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Sergio Fausto: Ainda é tempo
Na Argentina o centro político se consolida. E no Brasil, para onde vamos?
A eleição de outubro na Argentina será um teste decisivo para o governo de Mauricio Macri. Está em jogo quase metade das cadeiras da Câmara e um terço do Senado. As pesquisas indicam que Cambiemos, a coalizão de partidos que apoia Macri, vencerá nos principais colégios eleitorais do país. Provavelmente a vitória não lhe dará maioria, mas o presidente ampliará em muito sua bancada nas duas Casas do Congresso. Com seu principal adversário abatido, o kirchnerismo, e sem uma oposição alternativa de peso, Macri evitará o destino de todos os presidentes derrotados nas eleições de meio de mandato (tornar-se um “pato manco”) e se projetará como favorito às eleições presidenciais de 2019. Trata-se de um fato inédito: pela primeira vez na Argentina, desde o surgimento do peronismo, um presidente não peronista chegará ao fim de seu mandato. E mais, com chances de se reeleger.
A provável vitória de Cambiemos não se explica pelo desempenho da economia. Em 2016, primeiro ano do mandato do atual presidente, o PIB argentino reduziu-se e a inflação aumentou, por força dos ajustes tarifários e da desvalorização cambial que Macri foi obrigado a fazer. Só agora o crescimento econômico começa a despontar. A popularidade de Macri manteve-se elevada porque ele conseguiu convencer a maioria dos argentinos de que a culpa cabia a Cristina Kirchner.
O cientista político Juan Germano, em exposição recente na Fundação Fernando Henrique Cardoso, sustentou a tese de que está em curso na Argentina uma mudança estrutural das preferências políticas e das identificações partidárias do eleitorado. Dividido internamente e diante de eleitores que, em sua maioria, nasceram depois da morte de seu líder icônico, Juan Domingo Perón, o peronismo declina e em seu lugar uma força política de centro começa a ganhar corpo: Macri e Cambiemos.
Germano reconhece que a consolidação dessa nova força política dominante não são favas contadas. Já a polarização peronismo versus antiperonismo, que marcou a história política argentina desde os anos 40 do século passado, parece mesmo página virada. Macri escapa a essa dicotomia, assim como a governadora da província de Buenos Aires, Maria Eugênia Vidal, uma política de primeiro mandato com índices de popularidade ao redor de 70%. Se a sustentação de uma força política depende da disponibilidade de sucessores à altura, Cambiemos, ao que tudo indica, está bem servido por muitos anos.
Diante desse quadro, salta aos olhos o contraste com a situação brasileira. Aqui o centro político está desarrumado, num quadro de alta fragmentação partidária, sem uma candidatura à Presidência que prevaleça naturalmente sobre as demais alternativas. O chamado “mercado”, a julgar pelos preços dos ativos, minimiza o problema. Aposta que a melhora da economia pavimentará o caminho para a vitória de um candidato de centro em 2018. Além disso, confia que a agenda de reformas, previdenciária à frente, se imporá inevitavelmente no próximo período presidencial.
O contraste com a Argentina ajuda a ver por que a reconstrução do centro político no Brasil é um problema mais complexo do que faz crer a leitura economicista do “mercado”. A diferença mais visível reside no fato de que a crise econômica, política e moral que atingiu o kirchnerismo nem sequer respingou nas forças políticas aglutinadas em torno de Macri. Aqui a crise que pôs fim aos governos do PT abalou também o centro político, atingido igualmente pela Lava Jato. Com a melhora da economia, os danos político-morais podem ser mitigados, mas não deixarão de ser profundos e duradouros.
Outra diferença diz respeito ao tempo transcorrido na reconstrução do centro político na Argentina, tempo de que o centro político brasileiro não dispõe até as eleições de outubro de 2018. Cambiemos é a decantação de um processo que teve início em 2005 com a fundação do Compromisso para el Cambio (depois renomeado Propuesta Republicana, PRO, o partido de Macri) e se desdobrou na eleição e reeleição do ex-presidente do Boca Juniors para à prefeitura da cidade de Buenos Aires em 2007 e 2011. Um ano antes das eleições presidenciais de dezembro de 2015, não restava dúvida sobre quem carregaria as bandeiras de uma política renovada e pós-ideológica.
No Brasil, a um ano das eleições, há muito mais interrogações do que certezas no centro do espectro político, seja em relação a nomes, seja em relação às ideias-força que deverão diferenciar uma candidatura e conectá-la com os sentimentos majoritários do eleitorado. Jogará o centro político a carta da condução segura e previsível da economia ou da renovação do establishment político, a da conciliação ou da polarização política, a da polarização com a direita ou com a esquerda? Claro que qualquer candidato, para ser competitivo, deve jogar com mais de uma carta, mas as mensagens principais não podem ser embaralhadas a ponto de confundirem o eleitor.
Ainda é tempo, porém, de reconstruir o centro político para as eleições. Macri não era o favorito um ano antes das eleições, e sim Sergio Massa, candidato do peronismo dissidente. A costura da aliança que o levou à Casa Rosada foi obra de ousadia e sabedoria política do então prefeito de Buenos Aires, da deputada Elisa Carrió, símbolo da intransigência contra a imoralidade pública, e do senador Ernesto Sanz, líder da velha União Cívica Radical, que deu a Macri a capilaridade territorial que seu partido não tinha.
A melhora da economia pode contribuir, mas a inteligência política e o desprendimento pessoal das lideranças são o que poderá oferecer à sociedade melhores escolhas para o próximo mandato presidencial. Não se trata de criar o candidato dos sonhos, mas de evitar o pesadelo de uma escolha de Sofia entre uma direita truculenta e uma esquerda populista.
* Sergio Fausto é superintendente executivo da Fundação FHC. Colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University. É membro do GACINT-USP
José Aníbal: O Brasil e a tragédia humanitária na Venezuela
As rápidas transformações pelas quais passa a sociedade contemporânea têm feito muitos acreditarem em soluções salvacionistas ou miraculosas. Mas não nos faltam exemplos pelo mundo das consequências do populismo radical, dos quais o mais ilustrativo, dramático e próximo de nós é a Venezuela.
Nossos vizinhos têm vivido em um estado de calamidade humanitária que preocupa todas as pessoas comprometidas com os valores da liberdade, da democracia e dos direitos humanos.
Não bastasse a arbitrariedade do regime bolivariano, que mantém pelo menos 566 presos políticos, usurpou o poder do Parlamento com a convocação de uma Assembleia Constituinte sem legitimidade e cuja repressão é diretamente responsável por mais de 100 mortes desde abril, o país enfrenta uma grave crise de escassez e privação de direitos básicos.
E a resposta do governo Maduro ao povo com fome foi: criem coelhos!
Seria apenas patético, se não fosse trágico. O pseudoplano do regime para que os venezuelanos passassem a consumir coelhos domésticos para suprir a falta de carne para o dia a dia lembra os brioches sugeridos por Maria Antonieta aos franceses famintos e revoltados pelo alto custo dos pães.
A diferença é justamente o aprendizado que a Revolução Francesa e os mais de dois séculos subsequentes propiciaram à humanidade para se buscar soluções para calamidades desse tipo.
A resposta não está mais em bastilhas nem em movimentos revolucionários, mas no diálogo, no respeito à democracia e à liberdade individual e no desenho de instituições consistentes.
A comunidade internacional – e cabe ao Brasil ter papel ativo nesse sentido – deve aumentar a pressão sobre Maduro e o regime ditatorial que hoje oprime o povo venezuelano e o condena a uma tragédia como nem o mais fantástico realismo marcante da literatura latino-americana seria capaz de imaginar.
Simultaneamente ao uso dos meios diplomáticos para criticar a ditadura bolivariana e incentivar a Venezuela a recuperar o caminho da democracia, temos uma importante tarefa humanitária no sentido de apoiar o povo do país vizinho e amparar os flagelados que, sem outra saída, procuram refúgio em terras brasileiras.
O acesso a dados e a realização de estudos e pesquisas sobre as condições sociais da população venezuelana são dificultados pela arbitrariedade, mas estima-se que o chavismo elevou em 20 pontos porcentuais o contingente de pobres e miseráveis no país.
Hoje, 4 em cada 5 venezuelanos estão abaixo da linha da pobreza. É o exemplo mais dramático da tragédia provocada pelo radicalismo e pela irracionalidade de uma ideologia levada ao extremo.
Que o exemplo extremado da Venezuela nos sirva de alerta aos riscos dos radicalismos – e que fique claro, não só os radicalismos à esquerda. Também as posições fundamentalistas à direita culminam em absurdos como a restrição das liberdades de expressão, artísticas e culturais. Aliás, também no Brasil surgem alguns sinais preocupantes de intolerância.
Não é de hoje que os gritos dos radicais cativam ingênuos e incautos, transformando-os em massa de manobra para personalidades autoritárias e antidemocráticas travestidas de libertários ou emancipadores dos oprimidos.
A Venezuela tornou-se exemplo da tragédia em que pode mergulhar um povo conduzido de forma tão irresponsável e velhaca. As democracias das Américas têm o dever de ajudar os venezuelanos a se livrar do abismo ao qual foram condenados pelo bolivarianismo.
Marcos Troyjo: Cúpula dos Brics mostra que China espera eleição brasileira de 2018
Os principais temas da cúpula dos Brics realizada nesses últimos dias na cidade chinesa de Xiamen concentraram-se na busca por aumentar o comércio intra-aliança num contexto global de protecionismo. E, claro, avançar em projetos voltados ao financiamento do desenvolvimento.
Isso passa tanto por entendimentos no nível bilateral entre os membros do grupo, como pelo reforço dos mecanismos de financiamento construídos pelo próprios Brics, como já argumentei em outras ocasiões, a construção institucional faz deles "Brics 2.0", o que não é pouca coisa. Agrupamentos como o G7 jamais foram além de declarações sobre a conjuntura global.
Nesse sentido, o futuro do agrupamento talvez passe também pela ideia de "Brics +" ("Brics Plus"). É dizer, eventualmente incluir outros atores importantes do mundo em desenvolvimento nas tratativas. Nesta cúpula da China, estiveram presentes como observadores, os chefes de governo de México, Tailândia, Tadjiquistão, Egito e Guiné.
Uma iniciativa em que a arquitetura de "Brics Plus" faça sentido mais imediato é o banco criado em 2008, na cúpula de Fortaleza.
Daí a instituição chamar-se "Novo Banco de Desenvolvimento", e não Banco do Brics, o que deixa a porta aberta a novos sócios. Já no âmbito mais amplo da aliança, aumentar demais o número de membros pode ser uma aposta arriscada. A China gosta da ideia, mas Índia e Brasil têm reservas, pois acham que isso diluiria a efetividade do agrupamento.
A verdade é que os Brics só progredirão como aliança em áreas, de que é exemplo o financiamento do desenvolvimento, onde seus interesses são claramente coincidentes.
Nessa linha, os Brics avançaram também nas negociações para o estabelecimento de sua própria agência de classificação de risco. O tema é de interesse prioritário para a China, mas não a formalizaram durante esta Cúpula de Xiamen. Vale lembrar que mais do que alternativa às tradicionais Moody's, S&P e Fitch, a medida se alinha à busca por maior "compliance" da parte de empresas e fundos chineses.
A China tornou-se grande origem não somente de exportações, mas de investimentos estrangeiros diretos (IEDs) e empréstimos. Com US$ 700 bilhões, o portfólio chinês de financiamento ao desenvolvimento é o dobro do que disponibiliza o Banco Mundial.
A disputa de fronteira entre China e Índia que se acirrou antes da Cúpula tensionou o ambiente e representou um momento de desconforto entre os dois gigantes asiáticos. Wang Yi, chanceler chinês, passou os dias que antecederam o encontro da aliança em intensos esforços diplomáticos para atenuar o clima com Nova Déli e portanto não envenenar por completo a atmosfera da Cúpula dos Brics com o contencioso.
Cumpre destacar que em temas mais nevrálgicos do cenário internacional os Brics apresentam pouca coesão. Não constam da agenda dos Brics certas pautas, que agradam à Rússia, por exemplo, como a atuação do Ocidente na crise síria. A questão é sensível demais, e países como o Brasil entendem que a ONU é o fórum adequado.
Tampouco se puderam observar declarações mais incisivas em outros temas espinhosos que afetam os Brics individual ou coletivamente – como a tensão geopolítica em torno do mar do Sul da China ou mesmo no recente atrito fronteiriço Índia-China em Doklam.
A exceção de destaque foi a maneira com que os Brics condenaram a Coreia do Norte por sua escalada nuclear-armamentista.
No campo econômico, o desigual desempenho dos Brics é uma medida para aferir quais países encontram-se no bom caminho. Ao passo que a "Chíndia" deverá contribuir com 35% do crescimento global em 2017, a participação da "Brússia" na expansão do PIB mundial será pouco acima de zero.
Nesse contexto, dentre as divisões por performance dos Brics é a "Chíndia" que pode desempenhar algum papel na retomada da economia brasileira. É claro que temos de destacar a Índia e o potencial de absorção que ela representa para a indústria de alimentos brasileira, bem como de nossas commodities agrícolas e minerais.
Quem continua, porém, a dispor de maior capacidade em fazer uma grande diferença tanto em comércio como investimento para o Brasil permanece sendo a China. Isso vale para bens em que dispomos de vantagens comparativas (como soja e minério de ferro) e para oportunidades de investimentos em fusões & aquisições, privatizações e concessões ou novos investimentos em infraestrutura.
Continuaremos, sim, a ver a compra de ativos empresariais brasileiros pelos chineses. Ainda assim, a participação brasileira nessa cúpula dos Brics bem como as conversações bilaterais com Pequim estiveram mais próximas da imagem de "arar o terreno" do que de algo que se possa colher já no ano que vem.
Como em tantas outras áreas fundamentais para o desenvolvimento brasileiro, a maioria dos investimentos chineses de grande fôlego deverá aguardar os rumos que o Brasil tomará a partir do pleito presidencial de 2018.
José Aníbal: A flechada contra a agenda de recuperação do Brasil
O Brasil é ainda jovem quando se pensa na comunidade internacional: neste 7 de setembro, completamos 195 anos como nação independente, sendo 128 como República, e o atual período democrático soma pouco mais de três décadas.
O regime constitucional em vigor chegará aos 30 anos no ano que vem, quando elegeremos o presidente que levará o país ao bicentenário de 2022.
Nesse curso da história, o quanto aprendemos a viver como nação? Quais as experiências e práticas institucionais que já estão consolidadas, e quais são as que ainda precisamos aprimorar?
São perguntas que naturalmente exigem reflexão e ganham mais densidade no mundo contemporâneo, quando estão em debate questões como as funções, a eficiência e musculatura do estado e o papel de suas instituições, a crise da representatividade política, os avanços e as limitações que a própria democracia propicia às sociedades.
No caso brasileiro, a complexidade torna-se maior, exigindo ainda mais discernimento, compromisso e responsabilidade dos agentes públicos.
Nesse sentido, causa assombro e indignação ver a repetição de distorções dos papéis a serem cumpridos pelos que abraçam a causa pública. Como bem disse nesta semana o governador Geraldo Alckmin, as novidades de que o Brasil precisa são a verdade e a defesa do interesse coletivo, para que este se sobreponha aos objetivos das corporações que tomaram conta tanto de setores estatais como privados.
A política no dia a dia do governo e do Congresso obviamente precisa ser exercida com mais responsabilidade, mais conectada com os anseios e exigências da sociedade. Mas também é preciso avançar – e muito – nos outros pilares fundamentais do estado: o Poder Judiciário e o Ministério Público.
Quando regras são desrespeitadas, interesses pessoais e corporativistas são colocados à frente dos deveres institucionais, joga-se o país em aventuras e incertezas. Coloca-se em xeque a credibilidade não só deste ou daquele agente público, mas da própria ideia de república e de nação civilizada e democrática.
O ímpeto com que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, se lançou nos últimos meses a disparar denúncias e acusações aos cântaros com base numa delação premiada bastante questionável, promovendo uma tempestade institucional sem precedentes, revelou-se agora açodado, inconsistente e movido por motivações ainda a serem explicadas.
Sob o pretexto de combater a corrupção e defender os interesses coletivos, deixou livres a dupla de empresários enriquecida pelo mais nocivo “capitalismo de compadrio” do lulopetismo e provocou um abalo que trouxe prejuízos intangíveis e incalculáveis. Foi uma verdadeira flechada na agenda para a retomada do crescimento econômico e da reorganização do estado brasileiro.
Quando Janot apresentou pedido para investigar o presidente da República durante o exercício do mandato, uma situação inédita e grave na história republicana, o Congresso estava prestes a aprovar a mais fundamental das medidas de ajuste das contas públicas.
A reforma da Previdência vai colocar um ponto final definitivo nas benesses previdenciárias da elite da burocracia – da qual fazem parte políticos e assessores legislativos, mas principalmente juízes, desembargadores, promotores e procuradores – e garantiria a sustentabilidade das aposentadorias e pensões da imensa maioria dos brasileiros. Por isso despertam tão forte reação das corporações, auxiliadas pela turma do “quanto pior melhor” de sempre.
Coincidentemente, no mesmo dia em que o procurador-geral admitiu falhas na delação dos irmãos Batista, o Conselho Nacional de Justiça atualizou as estatísticas de um problema bastante conhecido: o Judiciário brasileiro resolve menos de 1 em cada 4 processos em tramitação e custa mais caro do que os equivalentes de países europeus ou dos Estados Unidos. Em média, um magistrado brasileiro custa quase R$ 48 mil mensais. O salário mínimo é R$ 937,00. O salário médio dos trabalhadores brasileiros gira em torno de R$ 2.000,00.
A eficiência da Justiça é tão importante quanto a do Congresso e do governo. Todos os poderes devem prestar um bom serviço ao cidadão, cumprir com suas tarefas e ter o interesse coletivo como prioritário. É assim que se tornarão fortes, e não com arroubos de justiçamento ou voluntarismo. É assim que, perto de seus 200 anos de independência, o Brasil poderá ser um país com instituições sólidas e um povo orgulhoso de sua República.
El País: Os rebeldes sem armas emboscados por um agente duplo da ditadura
Em tempos de delação premiada, obra de jornalista retrata o massacre da granja São Bento, de 1973, e traz a história de um dos famosos dedos-duros da ditadura, cabo Anselmo
Quantas pessoas você trairia para se livrar da prisão e de sessões de torturas? Quantas delas entregaria as vidas para assassinos vestidos de fardas e uniformes policiais? José Anselmo dos Santos, ex-marinheiro brasileiro conhecido como cabo Anselmo, foi um dos principais agentes duplos da ditadura militar e delatou ao menos 200. Sendo que cerca de cem perderam suas vidas. Seis delas durante uma chacina no então município de Paulista, em Pernambuco. É a história deste assassinato múltiplo que é retratada no livro O Massacre da Granja São Bento, lançado no último dia 29, em Recife.
Os minuciosos detalhes deste caso, ocorrido em janeiro de 1973, finalmente vieram à tona na obra assinada pelo jornalista e mestrando em antropologia Luiz Felipe Campos. Justamente em um momento em que os delatores são apontados no Brasil como uma espécie de heróis. A diferença, é que nos dias de hoje, eles desvelam casos de crimes de colarinho branco envolvendo a cúpula política e empresarial. Nos anos da ditadura militar, contribuíram para o cometimento de centenas de homicídios e torturas de presos políticos.
No livro, o autor relata como cabo Anselmo articulou uma falsa reestruturação de um grupo revolucionário armado em Pernambuco e os entregou para serem aniquilados por policiais e militares na área rural da então cidade de Paulista. Entre os assassinados estava a mulher com quem Anselmo viveu maritalmente em Recife, a militante paraguaia Soledad Barret Viedma.
Motivado por contar um caso regionalmente conhecido, mas pouco explorado por jornalistas e historiadores nacionalmente, Campos juntou cerca de 2.000 páginas de documentos em cinco anos de investigações que resultaram na obra. Ao menos 50 pessoas foram entrevistadas no período. Os principais relatos foram dados por um dos sobreviventes da chacina, o paraguaio Jorge Barrett, cunhado de Anselmo. “Percebi que essa era uma história que não estava bem contada. Tinha muito da versão oficial, algumas tentativas de desconstruir a versão de que chamava as vítimas de terroristas, mas nada que tentasse juntar todos os elos”, afirmou o jornalista ao EL PAÍS.
No livro, ele vai além: “No caso da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) em Pernambuco, a guerrilha nunca chegou a existir: desde sempre teve suas pernas amputadas e uma sentença de morte sobre as costas. Com os seis mortos foram enterrados também os sonhos de toda uma geração de guerrilheiros que, a seu modo, buscavam uma Sierra Maestra para chamar de sua no Brasil”.
Em um ritmo de thriller policial, a obra orbita em torno do cabo Anselmo. Mostra como ele reuniu no Pernambuco seis militantes contrários à ditadura sob a justificativa de reiniciar a luta armada urbana contra o regime. Segundo essa aprofundada pesquisa que gerou o livro, o ex-militar queria dar um tiro de misericórdia na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e em todo outro grupo que tentasse se articular contra os ditadores. “Em 1971, a luta armada de esquerda estava desmobilizada. Anselmo concordou em ser usado pelo regime para dar esse tiro de misericórdia. Era para passar um sinal para os outros grupos de que a luta armada não valeria a pena”, explica o autor. Um dos “comandantes” de Anselmo nessa trama foi o famoso delegado torturador Sergio Paranhos Fleury, um obstinado perseguidor de rebeldes que atuou no Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo.
As vítimas do massacre da granja São Bento foram Soledad Barret, Jarbas Marques, Eudaldo Gomes da Silva, Evaldo Luiz Ferreira de Souza, Pauline Reichtsul e José Manoel da Silva. Todos foram traídos por Anselmo. Por quase um ano articularam maneiras de como unir forças para combater o regime militar. Não conseguiram adquirir uma só arma. Mas morreram identificados como terroristas, conforme estamparam em suas manchetes os jornais Diário de Pernambuco e Jornal do Commercio, em uma clara adesão à versão oficial.
Entre os dias 7 e 8 de janeiro de 1973, os seis foram presos. Seus corpos foram encontrados crivados de balas nas proximidades da chácara São Bento, no dia 9. Dos 32 projéteis encontrados nos corpos, 14 estavam alojados nas cabeças das vítimas. Diversas armas foram espalhadas ao redor dos cadáveres. A polícia, na ocasião, disse que desbaratou um congresso de militantes da VPR. Trocou tiros com eles. Matou todos. E nenhum policial saiu ferido, nem de raspão.
Uma das razões para a chacina ter ocorrido foi que o jogo duplo de Anselmo começou a ser desvendado. Na antevéspera do massacre, Soledad, a mulher dele, recebeu uma carta em que o comando da VPR que estava exilado no Chile alertava sobre a possibilidade da traição de Anselmo. Ingenuamente, ela mostrou a carta para o ex-militar. Foi sua sentença de morte e dos outros cinco companheiros dela. Assim que o sexteto foi preso, Anselmo deixou Recife da mesma forma que chegou, clandestinamente.
Na obra, o jornalista Campos também relata a luta das famílias em conseguir a reparação do Estado brasileiro e o reconhecimento de que todos foram vítimas da ditadura. Vários conseguiram, mas as marcas deixadas em alguns, jamais foram apagadas.
O LIVRO
O Massacre da Granja São Bento
Autor: Luiz Felipe Campos
Editora: CEPE – Companhia Editora de Pernambuco
Preço: 30 reais
Páginas: 214
Cristovam Buarque: Comemoração incompleta
Daqui a cinco anos, o Brasil ingressará no terceiro centenário de sua história como país independente. Neste 7 de setembro, aos 195 anos de nossa independência, é possível comemorar o que nossos antepassados conseguiram.
Atravessamos quase 200 anos consolidando um imenso território soberano e unificado por redes de transporte, de comunicações, de distribuição de energia, a economia brasileira está entre as maiores do mundo no valor do produto, passamos de 200 milhões de habitantes. Não há dúvida de que temos que comemorar os primeiros dois séculos.
Mas se, no lugar de olharmos para a história, olharmos ao redor, a festa perde seu brilho. Comemoramos um elevado PIB, o oitavo do mundo, mas 84º por habitante, por causa de nossa baixa produtividade.
Igualmente grave, nossa economia se concentra em bens agrícolas e minerais ou indústrias tradicionais, porque somos um país de baixa capacidade de inovação.
Do ponto de vista social, carregamos a vergonha de sermos campeões em concentração de renda, temos formidáveis ilhas de riqueza e um trágico mar de pobreza.
Chegamos ao nosso terceiro século divididos tão brutalmente que podemos nos considerar um sistema de apartação, um país onde a população está dividida e separada por “mediterrâneos invisíveis” intransponíveis.
Somos um país integrado fisicamente e desintegrado socialmente. Por isso, somos hoje, em parte, campeões de violência urbana com mais de cem mil mortos por ano, 50 mil assassinatos e 45 mil vitimados por acidentes de trânsito.
Na política, apesar de comemorarmos o aniversário com um sistema democrático e instituições funcionando, em nenhum outro momento tivemos uma classe política tão desacreditada.
As promessas foram descumpridas, a corrupção se alastrou, os partidos se desfizeram, as finanças públicas foram quebradas, as estatais arrombadas, as corporações dividiram o país em republiquetas sem sentimento nacional.
A sensação é de que o país entra no seu terceiro século desagregando-se, sem coesão social, sem rumo histórico.
O mal-estar se explica por muitas causas, mas certamente a principal está no descaso com a educação de nossa população, desde a primeira infância. Chegamos ao nosso terceiro século com 13 milhões de compatriotas adultos incapazes de reconhecer a própria bandeira da República, por não saberem ler o lema “Ordem e Progresso”.
Além destes, segundo o IBGE, são quase 28 milhões de adultos analfabetos funcionais, apenas um pequeno número de jovens recebe formação necessária para construir a economia e a sociedade do conhecimento que vai caracterizar o século adiante.
Passados dois séculos, ainda somos um país com baixíssimo grau de instrução e com abismal desigualdade no acesso à educação conforme a renda da família.
E não seria difícil fazer com que, bem antes do quarto século, o Brasil conseguisse ser um país com educação de qualidade para todos: os filhos dos mais pobres em escolas com a mesma qualidade dos filhos dos mais ricos; uma sociedade que não dispensaria um único talento intelectual de sua população. Sem isso, certamente não teremos o que comemorar quando o quarto centenário chegar.
http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2017/09/comemoracao-incompleta.html
Roberto Freire: Um país acuado pela violência
Basta sair às ruas em qualquer cidade do país, seja nos grandes centros urbanos ou nos pequenos e médios municípios, para que se note uma das maiores preocupações dos brasileiros nos dias de hoje. Como se não bastassem o desemprego e as enormes dificuldades para a superação da mais profunda recessão econômica de nossa história, o cidadão sofre cotidianamente com a calamidade da violência. Em algumas regiões, não é exagero afirmar que já se vive quase em um cenário de guerra, tal o nível de desmantelo ao qual chegamos.
De acordo com informações divulgadas pelo jornal “O Estado de S.Paulo” com base em dados fornecidos pelas secretarias estaduais de segurança pública, o Brasil ultrapassou a marca de 28,2 mil assassinatos cometidos somente no primeiro semestre deste ano – sejam homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte ou latrocínios. São nada menos que 155 assassinatos a cada dia, o que corresponde a um índice 6,79% maior do que no mesmo período de 2016. Se a violência prosseguir nessa média, o país deve se aproximar dos 60 mil homicídios ao final do ano.
A situação talvez mais emblemática seja a do Rio de Janeiro. É importante destacarmos o papel que as Forças Armadas vêm cumprindo na cidade, sob acompanhamento do ministro Raul Jungmann, que faz um notável trabalho à frente da pasta da Defesa. Mas é evidente que esse tipo de atuação é uma consequência direta do total descalabro da área de segurança pública não só no Rio, mas em diversos estados do país.
Neste momento, a presença ostensiva do Exército nas ruas do Rio se impõe como razoável e, mais que isso, necessária. Mas devemos ter a consciência de que tal política não pode ser permanente, pois este não é o papel que cabe às Forças Armadas brasileiras. A segurança é responsabilidade constitucional dos estados, por meio da ação de suas polícias, e a transferência dessas atribuições aos militares é um verdadeiro atestado de incompetência, algo inaceitável, além de um claro desvirtuamento da ordem constitucional.
Para agravar um quadro que já é suficientemente delicado, o que não falta é a busca por respostas e soluções fáceis e equivocadas para problemas difíceis e complexos. Uma parcela significativa da sociedade brasileira defende a posse indiscriminada de armas de fogo pelo cidadão comum, como se tal medida, por si só, diminuísse a violência. Nada mais falso. Basta consultar especialistas em segurança pública ou mesmo policiais civis e militares para entender que, se armados, ao contrário do que prega o senso comum, estaremos ainda mais vulneráveis e desprotegidos.
Segundo o “Mapa da Violência 2016”, o Brasil tem uma média de 21,2 mortes por 100 mil habitantes envolvendo armas de fogo. O país ocupa a lastimável 10ª posição em um ranking composto por 100 nações – encabeçado por Honduras (66,6 mortes por 100 mil) e El Salvador (45,5). Em 2014, mais de 25 mil jovens de 15 a 29 anos foram assassinados por armas de fogo, um aumento de quase 700% em um período de quase 35 anos (desde 1980, quando morriam cerca de 3 mil pessoas nessa faixa etária).
Nos Estados Unidos, por exemplo, em especial nos últimos anos, todos nós acompanhamos inúmeras tragédias envolvendo os chamados “serial killers”, que chocaram o mundo ao fazer vítimas em série justamente porque o acesso às armas é cada vez mais fácil e disseminado naquele país. Os defensores do uso de armas pela população civil costumam citar a Suíça como um exemplo de país pacífico, altamente desenvolvido e onde há amplo acesso a armamento em geral. Ocorre que se trata de uma das raras nações europeias nas quais o serviço militar permanece obrigatório para os jovens de 18 a 20 anos.
Um detalhe importante, no entanto, é que as armas têm de ser guardadas em casa durante todo o período de serviço ativo e de reserva – e todos os suíços continuam na reserva para as Forças Armadas até os 42 anos de idade. A partir daí, podem adquirir sua arma por um preço simbólico, o que explica a grande circulação desses equipamentos entre os civis. A Suíça tem a 11ª menor taxa de homicídios do mundo (0,6 por 100 mil habitantes), mas não porque tem grande concentração de armas de fogo. Japão e Cingapura, que proíbem o uso de armas, têm menos homicídios (0,3 por 100 mil).
A sociedade não suporta mais conviver com um grau de violência que há muito ultrapassou todos os limites minimamente aceitáveis e se alastra por nossas cidades nos quatro cantos do país. Precisamos de leis mais eficazes para derrotar a impunidade, por um lado, e de educação e desenvolvimento social para diminuir a desigualdade, por outro. Todos os brasileiros verdadeiramente comprometidos em construir um futuro mais digno, sobretudo as autoridades públicas nas diferentes esferas de poder, devem somar forças e trabalhar em nome da paz, por mais civilidade e contra a barbárie. O Brasil está acuado e com medo, e há motivos para tanto. É tempo de reagir.
Fernando Gabeira: Conta de nunca chegar
Quando cheguei à Argélia para o exílio, o pernambucano Maurílio Ferreira Lima já morava lá. Levou-me para um passeio e passou num açougue para comprar carne. Fez a transação em francês mas, ao sair, disse da porta: “pendura”. Fiquei surpreso com a naturalidade e o sorriso do açougueiro. Maurílio revelou que esta era a única palavra em português que ensinou a ele.
Cada vez que o governo vem anunciar uma nota fiscal, lembro-me de Maurílio. É como se dissessem: “mais R$ 20 bilhões, pendurem”. Maurílio pagava suas contas em dia. Ao contrário do governo, tratava apenas do que comprava, e não de projeções para o ano seguinte. O governo pendurou R$ 20 bilhões em 2017 e anunciou que vai pendurar R$ 30 bilhões em 2018.
Quem vai pagar tanto dinheiro? Eles falam em economia nos gastos públicos. Não acredito. Os dados estão aí: deputados e senadores querem alguns bilhões para financiar suas campanhas.
Se fossem só os políticos, ainda havia uma esperança. A Justiça, que tem sido aliada da sociedade na luta contra a corrupção, é muito reticente quando se discutem os supersalários que excedem o teto legal. Nesta semana, falando com um procurador que atua no Norte do país, ele me passou um quadro desolador. Há promotores que chegam a ganhar R$ 125 mil mensais.
As notícias sobre juízes do Mato Grosso que receberam até R$ 500 mil frequentaram o noticiário e saíram em paz. Um dos juízes chegou a declarar: “não estou nem aí para o espanto que a notícia causou”. Ele não está mesmo. Considera legal receber, e pronto. O próprio Supremo Tribunal Federal sempre tem se manifestado a favor de quem ganha tanto dinheiro com salário e penduricalhos.
Nesse sentido, a orfandade dos brasileiros é total. Os políticos não só desviam dinheiro como inventam fórmulas para receber fortunas através de suas leis eleitorais. E a Justiça não mostra nenhuma sensibilidade para o problema. O que fazer nessas circunstâncias?
Dentro do quadro de apatia que se criou no país, parece que a alternativa é trabalhar e separar o dinheiro do imposto, assim como muitos, em áreas de risco, saem com o dinheiro exato do assalto. Mas é uma tática que tem seus limites. A máquina burocrática brasileira é muito pesada para o país. Ela se comporta como se estivéssemos nadando em dinheiro.
O grande problema da necessária austeridade é o próprio governo. Se ele tem um projeto de reforma da Previdência que implica em sacrifícios para alguns, quem vai apoiá-lo sabendo que não há reciprocidade nos esforços? O resultado disso é a marcha da insensatez que vai nos levando progressivamente ao caos. No momento, falamos em bilhões com tranquilidade, mas já há quem calcule em meio trilhão o rombo nos próximos anos.
Mas toda essa conversa sobre números acaba sendo abstrata. Nas estradas, caiu o policiamento; nas fronteiras, a redução de verbas dificulta a ação das Forças Armadas. Nos hospitais, então, a escassez mata.
Em 2013, a sociedade intuiu que isso estava errado e se manifestou nas ruas, queria serviços decentes para os impostos que paga. Naquele momento, as grandes empresas estavam tranquilas. Se reclamavam dos impostos, a resposta foi simples: ampliar isenções. O BNDES emprestava dinheiro a juros reduzidos, e os próprios políticos ofereciam isenções. De tal forma ofereceram que, no Rio, cabeleireiros, joalherias e até um prostíbulo tornaram-se isentos. A corrupção mostrou como recursos públicos eram drenados. A quebradeira agora vai colocar também em cena algo que não era tão discutido em 2013. Pedia-se um serviço decente em troca do imposto.
Agora, num momento em que cogitam a alta dos impostos, o Brasil merece um grande debate sobre como o bolo dos recursos públicos é dividido.
Por que há tantas isenções e qual o benefício que trazem para o país? Por que uma máquina com tanta gente é tão pouco produtiva? Por que salários tão altos, tantos penduricalhos?
No Congresso participei de inúmeros debates sobre isso, tentando convencer o governo, na época, a reduzir radicalmente as viagens, que custavam em torno de R$ 800 milhões por ano. Já havia os meios para isso: teleconferência, Skype. Hoje foram ampliados com novas alternativas.
O alto custo não é apenas com passagens, mas também com as diárias pagas aos funcionários. Por isso, quando se fala em reduzir custos e aumentar a produtividade, há sempre uma resistência. Apesar de haver gente bem-intencionada entre os funcionários, o ânimo para aumentar a produtividade de serviços públicos deveria vir do universo político.
Do mundo político não virá nada. Foi o próprio sistema político-partidário que criou esse monstro dispendioso. Os políticos, nesse episódio, não são uma solução, e sim uma parte substancial do problema. Se depender eles, o atraso se eterniza. Sempre que apertar, vão dizer: “pendurem”.
O custo da sobrevida de Temer: apagão fiscal em hospitais e perdão de dívidas a grupos de pressão
Com cirurgias suspensas e bolsistas ameaçados, ajuste fiscal prejudica população para salvação do presidente. Se Dilma e o PT quebraram a economia, Temer atrasa a recuperação
Como custo de sobrevivência do presidente Michel Temer (PMDB), o ajuste fiscal virou promessa distante e os serviços federais sucumbem às barganhas do governo para manter o apoio do Congresso a um presidente acusado de corrupção passiva, investigado por obstrução de Justiça e participação em organização criminosa. A blindagem na Câmara dos Deputados na semana passada adiou o início de uma ação penal contra Temer, mas a sobrevida do presidente custou mais de R$ 4 bilhões em emendas parlamentares antecipadas e mais de R$ 10 bilhões em dívidas refinanciadas em condições generosas para produtores rurais. A salvação estourou uma rebelião na base aliada. PP, PR, PSD e outros partidos do "centrão" cobram ministérios, cargos e verbas para apoiar Temer contra novas denúncias e votações na Câmara dos Deputados.
Em cada fatia cedida do orçamento para grandes doadores de campanha, como os ruralistas, e para interesses paroquiais de parlamentares, Temer destruiu o ajuste fiscal da equipe econômica do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, como mostrou reportagem do EL PAÍS. Essa sobrevida veio com um custo direto, com barganhas no orçamento, e também indireto, com a rodagem de juros da dívida pública em patamar mais alto do que seria esperado em condições normais de governabilidade. Por isso, embora a ex-presidente Dilma Rousseff e o PT tenham quebrado a economia do país e levado as contas públicas a essa situação de descalabro, Temer também não ajuda. O presidente atrasa a recuperação, porque sua permanência no poder custa fatia relevante do orçamento público – até agora, mais de R$ 14 bilhões – e dificulta a queda de juros, essencial para a retomada da atividade econômica.
Para compensar esse “custo Temer”, o presidente tenta manter as expectativas positivas do mercado em seu governo. Tão logo foi salvo de uma ação penal pela Câmara ele renovou promessas de aprovação de uma reforma da Previdência.
Mas a boa vontade do mercado deve ser testada na semana que vem, quando o governo federal deve anunciar uma ampliação da meta fiscal deste ano, de déficit primário de R$ 139 bilhões para R$ 159 bilhões. O acréscimo de R$ 20 bilhões à meta será necessário para evitar problemas com o Tribunal de Contas da União (TCU), que já alertou para o risco de descumprimento. O governo superestimou a previsão de arrecadação e não deve se beneficiar de concessões que ofereceriam receitas extraordinárias. Também deve ser anunciada a revisão da meta fiscal de 2018 para o mesmo patamar. A cifra significa a manutenção do rombo fiscal de 2016, que bateu R$ 159 bilhões e representou 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Se a meta fosse contabilizada em resultado nominal -descontando a inflação-, o desempenho seria pior ainda: 8,9% do PIB. Apenas para efeito de comparação, países da União Europeia ficam sujeitos a sanções se o déficit nominal fica maior a 3% do PIB.
Com um custo tão alto de sobrevivência, o governo Temer já discutiu até subir impostos. Os presidentes da Câmara e do Senado reagiram e avisaram que não aprovariam elevações de tributos. Isso tirou fôlego da discussão e Temer passou a dizer que essa hipótese, mesmo estudada, estava descartada.
Para cumprir a meta fiscal deste ano, o governo contingenciou mais de R$ 42 bilhões neste ano em despesas e impôs um apagão fiscal em várias repartições federais. Isso fez com que cirurgias fossem suspensas em hospitais federais e bolsas de pesquisa ficassem ameaçadas, além de atrasar ou encerrar outros serviços.
“A população fica no pior dos mundos, porque o governo faz concessões orçamentárias para se manter politicamente, sem benefício nenhum para as pessoas. Do ponto de vista fiscal, R$ 10 bilhões [de dívidas rurais] é uma perda tremenda. Não à toa o governo discutiu aumento de imposto de renda uma semana depois de dar perdão de dívida do setor rural”, afirma o economista Hélio Tollini, ex-secretário de Orçamento Federal no governo Fernando Henrique Cardoso e consultor de orçamento da Câmara dos Deputados.
No Hospital São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o apagão fiscal é uma realidade que mata e adoece. Como só foram liberadas 70% das verbas de custeio e 40% das despesas previstas com investimentos, desde 31 de março o hospital não agenda cirurgias eletivas – só atende urgências. Pela falta de orçamento, ficou especialmente prejudicado o serviço de Hemodinâmica do complexo hospitalar, que chegou a atender 25 pacientes por dia e hoje só ajuda cerca de quatro pessoas por semana.
Também a pesquisa universitária está ameaçada. O CNPq só possui verbas para pagar 104 mil bolsas de pesquisa até setembro. Para o resto do ano, não há mais dinheiro em caixa. E esse número de bolsas é inferior às 138 mil bolsas financiadas pelo órgão no país no ano passado. Mas o presidente do CNPq, Mario Neto Borges, nega que tenham sido cortadas bolsas ou que tenham sido vetados novos pedido de financiamento. “Pode cortar o salário do presidente do CNPq, mas não vamos cortar bolsas”, afirmou ao EL PAÍS.
O CNPq precisa de R$ 500 milhões para encerrar 2017 sem deixar de pagar nenhum bolsista. Borges fez uma reunião com o ministro de Ciência, Tecnologia e Comunicações, Gilberto Kassab (PSD), para pedir que a equipe econômica libere essa verba. “Kassab falou que vai fazer uma reunião com a área econômica para colocar esse cenário e se diz confiante de que vai convencê-los de que esse valor deve ser liberado, mesmo que seja mês a mês. Não temos plano B, mas estou confiante de que vamos conseguir”, afirmou o presidente do órgão.
Nas últimas semanas, enquanto antecipava mais de R$ 4 bilhões no empenho de emendas parlamentares e cedia a outros grupos de pressão para barrar a denúncia na Câmara dos Deputados, Temer colheu derrotas no Congresso. O governo foi avisado de que não seria aprovado o Programa Especial de Regularização Tributária (Pert), uma espécie de novo Refis lançado pela Medida Provisória nº 783, sem que a medida ofereça um ajuste maior a devedores do Fisco. Com essa medida, o governo esperava arrecadar R$ 13,3 bilhões só neste ano com o refinanciamento de dívidas, mas as condições mais generosas exigidas por deputados impedem qualquer resultado perto disso. Também houve derrota do governo com o fim do prazo para votação da MP 774 de reoneração da folha de pagamento, com que o governo federal esperava retomar a cobrança de encargos previdenciários para arrecadar cerca de R$ 4,8 bilhões neste ano. Esses fracassos deixaram um buraco na meta fiscal.
Enquanto cede a barganhas e coleciona derrotas para recuperar receitas, o governo ainda espera aprovar a reforma da Previdência, algo considerado improvável por analistas. Isso porque os parlamentares estão mais preocupados em votar uma reforma política, para garantir condições mais favoráveis para reeleição em 2018. E, na véspera da campanha de 2018, parece pouco provável alcançar os votos necessários para passar medidas impopulares que prejudicam aposentadorias. No melhor cenário, especialistas cogitam que seja aprovada a elevação da idade mínima para aposentadorias. Parte do mercado financeiro só mantém a confiança no governo Temer pela esperança de que seja aprovada uma reforma da Previdência. “Fico até impressionado de ninguém da equipe econômica ter pulado fora ainda”, afirma Tollini.
O secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco, monitora diariamente as despesas do governo federal e não tem dúvida. Para ele, não há nenhuma prioridade de Temer em alcançar bons resultados fiscais. “A prioridade de Temer é a salvação da própria pele. Isso torna a situação muito volátil”, afirma. “Nesse momento de fragilidade política, se avolumam pressões orçamentárias ao presidente e ele acaba cedendo a várias delas”, acrescenta. O custo da sobrevivência de Temer, como se percebe, já passou dos R$ 14 bilhões.
Por Daniel Haidar, do El País
Marco Aurélio Nogueira: O País possível
Se nada acontecer de substantivo no próximo ano e meio, as eleições de pouco servirão
Conforme o roteiro estabelecido, em outubro de 2018 será eleito um novo presidente, recomposto o Congresso Nacional e alterada a chefia dos governos estaduais. Há uma expectativa de que, então, se iniciará a superação da crise que hoje ameaça derreter a República. Será isso mesmo?
Olhemos para Brasília. Deputados dedicam-se a encontrar brechas para se reeleger. Querem escapar da Justiça e do repúdio dos eleitores e estão dispostos a pagar o preço necessário para conseguir isso. Inventam dispositivos para que candidatos não possam ser presos e para que os partidos sejam regiamente financiados. Não ligam se os remendos que idealizam ferem a dignidade republicana e andam de costas para o que pensam os cidadãos. Acreditam que ao fim e ao cabo conseguirão mais uma vez iludi-los.
Os candidatos presidenciais até agora anunciados, por sua vez, expressam os descaminhos que temos trilhado. São corresponsáveis pelo nível a que chegamos. Não trazem qualquer esboço de novidade, nem sequer na retórica. De Lula a Bolsonaro, passando por Ciro Gomes, Alckmin e Doria, temos mais do mesmo, uma política que insiste em não se renovar.
Falam uma língua que compreendemos, mas que nada diz. O País que nos apresentam é uma ficção que estaria ao alcance das mãos de quem tem “vontade política”.
Lula enche a boca ao falar do seu “projeto político”, mas não o apresenta a não ser como desejo incontido de voltar ao poder, nele acampar para fugir de Moro e fazer as mesmas coisas de sempre. Ciro segue caminho quase idêntico, impulsionado pela boca gulosa, pronta para lacerar os adversários, mas carrega no peito aquela faixa surrada do nacionalismo populista que tanto estrago já causou. Bolsonaro é um caso singular, tamanhas são as aberrações que nele se incrustam: oferece um roteiro teratológico, a meio caminho entre o militarismo autoritário, a ditadura política e o ódio contra minorias, tudo devidamente temperado pela grosseria e pelo horror à política, à democracia, à representação. Já os postulantes tucanos não se preocupam em ir além de um antipetismo visceral, na vã expectativa de que isso mobilize o eleitorado.
Enquanto esses candidatos preparam suas campanhas, a sociedade segue para o precipício. Expõe ao mundo suas vísceras envenenadas, suas chagas históricas, que vão da desigualdade abismal à violência cotidiana, da corrupção pública aos assassinatos por balas perdidas, do despreparo das forças policiais à insanidade das facções criminosas. São índios e ambientalistas dizimados, 50 mil jovens assassinados por ano, crimes aos montes, cidades inseguras, um desencanto que corrói a alma do cidadão, encurralado por processos que não consegue controlar.
Ficamos olhando para as urnas de 2018, como se delas pudesse sair, por encanto, um País pronto e acabado.
Eleições diretas não deveriam ser desperdiçadas. Não podem ser vividas como um episódio a mais de nossa série preferida. Precisam ser preparadas para que representem um avanço. Se nada acontecer de substantivo no próximo ano e meio, porém, elas de pouco servirão, não trarão nenhuma visão de futuro, nenhum entusiasmo cívico. Serão arranca-rabos entre candidatos conhecidos, com estratégias de marketing e campanhas negativas que já vimos para onde nos podem levar.
O nosso é um macroproblema. Não são somente os políticos ou os partidos, tomados em conjunto ou isoladamente. É o sistema todo que apodreceu, corroído pela desqualificação dos quadros e pela corrupção, que corre nas veias aos borbotões. Faltam honestidade e caráter, mas falta também uma visão estruturada sobre o que fazer. É falsa a ideia de que sabemos quais são as prioridades nacionais e que caminhos nos permitirão alcançá-las. Há um déficit brutal de consenso. O legado dos ciclos políticos mais recentes, desse ponto de vista, é trágico.
Não precisamos de mais disputas por cargos, verbas e recursos de poder. Ainda dá tempo de se chegar a um plano que defina prioridades, reformas, estratégias de desenvolvimento e projete a sério um sistema de educação, de saúde, de habitação, de infraestrutura, de ciência e tecnologia. O que houver de energia e discernimento nos partidos, na sociedade civil, nos movimentos sociais precisaria convergir para um ponto mínimo de unidade, a partir do qual possam ser forjadas ideias consistentes, distantes do malabarismo marqueteiro, da demagogia populista e do radicalismo estéril. Ideias que atualizem o País ao mundo, promovam sua interação ativa com a nova sociedade que emerge.
Sem isso, tanto faz saber em quem vamos votar em 2018.
Presidentes são pessoas. Podem pouco. O segredo está nas articulações que os patrocinam e sustentam; está no pacto que podem coordenar, na “teoria social” em que se apoiarem. Mais importantes do que eles são o programa de ação que se dispuserem a cumprir, os representantes parlamentares que com eles governarem, as ideias que os orientarão.
Em vez de ficarmos perdendo tempo para ver se Lula será ou não candidato, se o PSDB virá com Alckmin ou Doria, se Bolsonaro conseguirá encarnar finalmente o Lord Voldemort que carrega no bolso, se a súcia parlamentar será finalmente afastada, o certo seria trabalharmos para projetar o País que queremos. Que não será o País da esquerda, do centro ou da direita que estão aí, porque essas posições nem sequer honram o nome que buscam carregar, ao menos até agora. Na melhor das hipóteses, será um País possível, melhor que o atual.
Ainda dá tempo. Arquivemos o maximalismo que transfere a um presidente “mágico” o poder de reformular tudo. Pensemos no passo a passo, a ser lapidado pela política com um “p” maior, que faça os representantes pensarem mais no coletivo que em seus próprios interesses. Valorizemos a política, não só para termos eleições mais limpas e frutuosas, mas para que nos encontremos com o País em que queremos viver.
*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
Tibério Canuto: Filhotes de Maduro
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Universidade Federal de Minas Gerais são duas instituições com relevantes serviços prestados ao país, à ciência e à democracia. Por sua natureza, esses dois centros do saber e da cultura sempre se opuseram ao pensamento único, à intolerância e a qualquer manifestação totalitária.
Lembro-me muito bem dos meus tempos de juventude, quando realizávamos manifestações estudantis em Belo Horizonte e nos abrigávamos nas instalações da UFMG para nos proteger da repressão policial. De suas fileiras saíram muitos líderes estudantis e muitos intelectuais e cientistas que engrandeceram a cultura nacional.
Quando a sociedade civil começou a se rearticular nos anos 70, a SBPC foi uma de suas vozes, ao lado da OAB, ABI e CNBB. Seus congressos anuais foram momentos de resistência democrática e de efervescência política.
Suas histórias, portanto, são a negação do ódio. Por livre e espontânea vontade jamais a UFMG e a SBPC serviriam de palco para intolerantes que foram até a reunião anual da SBPC para hostilizar e impedir o senador Cristovam Buarque de divulgar o seu livro. Pasmem, em um encontro da ciência, “coletivos” do PT impedem a divulgação da cultura. Se pudessem, queimariam seu livro nas fogueiras da inquisição.
Agrediram o senador, é fato. Mas agrediram e desrespeitaram as duas instituições, sua história e sua cultura pluralista. Não pensem que se trata tão somente de uma ação tresloucada de alguns petistas espiroquetas.
O xingatório ao senador Cristóvam tem relação direta com o “mesaço” das senadoras Gleisi, Fátima Bezerra e Vanessa Grazziotin, que na mão grande tentaram tomar de assalto a condução dos trabalhos no Senado, durante a votação da reforma trabalhista.
Obedece à ordem dada por José Dirceu ainda de dentro da cadeia de uma “guinada à esquerda” do PT. Está em absoluta sintonia com a mensagem de solidariedade ao “companheiro Maduro” da presidente do PT, em recente encontro da esquerda bolivariana.
Propositadamente, o PT está açulando seus aprendizes de Maduro para criar uma escalada da violência, talvez por acreditar que, com a confirmação da condenação de Lula em segunda instância, a via institucional estará esgotada e que terão de apelar a outros meios. Esse é o sentido da afirmação de que eleição sem Lula é fraude. Ora, se é fraude, eles não participarão dela e percorrerão outras vias.
O PT não tem o menor compromisso com a democracia como um bem, um valor universal. Vivem na lógica binária robespierriana, que dividia o mundo em “bons e maus cidadãos”. Os bons são eles, claro, os maus todos os que não rezam por sua cartilha e merecem a guilhotina.
Se pudessem, os filhotes de Maduro fariam do Brasil uma Venezuela. Só não fazem porque não têm força e são obrigados a conviver com esse estorvo, a “democracia burguesa”, para enfraquecê-la por dentro. Não conseguirão porque felizmente o Brasil não é a Venezuela de Maduro. Nem por isso devemos subestimar seus filhotes.
Quanto ao senador Cristovam, sua biografia fala por si só. A ele toda a nossa solidariedade.
* Tibério Canuto é jornalista e comentarista político
O Estado de S.Paulo: Um documento histórico
Sentença assinada pelo juiz Sérgio Moro constitui um importante documento para a consolidação da democracia no País
Editorial O Estado de São Paulo
A sentença assinada pelo juiz Sérgio Fernando Moro, da 13.ª Vara Federal de Curitiba, que condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a nove anos e seis meses de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, além de uma pena acessória de sete anos de inabilitação para o exercício de cargos públicos, constitui um importante documento do processo de consolidação da democracia no País.
O ineditismo da peça condenatória – a primeira proferida contra um ex-presidente da República pela prática de crimes comuns – já seria, por si só, razão suficiente para atribuir-lhe a devida adjetivação histórica. Trata-se de um marco incontrastável do primado da igualdade de todos os cidadãos perante a lei, um dos pilares democráticos consagrados pela nossa Constituição.
Sabedor da repercussão que sua sentença tem no presente e terá no futuro, Sérgio Moro cercou-se de cuidados que dizem muito sobre o seu senso de responsabilidade. Todos os pontos da sentença, do relatório do longo processo até a fixação de penas, foram minuciosamente descritos e motivados, para eliminar dúvidas de quem quer que leia a peça.
Ao longo das 238 páginas da sentença, não foram poucas as atitudes do réu – e não apenas dele, mas também de seus representantes legais e de seus partidários – que foram classificadas por Moro como graves o bastante para ensejar a decretação de sua prisão preventiva no curso da ação penal. Houve ali orientação para a destruição de provas, ameaça ou coação de testemunhas e mobilização da militância do Partido dos Trabalhadores (PT) e dos assim chamados “movimentos sociais” para a prática de atos públicos com o único objetivo de tumultuar o bom andamento do processo. Entretanto, Sérgio Moro, acertadamente, decidiu com prudência e, a certa altura, optou pela condução coercitiva de Lula da Silva, uma medida severa, sem dúvida restritiva da liberdade, mas longe de privar o réu dessa mesma liberdade.
O mesmo cuidado pautou o comportamento do magistrado ao permitir que o condenado recorra da sentença em liberdade. “Considerando que a prisão cautelar de um ex-presidente da República não deixa de envolver certos traumas, a prudência recomenda que se aguarde o julgamento pela Corte de Apelação antes de se extrair as consequências próprias da condenação”, decidiu Sérgio Moro.
Já o Partido dos Trabalhadores, em nota oficial, abusa da imprudência ao classificar a condenação do chefão do partido como uma “medida equivocada, arbitrária e absolutamente ilegal”. Sérgio Moro é acusado de ser “um juiz parcial”, que age a serviço dos “meios de comunicação” e do “consórcio golpista”, os inimigos imaginários do PT que não seriam capazes de aceitar a “trajetória de sucesso de Lula na Presidência”. Este é pintado como vítima de “um caso típico de lawfare”, vale dizer, uma implacável perseguição política por meio do uso indevido de recursos jurídicos.
Evidentemente, trata-se da rançosa cantilena da vitimização que ressoa como música nos ouvidos da militância petista, mas que não resiste a uma leitura sóbria da sentença proferida por Sérgio Moro.
Antes de condenar Lula a quase dez anos de cadeia, o magistrado detalha, didática e minuciosamente, os episódios de todas as fases do processo e enumera todos os elementos fáticos, testemunhais e indiciários que formaram a sua convicção para a imputação da pena. A tão propalada “ausência de provas” fica reduzida a mero discurso político, um subterfúgio ante a fragilidade da defesa jurídica do ex-presidente.
Na sentença, fica cabalmente demonstrado que a cobertura triplex no Guarujá, bem como a milionária reforma do imóvel para atender às necessidades de Lula e de sua família, constituíram “vantagens indevidas em um acerto de corrupção” entre o ex-presidente e a empreiteira OAS. Sérgio Moro reserva dezenas de páginas para esmiuçar as artimanhas usadas para ocultar a transferência da propriedade do imóvel, incluindo a análise de fartas provas documentais e periciais apresentadas pelo MPF.
No futuro, quando arrefecerem as paixões, a sentença do juiz Sérgio Moro haverá de ser lida como um registro da vitalidade do Estado Democrático de Direito em um período particularmente conturbado da história do Brasil.