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Anistia Internacional: Lentes da pandemia ajudaram a ver racismo
Para Jurema Werneck, morte é um produto constante da discriminação racial no país
Victoria Damasceno, da Folha de S. Paulo
Foto: Lucas Jatobá/Anistia Internacional Brasil
Caso alguém não tivesse percebido a tragédia que o racismo estrutural produz na vida de homens e mulheres negras, Jurema Werneck, médica e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil, acredita que as lentes da pandemia a tenham deixado evidente.
Ouvida recentemente na CPI da Covid, que investiga a atuação do governo Bolsonaro na gestão da pandemia de coronavírus, disse que “o vírus procura oportunidade, mas a injustiça, a desigualdade, as iniquidades fizeram diferença”.
Os negros foram as principais vítimas da Covid-19 e, mesmo diante da pandemia, continuaram a ser principais alvos da violência policial. Para Werneck, esse é o objetivo do Estado: fazer morrer os indesejáveis.
“A morte é um produto constante do racismo”, disse em entrevista à Folha.
Homens negros são o segmento mais atingido, tanto pelas mortes por Covid como pela violência de Estado. Seu desaparecimento nas famílias, porém, tem impacto direto na vida das mulheres negras, explica.
“São homens adultos que desaparecem da família, cujo rendimento ou cuja presença ajudava na gestão familiar, e, com o desaparecimento desse homem, o peso fica sobre os ombros das mulheres negras.”
A diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil acredita que mulheres negras deveriam estar no centro das decisões do Estado. Mostra, porém, que chegam ao Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, neste 25 de julho, mais vulnerabilizadas do que antes da pandemia.
Para que aspecto da vida da mulher negra brasileira o Estado deve olhar? Deve olhar para a vida da mulher negra. As mulheres negras são o maior segmento populacional do Brasil. Mas também vemos indicadores que dizem que 38% das mulheres negras vivem na pobreza.
Quando olhamos o impacto direto da Covid-19, vemos que a população negra teve taxas de mortes mais altas que o restante da população. É verdade que as maiores taxas estão entre os homens, mas as taxas das mulheres estão altas. E as taxas entre os homens negros também têm um impacto forte na vida das mulheres [negras], porque são homens adultos que desaparecem da família, cujo rendimento ou cuja presença ajudava na gestão familiar, e com o desaparecimento desse homem, o peso fica sobre os ombros das mulheres negras.
Ou seja, tem que olhar pra vida das mulheres negras. Dizendo de outra forma, tem que botar o direito das mulheres negras no centro de qualquer decisão de gestão.
De acordo com a Pesquisa Nacional da Saúde de 2019, do IBGE, entre os adultos, pessoas negras são as principais usuárias do SUS. Mulheres negras, porém, estão entre as mais vulneráveis na pandemia de coronavírus. Onde esses dados se encontram? Isso não quer dizer um atendimento adequado e de qualidade. Os números da Covid são um exemplo. Tivemos altas taxas de morte nas unidades pré-hospitalares, nos pronto-socorros e UPAs [Unidades de Pronto Atendimento], ou seja, as pessoas não tiveram nem chance de entrar [no sistema]. E a maioria das pessoas que morreram lá eram negras. Essa disparidade segue sendo retratada.
Eu não estou dizendo que o SUS é ruim. Eu estou dizendo que ele não é bom. Essa precariedade do SUS está associada a essa negligência em relação à população.
Os 545 mil mortos no Brasil tem cor e endereço. São principalmente negros e pobres. A pandemia de coronavírus evidenciou ou agravou problemas já existentes? Certamente os dois. Ela evidenciou para os distraídos, porque eu acredito que haja distraídos no Brasil que não tenham visto antes a tragédia que o racismo sistêmico produz sobre nós, mulheres e homens negros. Mas se alguém não tinha visto antes, as lentes da pandemia ajudaram a ver.
A pandemia não inventou o efeito que o racismo sistêmico tem na vida da população negra e das mulheres negras, mas ela aprofundou porque antes, eram cerca de 33% das mulheres negras vivendo na pobreza, na pandemia passou a 38%. Isso é um aprofundamento.
As mortes também continuaram nas operações policiais, a despeito da decisão do STF que limitou operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia. Os homens negros são as principais vítimas, embora mulheres negras também sejam atingidas. Na sua avaliação, a violência de Estado atinge os homens e as mulheres negras de forma diferente? É de forma diferente porque a bala, no volume, atinge mais os corpos dos homens negros. Mas quando a bala atinge o corpo de um homem negro, uma mulher negra está sendo atingida também. Há também uma quantidade de mulheres e meninas que são mortas. Todos e todas nós somos atingidas.
Essa reiteração da liberdade com que o racismo participa da produção da morte, da definição de quem vive e quem morre, atinge a todas nós. Atinge mais aos homens, mas junto com aquele homem que morre, existem mulheres em torno, que são atingidas de uma forma ou de outra.
Os dados deste ano do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que a letalidade policial bateu recorde em 2020, independentemente da pandemia. Entre as vítimas, 78,9% são negras. Isso mostra o quão perversa é a ação do Estado. Não apenas na expressão da ação da polícia mas no fato das outras instituições diante deste absurdo não ser interrompido.
A polícia continuou produzindo mortes no Rio de Janeiro, por exemplo, mas o comandante não foi responsabilizado. O comando acima do comandante, que é o governador, não foi responsabilizado. O Ministério Público, que tem o dever de fazer a supervisão do trabalho policial e garantir a legalidade da ação policial, permanece em silêncio. O Supremo Tribunal Federal, sendo desobedecido em sua decisão, não faz nada em tempo de salvar vidas.
Se tivessem feito alguma coisa, é possível que Kathlen e seu filho estivessem vivos até hoje. É se fazer morrer e deixar morrer. É isso que se chama de necropolítica e a minha geração chama simplesmente de racismo.
Os negros são os mais afetados pela violência policial e são os que mais morrem na pandemia. Me parece que o luto é uma constante na vida da população negra. Porque a morte é um produto constante do racismo. Para usar o termo mais moderno, do Achille Mbembe, a necropolítica é exatamente isso, fazer morrer os indesejáveis. Sob o racismo, os indesejáveis somos nós, negras, negros, indígenas e ciganos. É pra fazer morrer a gente. A morte é a marca.
Nas organizações, nós temos usado há muito tempo a morte como o principal indicador da perversidade do racismo sistêmico. Não é o único indicador, mas tem sido [o principal]. A gente chama atenção para a morte porque ela é real. Ela acontece em volume.
E o que falta para esse luto constante parar, para que essa produção de mortes cesse? A população não negra se responsabilizar? O Estado? Representatividade legislativa? O racismo sistêmico, ou seja, a regra que estrutura as regras de funcionamento do Brasil como estado e como nação, inclusive seu povo e sua sociedade, está fundada nos alicerces do racismo. Então falta refundar a nação. O que significa refundar a nação? Responsabilizar a todos e todas. Responsabilizar, como dizia a frase do Malcolm X, responsabilizar por todos os meios necessários. Precisamos de outro país. Esse país desse jeito tem que acabar. E não é uma mudança radical, porque dentro desse país que precisa acabar já existe o outro país que precisa existir.
Uma parte substancial da sociedade já age contra o racismo, e a gente precisa que essa ação impacte de forma mais profunda as estruturas a ponto de derrubá-las. É que o outro lado está ancorado num alicerce mais potente, um alicerce de mais de 500 anos. É preciso que os nossos alicerces se fortifiquem, seja na lei, seja na responsabilização individual, seja na responsabilização coletiva.
RAIO-X
Jurema Werneck, 59, é diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil desde 2017. É formada em medicina pela UFF (Universidade Federal Fluminense), é mestre em engenharia de produção e doutora em comunicação e cultura pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). É também fundadora da ONG Criola, que trabalha em defesa dos direitos das mulheres negras.
FONTE:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/07/lentes-da-pandemia-ajudaram-a-ver-racismo-diz-diretora-da-anistia-internacional-no-brasil.shtml
O Brasil e a AL 200 anos após a independência da Espanha e Portugal
A Mesa redonda online promovida pela APURAPERU, no último dia 10 de julho, culminou em um processo de discussão, que se iniciou nas duas mesas anteriores dos dias 26 de junho e 3 de julho passado e que possibilitou um panorama da realidade histórica e atual da América Latina, particularmente do Peru, México, Panamá e Brasil.
O que avançamos como República, nos últimos 200 anos, nos diversos países do continente depois da libertação colonial?
Quais os desafios históricos e atuais dos países latino-americanos frente à pandemia e aos cenários possíveis pós pandemia?
Foram estas as questões discutidas e avaliadas nessas mesas redondas acima mencionadas e que estão disponíveis em https://www.facebook.com/apuraperu/videos.
O texto a seguir apresentado na última mesa redonda do dia 10 de julho passado destaca a realidade brasileira em perspectiva, considerando os desafios a serem enfrentados pelo Brasil no caminho da sustentabilidade política, econômica, social e ambiental.
Os desafios da sustentabilidade
A ampliação da consciência ambiental aos níveis global, continental e nacional é uma necessidade para a construção de uma nova perspectiva de sociedade que se quer sustentável. Os problemas econômicos, sociais e ambientais globais, continentais e nacionais continuam como desafios políticos a serem superados para a construção de uma perspectiva sustentável para a América Latina e o Brasil.
A busca de alternativas para superar esta realidade coloca a necessidade de construção de uma nova agenda para as questões de sustentabilidade mundial, continental e nacional, há muito discutida nos fóruns globais (AGENDA 21, ONU, ECO 92).
A construção política, econômica, social e ambiental de uma sociedade futura sustentável é um desafio permanente de toda a sociedade latino-americana. Alguns valores devem sustentar esta nova construção societária, entre outros a compreensão da democracia como um valor permanentecriador das condições de governança global, continental e nacional; a necessidade da paz mundial e do diálogo entre os povos, particularmente latino-americanos, como o caminho de superação desta sociedade histórica, construída desde a colonização e atualmente insustentável.
Nessa perspectiva, a equidade na distribuição das riquezas produzidas por quem trabalha preservando os valores ambientais, culturais e espirituais das sociedades latino-americanas é o caminho a ser perseguido com a participação ativa da cidadania, dos governos nacionais, das organizações, a exemplo da ONU, OEA e outras multilaterais que funcionariam como alicerces dessas políticas públicas que se desejam e podem ser discutidas e construídas a nível nacional, latino-americano e global.
A realidade brasileira
A carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel, de 1º de maio de 1500, quando aqui chegaram os colonizadores portugueses, é o primeiro manifesto das potencialidades e riquezas naturais brasileiras:
“Nela, até agora, não podemos saber o que faz ouro nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro; nem como vimos. Mas, uma terra em si é muito boa de ares, fria e temperada, como você. Águas são muitas e infindas. De tal forma e graciosa que, querendo aproveitar, dê-lhe uma mensagem para o bem das Águas que ela temia”.
Tal processo de colonização e a realidade brasileira atual impõem a necessidade de novas relações entre a sociedade e a natureza no Brasil.
Portanto, o Brasil, com seus conflitos e contradições, é parte do processo de desenvolvimento do capitalismo na América Latina e no mundo inteiro, fruto das relações dos diversos atores que determinam o funcionamento da sociedade brasileira atual, assim como a construção de novas relações a serem estabelecidas com a América Latina e a nível mundial.
Desde as expedições colonizadoras (a primeira chegou ao Brasil em 1530, comandada por Martim Afonso de Souza), a economia brasileira continua sendo exportadora de recursos naturais para atender ao mercado mundial.
Os desafios históricos continuam atuais na perspectiva de construção da sustentabilidade brasileira: a preservação do território, das riquezas naturais, em particular da biodiversidade, elemento estratégico para o futuro do país e da América Latina, principalmente em relação à floresta amazônica, mata atlântica, cerrados, caatinga, água, riqueza mineral e o aproveitamento do potencial de energia solar e eólica.
A questão da sustentabilidade no Brasil é parte integrante de nosso processo histórico, cultural, econômico e social. Sua síntese está refletida na própria Constituição brasileira, aprovada em 1988, que possui um capítulo (o VI) dedicado ao Meio Ambiente que, em seu artigo 225, dispõe:
“Toda pessoa tem direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem comum das pessoas e essencial para uma boa qualidade de vida, impondo ao Poder Público e à comunidade o dever da sua defesa e preservação para as gerações presentes e futuras”.
Esta visão de totalidade, de compreender a construção das políticas públicas como relação entre o Estado e a Sociedade em geral está incorporada no Capítulo VI da atual Carta Magna, no que se refere à política ambiental, superando dialeticamente as visões anteriores de tratamento da questão ambiental no Brasil.
As políticas fundamentais para a construção da sustentabilidade no Brasil devem ser integradas e pactuadas entre os diferentes atores políticos, econômicos e sociais, no âmbito do Estado, do Mercado e da Sociedade Civil brasileiros.
O desafio da sustentabilidade no Brasil é a necessidade de construção de uma sociedade com mais democracia, ampliando os espaços de participação e de decisão da cidadania, com uma economia preocupada com a inclusão social e a preservação da biodiversidade, realizando reformas políticas e econômicas necessárias e ainda não realizadas pela sociedade brasileira.
No Brasil, parte considerável da população não tem seus direitos constitucionais atendidos como educação, saúde, moradia, segurança pública e trabalho, fundamentais para a vida. A perspectiva sustentável deve ser trabalhada com base na biodiversidade, território, riquezas minerais, água, energia solar e eólica disponíveis no território brasileiro.
Os limites impostos à economia baseada no carbono colocam o Brasil em situação de destaque em relação à sua matriz energética, com vantagens comparativas na perspectiva de uma nova economia, de baixo carbono, sustentável.
Nos últimos 25 anos de redemocratização da sociedade, o Brasil se desenvolveu em termos de inclusão social e redução das desigualdades. Mas, ainda somos uma das sociedades mais desiguais do mundo, infelizmente, uma das primeiras em concentração de riqueza em todo o planeta. A parcela da população, inserida no mercado nos últimos anos, não foi incorporada à cidadania efetiva, não alcançando os direitos expressos na Constituição brasileira, a saber: trabalho, moradia, saúde, educação e mobilidade.
A construção da sustentabilidade no Brasil implica em uma mudança radical na nossa matriz de transportes. A transição para uma nova matriz de transporte, com prioridade para a ferrovia e a hidrovia substituindo o rodoviário, para o coletivo substituindo o individual, são desafios que continuam atuais em nossa sociedade.
Em relação à questão urbana, os problemas sociais se acumulam nessas áreas de grande concentração populacional. As cidades concentram população e desigualdades. A reforma urbana se coloca como uma das questões estratégicas dessa perspectiva que se pretende sustentável para o Brasil.
A propriedade da terra, a reorganização do espaço urbano, o sistema de transportes, segurança, habitação, saúde, educação e a reestruturação dos serviços públicos são questões fundamentais a serem consideradas. O fortalecimento das políticas municipais e regionais, por meio do incentivo à participação do cidadão na formulação das políticas públicas e na gestão, será decisivo neste caminho rumo à sustentabilidade em nosso país.
Neste cenário, a centralidade de uma política pública de educação, ciência, tecnologia e inovação se coloca no caminho de uma maior integração com a indústria, agricultura e pecuária para aumentar a produtividade e enfrentar as desigualdades sociais e os desafios econômicos e ambientais da sociedade brasileira.
É importante ainda avaliar como a questão da sustentabilidade está sendo formulada e incorporada nas políticas públicas no Brasil pelos diferentes atores políticos e sociais, seus respectivos instrumentos e condições de implementação, nível de transversalidade e participação efetiva da sociedade. Bem como a continuidade e aprofundamento das políticas de combate às desigualdades de gênero e etnia, como estruturantes nesta perspectiva sustentável a ser construída no Brasil.
Uma reforma política continua na ordem do dia para a ampliação e consolidação da democracia brasileira. Condicionar a reforma política à necessidade de maior participação da sociedade civil e da cidadania como instrumentos de superação da difícil realidade política, econômica e social vivida hoje no Brasil superando o Governo Bolsonaro que demonstrou e demonstra a sua incapacidade de governar o País. Aumentam as crises econômica, social e ambiental brasileiras, em plena pandemia.
Por fim, compreender e trabalhar as questões da sustentabilidade como parte da história da humanidade em suas relações com a natureza, permitindo transcender os problemas da sociedade atual, no Brasil e na América Latina, buscando soluções e, sobretudo, que as diferenças e os reais interesses entre os diversos atores sociais em questão sejam identificados, criando as bases de novas relações políticas, econômicas e sociais para a sociedade futura que se deseja sustentável.
Seremos capazes?
*Professor Doutor da Universidade Federal da Bahia-Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade (geogurgel1@gmail.com)
Demétrio Magnoli: Raiz da desconfiança da vacinação está no poder estatal
Quantos? 100 mil, segundo os jornais da época, ou 20 mil, segundo historiadores, marcharam na cidade inglesa de Leicester em 23 de março de 1885, protestando contra a vacina obrigatória da varíola.
A resistência ativa ou passiva à imunização é tão antiga quanto a moderna história das vacinas, que começa com a invenção de Edward Jenner, em 1796. No seu capítulo atual, ela ameaça impedir a imunidade coletiva à Covid-19 em certos países ou regiões.
A raiz profunda da desconfiança da vacinação encontra-se no temor do poder estatal, especialmente quando se trata do controle sobre o próprio corpo dos indivíduos. No passado, os agentes vacinadores eram os mesmos funcionários encarregados de trancafiar os pobres em estabelecimentos de trabalho ou de remover habitações de locais insalubres.
De Leicester, 1885, a Zomba, no Maláui britânico, em 1960, passando pela Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, em 1904, incontáveis levantes antivacinais refletiram as suspeitas populares sobre as motivações dos governos.
A resistência segue nítidos contornos ideológicos. Na França, uma pesquisa de 2019, anterior à pandemia, revelou que 53% dos eleitores da extrema esquerda e 61% dos eleitores da extrema direita acreditavam num conluio do governo com as farmacêuticas destinado a ocultar os malefícios das vacinas. A polarização política anda de mãos dadas com a resistência à imunização: nos EUA, entre os seguidores de Trump; no Brasil, entre os de Bolsonaro.
Deus me protege, a vacina traz a Marca da Besta —religiosos fundamentalistas, sejam eles cristãos, muçulmanos ou judeus, resistem à imunização. Numa sondagem conduzida nos EUA, 45% dos brancos evangélicos responderam que não tomarão vacina contra Covid, contra 30% da população em geral.
Meu corpo é um santuário intocável —naturalistas radicais também resistem, pois vacinas seriam substâncias artificiais e, portanto, tóxicas. Mas, diante da pandemia, a hesitação deriva, sobretudo, de atitudes políticas.
Campanhas de vacinação associam-se ao centralismo estatal, à ênfase na proteção coletiva e à ideia de um bem público oferecido igualitariamente. Na ponta oposta, a doutrina ultraliberal prega o individualismo, a fragmentação das instituições hospitalares e a adoção de soluções de mercado para a saúde pública. A aversão dos ultraliberais ao contrato social está na base da hesitação de setores da população diante da vacina.
Mas os ultraliberais não estão sós. O discurso conspiratório ritual da esquerda, contrário às multinacionais farmacêuticas, foi adotado pela direita nacionalista, que o coloriu como denúncia do “globalismo”. A vacinação faria parte de um plano maligno de instituições multilaterais (OMS), governos internacionalistas (Biden, Merkel, Xi Jinping) e corporações globais para submeter as nações.
Nas suas versões mais desvairadas, esse discurso assegura que as vacinas são vetores biológicos de controle das mentes. O Bolsonaro da “vachina do Doria” ilustra, em toda a sua estupidez, a campanha antivacinal da extrema direita.
Nos EUA, onde quase 50% tomaram a primeira dose, o ritmo da imunização reduziu-se fortemente, pois a campanha começa a enfrentar a barreira demográfica da resistência vacinal: 64% dos restantes não confirmam que tomarão a dose inicial. Na União Europeia, onde apenas 30% tomaram a primeira dose, o cenário é igualmente preocupante: dependendo do país, entre 61% e 39% dos restantes hesitam em tomá-la.Os governos europeus só contribuíram com a resistência ao questionar a eficácia e segurança das vacinas. A maior hesitação encontra-se na França, o que reflete a amarga polarização política nacional.Boa notícia: no Brasil, parcela pequena, e decrescente, da população resiste à imunização. Eis mais uma derrota de Bolsonaro —e um dos raros sinais positivos na nossa paisagem política.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Monica de Bolle: Biden brasileiro?
Nas últimas semanas tenho escrito sobre o que ocorre nos Estados Unidos sob a liderança de Joe Biden. Para quem vive aqui, vê e sente as mudanças, inclusive no cotidiano, a transformação é extraordinária. Em poucos meses, os Estados Unidos deixaram de ser o país com a pandemia mais descontrolada no mundo para estar entre aqueles que, em breve, deixarão para trás os piores temores em relação à saúde pública e à economia. Alguns estados já atingiram a marca de mais de 70% de vacinados com ao menos uma dose dos imunizantes em uso; outros logo alcançarão esse patamar. Em Washington D.C., há uma sensação palpável de alívio: escolas estão reabrindo, as restrições mais duras estão sendo gradualmente removidas, as pessoas sentem que podem voltar a viver. É claro que há hesitação vacinal, um dos motivos que explica a falácia de se pensar em imunidade de rebanho. Mas, apesar desse grupo, em poucos meses o país estará em condições de deixar para trás o pior da pandemia.
Além de ter conseguido entregar esse resultado no tempo prometido, o governo Biden também montou uma agenda notável de reconstrução da economia e do investimento no país. Como expliquei em artigos anteriores, a agenda Biden não rompe com o passado dos EUA, com a tradição do envolvimento do Estado no desenvolvimento de longo prazo do país. Ao contrário, os planos anunciados e parcialmente aprovados resgatam essa tradição, com a novidade de orientá-la para as pessoas, sobretudo as mais pobres e vulneráveis. Como também já escrevi por aqui, não tem sentido afirmar que, por isso, Biden se tornou um radical de esquerda. Na coluna publicada na edição passada apresentei uma reflexão sobre como Biden está reposicionando as disputas políticas em uma democracia madura e fazendo algo que poucos no Brasil conseguem compreender: removendo o protagonismo da economia como definidora do que é ou não democrático e entregando esse papel novamente à política. Enquanto Biden articula sua agenda reconhecendo os conflitos como centrais para o bom funcionamento de qualquer democracia, o partido Republicano se aproxima rapidamente de uma fratura possivelmente irreversível. A expulsão da deputada Liz Cheney — ferrenha opositora de Trump e filha do ex-presidente Dick Cheney — da posição de liderança e prestígio que teve no partido revela aquilo que já se sabia: Trump foi um golpe de misericórdia para os Republicanos.
Em 2022, haverá eleições legislativas. Com o Partido Republicano rachado e a agenda de Biden a pleno vapor, para não falar do sucesso no controle da pandemia e de todas as suas repercussões — notavelmente, a recuperação econômica —, o campo parece aberto aos democratas. Ainda que existam desavenças intrapartidárias sobre várias questões, elas em nada se comparam à crise existencial dos republicanos. E aí está a razão de ser de Biden ter se tornado o 46º presidente americano: as fraturas, o desarranjo, os desmandos de quatro anos de Trump. Mas Trump não é comparável a Bolsonaro, a não ser de forma extremamente superficial. O dano que causou ao Partido Republicano não tem equivalente no sistema político brasileiro. As origens das disputas entre republicanos de diferentes linhagens e democratas não tem paralelos no Brasil.
Não há um “Biden brasileiro”. Insistir nesse raciocínio, com a apresentação de nomes supostamente mais centristas à direita, à esquerda e mesmo ao que, no Brasil, entende-se por centro é uma perda de tempo tremenda.
Esse tempo deveria estar sendo empregado para buscar soluções imediatas, de médio e de longo prazo para um país destroçado.
De acordo com as pesquisas de opinião, Bolsonaro se mantém com cerca de 40% de aprovação. Nas disputas simuladas com outros candidatos presumidos, Bolsonaro mantém a liderança. A exceção? A exceção é aquilo que parte do Brasil se recusa a reconhecer: Lula. Lula, goste-se ou não, não é Bolsonaro. Podem ser polos opostos, porque Lula não é Bolsonaro, e por isso mesmo não se equivalem: insistir em sua equivalência é uma fantasia besta, outra perda de tempo. Por outro lado, se foi o antilulismo que pariu o bolsonarismo, não deixa de ser interessante que a única via que se apresenta como viável hoje seja o caminho contrário.
Antes que cause terror e espanto entre os leitores, explico: o que escrevi é mera constatação daquilo que vejo com o benefício da distância. Não é apoio ou rejeição. É tão somente uma tentativa de eliminar as fantasias que impedem que se veja com clareza em que o Brasil se transformou. Biden brasileiro? Balela.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Fonte:
Época
https://epoca.globo.com/monica-de-bolle/biden-brasileiro-1-25016297
Vera Magalhães: O Brasil involuiu 20 anos
O isolamento brasileiro diante da histórica decisão do governo dos Estados Unidos de apoiar a suspensão temporária de patentes de vacinas para Covid-19 é especialmente emblemático porque nos permite fazer um retrato de hoje e de exatos 20 anos atrás, quando vivemos uma epopeia oposta da diplomacia brasileira e cravamos uma das nossas principais vitórias em organismos multilaterais, justamente no tema de patentes para remédios.
Foi em novembro de 2001, ainda sob os escombros do 11 de Setembro, que a mesma OMC, palco da guinada de Joe Biden, aprovou, em sua 4ª Conferência Ministerial realizada em Doha, no Qatar, uma resolução proposta inicialmente pelo Brasil prevendo que, em casos de epidemias, os países-membros da organização poderiam flexibilizar as regras de patentes previstas no Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionadas ao Comércio e Saúde Pública (conhecido como Trips).
A resolução foi o marco final do que ficou conhecido como “guerra das patentes”, uma ofensiva do governo FHC em várias frentes (diplomática, econômica e de comunicação) para pressionar a indústria farmacêutica a baixar preços dos medicamentos que compunham o coquetel anti-Aids, fornecido gratuitamente pelo Ministério da Saúde, ameaçando com a quebra das patentes.
Corta para 2021, quando um desarvorado Itamaraty foi pego totalmente de surpresa pela mudança de posição dos Estados Unidos, que passaram a apoiar a proposta encabeçada pela Índia e pela África do Sul no fim de 2020, e apoiada por mais de 100 países, para a suspensão das patentes de vacinas contra a Covid-19 enquanto durar a pandemia.
Isso ajudaria a aumentar a produção de vacinas e a equalizar sua aplicação no mundo. Dados mostram que mais de 80% das doses aplicadas até hoje se concentram em países ricos.
O Brasil, que nem é rico nem está bem na fila da vacina, achou por bem fincar pé na posição anterior e ver a caravana global passar diante dos seus olhos, com grande possibilidade de até a União Europeia evoluir para acompanhar a posição americana.
Uma coisa era a discussão posta até o anúncio da posição dos Estados Unidos, em que o Congresso brasileiro discutia a quebra das patentes em território nacional: essa medida, isoladamente, teria pouco efeito prático, pois nossa capacidade de produção própria de vacinas, como temos visto, é pequena, ainda mais sem transferência de tecnologia. Além disso, havia setores fortes da diplomacia defendendo que isso poderia nos criar embaraço com os grandes fabricantes, atrasando ainda mais a chegada de imunizantes ao país.
Mas o cenário muda drasticamente com o apoio da Casa Branca à suspensão temporária das vacinas, ainda mais porque ele levará a uma pressão dos demais países também sobre os Estados Unidos e demais países ricos para a disponibilização imediata do excedente de vacinas que compraram, para a transferência de tecnologia a países pobres e para o fim de medidas protecionistas para a exportação de insumos destinados à produção desses imunizantes.
É desesperador que o Brasil opte por ficar falando sozinho diante de uma resolução com tamanho impacto histórico, geopolítico e econômico.
A desorientação demonstrada pela diplomacia brasileira nesse episódio é fruto e sinal do desmonte da política externa promovida pela nuvem de gafanhotos bolsonarista. É da mesma cepa dos sucessivos surtos que fazem o presidente insistir em brigar com a China neste momento grave em que dependemos dos chineses para a chegada de insumos para nossas poucas vacinas.
Vinte anos depois de brilharmos nos palcos internacionais com políticas de saúde pública e de diplomacia internacional arrojadas e inovadoras, estamos no cantinho da vergonha.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/o-brasil-involuiu-20-anos.html
Dorrit Harazim: Joe, Jair e Modi
Esta semana Joseph Robinette Biden Jr. trocou de roupa e de imagem oficial. Sai de cena “Uncle Joe”, a grife caseira do democrata conciliador, afável e algo distraído por ele cultivada ao longo de 4 décadas de vida pública. Esta semana Joe Biden se apresentou perante o Congresso com nova roupagem — a do arrojado visionário 46º presidente dos Estados Unidos — e detalhou como pretende reformatar já no presente a vida da nação sob seu comando. Também descreveu os planos, metas e projetos com que planeja moldar o futuro das gerações seguintes, sem esquivar-se de alocar cifras concretas a cada item do pacotão. Se aprovada na totalidade pelo Senado, o que é pouco provável, sua agenda de resgate da economia, força de trabalho e seguridade familiar custará astronômicos US$ 4,1 trilhões. Mas, mesmo que venha a ser fatiada, a visão de Biden sobre o papel do Estado ficou clara: o Estado deve funcionar como zelador da infraestrutura humana e do bem-estar social. Soou quase revolucionário e revela quanto o mundo está carente de bom senso.
A surpresa com esse Biden arrojado se justifica, uma vez que, durante a campanha eleitoral, ele se apresentara como mero homem de transição capaz de aquietar o país tarja preta que sobrevivera a Donald Trump. Uma vez sentado no Salão Oval, porém, o mandatário de 78 anos e alguns lapsos já fez saber que não exclui tentar a reeleição dentro de quatro anos. Sai de cena o gestor conciliador, como Biden foi retratado enquanto candidato, para dar lugar a quem pretende ser lembrado como líder mundial transformador. Para tanto, mantém algumas características pétreas — é disciplinado, metódico e prefere ficar abaixo do radar para não escorregar.
Na verdade, por mais que Biden queira envergar simultaneamente o manto do New Deal de Franklin D. Roosevelt, da Grande Sociedade de Lyndon Johnson, importar algumas ideias de Barack Obama e outras mais arretadas de Bernie Sanders, bastará que consiga liderar a urgente arrancada ambiental para fazer um governo de dimensão histórica. Sem isso, o restante de sua visão para uma sociedade menos desigual, de maior justiça racial, econômica e jurídica ficará embaçada. Sem isso, até mesmo a espetacular invertida que imprimiu ao combate e controle da Covid-19 nos EUA, por meio de uma vacinação maciça e ordenada, acabará parecendo natural à medida que a vida por lá retomar alguma normalidade. O vírus pode até ressuscitar em novas ondas, mas nada roubará de Biden a gratidão nacional pela tranquilidade vacinal que injetou no país.
Enquanto isso, Jair Bolsonaro e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, terão, para sempre, seus nomes e sobrenomes vinculados ao epíteto Covid-19. Ambos se condenaram à morte política e à desgraça histórica por abandonar suas gentes a morrer sem oxigênio. Abatidos feito moscas, aos montes, milhares, centenas de milhares, mal enterrados ou incinerados em piras humanas, pranteados no medo e em silêncio. Na capital indiana, as autoridades florestais tiveram de emitir uma autorização especial para o abate de árvores, pois a lenha dos crematórios acabara. A ativista política e escritora Arundhati Roy publicou no “Guardian” um testemunho pungente da desolação que tomou conta do país. “No lugar mais baixo da mercadagem pela vida”, escreveu Roy, “você suborna o atendente para poder jogar um derradeiro olhar sobre o embrulho que foi sua pessoa amada, agora estocado na morgue hospitalar”. Há quem venda terras ou propriedades, ou junte as últimas rúpias em busca de atendimento em hospital privado — sem garantia de internação, apenas como depósito.
No último Fórum Econômico Mundial, em janeiro, quando Europa e Estados Unidos mergulhavam na segunda mortandade da pandemia, o líder indiano não expressou nenhum sentimento, empatia ou compreensão com a aflição de seus pares. Ao contrário, arrostou soberba. “Amigos”, discursou na ocasião, “convém não comparar a Índia a qualquer outra nação… Abrigamos 18% da população mundial e salvamos a Humanidade de um imenso desastre, pois conseguimos conter o vírus”. Como se sabe, o país, hoje, mais se assemelha a um inferno de 1,4 bilhão de almas errantes, largadas à própria sorte.
No cômputo dos crimes cometidos por mandatários contra seus povos, será difícil elencar a quem ficará reservado o opróbio maior da era Covid-19 — se a Jair Bolsonaro ou Narendra Modi. Por serem filhos de culturas tão diversas, também suas respectivas formas de desprezo pelo bem comum, a índole autoritária, a ignorância, as medidas repressivas, o escárnio pelo outro, se manifestam de formas díspares. Porém ambos comungam da mesma incapacidade de compreender o que aprendemos a chamar de civilização, felicidade, progresso, humanidade.
Não defendem a vida, qualquer espécie de vida, de quem não lhes seja de imediata utilidade. A Covid-19 apenas serviu de oportunidade para isso ficar claro.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/joe-jair-e-modi.html
Edu Lyra: Por uma elite transformadora
Costumamos olhar para o favelado como alguém que tem muito a aprender. Em parte, isso é verdade. Os mais pobres precisam de escolas de qualidade, de capacitação profissional, de educação financeira, de mais acesso à cultura. Porém a favela também tem muito a ensinar, inclusive para o andar de cima.
Na última semana, encerramos os trabalhos da primeira turma do Hawks, curso de formação da Gerando Falcões sobre a agenda social do país. Pudemos discutir as várias faces do abismo social brasileiro e estudar exemplos mundiais bem-sucedidos de políticas sistêmicas para a redução da pobreza e o combate às desigualdades.
O Hawks é como um MBA em assuntos sociais. Acontece que esse MBA é voltado a jovens das principais famílias empresariais do Brasil. Além de filhos e filhas de quem tem capital e influência social, eles são empreendedores, executivos, arquitetos, criadores, que podem impactar a sociedade com seu conhecimento.
Como assim, Edu? Um curso da favela para gente endinheirada?
Isso mesmo. O Brasil não vai mudar enquanto não tivermos uma elite realmente participativa. Precisamos alcançar esses jovens que já têm poder econômico e trabalhar para que eles desenvolvam também poder social. Ou seja, capacidade e disposição para construir soluções, para mudar a realidade do país.
Elite é uma palavra que tem má fama. Faz as pessoas torcerem o nariz. Mas é preciso diferenciar o que é ser da elite e o que é ser simplesmente rico.
Para ser rico, basta ter muito dinheiro. Brinco com a ideia de que há pessoas tão pobres que tudo o que têm é dinheiro. O rico é alguém que vive apartado da realidade. Não dá as caras, não coloca a mão na massa e, consequentemente, não tem projeção social. Tanto é assim que o rico costuma ser inacessível. Se tentamos contato, conseguimos no máximo falar com algum de seus assessores, sempre de prontidão para negar nossos pedidos. O rico é uma pessoa blindada. Desconhece seu próprio país e não se interessa em melhorá-lo.
Elite é outra coisa. É quem utiliza seu capital em prol da transformação social. É quem influencia o debate público, propõe soluções, faz filantropia. A elite exerce plenamente a cidadania, pois utiliza sua posição privilegiada para combater desigualdades e preservar a democracia. Ela se envolve na vida do país e, em troca, a sociedade a escuta.
A elite não acumula aquilo que recebe. Ela processa, aprimora e redistribui. Isso vale para qualquer coisa: conhecimento, tecnologia, networking, capital político, doações, dinheiro. A elite entende que riqueza que não circula é riqueza morta, estéril, o que vai contra seus próprios interesses.
Precisamos urgentemente converter mais ricos em elite. Um curso de formação como o Hawks busca formar líderes ainda mais capacitados para intervir na realidade social. Gente disposta a sujar o sapato nas vielas da favela. Afinal, só quem conhece de perto um problema poderá um dia fazer parte da solução.
Precisamos, sim, da elite, e não de gente que sonha apenas em acumular dinheiro. A favela quer a parceria de quem busca construir um novo projeto de país, mais acolhedor e solidário.
Marcus André Melo: Por que o STF está na berlinda?
O momento em que mais precisamos da Corte, é quando ela enfrenta os maiores ataques
“Por que eu vou ser o único presidente da Argentina a não ter a sua própria Corte?”
Foi assim que Carlos Menem (1930-2021) justificou sua iniciativa de criar uma maioria na Suprema Corte argentina. O caso ilustra um paradoxo já identificado na literatura: um Judiciário independente é difícil de emergir nos contextos em que se faz mais necessário; e fácil de se consolidar onde ele não importa.
Nas democracias maduras, como a Inglaterra, a Suprema Corte não importa muito. Tanto que uma só foi criada no país em 2009. Há um equilíbrio institucional robusto que dispensa não só sua existência mas também a adoção de uma constituição escrita.
Em regimes autoritários, as cortes importam pouco porque neles elas são facilmente manipuláveis. O efeito é não linear: elas importam muito nos casos intermediários. É nos casos de mudança de regime ou alternância de poder entre forças políticas díspares que o Judiciário adquire centralidade política. Nas democracias estabelecidas isso só ocorre em situações muito raras (EUA sob Trump). Estou tratando aqui de centralidade política; não protagonismo em questões morais e comportamentais.
No caso do STF, sua centralidade política alcançou contornos sem paralelo em democracias. Seu hiperprotagonismo é magnificado por três fatores: seu papel como corte criminal em contexto em que ocorreu um dos maiores casos de corrupção já registrados e que atinge uma massa inédita de agentes políticos, inclusive três presidentes da República; a contenção que exerce em relação a um Executivo autoritário e populista, cujo discurso é abertamente antidemocrático; e pela elevada heterogeneidade política —que é produto da alternância— e modus operandi individualizado.
Este último se expressa no ativismo processual e produz intensa cacofonia. O individualismo é insidioso: os casos controversos em que a corte atuou de ofício, sem ser provocado (caso da Revista Crusoé), o leitmotif que deflagrou o processo foi o envolvimento de um membro do próprio Supremo nas denúncias.
E o que é muito mais grave: motivações individuais ligadas à Receita Federal e a Lava Jato parecem explicar a alteração de voto e a reviravolta ocorrida no julgamento de Lula.
Inicialmente restrito à esquerda, a ofensiva à Corte concentra-se recentemente no bolsonarismo. Como mostrou Gretchen Helmke, em análise de 472 casos na América Latina, há expressiva correlação negativa entre ataques às Supremas Cortes (impedimento de juízes, CPIs, intervenções etc) e a avaliação que desfrutam junto à opinião pública.
O momento em que mais precisamos da Corte, é quando ela enfrenta os maiores ataques. E seu maior desafio.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)
José Eduardo Faria: A “sinalização do povo”
“Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, povo brasileiro”, disse o presidente da República na cidade de Itapira, em agosto de 2019. “Eu sou a Constituição”, afirmou em abril de 2020, em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília. “A temperatura está subindo. O Brasil está no limite. O pessoal [sic] fala que eu devo tomar providência. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí”, afiançou ele, na segunda quinzena de abril de 2021, também em Brasília.
Não é a linha de continuidade entre essas três afirmações, pronunciadas no período de um ano e oito meses, que chama atenção. É, isto sim, o enviesamento político e antidemocrático subjacente a elas. Afinal, respeitar as instituições não é concessão, como reitera Bolsonaro. É, também, uma obrigação prevista pela Constituição que ele solenemente jurou respeitar ao assumir o cargo. Além disso, a lealdade de que fala não tem de ser devida apenas ao “pessoal” (ou seja, a turma dos cercadinhos) ou ao “povo” (um conceito amorfo), mas à democracia, a suas instituições e suas regras. Como se não bastasse, ao personificar a Constituição, incorporando a normatividade desta em si próprio, como se suas opiniões a respeito do texto constitucional tivessem força de lei, o presidente erode a força normativa da Carta Magna, na qual se baseia o regime democrático. Por fim, quando diz que está esperando uma sinalização do “pessoal”, Bolsonaro se esquece de que, na democracia representativa, tal sinalização é dada formalmente em eleições livres e periódicas disputadas por candidatos devidamente registrados e homologados pela Justiça eleitoral.
As três falas, portanto, não têm fundamento jurídico nem legitimidade política, uma vez que entreabrem um desprezo às instituições e afronta ao império da lei, confundindo o que são simples palavras de ordem de apoiadores com o interesse geral da sociedade. Perigosa do ponto de vista da ordem constitucional, essa é estratégia de Bolsonaro para corroê-la, submetendo-a a sucessivos testes de estresse. Quando afronta o Poder Judiciário e exige que ministros do Supremo Tribunal Federal sejam objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no âmbito do Legislativo, ele sabe o que faz. Quer, deliberadamente, gerar tensões institucionais para aproveitar a insegurança e uma eventual desordem com o objetivo de se apresentar como o único homem capaz de restabelecer a ordem — e de modo voluntarista, sem estar sujeito a qualquer lei e à própria Carta Magna.
Não há coerência, mas somente um torpe maquiavelismo de almanaque e uma vocação despótica — numa única palavra, embuste. Quando assina decretos para tratar de matérias que só podem ser disciplinadas por projetos de lei ou quando edita medidas provisórias que não atendem aos requisitos de relevância e urgência, Bolsonaro também segue um script conhecido. Ao ultrapassar deliberadamente os limites do processo legislativo estabelecidos pela Constituição, o presidente sabe que esses decretos e MPs serão derrubados pelo Supremo Tribunal Federal. É justamente o que deseja — um pretexto para alegar que a corte não o deixa governar e que somente conseguirá gerir o país sem ela, situando-se assim acima das leis. Como consequência, o “pessoal” é estimulado então a bater bumbo na Praça dos Três Poderes ou na frente do Quartel General do Exército, pedindo um ato institucional que suprima direitos e garantias fundamentais, como ocorreu em 1968.
Todas as vezes em que fala que a Constituição lhe confere o título de “comandante em chefe” e lhe atribui a prerrogativa de decretar estado de sítio ou estado de defesa, Bolsonaro a interpreta conforme suas conveniências mais imediatas. No caso do estado de defesa e do estado de sitio, por exemplo, ele releva que ambos somente podem ser decretados com aval do Congresso. Quando o Supremo Tribunal Federal aplica uma norma constitucional detendo suas iniciativas autocráticas, ele não apenas o afronta, mais vai além, desdenhando da tripartição dos Poderes.
Também aplaude os áulicos de seu entorno que afirmam que o Poder Judiciário deve “compreender o tamanho de sua cadeira”. Esquecem-se, contudo, de duas regras constitucionais básicas. Em primeiro lugar, os tribunais só podem agir quando provocados. E, em segundo lugar, não podem deixar qualquer provocação sem resposta. No mesmo sentido, o presidente não entende que as razões de decidir de uma corte suprema não se confundem com as razões de decidir de uma casa legislativa ou de um governo. Com isso, despreza o fato de que julgamentos são realizados com base em normas jurídicas constitucionais ou infraconstitucionais, e não em fatores conjunturais, resultados acordados e alianças que se fazem e desfazem ao sabor de concessões, vantagens pessoais ou mesmo de intimidações. Todavia, quando a mesma corte aplica uma norma constitucional dando ganho de causa a ele, a narrativa de que a Justiça está tomando decisões que seriam próprias de outros Poderes e de que os juízes deveriam “entender suas responsabilidades” é convenientemente engavetada.
Em seus discursos, como o de Itapira, em agosto de 2019, e os de Brasília, em 2020 e 2021, o presidente ignorou a divisão de direitos e de competências assegurada pela Constituição. Trata-se de um mecanismo que, se por um lado libera os conflitos com todas suas contradições e dilemas, por outro viabiliza um entendimento que lima arestas e abre caminho para a construção de soluções politicamente negociadas no âmbito do Executivo ou do Legislativo.
Bolsonaro e seu entorno não entendem que a democracia é método e procedimento de negociação, gestão de conflitos e de neutralização de tensões institucionais. Igualmente, não compreendem que, ao demarcar direitos e deveres, a ordem constitucional baliza um exercício consequente e equilibrado da palavra e da ação no espaço público. Decorrem daí as bobagens que falam. Ao refutarem o entendimento do Supremo de que a regra de maioria fundamenta o regime democrático ao mesmo tempo em que garante o direito das minorias, o presidente e seu entorno enfatizam a necessidade de respeitar o “projeto de Nação” endossado pelos eleitores em 2018 — projeto esse que afronta abertamente as minorias e recorre à Lei de Segurança Nacional da ditadura militar para processar críticos e intimidar opositores.
Na realidade, ao alegar que só é “leal ao povo”, ainda que respeite as instituições, Bolsonaro está defendendo uma retração na capacidade configuradora da democracia. Falta-lhe formação histórica para atinar que as transformações estruturais da sociedade podem ser feitas de modo mais eficiente por meio de diálogos e compromissos do que pela força bruta. Desse modo, ele acaba desprezando o fato de que, no regime democrático, soberania não se expressa por meio de plebiscitos ou consultas populares, mas pressupõe uma contínua construção coletiva com base no diálogo.
Na dinâmica do jogo político, o presidente continua confundindo adversários com inimigos. Adversários contrapõem-se politicamente, mas respeitam o princípio da alteridade. Ou seja, sabem não apenas se colocar no lugar dos outros, mas, também, entendem que existem situações-limite — aquelas para além das quais as regras do jogo implodiriam com prejuízo para todos. Na visão bolsonarista, há uma simples caricatura do que dizia um dos juristas do regime nazista, o constitucionalista Carl Schmitt (1888-1985): quem não é amigo é inimigo; por isso, se o amigo não destruir o inimigo, corre o risco de ser destruído por ele. Nesse caso, não há jogo político, só há violência física, que leva a atentados e assassinatos. Ou, então, a violência simbólica, por meio do discurso do ódio, da difamação, da mentira como estratégia de destruição de reputações implementada com base nas redes sociais.
Em 2019, ano em que fez o discurso de Itapira, dizendo que respeita a democracia, mas só obedece ao povo, o saldo foi de desesperança e medo. Em 2021, embora ainda estejamos em pouco mais da metade do primeiro semestre, tudo indica que, após a fala de Bolsonaro no sentido de que “aguarda uma sinalização do povo para tomar uma providência”, esse saldo pode ser ainda mais trágico.
*José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
El País: Heróis negros esquecidos pela História do Brasil
Enciclopédia reúne biografias de 550 intelectuais, ativistas, líderes religiosos, músicos, esportistas, políticos, cientistas, amas de leite... que foram escravos ou descendentes
Naiara Galarrafa Gortázar, El País
A cor da pele é provavelmente a única coisa que a vereadora de esquerda Marielle Franco, assassinada há três anos no Rio de Janeiro, e Chico Rei, um membro da família real do Congo que foi sequestrado com a família e alguns súditos para serem escravizados nas minas de ouro brasileiras no século XVIII, têm em comum. Graças à sua perícia no ofício, conseguiu comprar sua liberdade, a de outros e voltar a ser reconhecido como alguém importante. Ambos estão entre os 550 protagonistas da Enciclopédia Negra (Companhia das Letras), recentemente publicada no Brasil, que resgata histórias de mulheres e homens negros e mestiços esquecidos no relato sobre a construção nacional.
Mais da metade dos 210 milhões de brasileiros é composta atualmente por negros ou mestiços. Graças às cotas, no ano passado superaram os brancos nas universidades. Sempre viveram pior do que seus compatriotas brancos, apesar de a igualdade estar consagrada na lei e ao fato de que não houve segregação legal em tempos recentes como nos Estados Unidos. E agora o coronavírus vitima especialmente os afro-brasileiros. Sem o trabalho forçado de seus antepassados, as imensas riquezas geradas pelo açúcar, o ouro e o café nunca teriam existido.PUBLICIDADE
A historiadora Lilia Schwarcz, uma das coautoras, explica por telefone: “Queremos dar alma e rosto a esses heróis cotidianos que foram silenciados e apagados pela história”. A obra “é parte do ativismo negro para recontar de maneira mais plural a chamada história universal, que é muito colonial, muito branca e muito masculina”, acrescenta Schwarcz, considerada uma referência no Brasil.
A enciclopédia começa com Abdias do Nascimento (1914-2011) e termina com Zumbi (1655-1695) em um percurso que vai do século XVI ao XXI. Ou seja, de um intelectual, artista e deputado que criou o Teatro Experimental do Negro e deu aulas nas Universidades de Yale e Ifé (Nigéria) até um ex-escravizado do Brasil colonial que liderou uma república de libertos que foi convertido séculos depois no grande símbolo da resistência negra aos portugueses e holandeses. Todo dia 20 de novembro, data da execução de Zumbi, o Brasil comemora o Dia da Consciência Negra.
Junto com personalidades conhecidas que entraram nos livros escolares nos últimos anos, os autores incluíram um rico mosaico de pessoas desconhecidas representando os milhões de pessoas escravizadas e seus descendentes. A ideia dos autores é contar “a potência de tudo o que fizeram, que foi muito mais do que sobreviver”. Alertam que em alguns casos os fatos se confundem com a lenda.
Os protagonistas, apresentados em ordem alfabética, são intelectuais, ativistas, líderes religiosos, músicos, esportistas, políticos, cientistas, amas de leite... As conquistas, façanhas e vitórias descritas compõem uma avassaladora diversidade de trajetórias e origens, coisa pouco frequente neste país continental muitas vezes ensimesmando no eixo São Paulo-Rio de Janeiro.
Afra Joaquina Vieira Muniz, que está na capa do grosso volume, ilustra como era complexa a rede da escravidão no último dos países das Américas a aboli-la, em 1888. Nascida em Salvador, era uma pessoa escravizada cuja liberdade lhe foi dada por um antigo senhor ao casar-se com ela. Quando este morreu, por volta de 1870, legou-lhe todos os bens e duas mulheres que ficavam livres com a condição de cuidar da viúva até sua morte. As duas denunciaram Afra Joaquina à Justiça por maus-tratos, mas perderam a ação e tiveram de ficar com ela.
Pretextato dos Passos abriu em 1885 a primeira escola para crianças negras, que não eram aceitas nas escolas de brancos; Benjamim de Oliveira foi o primeiro palhaço negro; a professora Antonieta Barros, deputada pioneira em 1935 na muito branca Santa Catarina. Luiz Gama, que o próprio pai vendeu como pessoa escravizada, foi revendido, conseguiu fugir para se tornar funcionário público e depois advogado. Obteve nos tribunais a liberdade de outras pessoas antes de morrer em 1882 aos 52 anos.
Claudia Silva Ferreira, uma faxineira que tinha quatro filhos, se tornou uma das milhares de vítimas de balas perdidas em tiroteios durante operações policiais em 2014. Ferida, foi colocada por alguns policiais no porta-malas do carro patrulha dizendo que a levariam ao hospital. Mas a tampa se abriu e ela caiu. Foi arrastada por 400 metros até que os policiais perceberam. Morreu antes de chegar ao hospital e estava prestes a se tornar mais um número de uma volumosa estatística. Mas, como aconteceu agora com George Floyd, alguém filmou a cena macabra e essa morte adquiriu importância social.
Alguns dos resenhados são personalidades destacadas que durante décadas foram brancas aos olhos de seus compatriotas. O caso mais marcante é o de Joaquim Machado de Assis (1839-1908), o grande romancista, fundador e presidente da Academia Brasileira de Letras, que em sua imagem mais conhecida foi imortalizado como um branco. Enorme foi a surpresa de muitos quando descobriram a verdade graças à campanha de uma universidade.
A historiadora destaca que queriam publicar a Enciclopédia Negra exatamente agora porque 2022 é um ano importante. O Congresso tem previsto avaliar as cotas universitárias, que nos últimos anos engendraram uma geração de graduados negros e pobres, o que representa uma profunda mudança nesta sociedade racista e classista. Também se comemora o bicentenário da independência do Brasil. E o centenário da Semana de Arte Moderna, que deu personalidade própria à arte moderna brasileira, mas excluiu o escritor Afonso Lima Barreto pela cor da pele.
As biografias são resultado da pesquisa de Schwarcz e de seus coautores —o historiador Flávio dos Santos Gomes e o artista plástico Jaime Lauriano— e, sobretudo, de centenas de teses de doutorado inéditas. O livro foi publicado por uma das principais editoras do Brasil, a Companhia das Letras, cofundada pela historiadora.
As mulheres são maioria e todas as 550 têm nome, mas em alguns casos foi impossível saber seus sobrenomes. E como não havia imagem alguma de muitos, encarregaram a 36 “artistas, negras, negros e negres”, nas palavras dos autores, que lhes dessem um rosto. Esses retratos de protagonistas que abrangem profissões, origens, gêneros e orientações sexuais diversas serão apresentados em uma exposição na Pinacoteca de São Paulo assim que a pandemia permitir.
Ludmilla: 'A fama e o poder não me livraram de sofrer com o racismo'
Cantora diz que decisão da Justiça em favor de Val Marchiori, que comparou seu cabelo a Bombril, dá força a racistas
Isabella Menon e Lucas Brêda, Folha de S. Paulo
No show que fez no início deste mês no Big Brother Brasil, Ludmilla disse uma frase simples, mas com mais significados do que aparenta em um primeiro momento: “Respeitem o nosso cabelo”.
Ela falava do processo de injúria racial que, em março, perdeu para Val Marchiori —em 2016, a socialite comparou o cabelo da cantora à palha de aço Bombril. Mas o posicionamento no reality show também serviu como apoio ao participante do programa João Luiz, que ouviu algo semelhante sobre seu black power.
Frequentadora das listas de músicas mais tocadas do streaming, Ludmilla aproveita o sucesso para se posicionar.
“Verdinha”, ode não explícita à maconha, foi cantada por 1 milhão de pessoas no Carnaval de 2020 e rendeu denúncias por apologia de crime. “Numanice”, seu disco de pagode, só foi lançado porque ela diz que, agora, tem total controle sobre sua carreira. Seu show de pagode já custa mais que o de funk —sendo que ele ainda nem pôde ser apresentado por causa da pandemia.
Comportamento que impacta também na política. Em 2018, ela foi criticada por não se posicionar nas eleições —mas ela promete declarar voto no próximo pleito.
Em que ponto você está em relação ao comando da sua carreira?
Antigamente, queria focar na música. Só que a gente vai crescendo e vê que tem muito mais coisa que depende da gente. Só lancei meu pagode [“Numanice”] porque a última palavra é a minha. “Rainha da Favela” também.
Cantores têm sido presos por fazerem shows ilegais, como o Belo. Como tem visto essa questão?
A gente quer que tudo isso passe logo, mas nem todo mundo consegue ficar em casa. As pessoas precisam pagar as contas também.
Mas gostam muito de marginalizar o pagode e o funk. Prenderam o Belo e queriam prender outros funkeiros. Mas ninguém foi atrás de quem montou o evento ou dos patrocinadores. A gente sofre isso desde sempre.
Muitos profissionais da área de entretenimento alegam que precisariam de um auxílio do governo. A gente ainda tem como se manter, mas e nossa equipe? Os roadies, produtores, músicos, as famílias deles. Precisamos de aglomeração para trabalhar. E não dá para aglomerar de jeito nenhum. E tem a demora da vacina. Está na casa dos 60 [anos] ainda. Eu tenho 25. É desesperador.
Aparecem propostas para fazer shows hoje?
Apareceram alguns convites para coisas menores. Só que não dá, né?
Disse que funkeiros ou pagodeiros são os alvos preferenciais. Isso remete a uma discussão sobre a criminalização do funk. O DJ Rennan da Penha e o MC Poze do Rodo foram recentemente presos por associação para o tráfico, por tocarem em áreas comandadas pelo tráfico. Como viu esses casos?
Acho extremamente preconceituoso. O preconceito ativamente trabalhando e ganhando.
O Rennan da Penha foi indiciado porque estava tocando em um lugar dominado pelo tráfico, só que é um lugar carente. Você pega um DJ de rave, de eletrônico, que toca num evento fechado e tem droga até o talo. Ninguém é preso, porque os playboys dão o dinheiro a quem tem que dar.
Agora, com os menos favorecidos, eles chegam já batendo. Não temos culpa do que fazem no evento. Estamos fazendo o nosso, trabalhando, levando o som. Acho muito errado jogar a culpa no artista.
Já teve algum problema desse tipo com a polícia?
Fiz uma música chamada “Verdinha” e veio o Palácio do Planalto todo atrás de mim, dizendo que eu estava fazendo apologia do crime. Tem tanto artista de MPB ou pop que fala diretamente sobre isso.
Tem coisas que eles têm realmente que se preocupar, mas não se preocupam. Não vi nenhum deputado se coçar porque a vacina está atrasada e os hospitais estão lotados.
Você processou o deputado Cabo Junio Amaral (PSL - MG) após ele associar sua imagem ao tráfico por causa de ‘Verdinha’. O STF julgou que não houve calúnia nem difamação.
Não posso falar muito, mas olha a ironia. Ele me acusa de traficante, de associação ao tráfico, me faz perder contratos por conta dessa mentira. Entro contra ele, mostro provas do que esse deputado causou na minha vida, mas eles [STF] recusam.
Qual sua opinião em relação à legalização da maconha?
É um assunto que tem que ser discutido. Discutir é analisar os prós e os contras, mas acho que tem muito mais benefícios do que coisas ruins. Vários países de primeiro mundo já legalizaram. Já vi muitos amigos serem parados em blitz com dois beques e a polícia já querer levar preso —ou, então, você tem que dar o dinheiro. E, na maioria das vezes, os pretos é que são presos.
No desfile pela Salgueiro no Carnaval de 2016, a socialite Val Marchiori disse que seu cabelo parecia Bombril. Ela foi condenada pela Justiça a pagar R$ 30 mil, mas entrou com um recurso e, em março, o juiz a absolveu e considerou o comentário como liberdade de expressão. Como foi receber essa decisão?
Foi muito triste, ainda mais vindo de uma pessoa que deveria estar ali protegendo os brasileiros, preservando e conservando uma luta que vem de anos. E, talvez, fazendo uma reparação que é histórica, porque o racismo estrutural é histórico.
Pessoas perderam empregos e oportunidades porque outras acharam que o nosso cabelo, por ser crespo, é parecido com uma coisa suja, fedida, ruim. Isso não é uma brincadeira, não é liberdade de expressão. Acontecer isso comigo só deixa mais claro que o racismo existe. Porque a fama e o poder não me livraram do racismo. Imagina o que acontece com pessoas que não têm a visibilidade que eu tenho. A decisão do juiz causa dor, raiva e cansaço.
Logo depois, teve o caso do Big Brother, em que você fez um show e disse ‘respeita o nosso cabelo’. Acharam que isso foi uma interferência no reality. Não tenho nenhum pingo de consciência pesada. Claro que só o João Luiz e a Camilla de Lucas se sentiriam representados, porque eles passaram por isso. Do resto, ninguém entendeu nada.
Estava falando da Val Marchiori. O racista não quer entender a dor do outro. Ele tenta reverter para ele, em vez de parar e escutar a nossa dor.
Eu me tornei isso aqui por conta dessas pessoas. Eu era a MC Beyoncé lá trás. Tem alguma propaganda com a MC Beyoncé? Não tem! Porque eu não era padrão. Não era aceita. Nenhuma marca queria ser representada pela MC Beyoncé. Por isso, tive que me mutilar, afinar meu nariz, porque queria ser aceita.
O funk, o pagode, a essência já estavam aqui, mas a capa não agradava. Quero que as pessoas não tenham que alisar o cabelo para agradar ninguém. Essa é a luta.
Em ‘Rainha da Favela’, várias mulheres foram reunidas, como Tati Quebra Barraco, Valesca Popozuda, MC Carol, negras que criaram uma tradição de falar abertamente sobre sexo na música, no funk. Qual influência que elas tiveram na sua carreira?
Cresci ouvindo essas mulheres. Achava o máximo elas falarem “eu quero sexo, quero fazer isso, gosto disso, boto ali, boto aqui”. Então, elas foram minhas inspirações. Quis homenagear mesmo as mulheres empoderadas, da comunidade, da favela. Homenagear as que não são também, mas que reconheceram o seu lugar no mundo.
Em 2018, foram várias as cobranças para se posicionar politicamente, mas você não falou sobre seu voto. Hoje faria diferente? O que acha deste governo?
Só gosto de falar de assuntos que eu sei. Queriam que eu me posicionasse, mas eu não estava pronta.
Foi ruim e foi bom termos esse governo, porque ele abriu os olhos de muita gente. Vivemos numa democracia, a galera tem que fazer o que tem vontade. Só que chegou num ponto em que é muito importante conversar sobre o assunto. Olha o que aconteceu.
Somos um dos últimos países a receber a vacina. Estamos parados. Então serviu para eu me interessar sobre o assunto. Não quero mais estar nessa de “não sei”. A gente não pode mais ficar nisso. Tem que ir para cima. O governo atual é péssimo. Estamos numa situação muito precária.
Espero conseguir sobreviver a isso e que sirva de lição, para a gente não dar mais nosso voto de bobeira, porque ele é o nosso futuro. Agora, eu estou aqui inteirada para, nas próximas eleições, falar sobre isso nas minhas redes sociais.
Ludmilla, 25
Cantora de funk, pop e pagode. Segunda mulher mais ouvida do Spotify no Brasil, foi a primeira negra a ganhar o Prêmio Multishow de melhor cantora, em 2019. Foi jurada do programa The Voice + e teve o bloco que reuniu mais público do Carnaval de 2020, com 1 milhão de pessoas
Paulo Fábio Dantas Neto: Pautas das oposições - A busca de um “novo normal” também na politica
Como me propus a fazer, ao final da coluna da semana passada, tratarei, hoje, do que chamei de um nó político que precisa ser desatado para que as diferentes oposições constituídas convertam o amplo consenso cívico atual de rejeição ao governo Bolsonaro numa convergência de natureza política, conversível em aliança eleitoral, em 2022.
Parto do entendimento de que, por enquanto, não há roteiro positivo seguro (no sentido de um elenco de proposições concretas sobre um imediato amanhã), em nenhum dos dois campos que se apresentam, hoje, como adversários do bolsonarismo, a saber, a esquerda e a nebulosa política que se faz chamar de centro e que inclui grande parte da centro direita e parte da centro-esquerda. Aviso que essa terminologia de geografia ideológica não deve ser tomada ao pé da letra. Usada aqui sem rigor e sem poder explicativo de nada, é mais um recurso para não alongar o texto. O que importa é constatar a relativa ausência (ou incipiência) de alternativa positiva clara à barbaridade que aí está. O não cada vez mais urgente e uníssono ainda não está acompanhado de algum sim que a sociedade entenda. É na permanência dessa situação politicamente tosca que populismos diversos apostam.
Pauta da oposição liberal-democrática
O déficit de discurso e ação do chamado centro (agora “polo”) liberal-democrático está no terreno da oposição plebiscitária a Bolsonaro. Ação e discurso nesse terreno até aqui são precários, porque uma parte desse centro, por mais que proclame o contrário, está presa a 2018, por um antipetismo que a impede de se jogar por inteiro na oposição, sem temor de se ver comprometida, em eventual segundo turno, a cooperar com o PT. O enraizamento extremo do tema da corrupção em parte do eleitorado que centristas querem conquistar é uma constante trava que os inibe tanto para o diálogo com a esquerda eleitoralmente mais relevante (diálogo necessário, dada a regra de pleito em dois turnos) quanto para uma relação mais fluente com o campo do pragmatismo de varejo, que atende pela alcunha de Centrão. Essa segunda relação é também crucial por outro motivo: procurar dividir o campo governista e, eventualmente, barrar o seu acesso ao segundo turno.
O que torna crível um centro político, convertendo-o em alternativa de poder, não é a propensão a se distinguir retoricamente da direita e da esquerda, mas a capacidade de se entender, simultaneamente, com ambas, criando marcos governativos na democracia. Trata-se de exigência de política prática. Se ignorada, desaparece a razão de ser do centro.
Por outro lado, se nem o Centrão nem Lula representa políticos autodeclarados de centro liberal-democrático, centristas precisam, como é óbvio, fazer, de sua unidade prática, atitude estratégica. Essa é a primeira de três condições (outras são um programa e uma candidatura que o encarne e aglutine) para terem voz e fala próprias, como oposição, na arena da disputa presidencial. Oposição que não precisa se dizer de esquerda, centro ou direita. Precisa ser democrática no programa, nos valores e na atitude política positiva.
A disposição declarada em manifesto recentemente assinado por seis possíveis candidatos que se situam nesse campo é um inegável avanço nessa direção. Está longe, contudo, de expressar uma agregação satisfatória daquelas três condições. Sem elas, resta a pregação apostolar contra presumíveis “extremos”. Esse é um mantra incompatível com o discurso de ampla frente democrática contra um extremismo concreto, como é o que Bolsonaro e seu governo expressam. Em suma, ainda é precária a identidade oposicionista do centro. Inútil querer que o Congresso preencha a lacuna, através de políticos republicanos e lúcidos, mas institucionalmente condicionados, como o Presidente do Senado. Seu papel é outro (conter, não enfrentar o presidente), tão relevante para a preservação da República, quanto o de todas as oposições democráticas de disputarem o eleitorado com Bolsonaro.
Pauta da oposição de esquerda
No campo da esquerda a pauta não é menos desafiante. A reabilitação de Lula para uma eventual candidatura mexeu com todo o cenário político, mas de modo especial com o campo em que ele é identificado e ao qual ele vinha se restringindo cada vez mais, desde que seus problemas com a Justiça o confinaram à prisão e depois a um relativo ostracismo. Acuado, adotara atitude defensiva e reativa, que era compreensível, do ponto de vista pessoal, mas também imobilizadora do seu partido, num contexto em que o mesmo necessitava tomar iniciativas positivas de diálogo com a sociedade e as demais forças políticas, para sair do isolamento crescente em que vivia desde o impeachment de 2016.
Embora o comando político de Lula sobre o PT jamais tenha sido desafiado de modo relevante, era visível a situação de desconforto de quadros partidários mais afeitos a uma política de frente, seja por atitude política pessoal, seja por posição institucional que ocupam, como nos casos dos governadores do Piauí, Ceará e Bahia. Desconforto que aumentava quando os aliados na esquerda com os quais o PT contou na maioria de suas empreitadas eleitorais começaram, não apenas a abrir alternativas de centro-esquerda ao viés hegemônico do petismo – processo que transcorria desde 2010, com a candidatura de Marina Silva, com as de Eduardo Campos/Marina em 2014 e Ciro Gomes em 2018 –, como a se entender, agora, para oferecerem contraponto eleitoral ao PT no campo da esquerda, atraindo para isso até o PCdoB, o mais próximo dos aliados e assíduo apoiador de Lula.
Outro relevante fator de alteração no status quo da esquerda brasileira foi a inserção de novo tipo na cena política, obtida por Guilherme Boulos, em sua recente candidatura à prefeitura de São Paulo. Chamou a atenção o contraste entre a postura relativamente moderada que adotou dessa vez e a atitude disruptiva que, para além de seu ativismo de movimento social (mas de modo sintonizado com ele), marcara suas primeiras aparições na cena política, inclusive no contexto da resistência ao processo de impeachment e à prisão de Lula. Essa atitude inicial, típica de “esquerda negativa” orientada ao confronto, rendeu-lhe, naquelas circunstâncias, palavras de estímulo e recomendação pública, da parte do líder petista. Talvez a hábil e experimentada raposa política enxergasse no jovem leão que rugia forte um aliado útil para elevar a temperatura do ambiente político e o moral da militância, num momento adverso. Mas se Lula contava manobrar com Boulos e, depois de o ter atiçado, retirar-lhe a escada com algum movimento moderado posterior (como toda a vida fez com militantes mais radicais do PT), certamente teve uma surpresa. O suposto manobrado revelou-se, na campanha paulistana, um perito manobrista, capaz de numa só campanha emular três Lulas pretéritos – o semeador de sonhos de 89, o adversário implacável do PSDB de 94 e 98 e o conciliador de 2002 – com o cuidado de se afastar do Lula ex-governante petista, que virou alvo de acusações de corrupção. Mas ainda assim avançou com apetite sobre a parte sobrevivente do espólio eleitoral também daquele que parecia ser o último Lula e que – sabemos agora – era o penúltimo.
O fator Boulos tem pouco ou quase nada a ver com um hipotético deslocamento do PT da posição de partido mais relevante da esquerda. O PSOL não tem a menor condição de ser o ator beneficiário desse suposto deslocamento que as urnas de 2020 se encarregaram de desmentir. Delas o PT saiu figurando entre os relativamente vencidos, mas exibindo a resiliência própria de uma instituição partidária genuinamente enraizada na experiência democrática que a sociedade brasileira vive nas últimas quatro décadas. Experiência rica em paradoxos, dos quais o mais notável é ter se aprofundado um processo de inclusão de novos grupos sociais na vida política (e aí o PT foi ator proeminente de democratização) ao mesmo tempo em que se dá, a partir da segunda metade da penúltima dessas décadas, uma séria avaria de um longevo hardware republicano. Democratizado sob os auspícios da Carta de 1988, o hardware serviu de incubadora daquela democratização contínua. Na inflexão institucionalmente regressiva, o PT foi ator proeminente também, inserindo, num hardware virtuoso, um software espaçoso, que se fez pesado, pelo baixo teor de república.
Boulos demonstra estar atento a isso e aí está a potencialidade de sua liderança pessoal para uma eventual reanimação da esquerda, projetada para além do curto prazo. De um lado, a visita ao centro, por uma aliança entre o PDT, o PSB e o PCdoB; de outro, um difícil processo de aproximação e entendimento entre um Boulos que emerge e áreas do PT dispostas a não deixar o partido se afogar no abraço de uma personalidade política que a cada instante parecia submergir mais fundo nas águas turvas de um populismo ressentido. Quando Lula reassumiu, como uma fênix - feliz, apaziguado e investido de uma relativa moderação e malícia que lembram seus melhores momentos - o lugar de protagonista, era essa a pauta interna de uma esquerda que, desde 2019, se mantinha como coadjuvante quase ausente de embates públicos decisivos de Bolsonaro com instituições republicanas, Se antes já se mostrava improvável e não muito racional (se falarmos de uma razão que dialoga com a realidade) convencer o maior partido da esquerda a abrir mão de apresentar um candidato, depois da fênix e de reflexos do retorno de Lula à cena, em sondagens da recepção que ele teve no eleitorado, isso se torna virtualmente impossível.
O retorno de Lula coloca a oposição de esquerda em clara vantagem sobre a oposição de centro no que se refere ao quesito candidatura que encarne o campo na arena plebiscitária de enfrentamento a Bolsonaro. E também sinaliza um processo mais simples que o do centro em relação ao quesito construção de uma disposição à unidade. Isso porque, enquanto o centro precisa cumprir um diálogo horizontal entre suas partes, na esquerda os movimentos tendem agora a ser animados pela força gravitacional da sensação difusa de que Lula pode não só salvá-la, eleitoralmente, como salvar o país de Bolsonaro.
A pauta da esquerda anterior à fênix não desapareceu. Ela foi suspensa pela contingência. Adiadas as decisões de médio e longo prazos, os problemas que as requeriam tendem a se avolumar, ainda que a força de gravidade mantenha o campo razoavelmente unido em 2022. É curioso, chega mesmo a parecer armadilha astuciosa da nossa história política, o partido que sempre virou as costas às urgências das frentes políticas em prol da sua construção particular adiar decisões cruciais para seu destino, pela necessidade de Lula cumprir um papel nacional. Só nesse papel Lula pode ser pensado hoje como protagonista. Num cenário sem Bolsonaro, ele passa a ser mais uma entre diversas opções e lhe será cobrada reflexão pública sobre o desfecho da experiência governamental petista. Mesmo seu virtual retorno à presidência da República não eliminaria anticorpos produzidos, nos últimos anos, na sociedade e na política, contra o modo petista de governar.
E se Bolsonaro derreter?
Falei muito mais sobre a esquerda porque o problema do centro já tem sido mais discutido, não só por mim. Mas tudo o que até aqui argumentei, sobre o centro e sobre a esquerda, parte da premissa de que o arranjo bolsonarista que está no governo, embora perca força de maneira gradual e sustentada, representa um perigo real para a república, pelas chances que ainda persistem de que o presidente possa se reeleger. Chances que não podem ainda ser bem mensuradas, diante não apenas da volatilidade de variáveis propriamente políticas, como da insegurança da situação social e econômica.
A experiência internacional das últimas décadas mostra que quando autocratas têm mandatos renovados, a autocracia que buscam deixa de ser um perigo e se torna realidade fatal. Por isso não se pode relaxar ao constatar que as instituições brasileiras resistem a ataques com sucesso efetivo e que uma opinião pública sólida se formou contra a aventura autocrática, já começando a reposicionar parte do eleitorado que a chancelou em 2018.
Partindo da premissa do perigo, o eixo que orienta a conduta de democratas de todos os matizes é uma frente pela defesa da Constituição, bem como das instituições e práticas democráticas que vivem à sua sombra, pelo combate à pandemia e pelo socorro aos vulneráveis. Essa frente pode ter tradução eleitoral no segundo turno de 2022, precisando, para tanto, assegurar a realização das eleições e uma disputa em primeiro turno dentro de limites civilizados que permitam a unidade posterior. O adversário comum identificado é Bolsonaro, incluído, nessa identificação, como elemento inseparável, o seu governo.
Uma análise realista precisa, contudo, considerar outra possibilidade. A de que o presidente se torne incapaz de obter a reeleição. Sem fazer previsões ou especulações sobre desdobramentos políticos e institucionais de uma constatação dessa ocorrer antes mesmo da campanha eleitoral começar, é preciso admitir que um derretimento irreversível da popularidade do presidente que o retirasse antecipadamente do jogo teria impacto imenso sobre a situação política e provocaria reposicionamento de forças em relação a 2022 mais abrangente que o atualmente em curso com o retorno de Lula ao jogo.
As áreas de oposição que se ativerem exclusivamente a uma contestação da pessoa do presidente tendem a perder seu discurso se ele sair de cena, de algum modo, ou mesmo se ele se mantiver na cena, mas sem força eleitoral para chegar ao segundo turno. Podem se tornar política e eleitoralmente irrelevantes, como oposição ou, então, aderir a uma solução governista pós-Bolsonaro, a qual, no limite, pode ser bolsonarismo sem Bolsonaro.
Por esse motivo cabe examinar com atenção o estágio das oposições diante daquelas três exigências do momento, de que aqui se falou. A esquerda, por ora, tem um virtual candidato, que se revela o mais competitivo, enquanto o centro liberal-democrático, de tantos nomes, ainda não tem nenhum. A agregação na esquerda também se revela hoje menos complexa, pela já comentada força de gravidade do fator Lula. Mas há uma das condições que ambos os campos de oposição ainda estão longe de cumprir: resolver o que dirão à sociedade sobre o dia seguinte a Bolsonaro, caso amanheça com algum desses dois campos de oposição no comando do país. Que promessas suas mensagens podem fazer?
Qual será o “novo normal” da política num pós-bolsonaro?
Um amplo consenso institucional, em defesa da constituição e da democracia já é, hoje, algo que saiu do terreno da promessa para o da realidade. Firmou-se ampla resistência nacional aos ataques à Carta de 88 e aos poderes da república, resultado compartilhado por instituições do estado, governos subnacionais, partidos, lideranças e representações parlamentares de vários matizes do campo democrático e republicano, da direita à esquerda. E igualmente por amplos setores da sociedade civil, com especial destaque ao papel da imprensa. Do mesmo modo está em curso um pacto cívico de enfrentamento da pandemia para redução de danos sanitários e sociais. Nem um nem outro chega perto da unanimidade porque a divisão política e o esgarçamento do tecido social são fatos. Mas se alcançou um patamar de convergência que permite dizer que esses dois consensos transcendem a oposição. Alcançam até alguns inquilinos da esplanada dos ministérios.
Mas é das oposições que aqui se trata. A sociedade e a parte do eleitorado que já pensa em 2022, mesmo na pandemia (não conheço mensuração do percentual que está nesse caso), precisa ouvir, de seus partidos e lideranças responsáveis, uma mensagem mais explícita e menos genérica sobre o que pensam acerca das bases de construção da sua decantada unidade e sobre o grau de civilização da política que se pode esperar dessa pactuação.
Todos os que estão convencidos do desastre econômico, social, político e cultural causado ao país pelo governo Bolsonaro compreendem que se trata, mais do que uma obra de um indivíduo, do desastre de um governo. Sendo assim, a saída melhor e mais desejável é pelas urnas, pelo fato de delas sair um novo governo. A vitória eleitoral sobre o presidente subversivo pode ser previamente facilitada pelos efeitos benévolos dos consensos cívicos.
Mas além de derrotar o protagonista do mal, é preciso fazer cessar automatismos malévolos que contaminaram espaços da República. Para isso a unidade implica em fazer um chamado a que se coloque entre parênteses, neste momento, os juízos de retrovisor acerca das responsabilidades políticas pelo desfecho eleitoral que ensejou o desastre. Admitir que um inventário dessas responsabilidades pode envolver tanto quem se aliou, ou de algum modo apoiou, em 2018, a chapa vencedora, quanto quem, opondo-se a ela, imaginou vencê-la promovendo um acerto de contas, em revide ao desfecho da crise de 2015/2016. A comum avaliação sobre o desgoverno em curso no país e sobre a profundidade das sequelas que isso já produz no seu tecido social e político é suficiente para que o foco se concentre no presente e aponte ao menos a um amanhã imediato que supere polarizações extremadas e o clima de confrontação política.
A tradução eleitoral dessa disposição não precisa ser candidatura única de todas as oposições. Precisa ser articulação e consolidação de candidaturas agregadoras de seus respectivos campos, que sinalizem agregações parciais, no primeiro turno das eleições; disposição comum dessas candidaturas oposicionistas de explicitarem suas diferenças e divergências, para qualificarem o debate democrático sem prejuízo de entendimento entre elas no segundo turno; concretização desse entendimento numa agregação mais ampla para enfrentar a candidatura governista no segundo turno, ou na ausência de tal adversário, para travar uma disputa republicana entre candidaturas diversas do campo democrático. A reciprocidade é condição importante para haver chance das ações oposicionistas de ambos os campos darem vida a um “novo normal” também na política.
Essa é a premissa política para haver dia seguinte. A partir dela pode-se pensar em programas eleitorais que dirão o que ele pode ser, ou, ao menos, o que se quer que ele seja.
* Cientista político e professor da UFBa