão lembrados como os "Jogos da exclusão".


Por: JÚLIA MELLO NEIVA, pesquisadora sênior e representante para o Brasil, Portugal e países Africanos de língua portuguesa no Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos.

Fonte: brasil.elpais.com


Brasilio Sallum Jr.*: Collor e Dilma – abuso de poder e voluntarismo

Confirmando-se em agosto o impedimento de Dilma Rousseff, o Brasil terá experimentado dois impeachments em 28 anos da democracia. O número é elevado: dois em sete períodos de governo.

Mas não há que ver nisso sinal de fragilidade do regime de 1988. Ao contrário, nos dois casos o Congresso interrompeu o mandato de presidentes que abusaram do poder que lhes foi concedido pelas urnas. No caso de Fernando Collor de Mello o estopim foi a acusação de corrupção, de ter recebido recursos das operações suspeitas de PC Farias, tesoureiro de sua campanha. Este teria usado seu vínculo com o presidente para tomar dinheiro de empresas que dependiam de decisões do governo. No caso de Dilma Rousseff, as “pedaladas” de que é acusada constituíram abuso do poder que o Executivo tem sobre os bancos públicos, obrigando-os a conceder à União empréstimos disfarçados para gastar mais do podia. Assim, de uma ou de outra forma, os dois abusaram do poder, cometendo crime de responsabilidade. A frequência do impeachment é, pois, sinal de força da democracia brasileira. Ela tem sabido reagir aos chefes de Estado que ultrapassam os limites da autoridade recebida pela eleição.

O impeachment de Fernando Collor e o que atingirá Dilma Rousseff não decorreram, porém, apenas dos abusos mencionados. As crises que atingiram seus governos, embora bem diversas, resultaram em parte do seu extremovoluntarismo. O abuso de poder foi apenas uma das manifestações desse voluntarismo, normalmente obediente à ordem legal. Claro que os voluntarismos dos dois tiveram orientações políticas muito diversas: Collor orientou-se pela crença no valor do mercado e Dilma, pela crença nas virtudes da intervenção estatal.

O voluntarismo de Collor expressou-se, por exemplo, na edição de mais de uma centena de medidas provisórias no seu primeiro ano de governo e na tentativa, posterior, de forçar reformas liberalizantes que exigiam mudanças na Constituição e, portanto, grande maioria parlamentar, quando mal conseguia maioria simples no Congresso. Assim, o presidente buscou, com sucesso variável, impor sua vontade graças ao uso intenso dos poderes do Executivo, mas desconhecendo ou menosprezando os interesses políticos sediados nos partidos e no Congresso. Atuava como se os votos recebidos na eleição de 1989 lhe tivessem dado superior legitimidade em relação aos demais Poderes de Estado. Isso até o início de 1992, quando foi obrigado a recuar e tomar em conta a força e a legitimidade dos demais Poderes. Mas não o fez na medida necessária para retomar o controle da situação.

O voluntarismo de Dilma está mais à flor da nossa memória. Todos se lembram da dádiva maravilhosa de 20% na conta da luz, anunciada em setembro de 2012 juntamente com a renovação antecipada de todas as concessões no setor elétrico. A vontade presidencial foi feita, a despeito dos protestos das empresas do segmento de eletricidade e da desorganização do setor, mas teve de ser paga depois pelo consumidor, cujos gastos em 2015 aumentaram em cerca de 50% para compensar a benesse antes recebida. Caso similar foi a contenção dos preços dos combustíveis abaixo do nível internacional desde 2007 e, especialmente, a partir do início de 2011. Em nome do controle da inflação, esse voluntarismo presidencial trouxe prejuízos elevadíssimos à Petrobrás (US$ 50 bilhões até o final de 2014) e ao setor produtor de álcool combustível. Esses e outros casos de imposição da vontade se expressaram em formas de intervenção estatal que fizeram pouco da lógica própria dos mercados, incluídos aqueles em que empresas estatais tinham e têm parte relevante.

Contudo talvez tenham sido as decisões políticas que Dilma Rousseff tomou depois da vitória eleitoral de 2014 que mais corroeram sua capacidade de governar. A mais relevante foi a decisão de adotar o “ajuste fiscal” como diretriz da política econômica do novo governo e convidar um banqueiro para conduzi-la, desdizendo tudo o que afirmara na campanha eleitoral. Além de contrariar o seu partido, que vivia na ilusão de que gasto é sempre igual a desenvolvimento, transformou a tristeza da derrota oposicionista em revolta contra o estelionato eleitoral sofrido. A mentira indiretamente revelada e reconhecida reduziu, antes mesmo da posse, a legitimidade não da democracia, mas da presidente recém-eleita.

Na sequência, ela escolheu uma equipe ministerial que a afastou mais ainda da corrente majoritária do PT. E decidiu disputar, com candidato do PT, o comando da Câmara dos Deputados (para o qual se vinha preparando o deputado Eduardo Cunha), corroendo a já precária aliança com o PMDB, que lhe dera o vice, votos e um bom naco de tempo no rádio e na televisão. A derrota fragorosa nessa disputa evidencia, mais que tudo, o voluntarismo político da presidente. Ela se inclinou quase sempre a tomar pouco em conta os interesses de partidos e lideranças com os quais interagia, como se eles tivessem de curvar-se à vontade presidencial por terem menos legitimidade. É verdade que o sistema presidencial brasileiro dá ao chefe de Estado um poder muito grande. Mas o impeachment de Collor demonstrou que para governar o presidente precisa manter liderança sobre uma coalizão partidária majoritária. Se não consegue fazê-lo, perde condições de bem exercer o cargo.

Seguramente abuso de poder e voluntarismo presidenciais não explicam, por si sós, a crise política atual. Mas sublinham que a democracia não exige apenas eleições; demanda também responsabilidade no exercício do poder, tanto pelo respeito aos limites da lei como por levar em consideração os interesses legítimos dos demais atores. Infelizmente, Collor e Dilma, não se mostraram capazes disso.


* BRASILIO SALLUM JR. É PROFESSOR DE SOCIOLOGIA DA USP, AUTOR DE ‘O IMPEACHMENT DE FERNANDO COLLOR – SOCIOLOGIA DE UMA CRISE’

Fonte: Estadão


Roberto Freire: Sinais de confiança

Mesmo com todos os problemas que enfrenta e ainda distante de superar uma grave crise econômica, o Brasil parece caminhar de forma segura rumo à estabilidade. Os sinais são claros de que, sob o comando do presidente interino Michel Temer, o país começa a viver um momento de retomada da confiança como resultado do círculo virtuoso iniciado a partir da admissibilidade do processo de impeachment de Dilma Rousseff na Câmara e no Senado e do começo do governo de transição. Depois de tanta instabilidade e da desconfiança gerada nos últimos anos, as perspectivas passaram a ser mais otimistas.

Um bom exemplo é o Índice de Confiança do Empresariado Industrial (ICEI), divulgado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que subiu pelo terceiro mês consecutivo e alcançou 47,3 pontos em julho. A marca é mais de dez pontos superior à registrada em julho do ano passado (37,2 pontos), o que sinaliza um otimismo maior dos empresários brasileiros em relação ao desempenho do setor e da economia do país. Além disso, a expectativa para os próximos seis meses também melhorou, chegando a 52,3 pontos (ante 42 pontos do mesmo período de 2015).

Outro dado interessante é a estimativa do resultado da economia neste e no próximo ano calculada pelo Boletim Focus, do Banco Central. Os dados apresentados no início desta semana apontam para uma retração de 3,25% do PIB em 2016 (antes era de 3,30%) e um crescimento de 1,10% em 2017. O Fundo Monetário Internacional (FMI), por sua vez, também melhorou suas projeções na revisão do relatório “Perspectiva Econômica e Global”, calculando uma retração de 3,3% do PIB brasileiro neste ano (ante 3,8% da última estimativa) e uma leve aceleração de 0,5% no ano que vem.

A confiança gerada pelas ações da equipe econômica do novo governo também aumenta o otimismo, inclusive com a aprovação de projetos importantes do ajuste fiscal no Congresso Nacional. No início da semana, o Ibovespa atingiu o maior patamar desde maio de 2016, com mais de 56 mil pontos, fechando o nono pregão consecutivo do mercado acionário brasileiro em alta. Os papéis preferenciais da Petrobras, tão vilipendiada pela corrupção desenfreada do lulopetismo, se valorizaram muito nas últimas semanas, principalmente em função de uma gestão mais séria e competente da empresa.

Não se trata de mera onda de confiança que se espraia apenas nos mercados, muito pelo contrário. Essa confiança é um reflexo de uma sensação de maior otimismo que parte da sociedade brasileira, como atesta a mais recente pesquisa do Datafolha. De acordo com o levantamento, mais de 50% da população avalia que a permanência do presidente Temer no cargo é melhor para o país. O instituto também mediu a expectativa dos brasileiros em relação ao desfecho do processo de impeachment, cuja votação no Senado deve ocorrer em agosto, e nada menos que 71% dos entrevistados entende que haverá o afastamento definitivo da petista.

Apesar de todas as notícias positivas e da evidente retomada da confiança na recuperação econômica do Brasil, é fundamental termos a consciência de que os muitos e graves problemas do país ainda estão longe de ser resolvidos. O desafio é grande, as dificuldades serão enormes e não se sai da maior recessão da história brasileira em um passe de mágica. O caminho é longo e o percurso não será fácil.

Os brasileiros precisam continuar mobilizados para transmitir o seu recado de forma inequívoca: o Senado tem de aprovar o afastamento definitivo de Dilma para que o país não sofra com retrocessos e possa virar essa página e começar a escrever um novo capítulo de sua história. No dia 31 de julho, a sociedade tem mais uma chance de ocupar as ruas e demonstrar seu apoio ao impeachment e às investigações da Lava Jato, além de defender as instituições republicanas. Aos poucos, estamos recuperando a confiança e a autoestima em um novo Brasil. O próximo passo é retomar o crescimento e dar um salto de qualidade rumo ao futuro. (Diário do Poder – 21/07/2016)

Roberto Freire é deputado federal por São Paulo e presidente nacional do PPS


Luiz Carlos Azedo: A bandeira da ordem

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Os atentados de Nice, na França, e de Munique, na Alemanha, na sexta-feira, acenderam a luz amarela dos serviços de segurança do Brasil e das principais potências ocidentais em relação às Olimpíadas do Rio de Janeiro a duas semanas dos jogos. Por aqui, o fato relevante foi a prisão preventiva, pela Polícia Federal, de 11 suspeitos de envolvimento com Estado Islâmico, que supostamente estariam se organizando para realizar um ato terrorista e agora correm o risco de serem enquadrados na nova Lei Antiterror.

O episódio reacende o debate sobre a segurança dos jogos e os direitos e garantias individuais, porém, em contexto muito diferente das prisões dos black blocs durante as grandes manifestações de junho de 2013, que antecederam a Copa do Mundo de 2014. A paranoia em relação ao terrorismo no Brasil, diante dos atentados de inspiração islâmica na Europa e nos Estados Unidos, não é uma coisa sem sentido. A maioria dos ataques de “lobos solitários” ou grupos ligados virtualmente ao Estado Islâmico foi perpetrada por indivíduos que haviam sido monitorados pelos serviços secretos dos respectivos países.

As Olimpíadas são o maior evento de massas do mundo e, de fato, põem o Rio de Janeiro em situação de risco, devido à presença de grandes delegações de atletas dos países diretamente envolvidos nos conflitos do Oriente Médio, particularmente na guerra contra o Estado Islâmico na Síria e no Iraque. É nesse contexto que o governo interino de Michel Temer, responsável pela segurança das Olimpíadas, empunha a bandeira da ordem, às vésperas da votação do impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff, de quem herdou o problema e pode fazer desse limão uma doce limonada.

Ordem e Progresso, o lema positivista da bandeira nacional, é o slogan oficial do governo Temer. Adotado no contexto da crise político que resultou no afastamento de Dilma Rousseff, parecia uma sacada artificial e démodé, em meio à crise econômica, política e ética. A onda terrorista protagonizada por indivíduos que se associam ao Estado Isâmico pelas redes sociais, porém, com a aproximação das Olimpíadas, fez da manutenção da ordem uma necessidade real. O que não se pode é derivar para a lógica do Estado Leviatã.

Terror e tráfico

Publicado em 1651, O Leviatã, de Thomas Hobbes, foi uma resposta à Guerra Civil inglesa, provocada pela destituição do rei Carlos I pelo parlamento, em meio ao conflito entre anglicanos e presbiterianos. O resultado foi o caos, uma guerra de todos contra todos, que Hobbes atribuiu à natureza humana. Segundo ele, sem uma ordem política estabelecida, a vida se torna “solidária, pobre, repugnante, brutal e breve”. Para construir uma sociedade é necessário que cada indivíduo renuncie a uma parte de seus desejos e chegue a um acordo mútuo de não aniquilação com os outros.

Nasceu daí a ideia hobbesiana do “contrato social”, de modo a transferir os direitos que o homem possui naturalmente sobre todas as coisas em favor de um soberano dono de direitos ilimitados. Este monarca absoluto, cuja soberania não reside no direito divino, mas nos direitos transferidos, seria o único capaz de fazer respeitar esse contrato e garantir, desta forma, a ordem e a paz, exercendo o monopólio da violência que, assim, desapareceria da relação entre indivíduos. Ironicamente, foi a ditadura de Cromwell, o “Lorde Protetor”, que primeiro deu forma ao Estado Leviatã e realizou a revolução burguesa na Inglaterra. Mais tarde, em 1689, na Revolução Gloriosa, que foi pacífica, o parlamento promulgou a Declaração dos Direitos (Bill of Rights), que serve de base para o parlamentarismo monárquico britânico.

A crise humanitária do Mediterrâneo e os atentados terroristas na Europa parece reproduzir o “estado natural” descrito do Hobbes no Leviatã. São consequência da guerra civil e do caos que se instalou com a desestruturação dos estados nacionais do Iraque e da Síria pelas desastradas intervenções das potências ocidentais, lideradas pelos Estados Unidos durante o governo Bush, após o 11 de Setembro de 2003, que agravaram ainda mais os conflitos do Oriente Médio e do Afeganistão. O Brasil manteve-se sempre à margem desses conflitos, apesar das grandes comunidades brasileiras de origem árabe e judaica.

Entretanto, os indicadores de violência e a presença ostensiva do tráfico de drogas no país, principalmente no Rio de Janeiro, se assemelham a uma espécie de “guerra civil” não declarada. Não há, porém, registro de conexões entre traficantes e supostos apoiadores do Estado Islâmico, mas nem por isso deixa de ser prudente a transferência dos chefes das quadrilhas que atuam no Rio de Janeiro de Bangu para presídios federais de segurança máxima em outros estados e a prisão temporária de suspeitos de envolvimento com organizações terroristas. O que não se pode, porém, é derivar para uma concepção de segurança pública contrária aos fundamentos da democracia, ainda mais num ambiente político pautado pelo processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. (Correio Braziliense – 24/07/2016)


Fonte: www.pps.org.br


Luiz Ruffato*: Estamos preparados para enfrentar as ameaças à segurança promovidas pelo terrorismo internacional?

A pouco menos de 15 dias para o início dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro uma pergunta permanece sem resposta convincente: estamos preparados para enfrentar as ameaças à segurança promovidas pelo terrorismo internacional? Os recentes atentados contra alvos civis reivindicados pelo autointitulado Estado Islâmico, sejam cometidos por militantes armados, carros-bomba, homens-bomba ou “lobos solitários”, mostram a ousadia e a crueldade desses que, embora falem em nome de Deus, agem sob a égide da intolerância e do obscurantismo.

O aparato mobilizado pelo Governo para proteger os 10,5 mil atletas de 206 países e os cerca de 300 mil turistas aguardados consta de 85 mil profissionais, sendo 47 mil pertencentes às polícias federal, civil e militar, e 38 mil às Forças Armadas. Foram gastos até agora, neste que é o maior esquema de segurança da história do Brasil, um total de 1,5 bilhão de reais. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) elevou para o nível 4 o risco de atentado durante os Jogos, numa escala de 1 a 5, sendo 5 a certeza de que um ato terrorista está em curso.

Logo após os atentados em Paris, em novembro do ano passado, Maxime Hauchard, um francês que adotou o nome de Abou Abdallah al-Faransi, membro do alto escalão do Estado Islâmico, postou um texto no Twitter dizendo: “Brasil, vocês são nosso próximo alvo”. Em maio, foi lançado o Nashir Português, uma plataforma de comunicação e propaganda em português na internet, visando o proselitismo da causa jihadista para recrutamento de simpatizantes brasileiros. Seu principal aliciador nas redes sociais usa o nome de Ismail Abdul Jabbar Al-Brazili, conhecido como “O Brasileiro”.

Nesta semana, um grupo extremista brasileiro autodenominado Ansar al-Khilafah Brazil declarou lealdade ao Estado Islâmico e criou um canal no Telegram, serviço de mensagens semelhante ao WhatsApp. Segundo Rita Katz, do SITE (Search for International Terrorist Entities) Intelligence Group, organização que monitora atividades terroristas na internet, esta é a primeira vez que uma entidade sul-americana anuncia aliança com o Estado Islâmico e submissão ao líder do grupo fundamentalista, Abu Bakr al-Baghdadi.

Agentes da Divisão Antiterrorismo da Polícia Federal já monitoram 42 suspeitos de ligação com o terrorismo islâmico em território nacional. Um deles, o libanês Ibrahim Chaiboun Darwiche, dono de um restaurante em Chapecó (SC), indiciado por três crimes – incitação à violência, preconceito religioso e desrespeito à lei de segurança nacional –, é monitorado 24 horas por dia, com uso de tornozeleira eletrônica. Darwiche produziu um vídeo defendendo os ataques do Estado Islâmico ao jornal francês Charlie Hebdo, e, entre janeiro e abril de 2013, ficou 87 dias numa região da Síria controlada pelo Estado Islâmico, segundo a Polícia Federal.

Agentes da Divisão Antiterrorismo da PF já monitoram 42 suspeitos de ligação com o terrorismo islâmico em território nacional

Na semana passada, o Governo brasileiro extraditou o franco-argelino Adlène Hicheur, que há dois anos dava aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Hicheur foi detido em 2009 e permaneceu preso na França por quase três anos por suspeita de envolvimento com a rede terrorista Al Qaeda. Físico respeitado na comunidade científica internacional, ele trabalhou nos laboratórios do CERN (Organização Europeia para Pesquisa Nuclear), sediada em Genebra, na Suíça. Na época, o serviço secreto francês decifrou mensagens criptografadas em seu computador, nas quais Hicheur conversava amistosamente com Mustapha Debchi, membro da Al Qaeda no Magreb Islâmico, sobre uma possível associação em empreendimentos terroristas.

Em maio, o chefe da Direção de Inteligência Militar da França, general Christophe Gomart, anunciara, em depoimento na comissão parlamentar de luta contra o terrorismo, que o Estado Islâmico havia planejado ataques contra a delegação francesa durante os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Ele revelou ainda que um brasileiro estaria por trás da ação, sem indicar, no entanto, quem seria ele. Já a nossa Polícia Federal afirma que negou a entrada no Brasil de pelo menos quatro suspeitos de envolvimento com terrorismo que tentavam se credenciar para as Olimpíadas.

Marginalizados, filhos da humilhação e da ignorância, os jihadistas, que representam uma corrente minoritária dentro do islamismo, cultuam valores tribais e primitivos – machismo, xenofobia, homofobia – e têm como bandeira o ódio e a violência. Sua principal forma de propaganda é o espetáculo da intimidação da população civil. Desconhecendo regras, os militantes fundamentalistas julgam que toda forma de luta contra os valores ocidentais (judaico-cristãos, mas também muçulmanos) é válida e para isso transformam qualquer coisa em arma – sejam aviões comerciais, como os que derrubaram as Torres Gêmeas, nos Estados Unidos, matando quase três mil pessoas, seja um caminhão como o que tirou a vida de 84 pessoas na França ou até mesmo um machado como o usado em um ataque dentro de um trem na Alemanha, na segunda-feira.

Entre os dias 5 de agosto, quando ocorrerá a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, até o dia 21, data de encerramento, respiraremos com ansiedade, torcendo para que as ameaças de atentados não passem de bravatas e que o Brasil se mantenha longe da insânia terrorista dita religiosa.


Luiz Ruffato é escritor e jornalista.

Fonte: El País


José Ruy Lozano: O que seria da literatura numa “escola sem partido”?

Dom Casmurro, de Machado de Assis, continuaria a ser um romance de adultério

Aconteceu em meados de 1990. O aluno, de família religiosa, dirige-se ao professor e afirma, em alto e bom som: “Não vou ler esse livro aí, é obra de Satanás”. A obra em questão era Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, o romântico brasileiro discípulo de Byron e Musset, que temperou os enredos de seus contos com cemitérios, crânios humanos e orgias à meia-noite.

À época, não havia sombra do debate sobre a “escola sem partido”, frequente no ambiente de extrema polarização política que hoje toma conta do Brasil. Mas o fato – verídico – revela a impossibilidade de trabalhar com a literatura numa escola pretensamente neutralizada de qualquer questionamento histórico, político, social ou comportamental.

Para os defensores da ideia de uma “escola sem partido”, que ameaça a educação nacional, Dom Casmurro, obra-prima de Machado de Assis, continuaria a ser um romance de adultério. E Capitu, a Madame Bovary dos trópicos, a Anna Kariênina que pudemos ter. A interpretação hoje consagrada do narrador ambíguo e não confiável, representante da elite patriarcal brasileira, que suprime sua insegurança impondo cruel desterro à esposa, seria considerada esquerdismo militante, influência feminazitalvez. Para eles Capitu é culpada, não há dúvida.

Seria possível ignorar que romances como Vidas secas, de Graciliano Ramos, e Capitães da areia, de Jorge Amado, não sejam obras engajadas no debate político e social brasileiro do período – anos 30 do século passado – e ainda atuais nos dias que correm? Para os patronos da “escola sem partido”, todo o teor de denúncia social de obras como essas deveria ser ignorado, bem como qualquer diálogo com a realidade do jovem que ainda se depara com carências similares e injustiças idênticas.

Num exercício de reductio ad absurdum, imaginemos o professor de literatura brasileira apresentando aos alunos do Ensino Médio o poema narrativo O navio negreiro, de Castro Alves. Se o poeta toma partido dos escravos e critica a economia que engendrou o trabalho servil, logo teríamos os “apartidários” defendendo a discussão do outro lado: “Seria preciso ouvir a voz dos senhores, senão estaremos tomando partido em nossas aulas! ”

Podemos recuar mais e mais na discussão e perguntar o que foram os primeiros escritores do Brasil independente senão ideólogos de um projeto político de constituição da nacionalidade, para além de seus inquestionáveis méritos artísticos. Os índios de Gonçalves Dias e José de Alencar existiriam fora do processo de construção social a que se devotaram os dois autores? Certamente não.

Até nas mais remotas obras da literatura portuguesa encontramos dificuldades semelhantes. Quando Gil Vicente apresenta em suas peças de teatro o padre lascivo e o comerciante ladrão, o professor se verá na contingência de fazer o contraponto. Para amenizar a crítica religiosa, ler, talvez, trechos da vida dos santos? Tecer elogios às virtudes do livre-mercado a fim de dirimir a acusação ao capitalismo predatório?

Sombrios os tempos em que somos obrigados a reafirmar a literatura não só como experiência de linguagem e veículo de sensibilidade mas também de conhecimento, de tomada de consciência do mundo. Os abnegados sem partido recitariam os versos de Ferreira Gullar sem perceber a acidez irônica que o poeta militante lhes dá: “O preço do feijão/não cabe no poema. O preço/do arroz/não cabe no poema (...)/Como não cabe no poema/o operário/que esmerila seu dia de aço/e carvão/nas oficinas escuras/(...) Só cabe no poema/o homem sem estômago/a mulher de nuvens/a fruta sem preço”. Ou, então, caberia ao professor explicar a política econômica da atual gestão e das que a antecederam. Sem tomar partido, é óbvio.


José Ruy Lozano é professor do Instituto Sidarta e autor de livros didáticos.

Fonte: El País


Luiz Ruffato: A Igreja Universal avança

Se julgarmos pelas pesquisas para prefeito em São Paulo e no Rio, o quadro é desolador.

No próximo dia 2 de outubro, iremos às urnas para eleger prefeitos e vereadores. Deveria ser um momento em que efetivamente desempenhamos um papel fundamental na transformação da sociedade, um momento único de exercício de cidadania. Mas a pergunta que fica é: estamos nos preparando para isso? O que temos feito para melhorar o espaço em que vivemos? A mudança coletiva processa-se por meio de ações individuais: é como nos relacionamos com o outro e com o entorno que ressignificamos a existência. É a ação no presente que qualifica o futuro – nosso, dos outros, do planeta.

Se julgarmos pelas pesquisas de intenção de voto para prefeito nas duas maiores cidades do Brasil – São Paulo e Rio de Janeiro – o quadro é desolador. Na rica São Paulo, em resposta espontânea, 54% dos eleitores afirmam não saber em quem votar e 26% declaram que vão votar nulo ou em branco segundo pesquisa do Ibope. Quando apresentados aos nomes dos pré-candidatos, o deputado federal Celso Russomanno aparece em primeiro lugar com 26%, bastante distante do segundo colocado, a senadora Marta Suplicy (PMDB), com 10%. Interessante perceber ainda que o pastor Marco Feliciano (PSC), ligado à Assembleia de Deus, e que já deu claras demonstrações de homofobia e intolerância, embora surja com apenas 4% das intenções de votos, tem o maior número de seguidores no Facebook: 3,77 milhões, quase cinco vezes mais que o segundo colocado, Celso Russomanno, com 670.000.

Russomanno é réu no Supremo Tribunal Federal (STF) por prática de peculato (desvio de dinheiro público). Ele já foi condenado em primeira instância a dois anos e dois meses de prisão em regime aberto, mas como possui foro privilegiado a ação foi transferida para o STF. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu urgência no julgamento de Russomanno, para que, caso seja confirmada a sentença, ele fique impedido de disputar as eleições, de acordo com a Lei da Ficha Limpa. Russomanno é filiado ao Partido Republicano Brasileiro (PRB), partido que tem vínculos com Edir Macedo, dono da Igreja Universal do Reino de Deus.

Pertence ao mesmo PRB e à mesma Igreja Universal o sobrinho de Edir Macedo, ex-ministro da Pesca e da Aquicultura no governo Dilma Rousseff, senador Marcelo Crivella, que lidera as intenções de voto para prefeito da cidade dita mais liberal do Brasil, o Rio de Janeiro. Contra o aborto e defensor do criacionismo, o pastor e cantor gospel Marcelo Crivella tem 35% das preferências – mais que todos os outros candidatos juntos, segundo pesquisa do Instituto Gerp. Além disso, 26% dos entrevistados afirmam que não votarão em ninguém e 15% permanecem indecisos.

Sozinho, o PRB elegeu, no último pleito, uma bancada composta por sete deputados federais e um senador (Marcelo Crivella), além de ter conseguido emplacar o presidente do partido, Marcos Pereira, como titular do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior no governo do presidente interino, Michel Temer. Pereira foi diretor administrativo e financeiro da TV Record do Rio de Janeiro entre 1995 e 1999, e vice-presidente da Rede Record de Televisão, entre 2003 e 2009. Fundada em 1977, a Igreja Universal conta hoje com cerca de 12.000 pastores, sete mil templos e quase sete milhões de seguidores no Brasil, e outros quase dois milhões de fiéis espalhados por mais de uma centena de países, segundo estimativas da própria entidade. Sua receita é estimada em cerca de R$ 1,4 bilhão de reais por ano – mas não há qualquer controle sobre esse valor, já que por lei as instituições religiosas estão isentas de impostos.

Além dos fiéis, a Igreja Universal controla hoje a Rede Record, que cobre 93% do território nacional e está presente em 150 países, a TV Universal, com mais de 20 retransmissoras, e a Rede Aleluia, que possui quase oitenta emissoras de rádio AM e FM, presente em 75% do território nacional. Faz parte ainda do grupo o portal universal.org., o jornal Folha Universal, as revistas Plenitude, Obreiro de Fé e Mão Amiga, a editora Unipro, que registra milhões de exemplares vendidos de livros de Edir Macedo e de outros pastores, e a gravadora Line Records, especializada em música religiosa.


Fonte: El País


Pacificar para quem?

Nós, Tupinambá, nos dirigimos ao Governo brasileiro e pedimos: ou devolvam as nossas terras ou mandem nos matar e coloquem o branco em nosso lugar. Mas tomem uma decisão já. Nem os adultos, nem as crianças podem viver neste inferno.

No dia 5 de abril, o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, do Superior Tribunal de Justiça, proferiu uma decisão suspendendo a demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. Dada a gravidade desse acontecimento, nós, os Tupinambá da aldeia Serra do Padeiro, uma das comunidades que vive nesse território, apresentamos esta denúncia e solicitamos ao Governo brasileiro e aos organismos internacionais que tomem as medidas necessárias para impedir que nossos direitos continuem sendo violados. Apenas nos últimos anos, mais de 30 Tupinambá foram mortos. Há violência maior que vermos nossos parentes assassinados, ninguém responsabilizado, e ainda nos negarem o direito a nossa terra?

Em resposta à decisão do ministro, apresentamos um relato histórico sobre o que nosso povo vem enfrentado nestes 500 anos. Ao contrário do que disseram os fazendeiros e empresários na ação acolhida pelo ministro, apesar de toda a violência, nunca saímos de nossa terra. Em 1500, quando aqui os europeus chegaram, logo declararam que os Tupinambá eram inimigos da Coroa portuguesa e tinham que ser exterminados e expulsos de seus territórios.

Na Capitania de São Jorge dos Ilhéus, fomos escravizados nos engenhos de cana-de-açúcar, reagimos e sofremos a retaliação da Coroa portuguesa, no massacre comandado por Mem de Sá, em 1559. Então, nosso povo teve que lutar contra os franceses, na Confederação dos Tamoios. Depois, tivemos que lutar contra os holandeses, para expulsá-los da Bahia. E sempre nos eram negados os nossos direitos.

Em 1680, criaram o aldeamento jesuítico de Nossa Senhora da Escada, para aprisionar os Tupinambá. No aldeamento, eles se esforçaram para tirar a nossa língua, a nossa crença, a nossa religião - para nos tirar tudo. Mas os Tupinambá sempre tiveram a rebeldia de lutar para não deixar que os outros ocupassem completamente o nosso território. Quando o Governo percebeu que, apesar do aldeamento, continuávamos crescendo, decidiu que ele teria que ser extinto e elevado à situação de vila, o que aconteceu em 1758. Nesse período, os Tupinambá passaram a ter alguns direitos, como o de eleger vereadores para a Câmara de Olivença, que chegou a ser presidida por um indígena, Nonato do Amaral. Porém, os brancos mandaram destituí-lo. Os índios resistiram e mataram os homens enviados para assumir a Câmara.

Pinheiro Costa [juiz federal] diz que precisamos entrar em acordo e ceder parte de nossa terra. Ele diz que nossa terra tem que ser demarcada em "ilhas", deixando a praia do lado de fora. Como é que os Tupinambá da praia ficarão sem praia? O juiz afirma que é preciso "pacificar" a região.

Nós perguntamos: pacificar para quem? Porque quem está morrendo somos nós, quem está sendo enterrado ao longo da história somos nós.

Assim, nos dirigimos ao governo brasileiro, em suas diversas instâncias, e pedimos: ou devolvam as nossas terras ou, simplesmente, parem de dizer que nós não somos Tupinambá: mandem nos matar, em menos de um ano, e coloquem o branco em nosso lugar. Mas tomem uma decisão já. Nem os adultos, nem as crianças podem viver neste inferno. Estamos em nossa terra, trabalhando, e, quando menos esperamos, a polícia chega para nos expulsar. Nos últimos anos, a polícia tentou nos matar dezenas de vezes. Vejam a gravidade do que dizemos: nós não estamos nos referindo a ações de fazendeiros ou empresários; é o governo brasileiro, através de sua polícia, que vem tentando acabar com a comunidade a qualquer preço. Como vamos enfrentar uma luta desta? Qual é a chance que nós temos de vencer?

Vocês não têm para onde nos levar, porque nós nunca fomos de outro lugar. Os fazendeiros e os empresários dizem que nós não somos os ocupantes tradicionais desta terra. Não são eles que têm que dizer, somos nós, que habitamos aqui, são os velhos que ainda vivem na terra em têm histórias, muitas histórias, com o branco sempre infernizando a vida deles. O ministro que mandou suspender a demarcação da nossa terra nunca veio aqui, nós não sabemos quem ele é. O que sabemos é que o Judiciário brasileiro tem sempre uma desculpa para manter tudo na mão dos invasores. Sempre. Que vocês fiquem sabendo: ninguém nunca governou e nem vai governar os Tupinambá da Serra do Padeiro.

Queremos que este governo decida logo. E pedimos também que a comunidade internacional e a Igreja Católica se posicionem. Ninguém pode viver mil anos nestas circunstâncias, nas circunstâncias em que já vivemos mais de 500 anos.

Rosivaldo Ferreira da Silva é o cacique Babau, que representa a organização política dos Tupinambá da Serra do Padeiro (BA) e Rosemiro Ferreira da Silva é pajé, que representa a organização religiosa dos Tupinambá da Serra do Padeiro.


Rosivaldo Ferreira da Silva é o cacique Babau, que representa a organização política dos Tupinambá da Serra do Padeiro (BA) e Rosemiro Ferreira da Silva é pajé, que representa a organização religiosa dos Tupinambá da Serra do Padeiro.

ENTENDA O PROBLEMA

O povo Tupinambá aguarda desde 2004 a conclusão do processo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. Localizada no sul da Bahia, Brasil, ela tem cerca de 47 mil hectares e é habitada por aproximadamente cinco mil índios. No último 5 de abril, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu medida liminar determinando a suspensão do processo de demarcação, acatando mandado de segurança impetrado em 2013 pela Associação dos Pequenos Agricultores, Empresários e Residentes na Pretensa Área Atingida pela Demarcação de Terra Indígena de Ilhéus, Una e Buerarema. A demora na demarcação tem agravado ainda mais a situação de conflito da região, com a morte de indígenas, como acontece em outras áreas do país, como Mato Grosso do Sul.

Fonte: El País