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José Aníbal: Os dois grandes desafios nacionais
Os principais obstáculos para o Brasil se tornar um país com mais crescimento econômico e desenvolvimento humano – ou seja, mais rico, próspero, inclusivo e justo – podem ser resumidos em dois pontos: crise fiscal e crise de representatividade.
Significa dizer que precisamos equacionar o financiamento do Estado e ver os interesses coletivos defendidos com maior ênfase e legitimidade. Sem isso, o país provavelmente repetirá a trajetória vista no passado recente: ondas de algum crescimento seguidas de recessão e avanços sociais pouco consistentes.
Como sair dessa armadilha?
Na questão fiscal, a resposta está tanto nas proposições macroeconômicas e estruturais, como a inadiável reforma da Previdência, quanto nas decisões do dia a dia da administração.
Na última segunda-feira, promovemos um seminário com prefeitos e ex-prefeitos em São José dos Campos, no Vale do Paraíba, uma das regiões mais bem-estruturadas do interior de São Paulo, mas nem por isso livre dos desafios colocados aos gestores municipais.
A experiência de cada um deles mostrou o quanto a boa política se exerce no cotidiano da gestão pública. Revisão de contratos, diagnóstico claro de prioridades e desenho de políticas públicas eficientes foram as receitas mais citadas pelos debatedores.
Não há fórmula mágica: é preciso reconhecer os limites da ação governamental, não gastar mais do que se tem e respeitar o dinheiro público.
Infelizmente, porém, tais práticas são menos executadas do que o desejado, vide a histórica recessão provocada pela irresponsabilidade e incompetência do lulopetismo.
O pior é que esse mau exemplo federal se espalhou nos governos subnacionais, provocando crises como a do Rio de Janeiro e deixando crítica a situação fiscal de mais de 80% dos municípios.
Como ilustrou no seminário o prefeito de Piracicaba, Barjas Negri, administrar uma cidade é vestir o uniforme de açougueiro e cortar, cortar, cortar. O que vai diferenciá-lo de um mero carniceiro é a precisão e a sabedoria no corte, de modo a não prejudicar os que mais precisam e, principalmente, não proteger nem privilegiar quem já tem muito.
Aqui, a crise fiscal se encontra diretamente com a crise de representatividade.
O forte esquema de acesso ao poder e proteção de privilégios das corporações que ocupam a elite do funcionalismo público e de setores que se acostumaram ao capitalismo de compadrio é um dos maiores entraves às reformas estruturais. Por isso devemos colocar toda a ênfase no combate aos privilégios em debates como o da previdência.
Os dois grandes desafios do Brasil – a crise fiscal e a crise de representatividade – devem ser enfrentados de forma concomitante e igualmente prioritária. Devemos unir forças nesses dois bons combates.
O protagonismo no debate público será alcançado por aqueles que conseguirem tratar dessas duas questões de forma conjunta, aberta e franca com a sociedade, desmascarando os populistas e os despreparados e trazendo de volta a racionalidade que tanta falta faz na condução do Brasil.
* José Aníbal é presidente nacional do Instituto Teotônio Vilela. Foi deputado federal e presidente nacional do PSDB
Fernando Gabeira: Onde está todo mundo?
No vestiário da piscina, cumprimento um amigo. — Tudo bem — responde. — Família? —Tudo bem conosco, família, amigos. Mas o país…
Mesmo entre as pessoas que passam bem e tocam seu barco cotidiano, as conversas tendem a terminar assim, com um lamento sobre o Brasil. Isso acontece também em diálogos na rede social. Mas é diferente. Com a presença física do outro, sentimos mais fortemente o desencanto com o país.
Não sei se por nostalgia dos tempos de manifestações, passeatas, assembleias, às vezes sinto um vazio que a internet não preenche. Era como se estivesse numa sala e perguntasse: onde estão todos nesse momento? Sei que posso encontrá-los num simples clique. Mas não é a mesma coisa. A respiração ofegante, olhares, o suor escorrendo, gritos — tudo isso faz parte do mundo que convencionamos chamar de presencial.
Creio que 2018 será diferente. Eu mesmo já me desloco para ouvir amigos, conversar com eles sobre o buraco em que nos metemos. Não tenho grandes certezas, nem um discurso acabado. Ambos não ajudam numa boa conversa. De que adianta falar com quem acha que sabe tudo?
Suspeito, no entanto, que um período se fechou com os 13 anos do governo de esquerda. Suas políticas, no campo econômico, mostraram-se insustentáveis no sentido mais elementar do termo: o Brasil praticamente quebrou. Na dimensão ética, a passagem da esquerda pelo governo foi uma catástrofe maior que os desastres do passado. Um período fora do governo fará bem a ela. Os conservadores ingleses tendem a considerar bemvindos os momentos de oposição. Podem descansar do poder e refletir sobre o período em que estiveram lá. A esquerda continuará lutando para voltar ao governo, como ponto central de sua agenda. Não é dada a longos períodos de reflexão e tem uma dependência física do poder, seus cargos e benesses. No quadro brasileiro, suponho que haverá uma alternância e deve se seguir uma etapa em que forças liberais e conservadoras ocupem o espaço na direção do país. Ignoro ainda como vão combinar essas duas tendências, que tipo de arranjo surgirá daí. Constato apenas que existe uma contradição bastante nítida entre preservar os valores da família e comunitários e apoiar a revolução do mercado global.
Tenho ouvido falar de Margaret Thatcher como um exemplo luminoso. Se analisarmos a experiência da Dama de Ferro, veremos que as profundas mudanças que provocou na Inglaterra enfraqueceu os conservadores. Sua tese de que o importante era impedir que os trabalhistas voltassem um dia ao governo tinha um tom de arrogância que acabou resultando em Tony Blair, com propostas liberais e um rótulo de terceira via, inventado pelo marketing politico. Em ambos os casos, as forças de mercado cresceram e se espraiaram por serviços públicos. As organizações quase governamentais tornaram-se um forte setor da economia.
No Brasil, existe uma simpatia maior pelo papel do Estado. O processo será mais difícil. Thatcher, ao assumir, revelou que gostaria de um retorno aos rígidos valores vitorianos. Mas isso parece ter escapado de suas mãos, pois a Inglaterra tornou-se mais tolerante, inclusive com uma maior aceitação do homossexualismo. O que quero dizer com isso é que assim como a realidade mostra-se um pouco irredutível, sempre colocando armadilhas na trajetória da esquerda, ela o fará também com o sonhos das forças que tendem a substituí-la.
Todas essas interrogações que tenho sobre o futuro, respeitando os que têm certezas acabadas, tornam o quadro mais complexo com a septicemia nos órgãos públicos. Nesta semana ficou mais clara ainda como o processo se espalhou pelas milhares de prefeituras brasileiras. Em Porto Seguro, Cabrália e Eunápolis, os prefeitos foram afastados por corrupção. Circulou um vídeo em que a prefeita de Porto Seguro confessa, alegremente, sua propensão a roubar 50% dos investimentos numa obra pública. Em Teresópolis, o prefeito Mario Toscano, ele mesmo já afastado, denunciou um esquema de corrupção que envolve todos os 12 vereadores.
No Rio, a Polícia Federal revela que Cabral comprou dossiês para atacar o juiz Marcelo Bretas. Até aí nada de surpreendente. O que surpreende é a Justiça, na pessoa de Gilmar Mendes, recusar-se tão ostensivamente a aceitar as evidências das ameaças de Cabral. O que importa mais alguns casos de corrupção e gangsterismo num país que já viveu tantos deles, ao longo dos anos?
A tese central é que o povo espera as eleições para corrigir os erros. Recentemente, surgiu uma notícia de que os militares duvidam desse roteiro. Temem que a crise econômica se aprofunde, o Estado quebre mais completamente e traga com sua ruína grandes inquietações sociais. A reforma da Previdência foi para o espaço, ao que tudo indica. O chamado Centrão vai controlar os ministérios. As hienas prosseguem seu banquete devorando o que resta dos recursos públicos.
É hora de conversar, trocar ideias, criar vínculos. Candidatos fazem caravanas; amigos fazem visitas. Com todo respeito pelo intenso debate na internet, suspeito que é hora de levantar da cadeira.
Fonte: https://oglobo.globo.com/cultura/onde-esta-todo-mundo-22059689
El País: O que o Exército está insinuando sobre as eleições?
Comandantes militares pediram um ambiente de tranquilidade política que permita a realização de “um processo eleitoral tranquilo”
Juan Arias
Os comandantes militares exortaram à criação no país de um ambiente de tranquilidade política que permita, ano que vem, a realização de “um processo eleitoral tranquilo”, de acordo com um documento ao qual o jornal Folha de S. Paulo teve acesso. O que a cúpula do Exército está insinuando? Freud alertou que as palavras podem indicar mais do que expressam, porque revelam nosso subconsciente. E não é preciso ser um especialista em semiótica para saber ler o que está implícito na linguagem. Por isso, é importante entender o que os militares entendem por eleições “tranquilas”.
O Exército, que em sua alta hierarquia afirma apoiar o processo democrático e sua fidelidade às instituições, deve possuir informações privilegiadas sobre o que ocorre no país. É possível que os comandantes conheçam a existência de interessados em contaminar as eleições criando um clima de desassossego eleitoral. Não é um segredo que nas próximas eleições o Brasil, que não é uma república das bananas, mas um ator essencial dentro e fora do continente, tem muito em jogo. É o final de um ciclo histórico e estão sob suspeita muitos interesses abertos e ocultos, sejam políticos ou econômicos, que podem depender do resultado de eleições limpas.
Não por acaso a presidenta do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann, acaba de afirmar que “corremos o risco de não ter eleições com essa crise institucional”. A que crise concreta ela se refere? Está querendo indicar que os brasileiros perderam a confiança não só em seus políticos, mas até em suas instituições democráticas? E se for assim, existe o perigo real de que as eleições possam ser abortadas e com quais consequências? E quem teria interesse em que não se realizassem ou que amanhã sejam impugnadas eleições que deveriam colocar o ponto final do chamado “golpe” contra Dilma, que deixou feridas ainda abertas que Lula tentou cicatrizar com sua frase já célebre e enigmática “estou perdoando os golpistas desse país”?
Gleisi, que fala com menos diplomacia do que os militares sobre o perigo que as eleições podem sofrer, antecipou que os interessados em boicotá-las “são os golpistas”, a direita. Ninguém ainda expressou abertamente, mas é possível que muitos políticos importantes, de direita e esquerda, pelo temor de que tanto eles como seus partidos sejam varridos após as acusações de corrupção que lhes inquietam, possam estar interessados em que as eleições, como parecem insinuar os militares, não se realizem em um clima de tranquilidade. No Congresso já se preparam para “afrouxar”, por exemplo, a lei da Ficha Limpa, que pode impedir que muitos políticos corruptos concorram nas eleições.
O PT, que é um dos grandes que chega mais vulnerável a essas eleições, começou, por exemplo, a considerar a possibilidade de “boicotar” as eleições se a Justiça impedir Lula de disputá-las. A presidenta Gleisi disse, em uma entrevista recente à BBC Brasil, que as eleições poderão ser consideradas uma “fraude” se Lula não puder ser candidato. Confessou que seu partido já está trabalhando nas redes sociais com dois lemas: “Eleições sem Lula são uma fraude” e “Eleições sem Lula são um golpe”. Um correligionário seu, o deputado por São Paulo José Américo foi ainda mais longe. Chegou a dizer que se impedirem Lula de participar, pode ser criada no país, “por não deixarem o povo decidir”, uma situação de “convulsão social e de risco de guerra civil”.
Nesse momento delicado, o mesmo Lula, o maior líder popular do país, cuja candidatura condiciona fortemente o resultado das eleições, teria, de acordo com líderes de seu próprio partido, que esclarecer se pensa em se candidatar a qualquer custo, ou se respeitará as regras eleitorais. Poderia explicitar que só será candidato se existirem as condições jurídicas para que possa fazê-lo, para a tranquilidade do país e para contribuir com a realização tranquila das eleições. Lula tem o direito, como qualquer outro cidadão brasileiro, de disputar as eleições e o PT de defender sua candidatura apesar de seus problemas com a Justiça ainda pendentes de um veredito final. Hoje são milhões que votariam em Lula segundo as pesquisas, mas para que ninguém possa tirar a legitimidade das eleições, isso deveria ocorrer somente se o candidato petista estiver nesse momento amparado pela lei.
É, de fato, nos momentos cruciais para um país, em que podem estar em perigo os valores da democracia, quando os políticos de boa cepa devem saber se inscrever no livro da História.
Roberto Freire: Guerra não declarada
Em qualquer pesquisa que se faça sobre as maiores preocupações dos brasileiros em relação à vida cotidiana, a sensação de insegurança e a impotência em relação à violência aparecem, invariavelmente, no topo da lista. Como se não bastassem as enormes dificuldades ainda enfrentadas pela população em função da maior recessão econômica da história do país – que agora, enfim, começa a ser deixada para trás –, não há uma família sequer que se sinta plenamente segura ao andar pelas ruas, seja nas metrópoles ou nos pequenos e médios municípios. A chaga da violência atingiu tal nível de desmantelo no Brasil que, lamentavelmente, quase já se vive em um cenário típico de guerra.
Segundo os dados divulgados pelo 11º Anuário Estatístico da Violência, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o país registrou em 2016 o aterrorizante número de 61.619 mortes violentas, o que corresponde a um aumento de 3,8% em relação ao ano anterior. Nesse novo e inaceitável patamar, a taxa nacional de assassinatos por 100 mil habitantes chegou a absurdos 29,9, uma das mais elevadas do mundo.
Para que se tenha a dimensão da tragédia nacional, esses números representam 7,4 vezes o que se mata nos Estados Unidos; 42,8 vezes o índice da Alemanha; e impressionantes 99,6 vezes a mais do que no Japão (onde as armas portáteis são terminantemente proibidas, inclusive as chamadas “armas brancas”, permitindo-se unicamente a posse de armas de ar comprimido e de caça).
O mais chocante, no entanto, é compararmos a situação brasileira com a Síria, um país que completou seis anos de uma bárbara e sanguinária guerra civil. Até março de 2017, 321.358 pessoas foram mortas por lá durante todo esse período, das quais cerca de 91 mil civis (uma média de 53.559 homicídios dolosos a cada ano, inferior aos números brasileiros). Se a comparação for feita apenas com os civis, o que é mais adequado, cerca de 15 mil pessoas são mortas por ano na Síria, praticamente um quarto do que se mata no Brasil.
Apesar de tamanho descalabro, é possível alimentar alguma esperança de que nosso país encontre um caminho para amenizar um dos problemas mais dramáticos que enfrenta. Quando se observa detalhadamente os dados referentes ao estado de São Paulo, por exemplo, o que se nota é uma enorme disparidade em relação ao caos vivenciado no resto do Brasil. No território paulista, o número de mortes violentas é de 11 por 100 mil habitantes (em Sergipe, chega a 64 por 100 mil). No caso dos latrocínios (roubo seguido de morte), São Paulo registra 0,8 por 100 mil (no Pará, esse índice é de 2,3 por 100 mil, o triplo).
O Atlas da Violência, estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo mesmo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em junho deste ano, reforça que o enfrentamento à violência tem sido bem sucedido em São Paulo em comparação com o restante do Brasil. Além do menor índice e da maior redução na taxa de homicídios por 100 mil habitantes, o estado está representado por 19 cidades entre as 30 consideradas mais pacíficas de todo o país.
Entre 2005 e 2015, de acordo com este levantamento, houve uma significativa redução de 44,3% na taxa de homicídios no estado. Fazendo um cruzamento com os dados do Anuário da Violência já citados anteriormente, se o índice verificado em todo o Brasil fosse igual ao de São Paulo, teríamos 22.503 mortos (e mais de 38 mil brasileiros seriam poupados a cada ano). Tudo isso apenas corrobora a tese de que é necessário, uma vez mais, olhar com atenção e analisar com responsabilidade o exemplo exitoso de São Paulo, que pode servir como modelo a ser replicado nos outros estados.
Outro caso emblemático, este pelo aspecto negativo, é o do Rio de Janeiro, que vem sofrendo com a ação do crime organizado e a dificuldade das forças de segurança em neutralizá-la. É importante destacarmos o papel que as Forças Armadas cumpriram recentemente na cidade, sob acompanhamento do ministro da Defesa, Raul Jungmann, que faz um notável trabalho à frente da pasta. Mas é evidente que esse tipo de atuação é uma consequência direta do total descalabro da área de segurança pública não só no Rio, mas em diversas regiões do país. A segurança é responsabilidade constitucional dos estados, por meio da ação de suas polícias, e a transferência dessas atribuições aos militares é um atestado de incompetência, algo inaceitável, além de um desvirtuamento da ordem constitucional.
Os números de guerra servem para nos levar à constatação de que se chegou a um ponto insustentável. A sociedade não suporta mais conviver com níveis de violência que há muito ultrapassaram todos os limites e tomaram conta do país. O Brasil clama por paz e civilidade contra a barbárie. A população está assustada, e não sem motivo. Por outro lado, há exemplos virtuosos que indicam o caminho a ser seguido no combate ao crime. Temos de reagir. É possível vencer.
José Aníbal: O futuro do Brasil em nossas mãos
Daqui a menos de um ano, o Brasil saberá quem governará o país de 2019 a 2022. Mas o próximo presidente da República responderá por mais do que quatro anos do futuro nacional: será ele um símbolo de que a racionalidade supera o voluntarismo, de como a ação estratégica na política se sobrepõe à ingenuidade do falso moralismo e, principalmente, da capacidade de convergência e construção de unidade em torno de um objetivo maior.
É claro que tudo isso só será verdade se um projeto coeso, maduro e consistente se viabilizar e for eleitoralmente bem-sucedido. E é isso que deve ser o norte de toda força política comprometida com o efetivo avanço do Brasil, e não com seus interesses mais imediatos. Só um amplo leque de alianças, pautadas pela coragem e ousadia de promover uma agenda reformista justa e contemporânea, será capaz de superar os discursos demagógicos, sectários e anacrônicos que ecoam nos dois extremos do espectro político.
Não podemos nos furtar ao enfrentamento direto, claro e bem fundamentado contra uma esquerda retrógrada e corporativista que gravita em torno do lulopetismo e contra um conservadorismo que se traveste de laissez-faire, mas não consegue esconder sua essência anacrônica e autoritária.
O desafio é como fazer tal enfrentamento. Por um motivo simples: não podemos errar. Em artigo no Estadão, o ex-ministro Roberto Brant sintetizou de maneira precisa o debate que está colocado em torno das causas da crise em que nos encontramos e como construir soluções para superar tal situação.
Vivemos, sim, um importante processo de combate à corrupção sistêmica, mas há um problema maior a ser enfrentado, que é a dimensão e a sustentabilidade fiscal do Estado. A corrupção não é causa, mas consequência de uma série de disfuncionalidades de uma estrutura institucional que é inchada sem ser musculosa, grande sem ser forte.
Enquanto o Estado brasileiro mantiver sistemas de privilégios e injustiças, como as atuais regras de aposentadorias e as benesses reservadas às elites das burocracias dos três Poderes e do Ministério Público, a importante missão institucional de se combater desvios será mera retórica dos que pouco se empenham em promover um sistema social com maior igualdade de oportunidades.
Não há dúvidas de que precisamos não de um Estado grande ou pequeno, mínimo ou máximo, mas de um Estado que funcione, um Estado eficiente e eficaz para todos os brasileiros. Essa é a essência que sempre marcou o PSDB e que precisamos reforçar como nossa marca.
Obviamente, isso se dá com a redução das brechas para a corrupção e para os favorecimentos, mas significa principalmente uma gestão em que políticas públicas são constantemente avaliadas, revistas e aprimoradas para fazerem os recursos pagos pelos contribuintes renderem os melhores resultados possíveis.
Não é a corrupção por si só que faz com o que o Brasil invista em educação mais do que a média dos países da OCDE e colecione posições vergonhosas em rankings internacionais. É o corporativismo que resiste a inovações e à adoção de práticas modernas de capacitação e avaliação do desempenho dos professores.
Tampouco será por vias autoritárias e moralistas que teremos chance de sucesso contra a grave crise de segurança que aflige brutalmente a sociedade e as famílias. Além da recessão econômica recorde, o lulopetismo legou ao Brasil o recrudescimento da violência urbana por todo o país, tanto em grandes metrópoles como pequenos e médios municípios. Mas achar que o problema se resolve só com repressão, sem planejamento ou inteligência, é uma dupla tragédia: aumentam os confrontos, assim como os mortos entre civis e policiais, sem que se diminua a criminalidade.
Esses dois exemplos – o desperdício de investimento na educação e a perda irrecuperável de vidas para a violência – são os mais eloquentes do que o Brasil precisa: mais respeito às leis e menos corrupção, sem dúvida alguma, mas principalmente maior racionalidade e eficiência na implementação de políticas públicas. É para isso que o PSDB foi fundado, há quase 30 anos, e é por isso que o partido se mantém relevante, com mais de 800 prefeituras e seis governos estaduais.
Se nos rendermos ao moralismo raso, em vez de nos unirmos na defesa de um projeto pautado em promover maior bem-estar com uso adequado e republicano dos recursos dos contribuintes, não só perderemos relevância como permitiremos que se concretize no futuro a tragédia anunciada caso vençam os discursos maniqueístas dos radicais de esquerda ou de direita. Essa é a questão crucial que está colocada ao PSDB e ao Brasil.
* José Aníbal é presidente nacional do Instituto Teotônio Vilela. Foi deputado federal e presidente nacional do PSDB
Alberto Aggio: As múltiplas vigências do populismo
Foi Isaiah Berlin que, em maio de 1967, numa conferência proferida em Londres, chamou atenção para o fato de que o “complexo de Cinderela” rondava o conceito de populismo. Mobilizando os componentes da fábula, Berlin afirmava que a essência do populismo, seu núcleo fundamental, não se encontrava na realidade, mas no comportamento intelectual de se buscar, por toda a parte, o chamado “populismo puro, verdadeiro, perfeito”, tal como o príncipe que, naquela estória, sapato em punho, vagueava errante em busca do pé da donzela que o encantara. Mesmo que sua ocorrência se tivesse dado em um único lugar, não importando sua vigência no tempo, o que se buscava pelo nome de populismo era, na verdade, a realização de um “ideal platônico”. Por ser assim, o populismo “realmente existente” seria sempre uma versão incompleta ou uma perversão. Apesar desse imenso déficit analítico, o populismo continuou a ser, nas ciências sociais ou na linguagem política, uma referência conceitual para caracterizar lideranças, movimentos ou regimes políticos, da mesma forma que, sem assumir-se como tal, correntes políticas diferenciadas continuariam a expressar a perspectiva de sua realização por meio de estratégias variadas de ação política.
A pré-história do conceito registra que o neologismo nasceu da tradução para o inglês do movimento narodnik na Rússia da segunda metade do século XIX. No mesmo período, ele também seria utilizado, em menor escala, para identificar o movimento político de pequenos e médios produtores rurais no hinterland norte-americano. Depois da Rússia, a América Latina é a “grande pátria do populismo”, escreveu José Aricó. Foi nela que o conceito fincou raízes e se generalizou, a ponto de ser a denominação de um período da sua história.
Como conceito, o populismo resultou de um movimento reflexivo que visava explicar a inadaptação das camadas populares, advindas do campo, à vida urbana que se impunha de maneira irrefreável na América Latina desde a década de 1930. A teoria sociológica registrou uma conexão entre a atitude mental de reação à modernidade dessas camadas populares e os fenômenos de natureza pré-democrática que derivavam da inexperiência política do conjunto da sociedade latino-americana na transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna. Os líderes que tiveram o respaldo político dessas camadas populares e se tornaram os principais protagonistas dos processos de superação da forma política de dominação oligárquica foram chamados de populistas, ainda que nenhum deles tenha assumido tal identidade.
O populismo emergiu num cenário de crise do liberalismo e de ascensão de massas, na América Latina e no mundo. Enquanto governos ou regimes, o populismo orientou sua política para a construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, ao mesmo tempo em que normatizou a “questão social”, incorporando as massas ao mundo dos direitos. Superou o liberalismo das oligarquias por meio de uma “fuga para frente” cujo objetivo foi o de realizar transformações sem rupturas violentas, evitando o que havia ocorrido nos processos capitalistas e socialistas de industrialização retardatária. O populismo promoveu a superação do atraso, sem revolução, garantindo, pela primeira vez, que o tema da cidadania fosse equacionado pela política nesta parte do Ocidente. Se aprofundarmos essa leitura, a “era do populismo” poderia ser compreendida por meio da categoria gramsciana da “revolução passiva”, abrindo novas perspectivas de interpretação.
Seja como for, o populismo interditou a via de passagem “clássica” à modernidade, caracterizada pela integração autônoma das classes populares às estruturas políticas da democracia liberal de perfil europeu. Ao invés disso, conectou desenvolvimento econômico e espaços institucionalizados de integração político-social de massas, reservando ao Estado um papel central. Essa configuração foi compreendida pelas ciências sociais como a principal razão de a sociedade latino-americana expressar claros limites para vivenciar a modernidade. Um diagnóstico poderoso e de muitas implicações: mais do que um conceito, o populismo era, no fundo, uma teoria explicativa a respeito dos descaminhos da modernidade latino-americana. Esta visão acabou produzindo uma cristalização cognitiva, fazendo com que a palavra populismo se generalizasse como representação de um passivo insuperável.
A história tratou de questionar essa interpretação. A luta política contra os regimes autoritários, especialmente no Brasil, deslocou o populismo do centro da política latino-americana, recusou a centralidade do Estado e promoveu a autonomia da sociedade civil em sua dinâmica de expansão da cidadania. No plano mundial, a globalização alterou a relação entre política e mercados. Tudo isso parecia enterrar definitivamente o populismo como um constructo ideológico passível de ser mobilizável apenas na “era dos Estados Nacionais”, mas anacrônico no contexto de globalização. Nessas circunstâncias, a política democrática começava a agregar novos valores à “revolução passiva”, agora em registro positivo, invertendo os vetores de sua orientação, com a mudança dirigindo a conservação.
A trajetória do populismo no século XX foi, em certo sentido, democratizadora, ainda que, em geral, avessa ao constitucionalismo e ao liberalismo. Contudo, a partir do início do século XXI, a mesma conjuntura que viu o avanço das amplas liberdades, do pluralismo e da alternância de poder nas democracias latino-americanas recém-saídas do autoritarismo também produziu uma espécie de “revanche do populismo” que, hoje, se expressa na moldura do bolivarianismo. Nela se supõe a emergência de uma forma de política na qual a relação entre governantes e governados abriria passagem para a construção de uma democracia direta e participativa, superior à democracia representativa, entendida como obsoleta e ineficiente. O populismo do século XXI busca uma identidade integral entre a instituição do “povo-sujeito” e a política, anulando a ideia de representação bem como a noção de “governo do povo”, entendida como uma contradição em termos.
Para Laclau, a razão populista e a razão política são idênticas, o que desloca para o plano secundário a deliberação racional vigente nas democracias ocidentais. Essa radicalização contraposta à modernidade, avessa ao individuo e sua expressão autônoma, que dá sustentação ao populismo do século XXI, sintetizada por Félix Patzi, ex-ministro da educação da Bolívia, como “uma espécie de autoritarismo baseado no consenso”.
Laclau realiza uma simbiose entre a teoria do populismo e as expectativas decantadas pelo marxismo quanto a uma revolução promotora da unificação, como dissemos acima, entre a razão do povo e a razão política. Por isso, faz sentido ele afirmar que hoje “há um fantasma que assombra a América Latina: esse fantasma é o populismo”. A paráfrase de Marx é imediatamente reconhecível e pode-se deduzir que Laclau pensa em reservar ao “populismo atual” um lugar idêntico ou semelhante ao que Marx imaginava para o comunismo na Europa dos idos de 1848.
Mas, ao contrário de Laclau, pelo menos até agora, o que se pode anotar é que o populismo dos dias que correm é visivelmente uma força regressiva no político. Hoje, no interior da moldura do bolivarianismo, nele predominam o autoritarismo, a intolerância e o antipluralismo. Onde é possível, afronta os direitos humanos, suprime as liberdades, reprime opositores, persegue juízes e jornalistas. Onde a ordem constitucional democrática é mais legitimada, a resistência é maior.
Marco Aurélio Nogueira: Políticos imperfeitos
Crítica a Temer deve ser bem calibrada. Ele é produto do quadro político atual...
Na conhecida conferência A política como vocação, proferida em 1919, o sociólogo alemão Max Weber sugeriu que o verdadeiro homem político deveria possuir ao menos três qualidades essenciais: precisaria combinar a paixão por uma causa, o sentimento de responsabilidade e o senso de proporção. Poderia ter uma dessas qualidades em maior dose, mas não poderia deixar de ter as três. Com elas, entre outras coisas, haveria como controlar a vaidade, o desejo de permanecer sempre no primeiro plano, e dar o devido peso à missão política propriamente dita.
A sugestão é útil para que se discuta, por exemplo, a conduta de parlamentares e governantes, seu maior ou menor sucesso, seu estilo de liderança, as razões que os fazem mais eficientes na representação política e na gestão e lhes dão maior capacidade pedagógica de interagir democraticamente com as massas.
Há governantes que se seguram tão somente na paixão pela causa, conseguindo compensar a ausência (relativa) das outras qualidades mediante a organização de uma boa equipe de auxiliares. Enquanto o chefe faz política e enfatiza sua causa, os assessores cuidam da administração e garantem alguma margem de responsabilidade e senso de proporção no processo de tomada de decisões. Lula pode ser aqui tomado como exemplo positivo. Dilma seria um exemplo negativo.
Em seus dois mandatos, o ex-presidente não deixou um minuto sequer de fazer política e reverberar sua causa. Conseguiu terminar seus governos nos braços do povo, sua equipe de auxiliares se encarregou, com eficiência, de fazer a máquina administrativa funcionar e estabilizar a base política, que forneceu ao governo a necessária sustentação. As circunstâncias nacionais e internacionais foram-lhe favoráveis e o beneficiaram com os ventos da Fortuna, mas é evidente que houve Virtù e bom desempenho entre 2013 e 2010.
Com Dilma Rousseff ocorreu o contrário. Apresentada ao mundo como “gestora rigorosa e técnica competente”, não mostrou aptidão particular para a política, não conseguiu expressar causa alguma nem exibiu a exaltada competência administrativa. Seu senso de proporção e responsabilidade foi reduzido, o que impulsionou a crise. Em decorrência, entrou em atrito com amigos, aliados e auxiliares, não estruturou uma equipe leal e eficiente, teve de aceitar a contragosto a transferência da operação política para outros personagens e não conseguiu organizar um Estado administrativo vigoroso. As circunstâncias não a beneficiaram e passaram, em decorrência, a exigir sempre mais talento político, que lhe era escasso. Dilma plantou, assim, os ventos que iriam transformar-se na tempestade perfeita do impeachment. A desgraça configurou-se quando ela, em 2014, bateu pé e fez questão de concorrer à reeleição. Sua vitória nas urnas foi de Pirro e só serviu para bloquear as chances que o PT teria de ajustar o curso do navio.
Faltaram a Dilma, portanto, as três qualidades essenciais estabelecidas por Weber, com o que ela foi devorada pela vaidade e pela dificuldade de interagir democrática e pedagogicamente com as massas. Sua queda foi uma espécie de profecia que se autorrealizou.
Trazendo o argumento para os dias correntes, encontramos Michel Temer como exemplo de político com dificuldades para combinar as três qualidades. Falta-lhe antes de tudo a devoção a uma causa, já que a ideia de fazer de seu governo um artífice da retomada do crescimento econômico e do ajuste fiscal não aquece mentes e corações. Com o tropeço nas pedras que surgiram pelo caminho (Joesley e Janot), Temer viu evaporar o que tinha de força para aprovar reformas, sobretudo porque não soube reunir os consensos sociais necessários para fazê-las e foi sendo desconstruído pelo próprio Congresso, que esperava ver apoiá-lo. O presidente também não demonstra possuir um apurado senso de proporção e responsabilidade, o que fez com que vacilasse na composição de seu Ministério, para o qual convocou pessoas que pouco o ajudam e têm opaca imagem pública, e se entregasse desmesuradamente ao jogo político miúdo e fisiológico. Foi, assim, sendo devorado por predadores de várias espécies, perdendo condições de fazer política abrangente, a ponto, por exemplo, de influenciar sua própria sucessão. Tornou-se um governante inercial, refém do Congresso e sustentado pelos relacionamentos que amealhou durante a longa carreira parlamentar. Seus baixíssimos índices de aprovação e popularidade fecham a moldura.
Mas a crítica a ele deve ser bem calibrada. Temer é produto do quadro político atual, que está majoritariamente ocupado por políticos imperfeitos. Alguns têm causas, outros se declaram responsáveis, mas há poucos que se dediquem a unir uma qualidade à outra. Não porque não as tenham, mas porque não se dispõem a confrontar as bandas podres do sistema e recuperá-lo.
Bons políticos existem e continuarão a existir sempre. O que falta é que eles se reúnam, se articulem, se imponham nos espaços políticos institucionais e dialoguem abertamente com a sociedade. Sem a paixão que promove a entrega a uma causa e sem um sentido superior de responsabilidade (pública), os políticos são atraídos mais pelo brilho do que pela realidade do poder; e terminam por usufruir o poder pelo poder, sem cumprirem funções positivas. Precisam romper com isso.
Constatar que um país como o Brasil esteja entregue nos últimos 15 anos às desventuras de políticos “imperfeitos” – e imperfeitos porque “incompletos” – certamente levaria Max Weber a tremer no silêncio sepulcral em que repousa.
Quanto a nós, pobres seres viventes, a constatação provoca pasmo e uma perturbadora inquietação. O momento é exigente, pede empenho e discernimento. Não precisamos de “chefes”, mas de políticos dispostos ao sacrifício e vocacionados para colocar os dedos nas engrenagens da História, assumindo compromissos claros com uma agenda corajosa.
*Professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
Aloysio Nunes Ferreira: A diplomacia do biofuturo
Até 2030 a bioenergia precisará ter sua participação duplicada na matriz energética global e seu uso triplicado nos meios de transportes. Projeções elaboradas pela Agência Internacional de Energia Renovável e pela Agência Internacional de Energia indicam que ela será necessária em larga escala, mesmo considerando outras soluções concomitantes, como eficiência energética, energia solar e eólica, eletrificação dos transportes, cidades sustentáveis e maior uso do transporte público.
O setor de transportes – responsável por cerca de um quarto das emissões globais de dióxido de carbono (CO2) – figura entre os principais desafios para a construção de matriz energética mais sustentável nas próximas décadas. E uma das soluções mais eficazes e de mais rápida implementação para esse setor é a ampliação do uso de biocombustíveis, que produz resultados imediatos na redução da emissão de gases de efeito estufa mesmo em mistura parcial com combustíveis fósseis.
Obstáculos políticos e econômicos, porém, têm dificultado a transição para economia mais limpa no que diz respeito à bioenergia. A difusão de falsa dicotomia entre produção de alimentos e de combustíveis – além da insistente prática do protecionismo agrícola – tem impedido a constituição de mercado internacional para biocombustíveis e sua transformação em commodity global.
A revolução tecnológica que está em curso poderá mudar substancialmente esse panorama. O caso do etanol celulósico ou de segunda geração (E2G) é bom exemplo, já alcançando o estágio de produção em escala comercial no Brasil, nos Estados Unidos e na Itália. Outras tecnologias promissoras começam também a deixar os laboratórios e a atingir escalas de demonstração. O País está na vanguarda da inovação tecnológica na produção de combustível limpo e ambientalmente prudente, fato que contribui para liderança em desenvolvimento sustentável.
A segunda geração de biocombustíveis utiliza como insumo a celulose, a matéria verde que compõe a maior parte da biomassa das plantas. Avanços no uso da celulose podem tornar viável a produção de biocombustíveis em larga escala em diversos países que, de outra forma, não reuniriam as condições para replicar a bem-sucedida experiência brasileira com o etanol de cana-de-açúcar. O aproveitamento da celulose, sem prejuízo de outras formas de biotecnologia, é essencial para o desenvolvimento da bioeconomia, seja como alternativa, seja como complemento da indústria petroquímica na produção de plásticos, químicos e medicamentos.
Subsiste o desafio de alcançar escala de produção. Será preciso aperfeiçoar os processos em todas as etapas da cadeia produtiva e proporcionar ambiente de negócios favorável ao setor. Nessa nascente corrida tecnológico-industrial, o Brasil pode largar entre os líderes mundiais, desde que decisões corretas sejam tomadas.
É importante esclarecer que não há conflito de interesses ou concorrência entre a primeira e a segunda geração de biocombustíveis. O etanol de cana-de-açúcar, de primeira geração, é sustentável, não compete com alimentos e traz benefícios climáticos e ambientais. Essa fase continuará como base da produção no setor, com eficiência incrementada pela segunda geração. O desenvolvimento de uma avançada bioeconomia global, que se fortalece com biocombustíveis de segunda geração e bioprodutos, será de grande benefício para o País, que reúne as condições para ser um dos mais competitivos produtores mundiais.
O Itamaraty, em coordenação com outras áreas do governo e com o setor privado, tem liderado o esforço de disseminação global da bioeconomia de baixo carbono. Exemplo disso, foi lançada em novembro de 2016 a Plataforma para o Biofuturo, iniciativa multilateral que pretende acelerar o reconhecimento do papel dos biocombustíveis de baixo carbono e da bioeconomia na transição energética global. O Brasil conseguiu mobilizar outros 19 países, incluídas as maiores economias do planeta e países-chave para a expansão dos biocombustíveis, como Estados Unidos, China, França, Índia, Reino Unido, Indonésia, Itália e Argentina, para avançar nesse empreendimento.
O Brasil tem muito orgulho de coordenar a Plataforma para o Biofuturo, com apoio de seus parceiros internacionais. Esse mandato está sendo implementado por meio da negociação de uma Declaração de Visão, que deverá emitir forte sinal para o mercado sobre o papel relevante da bioeconomia nas próximas décadas, da construção de diagnóstico pormenorizado sobre o estado global dessa bioeconomia e da organização de conferências internacionais para troca de experiências e convergência de políticas. Por essa razão São Paulo sediará nos próximos dias 24 e 25 a primeira Cúpula para o Biofuturo (Biofuture Summit).
A Plataforma para o Biofuturo já tem correspondente doméstico em gestação, na forma do programa RenovaBio, que pretende reformular as políticas nacionais de biocombustíveis, com foco na redução de emissões e no estímulo à inovação e à eficiência energética.
Levar adiante essa agenda, simultaneamente nos planos interno e externo, deverá impulsionar o desenvolvimento de nossos setores agrícola, industrial e biotecnológico. A Plataforma afirmará também a posição de vanguarda do Brasil em energia limpa, com efetiva contribuição do País à construção de economia global social e ambientalmente sustentável, em consonância com os objetivos da Conferência de Paris.
O Acordo de Paris representou um marco na evolução da consciência global em favor da promoção do desenvolvimento sustentável e da economia de baixo carbono. Sem a utilização em larga escala da bioenergia não será possível atingir as metas de Paris, vitais para a humanidade, e a Plataforma representa um importante passo nessa direção.
*MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, É SENADOR LICENCIADO (PSDB-SP)
El País: Nas ruas do Brasil, a ditadura ainda vive
Cerca de 160 km de vias homenageiam vítimas do regime contra 2000 km que têm os nomes dos algozes
É o caso da Avenida Presidente Castelo Branco, parte do complexo de vias que forma a Marginal Tietê, a menos de 500 metros de distância da rua Vladimir Herzog. Ela foi batizada em referência ao general que tomou o poder no Golpe de 1964 – iniciando o processo autoritário que culminaria no assassinato de Vladimir Herzog e de pelo menos mais 433 pessoas, muitas das quais seguem desaparecidas até hoje, sem que seus corpos tenham sido encontrados.
Em todo o território do Brasil, são muitas ruas nomeadas em homenagem a personagens sombrios de nossa história – incluindo aqueles que estão entre os 377 apontados como responsáveis por torturas e mortes pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), um comitê que investigou os crimes do Estado naquele período.
Embora o número de vítimas reconhecidas seja maior que o número de criminosos levantados pela CNV, a soma do comprimento de ruas com o nome de vítimas é bem menor. São aproximadamente 160 km homenageando os que tombaram pela mão do regime contra mais de 2000 km de vias que fazem referência aos algozes, de acordo com o mapeamento feito nas ruas de todos os estados brasileiros.
No projeto, foram usados dados publicados pelo OpenStreetMap, uma plataforma colaborativa em que cada usuário pode adicionar e atualizar informações sobre localizações geográficas e endereços. O banco de dados não é perfeito: há inconsistências na padronização dos nomes e, principalmente, algumas das vias são representadas por mais de um item, o que impossibilita um contagem precisa do número de logradouros. Uma descrição detalhada sobre a produção está disponível aqui.
Não é apenas em número que as ruas com nome de generais e oficiais têm maior destaque do que as vias que homenageiam suas vítimas. Há também uma diferença geográfica e simbólica.
Enquanto grandes rodovias como a já mencionada Avenida Castelo Branco e a Ponte Costa e Silva (nome oficial da Ponte Rio-Niterói) comemoram o regime militar, os locais de memória da resistência se concentram em áreas periféricas e mais pobres. Em São Paulo, por exemplo, a maioria das ruas que homenageiam as vítimas se concentra em regiões pobres da Zona Norte e da Zona Sul, nos bairros de Jova Rural e Grajaú, respectivamente.
O mesmo acontece no Rio de Janeiro, onde diversas ruas que homenageiam militantes da resistência ficam no bairro operário de Bangu.
Uma grande parcela dos locais que relembram os líderes militares foi batizada ainda sob o governo ditatorial. Em contraste, os endereços que rememoram os mortos e desaparecidos só apareceram depois de esforços empreendidos por diferentes setores da sociedade civil.
Mudanças de nome
No centro de São Paulo, uma via elevada corre por cerca de 3.5 km, atravessando quatro bairros diferentes. Popularmente conhecida como Minhocão por seu comprimento e aparência, essa controversa intervenção urbana se chamou oficialmente Elevado Costa e Silva em referência ao segundo presidente da Ditadura, desde que foi finalizada, em 1970, até meados de 2016.
No meio do ano passado, porém, ela foi rebatizada de Elevado Presidente João Goulart, uma homenagem ao último líder civil a governar o país antes do Golpe de 1964.
A mudança faz parte de um movimento que acontece conforme as instituições brasileiras olham para o passado e tentam decidir de que maneira ele deve se refletir no presente e no futuro. Ainda que o presidente João Goulart tenha sido perseguido e perdido os direitos políticos durante o regime, ele não é considerado oficialmente uma vítima de violações de direitos humanos. Paulo Stuart Wright, porém, é.
Ex-deputado estadual de Santa Catarina, filho de dois missionários norte-americanos, Wright foi perseguido pelos militares desde o início do regime. Cassado pelo golpe militar ele se exilou no México em 1964, voltando clandestinamente ao país no ano seguinte para militar na resistência contra a ditadura. Wright desapareceu em 1973 e sua morte só foi confirmada quando arquivos secretos foram abertos onze anos depois, perto do final da ditadura. Em 2015, uma rodovia em seu estado foi rebatizada em homenagem a ele.
Confronto aberto
Um dos momentos mais dramáticos da política brasileira nos últimos anos, o impeachment de Dilma Rousseff (PT), foi deflagrado na Câmara dos Deputados. Jair Bolsonaro, ex-capitão do Exército e figura proeminente da extrema-direita, estava entre os deputados que votaram contra Dilma – e ele fez isso de maneira controversa.
“Perderam em 1964 e perderam novamente em 2016”, disse Bolsonaro comparando o golpe militar ao impeachment. “Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o terror de Dilma Rousseff […] eu voto sim [ao impeachment]”.
Bolsonaro homenageava o comandante do DOI-CODI de São Paulo, a câmara de tortura e morte que operava contra os inimigos do regime entre 1970 e 1974. Ustra, que há dois anos morreu livre e, segundo ele, sem arrependimentos, é considerado um dos agentes mais violentos das forças de repressão da ditadura.
Suas vítimas descreveram diferentes métodos de tormento, como choques elétricos e a inserção de ratos vivos na vagina de prisioneiras. Em alguns dos casos mais brutais, as sessões de tortura foram testemunhadas pelos filhos e cônjuges dos dissidentes. A própria Dilma passou meses detida em prisões do DOI-CODI nos anos 70 por participar de movimentos de resistência armada.
Durante o impeachment de Dilma, grupos que simpatizam com Bolsonaro tomaram as ruas, pedindo que as Forças Armadas “salvem o país do comunismo outra vez”– retórica que evoca a justificava usada pelos partidários do Golpe Militar há 43 anos. Atualmente, o candidato à presidência Jair Bolsonaro aparece em segundo lugar nas pesquisas eleitorais, atrás apenas do ex-presidente Lula, também detido pela ditadura militar. Mais uma evidência de que o passado não está apenas confinado nos nomes de rua – ele insiste em voltar à superfície de tempos em tempos.
El País: Na cidade com mais feminicídios no Brasil, 89% das vítimas são pretas e pardas
A Agência Pública foi até Ananindeua, no Pará, onde se registrou o maior índice do país em 2015
A sala está quente, abafada. O pequeno ventilador que gira no canto da mesa não dá conta de vencer os quase 40ºC que o termômetro marcava naquele começo de tarde no Pará. Os minutos de silêncio, timidez e hesitação precedem o peso dos depoimentos que viriam a seguir. Cada mulher sentada naquela roda sabe que não será fácil reconstituir as lembranças da violência sofrida durante anos. Algumas delas ainda vivem com seus agressores.
Elas estão reunidas na sede do Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Cram) em Ananindeua, cidade da zona metropolitana de Belém. São mulheres diversas em idade, raça, classe e história, todas atendidas pelo serviço. Apesar das diferenças, todas têm algo em comum: o fato de estarem vivas para contar o que viveram significa que venceram as estatísticas.
A cidade que mata mais mulheres
A Pública mergulhou nos registros do Ministério da Saúde para encontrar a cidade brasileira com mais mortes violentas de mulheres e a evolução desse número em dez anos (de 2005 a 2015 – último ano com dados disponíveis no sistema). Essa categoria inclui mortes por violência por diversos meios, como sufocamento, arma de fogo, objetos cortantes ou mesmo agressões sexuais*. Nesse recorte, Ananindeua foi o município com a maior taxa de morte de mulheres em 2015, com 21,9 homicídios para cada 100 mil. A segunda colocada, Camaçari, na Bahia, teve uma taxa de 13. A escalada da taxa de mortes de mulheres em Ananindeua ao longo dos anos também chama atenção: em 2005, foram apenas três mortes por agressões por 100 mil mulheres na cidade paraense – aumento de 730% em uma década.
Ananindeua aparece também entre as cidades com as maiores taxas de homicídio da América Latina e Caribe, segundo o Observatório de Homicídios. No último Mapa da Violência, que traz os homicídios por armas de fogo no país, de 2012 a 2014, ela fica em sétimo lugar no ranking.
Para obter mais detalhes do contexto em que essas mulheres foram mortas, a Pública pediu à Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup), via Lei de Acesso à Informação (LAI), os Boletins de Ocorrência (B.O.) de mortes de pessoas do sexo feminino em 2015 nos municípios de Belém e Ananindeua, decorrentes de agressões externas. O pedido especificava que, caso o nome das vítimas e dos agressores estivessem protegidos pelos excludentes das informações pessoais da LAI, poderiam vir tarjados no material a ser enviado. Ainda assim não obtivemos o acesso.
Segundo a pesquisa no DataSus, em 2015 morreram em Ananindeua 40 mulheres por armas de fogo, 12 por objetos cortantes, três por força corporal e uma por sufocamento. O recorte de raça também salta aos olhos: em dez anos, das 343 mulheres assassinadas, 306 eram pardas e negras e 35, brancas.
Com cerca de meio milhão de habitantes, Ananindeua é apontada também como a cidade com pior saneamento básico do país, entre outros maus indicadores sociais que se associam em um quadro de violação de direitos humanos, como explica Luanna Tomaz, professora da Ufpa e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Mulher e Relações de Gênero Eneida de Moraes (Gepem-Ufpa). “É uma cidade que fica ao lado da capital [Belém], que cresceu de forma desordenada, que tem muitas áreas pobres, precárias em termos de saneamento básico e urbanização. Grande parte das pessoas trabalha em Belém e só volta para dormir na cidade, que tem a BR passando no centro e várias regiões distantes, de periferia. Tem muitos problemas estruturais, e esse conjunto de fatores pode ser um dos indicadores para esses altos números de violência.”
Nesse cenário de violência generalizada, a violência entre quatro paredes é a principal responsável pelas agressões contra as mulheres, de acordo com a defensora pública de Ananindeua Luciana Guedes: “A grande maioria das mortes de mulheres aqui é resultado da violência doméstica. São cometidas dentro do núcleo familiar. Nós observamos isso não só pelas mulheres que chegam pedindo ajuda como nos casos em que a Defensoria atende os homens nesses crimes. Nós tivemos recentemente em Ananindeua a primeira condenação de feminícidio do Pará [cometido em 2015], e isso é bem simbólico”, afirma. E acrescenta: “Ananindeua é um município muito, muito pobre. A educação é muito ruim, a saúde é muito ruim, e, na minha opinião, a falta de políticas públicas ainda é o grande vilão da história. Isso se reflete nos nossos atendimentos aqui na Defensoria. Na área criminal, o volume de atendidos é muito grande e a solução não é só colocar PM na rua. É um ciclo de violência que não vai se quebrar enquanto faltar vontade política do Estado e da prefeitura [ambos do PSDB]”.
Luciana planeja montar um núcleo de atendimento especializado na Defensoria para dar conta da demanda espontânea: “Nós atendemos um grande número de mulheres que chegam todos os dias, às vezes com o B.O. que fizeram na Delegacia da Mulher em Belém, às vezes depois de serem mal atendidas em delegacias comuns na cidade e às vezes sem nada, só porque não sabem aonde ir.”
A fragilidade da rede de proteção apontada pela defensora aparece de forma recorrente na fala das mulheres vítimas de violência com quem conversamos para a reportagem.
A Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) mais próxima fica no centro de Belém, a cerca de 50 minutos de ônibus de Ananindeua, o que dificulta a denúncia – muitas mulheres disseram não ter o dinheiro do transporte ou com quem deixar os filhos, além de perder o dia de trabalho na viagem – e sobrecarrega a própria delegacia, conforme a delegada Janice Maia: “A Deam Belém foi feita para atender a zona metropolitana. A gente atende Belém e as cidades próximas como Ananindeua, Marituba etc. São muitas vítimas e a gente acaba não dando conta de atender todos. Ananindeua é uma cidade enorme, tem muitos habitantes, depois de Belém é de onde recebemos mais mulheres. É necessária uma Deam local, e ela já está sendo pensada. Existem muitas delegacias na cidade e teoricamente todas podem fazer o atendimento, mas a vítima prefere vir para cá porque aqui damos um atendimento mais especializado”.
A delegada explica que a aplicação da medida protetiva, que nos casos de Belém sai em 24 horas, assim como as providências quando ela é descumprida pelo agressor são mais difíceis em Ananindeua por causa da distância entre as duas cidades: “Em Belém, nós temos a facilidade de ter tudo aqui no mesmo prédio, mas nos outros municípios não. A medida protetiva tem que ir fisicamente para lá. O policial tem que sair daqui, atravessar a cidade e entregar na vara de lá. Se a mulher narrar uma quebra de medida, é mais fácil quando é de Belém porque a gente já fala com o Judiciário, pergunta se ele foi notificado, se não foi… Para os outros municípios, tem que ter esse deslocamento, tem que enfrentar o trânsito. Já dificulta nosso trabalho. É preciso mais veículos, mais policiais”.
Na prática, isso significa que uma moradora de Ananindeua que tenha sofrido qualquer tipo de violência ou ameaça de morte e não queira ser atendida por policiais homens em delegacia comum – ou que tenha sido mal atendida em uma – precisa se deslocar em uma viagem de cerca de uma hora até o centro de Belém, encarar uma fila, fazer o B.O. e voltar para casa para esperar pela medida protetiva (se for atendida no mesmo dia). Caso o agressor descumpra a medida – e a mulher continue viva –, ela deverá voltar a Belém (novamente caso não queira ou não possa ser atendida em uma delegacia comum) e avisar as autoridades competentes para que sejam tomadas providências.
“Quando eu cheguei sozinha na delegacia em Ananindeua, ninguém me deu atenção. Nem as próprias mulheres me deram atenção. Eu pensei: ‘O que eu tô fazendo aqui se nada vai ser feito?’. A escrivã pergunta: ‘Ele bateu? Como bateu? Tem marca?’. Pega no seu braço assim: ‘Ah só isso? Isso aqui? A senhora tem certeza que quer denunciar? Não quer tomar uma água?’. Isso faz a gente entender o quê? Que é perda de tempo estar ali. Pra muitas mulheres que voltam pra suas casas, que não denunciam, é justamente por isso. Porque elas se deparam logo com essa barreira. Eu não tenho família, não tinha pra quem pedir ajuda. As mulheres voltam pra casa e são agredidas novamente e novamente. Por isso hoje muitas mulheres falam: ‘Nem vou denunciar porque não vai dar em nada mesmo’. A mulher acaba que desiste”, diz A**, que durante alguns anos sofreu agressões físicas e chegou a ser mantida em cárcere privado pelo companheiro, na roda de conversa no Cram (sua história completa está em uma das animações abaixo).
As outras acenam com a cabeça, concordando. R., que ainda mora com o marido agressor, diz: “Eu prefiro sumir, sair de casa quando ele tá violento. Nesse feriado de abril que teve, eu apanhei muito. Aí eu fui na delegacia do bairro fazer um B.O. e eles me disseram que só poderiam me atender no horário comercial, de 8h ao meio-dia e das 14h até as 17h. Eu só poderia voltar quatro dias depois. Fui em outra delegacia e também não me atenderam. Eles não dão continuidade. Eu não tenho condição de ir até Belém pra voltar com um papel. Vai ser pior. Aí eu acho melhor eu sumir mesmo, saio um pouco de casa e, quando ele se acalma, eu volto. Já tive minha cara quebrada, meu nariz quebrado, pedaço da orelha arrancado. Tenho marca, mordida, sofri violência moral, sexual”. Ela diz que ainda não deixou a casa porque não tem família nem renda suficiente para sustentar a si e ao filho com necessidades especiais. Também não conseguiu que o marido saísse da casa. Então vai convivendo com a violência.
“É muito difícil para as mulheres quebrarem o ciclo de violência”, diz a coordenadora do Cram, Rosana Moraes. “Porque eles agridem, pedem perdão, ficam bons por um tempo e depois começam tudo de novo. Muitas vezes acabam com a autoestima delas, as agressões são psicológicas e patrimoniais também. Por isso é tão importante que essas mulheres sejam acolhidas de forma correta por toda a rede de enfrentamento à violência, para que se sintam fortes para sair dela.”
A jornalista e ativista da Rede de Mulheres Negras do Pará Flávia Ribeiro, que também mora em Ananindeua (veja entrevista com ela no fim da página), conta que já acompanhou uma mulher à Deam de Belém e que a demanda dela não foi atendida nem lá nem em qualquer outra instância do Estado: “Ela estava sendo ameaçada de morte pelo vizinho. Foi na delegacia e eles recomendaram que ela se afastasse de casa. Mais um papelzinho com o Boletim de Ocorrência. Ela não falou com nenhuma assistente social. A mulher chegou lá e teve que recontar essa história um milhão de vezes. Depois disso esse vizinho entrou de novo na casa dela, bateu, quase matou. Ela levou uma facada no rosto e teria que fazer várias cirurgias para recriar os nervos. Levou facada no pescoço, na mão. Consegui uma advogada em um grupo feminista, consegui uma audiência para ela em um órgão público e, quando ela chegou lá, novamente não foi atendida. Nem medida protetiva conseguiu. Ela se mudou. A casa que ela construiu e em que morava há não sei quantas décadas teve que deixar. E os vizinhos estão lá”.
Falta estrutura para proteger as mulheres de Ananindeua
A Delegacia da Mulher em Belém divide espaço – em um prédio novo e bonito – com a Polícia Militar, assistência social e psicológica, atendimento médico, perícia, Ministério Público e Tribunal de Justiça, em um projeto chamado Pro Paz Integrado Mulher. Segundo a coordenadora do serviço, Raquel Cunha, em 2015 a unidade atendeu 706 mulheres apenas de Ananindeua. Por lá, segundo ela, as mulheres recebem atendimento social e psicológico e, apesar da alta procura, ninguém volta para casa sem atendimento.
Inaugurado em 2014 pelo governo do estado, existem atualmente seis unidades do programa no Pará, com orçamento anual previsto de R$ 564 mil para Belém e cerca de R$ 30 mil para as outras unidades – pouco mais de R$ 2.500 mensais. A Pública pediu informações sobre outras fontes de renda dos centros integrados, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.
As mulheres com quem conversamos que precisaram do serviço dizem que a fila é grande em Belém e que elas voltaram várias vezes até conseguir atendimento. Uma delas, que não quis se identificar, disse que, quando tomou coragem para procurar ajuda, foi até o prédio do Pro Paz e esperou das nove da manhã às seis da tarde, até que desistiu e voltou para casa.
Segundo a Segup, a Deam de Ananindeua deve começar a funcionar nos primeiros meses de 2018, e, enquanto isso não acontece, a Polícia Civil pôs em prática o projeto “Mulher respeitada é mulher empoderada”, que leva delegacia móvel aos bairros da cidade duas vezes por mês, registrando Boletins de Ocorrência, pedidos de medidas protetivas e instauração de inquéritos policiais. “Ademais, tal projeto conta também com a Ação Cidadania, que realiza atendimento com assistentes sociais, atendimento jurídico, testes rápidos de saúde e serviços de embelezamento como corte de cabelo, limpeza de pele, manicure e pedicure, maquiagem, entre outros”, afirma a diretora de Atendimento a Grupos vulneráveis, Aline Boaventura.
O Cram, que também é um serviço do Estado, tem sido uma peça de resistência e talvez a única referência no enfrentamento da violência contra a mulher em Ananindeua. Mas as profissionais reclamam da falta de recursos e do descaso do poder público: “A coisa está cada vez pior. Nós estamos há três anos aqui e não há uma placa de identificação na porta. Nós pedimos um banner que fosse, e até hoje não conseguimos. A justificativa para a falta de recursos é sempre a crise, a crise. O Cram existe desde 2010 e essa crise existe desde essa época para nós”, diz a pedagoga Rita Viegas. “Somos quatro aqui: duas assistentes sociais, eu e a psicóloga, que adoeceu e não veio ninguém para substituir. Antes nós tínhamos um carro para atender às demandas, mas faz três anos que ele foi para o conserto e nunca mais voltou. Esse ventilador eu trouxe de casa porque a gente não estava aguentando o calor aqui dentro.” A assistente social Kellen Santos continua: “A gente queria ver o reconhecimento ao nosso trabalho, ter um local adequado para trabalhar, com infraestrutura. Estamos com essa falta da psicóloga, que para nós é muito difícil. A gestão fala que está tudo muito bem, que o Pro Paz é maravilhoso, mas aqui não tem o Pro Paz e o Cram está esquecido. Temos essas rodas de conversa mensalmente e, se a gente quer um bolo, uma água, um café para servir para as mulheres, a gente tem que tirar do bolso”. Kellen termina com uma frase que ouviríamos outras vezes e ficaria marcada como um grande fator para o alto número de mortes de mulheres em Ananindeua: “É como se a gente aqui não existisse”
*Nota sobre metodologia da pesquisa:
Para chegar à situação de Ananindeua, levantamos no DataSUS todas ocorrências de mortes de pessoas dos sexo feminino causadas por agressões em todos os municípios brasileiros de 2005 a 2015 (último ano com dados disponíveis no sistema). Em seguida, comparamos o número de mortes com a população feminina do município no ano correspondente, segundo dados do IBGE de população residente. A partir daí, alcançamos o valor da taxa de morte de mulheres por agressões, que é baseada no número de ocorrências a cada 100 mil residentes do sexo feminino. Excluímos do ranking final cidades com menos de 100 mil habitantes, visto que nelas pequenas variações no número de mortes de mulheres produziam uma alteração distorcida na taxa de mortalidade. Nesse recorte, Ananindeua foi o município com mais de 100 mil habitantes com a maior taxa de morte de mulheres por agressões em 2015, último ano do levantamento.
**Os nomes das mulheres vítimas de agressão entrevistadas nesta reportagem foram abreviados para preservar suas identidades
Colaborou Martha Jares
"O PODER PÚBLICO SÓ NOS VÊ QUANDO VIRAMOS ESTATÍSTICA"
A jornalista e ativista Flávia Ribeiro mora em uma das áreas consideradas mais violentas de Ananindeua, o Distrito Industrial. Ela também acompanha de perto a questão da violência de gênero, especialmente da mulher negra, como integrante da Rede de Mulheres Negras do Pará, do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa) e da Rede de Ciberativistas Negras. Em conversa com a Pública, ela dá sua interpretação do dado sobre o alto número de mortes de mulheres em sua cidade: “O poder público não está nos vendo. Ele só vê a gente quando a gente tomba. Aí a gente vira estatística”.
P: O que diz para você esse dado que mostra Ananindeua como a cidade com mais mortes violentas de mulheres do Brasil?
R: Eu acho assustador. Mas, embora seja assustador, não é incrível no sentido de “não acredito”. A gente sabe que a violência lá [a entrevista aconteceu em Belém] é muito grande. Eu moro em uma área periférica que é o Distrito Industrial, uma das áreas mais violentas da cidade. Eu moro em um conjunto e a maioria trabalha e estuda, mas lá a gente convive com áreas de invasão, tenho vizinho traficante, outro que é policial, uma boca… A gente convive com todo mundo, mas sente a violência. E, no meu trabalho com o movimento negro, a gente sabe que nem todas as mortes são publicadas. Tem muitas mortes que acontecem por lá e ninguém fica sabendo. Não sei nem se entra para o número, para essa estatística. Esse dado é perfeitamente crível.
P: E o que você acha que está acontecendo?
R: Um total abandono por parte do poder público. Não só a respeito da política de mulheres, que é praticamente inexistente. Pode até ter alguma coisa no papel, mas, andando por lá, a gente sabe que não tem nada.
P: Em Ananindeua não tem quase nada da rede de proteção à mulher, né?
R: Olha, acho que no Pará. A gente não sente a presença do Estado. A gente acabou de fazer a Marcha das Mulheres Negras aqui em Belém e, antes disso, a gente fez uma campanha que era de 75 dias de ativismo contra o racismo. As pessoas perguntavam: “Mas por que vocês estão fazendo isso?”. Porque a gente está morrendo. Cada pessoa negra que você está vendo aqui é um desafio à estatística. A mulher negra é a que mais morre de violência obstétrica; a criança negra é a que mais morre; aumentou em 54% o número de mortes da mulher negra; e tem um genocídio do homem negro acontecendo. Toda vez eu digo em palestras que a gente tem que se organizar porque o poder público não está nos vendo. Ele só vê a gente quando a gente tomba. Aí a gente vira estatística. Política pública não nos contempla – tanto é que a [Lei] Maria da Penha não nos contemplou. Se não for voltado para a população negra especificamente, não vai nos contemplar. Política universal não nos contempla. Um dia desses, eu vi uma entrevista com um policial militar que dizia “tem que fazer Boletim de Ocorrência”, mas as pessoas não fazem porque não acreditam. Várias amigas acham que podem ser agredidas pela polícia. Elas acham que podem ser destratadas, desconsideradas. E vai fazer o que com o papel? Só formar dado de novo? O que eu vou fazer lá?
P: Estivemos no Propaz e na Delegacia da Mulher de Belém e nos disseram que, apesar da grande demanda, tudo está funcionando, que as mulheres de Ananindeua são atendidas, que ninguém volta para casa sem atendimento.
R: Vou te contar só um caso. A Artemis [organização que atua com a promoção da autonomia feminina e prevenção e erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres] recebeu uma denúncia de uma moça de Marituba que foi estuprada pelo vizinho e foi procurar a Deam. Ela estava sendo ameaçada de morte pelo vizinho. Ele tinha uns 18 anos e ela uns 37. Ele estava ameaçando ela e as filhas. Ela foi na Deam e eles recomendaram que ela se afastasse de casa. Mais um papelzinho com o Boletim de Ocorrência. Ela não falou com nenhuma assistente social. A mulher chegou lá e teve que recontar essa história um milhão de vezes. A escrivã estava conversando e entrou alguém para perguntar se ela queria merendar. Aí ela teve que parar aquela história de violência porque a escrivã estava com fome, ou não; alguém só foi oferecer. Depois disso, esse vizinho entrou de novo na casa dela, bateu, quase matou, ela levou uma facada no rosto e teria que fazer várias cirurgias para recriar os nervos. Levou facada no pescoço, na mão. E essa moça não falava com a gente. Quem falava com a gente era a patroa dela. Porque ela trabalhava num motel de segunda a sexta e, nos fins de semana, dava diária na casa dos donos do motel. Então ela trabalhava todos os dias. Ela não tinha celular e não queria falar sobre isso. Então, era o tempo todo a gente falando com a patroa sobre a situação dela. Até que chegou um momento em que eu disse: “Olha, não admito que ela desista”. Consegui uma advogada em um grupo feminista, consegui uma audiência para ela em um órgão público. Demorou um tempo para ela ser atendida e, quando ela chegou com a patroa, disseram que não se enquadrava nos atendimentos e ela não foi atendida. E nem medida protetiva conseguiu. Ela se mudou. A casa que ela construiu e em que morava há não sei quantas décadas, teve que deixar. E os vizinhos estão lá. Esse é o atendimento que ela teve na Deam. Eu também já fui lá segurar a mão de uma preta que tinha sido agredida pelo namorado e eles mal olham para as mulheres. Primeiro que chega lá e a gente tem que lidar com policiais militares homens. Eu entendo que é uma questão de segurança. Mas eu também entendo que a gente tem que ter outro meio de atender essa mulher. E nesse caso dessa moça, que era estudante universitária, veio do interior e não tinha família, ela queria a medida protetiva. É um prédio lindo pintado de rosa, lilás, mas é um elefante branco. A medida protetiva da minha amiga não tinha saído uma semana depois e só saiu porque a gente insistiu, voltou, foi atrás.
A gente fez um protesto no dia 8 de março de 2015 lá na frente contra o mau atendimento na Deam e se formou um grupo, e a delegada abriu a possibilidade de se falar sobre raça.
P: As mulheres que sofrem agressão em Ananindeua vão para a Delegacia da Mulher de Belém?
R: Algumas vão até as delegacias de bairro porque não foram bem atendidas na Deam. Conheço alguns casos. Inclusive casos em que as mulheres foram melhor atendidas nessas delegacias de bairro. Já tive conversas com delegadas que não admitem recorte de raça, por exemplo. Elas não admitem que é inconsciente, não é “você é preta não vou lhe atender”. Ela [profissional] olha para a mulher e pensa: “Ela já deve ter um monte de filhos, já deve estar acostumada, aguenta mais. Dá licença”.
P: A delegada da Deam disse que esse alto número de mortes de mulheres pode estar relacionado ao tráfico de drogas em Ananindeua. Mulheres de traficantes, dívidas de droga. Faz sentido isso para você?
R: Quando a polícia relaciona alguma morte com a droga, é um caso assim… A mãe da mulher que morreu é vizinha de um traficante. Caso encerrado. Não interessa quem morreu, não é ninguém. Acerto de contas.
P: Isso é uma justificativa oficial então…
R: Nossa. Muito. Tem relacionamento com o tráfico de drogas porque tem um vizinho traficante. Digamos que eu tenha um primo que morreu que era traficante. Então, se alguém na minha família morrer, caso encerrado. A gente não tem mais o que justificar. É tráfico de drogas. Tinha vínculo com o tráfico. A gente está falando do outro, de alguém negro, pobre e periférico que não sou eu. “Nossa, que violência, né?” Eu sempre falo que já não me impressiono com o machismo e com o racismo. Eu me impressiono com os olhos arregalados de quem não sabe que existe o machismo e o racismo. “Não sabia! Isso acontece em pleno século XXI?” Eu fico, gente! Que “privilegiozão da porra” que essa pessoa deve ter para desconhecer que existe racismo e machismo! É sempre a mesma expressão, os olhos arregalados: “Séeeerio que vocês são seguidos em loja? Eu nunca ouvi falar disso!”. Todas as pessoas negras deste país. Independente da roupa. Porque eu vou no shopping com meu iPhone na mão, com a chave do meu carro e eu sou seguida. E tem gente que segura a bolsa perto de mim. Do mesmo jeito que a gente é perigoso, quando a gente morre vira estatística e ninguém liga mais. Aí fica uma morte para minha mãe chorar. O Estado não se importa, não.
E as pessoas não estão mais com vergonha de se anunciar machistas, racistas, homofóbicas. O que está acontecendo para eles acharem que podem? Como a gente vai reagir?
P: Como é a polícia em Ananindeua? Porque o que eu costumo escutar é que, da mesma forma que existe a ausência do Estado, existe a presença ostensiva e violenta da polícia…
R: Também é assim. A gente tem aqueles “bons policiais” que têm uma boa relação com a comunidade e tentam ajudar aqui e ali. Mas de maneira geral é violenta. Principalmente quando eles vão baculejar, param a molecada na rua. Quem é essa molecada? Quem são essas pessoas? O meu vizinho branco nunca foi revistado pela polícia, ele não sabe o que é isso. Eu, por exemplo, quando sou parada numa blitz, abaixo o vidro para eles verem que eu sou mulher, porque eu sei que eles nessa hora estão procurando homem preto. Tenho a cadeirinha da minha filha no banco de trás.
As violências vão interseccionando. Eu sou uma mulher negra, no meu trabalho eu sou jornalista e consigo circular em espaços de pessoas brancas, com empresários. Mas lá eles me olham e sabem que eu sou uma mulher negra. Em outros espaços, eu estou no movimento negro, mas os homens negros é que ganham espaço. Eu sou mulher negra. Em todos os espaços, eu sou mulher negra. E se eu fosse lésbica, trans, essas características não iriam me deixar. Gorda, periférica. São marcadores de opressão.
A questão da mulher negra é tudo que atinge também o homem negro, porque o genocídio é do meu irmão, do meu filho, meu parente. Questão de gênero: falamos da mulher negra porque é quem mais sofre violência. Nós estamos brigando para ter uma dimensão de humanidade que o homem tem, porque o homem negro não tem medo de ser estuprado. O racismo é democrático, pega a pessoa negra. Ele pode interseccionar com o machismo. A gente quer a dimensão de humanidade da mulher branca porque a mulher branca tem medo de ser estuprada, mas morre menos do que a mulher negra. E o homem branco, que tudo foi feito por ele, para ele, em qualquer momento da história vai ser bem recebido. Todos os heróis são homens brancos, todos os livros falam de homens brancos, tantas conquistas. A gente também quer o homem branco discutindo com a gente. Já que vocês se dizem aliados, então vamos discutir os espaços de privilégio, usar os privilégios para inserir pessoas negras. Vamos discutir machismo, racismo e, principalmente, vamos escutar, né? Tem momentos em que para realmente mudar alguma coisa é isso: fechar a boca e escutar.
Valor Econômico: Com críticas veladas a seu sucessor, Obama prega tolerância e cooperação
No momento em que o mundo assiste à ascensão de movimentos de extrema direita, o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama diz que a saída contra a xenofobia, o populismo e o nacionalismo passa pela trilogia tolerância, Estado de direito e pluralismo. "A globalização nos deu benefícios incríveis, o mundo está mais seguro e mais educado do que em qualquer outro momento da história", disse, ao participar do Fórum Cidadão Global, promovido pelo Valor e AAdvantage/Santander.
Por Maria Cristina Fernandes e Daniela Chiaretti | Valor Econômico
Obama reconheceu, porém, que a globalização enfraqueceu a condição dos trabalhadores para "conseguir salários mais justos". Ele atribuiu a frustração das pessoas - fenômeno apontado como responsável tanto pela vitória de Donald Trump nos EUA quanto pelo Brexit (a saída da Inglaterra da União Europeia) e a emergência da extrema direita na França e na Alemanha - não ao capitalismo, "responsável por uma economia mais próspera", mas à concentração de renda.
"Em um mundo em que apenas 1% controla a riqueza, não veremos estabilidade política. As economias não crescem com sucesso quando se tem muita concentração de riqueza sem expansão da classe média. É preciso que a nova economia funcione para todos", pregou ele, para uma plateia de empresários embevecida por seu discurso.
Lembrando que assumiu a presidência em meio a uma grave crise econômica, Obama fez um mea culpa ao lamentar não ter sido capaz de aproximar as posições que se radicalizaram depois de 2008. "Conseguimos evitar uma grande depressão no país, mas não fomos capazes de nos aproximar das pessoas que se frustraram com a crise. A polarização e o ódio aumentaram. Não fui capaz de evitar isso, ainda que seja injusto dizer que eu tenha sido o único responsável".
Além de pregar a tolerância, a saída diplomática para resolver conflitos, o fortalecimento da política e o investimento em educação na primeira infância, o ex-presidente defendeu o Acordo do Clima, do qual os EUA se tornaram signatários em seu mandato e ao qual Trump quer renunciar. "Precisamos de uma diplomacia forte para assegurar a paz. O poder das ideias é mais importante do que a força militar. Não podemos resolver os problemas do mundo só com tanques e aviões", disse o ex-presidente.
Na abertura do fórum, o vice-presidente do Grupo Globo, José Roberto Marinho, disse que, "em um mundo de conflitos, Obama valorizou a tolerância. Ou, nas palavras dele, a unidade de propósito, em vez do conflito e da discórdia". Em seu discurso, o presidente do Santander, Sérgio Rial, disse, ao tratar da crise no Brasil, que "não podemos deixar o país na mão de minorias organizadas".
"A política é um reflexo da sociedade", diz Obama
"A lista é longa e começa por não ter começado a tingir meus cabelos". Barack Obama já estava ao fim dos 60 minutos de sua fala no evento "Cidadão Global", promovido pelo Valor, Santander e AAdvantage, quando foi indagado sobre o que lamentava não ter sido possível fazer em sua vida pública.
Ao responder, com bom humor e velada referência ao sucessor, à pergunta do diretor geral da Infoglobo, Frederic Kachar, o ex-presidente dos Estados Unidos não fugiu à responsabilidade pelo que aconteceu em seu país depois de ter deixado a Casa Branca. Disse lamentar não ter sido capaz de aproximar as posições que se radicalizaram depois da grande crise financeira de 2008.
"Conseguimos evitar uma grande depressão no país, mas não fomos capazes de nos aproximar das pessoas que se frustraram com a crise. A polarização e ódio aumentaram. Não fui capaz de evitar isso, ainda que seja injusto dizer que o presidente tenha sido o único responsável", afirmou. "Mas a boa notícia é que não podemos contribuir apenas como presidente. Tenho pelos menos 30 anos pela frente para tentar levar uma mensagem de esperança não apenas para os Estados Unidos mas para o resto do mundo".
Obama atribuiu a frustração das pessoas não ao capitalismo, "responsável por uma economia mais próspera", mas à concentração de renda. "A globalização nos deu benefícios incríveis, o mundo está mais seguro e mais educado do que em qualquer outro momento da história", afirmou, ao ponderar que se vive o melhor e o pior dos momentos. "Mas a globalização também enfraqueceu a condição dos trabalhadores para conseguir salários mais justos. Em um mundo em que apenas 1% controla a riqueza não veremos estabilidade política. As economias não crescem com sucesso quando se tem muita concentração de riqueza sem expansão da classe média. É preciso que a nova economia funcione para todos".
A saída contra a xenofobia, o populismo e o nacionalismo, para o ex-presidente americano, passa pela trilogia da tolerância, estado de direito e pluralismo. Minutos antes, em palestra que antecedeu a de Obama, o principal colunista econômico do "Financial Times", Martin Wolf, dissera que, depois da crise de 2008, 80% da população do mundo desenvolvido teve sua renda estagnada
Entre os feitos de sua vida pública que o orgulham, Obama mencionou a reforma do sistema de saúde, que teria incluído 20 milhões de pessoas e hoje está sob ataque de Donald Trump. Citou ainda o acordo com o Irã que tirou este país da rota seguida pela Coreia do Norte: "Quando assumi, já era tarde demais para um acordo com a Coreia do Norte, mas o Irã exportava problemas para a região e para outras partes do mundo. Percebi a oportunidade de evitar o desenvolvimento de armas nucleares naquele país. Levou sete ou oito anos de trabalho, mas deu certo. Temos diferenças e tensões entre nós, mas o problema foi solucionado sem um único tiro."
Sem citar nominalmente seu sucessor, ao qual se referiu como "a pessoa que me substituiu", Obama fez dura crítica ao belicismo da geopolítica na nova ordem mundial: "Precisamos de uma diplomacia forte para assegurar a paz. O poder das ideias é mais importante do que a força militar. Não podemos resolver os problemas do mundo só com tanques e aviões". Ao alertar contra o tom supremacista da política externa americana - "Quando países dizem que são melhores que os outros, sabemos onde isso termina" - não deixou alternativa à plateia senão a comparação com o sucessor. Numa outra crítica velada a Donald Trump, que tirou os Estados Unidos do Acordo de Paris sobre o clima, Obama disse ver com naturalidade a divergência sobre os meios e os custos para se enfrentar o aquecimento global, mas que não era possível negá-lo.
Tanto em seu discurso quanto nas respostas às perguntas que lhe foram dirigidas, Obama fez uma profissão de fé na política. Disse que há tecnologia para se solucionar quase todos os problemas do mundo e que é a política - ou a ausência dela - que bloqueia sua resolução. Citou as filhas - "Elas passam muito tempo digitando no celular e lhes pergunto, por que não se encontram com seus amigos cara a cara?" - para dizer que um dos maiores desafios da contemporaneidade é fazer com que as pessoas discutam, "não necessariamente para concordar com tudo o que o outro diz".
Citou o poder da internet tanto para conectar as pessoas quanto para espalhar ódio e terror: "Estamos mais conectados, mas muitas vezes nos refugiamos em tribos e bolhas. Não trocamos impressões, o que vemos é aquilo que um algoritmo diz que devemos ver". Citou a Fox News e o "The New York Times", nos Estados Unidos, como filtros de dois mundos completamente diferentes. "Eu não votaria em mim mesmo se assistisse apenas a Fox News", disse, arrancando risos na plateia, antes de concluir que é pelo estímulo à divergência que se fortalece a democracia: "Ficamos tão seguros de nossas crenças que excluímos opiniões que não se encaixam nelas."
Disse que a única maneira de "curar" a democracia é aumentar a participação política e renovar o poder, que se ressente quando é ocupado pelas mesmas pessoas por muito tempo, sem sangue ou ideias novas: "Se ainda fosse presidente, a Michelle não estaria mais comigo". Reconheceu ameaças autoritárias em todo o mundo, mas disse não acreditar que o futuro pertença aos autocratas.
Ao ser indagado sobre o poder da educação, o ex-presidente citou Cingapura. "É um país pequeno, não tem nada lá, mas seu povo é extraordinariamente bem educado e o país está indo muito bem, ao contrário de muitos países grandes e com muitos recursos naturais - não vou dizer que países são esses [risos da plateia] - que estão em outra direção". Disse que o investimento em educação deve privilegiar a primeira infância, quando o cérebro da criança funciona como uma esponja para absorver estímulos. Foi aplaudido ao rechaçar investimentos em educação a partir de um viés de gênero ou raça.
Fez propaganda da fundação que leva seu nome e à qual passou a se dedicar depois de deixar o poder. "Ser presidente te dá uma boa cadeira para observar o mundo", disse, numa referência singela ao comando da maior potência mundial. "Foi assim que decidi que o melhor que posso fazer é emprestar meus esforços para treinar jovens e fazer com que eles se envolvam nas questões de sua comunidade. Eles estão dispostos a mudar o mundo. Eles nos inspiram e nós os encorajamos. É assim que se resolvem os problemas. A solução não vem do topo, mas da mudança com quem está ao seu lado".
Indagado por Kachar sobre a mensagem que deixaria para um país imerso em uma crise política e econômica sem precedentes, o ex-presidente americano não se imiscuiu na política interna brasileira mas voltou-se para sua plateia de empresários, banqueiros, profissionais liberais e artistas: "Em muitos países, as pessoas dizem que odeiam os políticos e o governo, mas o governo e os políticos são um reflexo de nós mesmos. Se uma sociedade é saudável, a política também será. Se uma sociedade é doente, a política também será." Com leveza, o ex-presidente americano compartilhou a culpa pela crise com cada um dos que ali estavam. O recado era duro e, fosse outro o palestrante, face ao grau de esgarçamento da conjuntura brasileira, poderia ter sido recebido com ressalvas, mas foi sob as palmas de uma plateia embevecida que Obama deixou o palco.
Foi a segunda vez que o ex-presidente americano esteve no Brasil. Na primeira, em 2011, veio com a mulher, Michelle, e as duas filhas, Malia e Sasha. Foi recebido pela ex-presidente Dilma Rousseff, em Brasília, e pelo ex-governador Sérgio Cabral, hoje preso. No Rio, esteve na favela Cidade de Deus, lembrada ontem em seu discurso.
O ex-presidente chegou na noite de quarta-feira a São Paulo e pernoitou em um hotel da zona sul. Sua palestra foi precedida de uma abertura do vice-presidente do Grupo Globo, José Roberto Marinho, do discurso do presidente do Santander, Sérgio Rial, de uma palestra do professor da Universidade de Nova York, Robert Salomon e de uma entrevista pública com o colunista do "Financial Times", Martin Wolf, conduzida pelo editor de internacional do Valor, Humberto Saccomandi.
Ao deixar o evento no Teatro Santander, na zona sul de São Paulo, o ex-presidente americano encontrou-se com 11 jovens de diversas regiões do país que atuam com educação, mobilização social e redução da desigualdade. Depois foi jantar no Fasano, nos Jardins, com um grupo de 12 pessoas. Obama embarca hoje para Córdoba, na Argentina. (Colaboraram Daniel Rittner e Suzi Yumi Katzumata).
Revista Piauí: Você é o produto. Mark Zuckerberg e a colonização das redes pelo Facebook
Aos dados que ele próprio colheu, o Facebook acrescentou recentemente um gigantesco estoque de informações, ligado ao comportamento offline, no mundo real, de cada consumidor
Por John Lanchester
No final de junho deste ano, Mark Zuckerberg anunciou que o Facebook havia alcançado um novo patamar: 2 bilhões de usuários mensais ativos. Ou seja: 2 bilhões de pessoas diferentes acessaram o Facebook no mês anterior. É difícil aquilatar um conjunto desses. E pensar que “thefacebook” – o nome original do site – foi lançado para uso exclusivo dos alunos de Harvard em 2004. Nenhum empreendimento, nenhuma nova tecnologia, nenhum serviço jamais obteve tal difusão em tão pouco tempo.
A rapidez com que a rede social foi adotada excede com vantagem a velocidade de expansão da própria internet, sem falar de tecnologias mais antigas como televisão, cinema ou rádio. E também impressiona como, à medida que o Facebook cresceu, a confiança que inspira foi reforçada. A multiplicação de membros, ao contrário do que se poderia esperar, não significa menos comprometimento por parte do usuário. Mais não implica pior – pelo menos do ponto de vista do Facebook. Longe disso. No distante mês de outubro de 2012, quando a rede chegou a 1 bilhão de usuários, 55% deles já a acessavam todo dia. Hoje, que são 2 bilhões, os frequentadores diários chegam a 66%. Sua base cresce 18% ao ano – o que parecia impossível para uma empresa já tão gigantesca. O maior rival em matéria de inscritos é o YouTube, controlado pela Alphabet (a empresa antes conhecida como Google), sua concorrente implacável, que ocupa a segunda posição com 1,5 bilhão de usuários mensais. Os quatro maiores aplicativos – ou serviços, ou seja lá que nome tenham – que vêm em seguida são o WhatsApp e o Messenger, com 1,2 bilhão de usuários, o Instagram, com 700 milhões, e o aplicativo chinês WeChat, com 889 milhões. Os três primeiros têm um traço em comum: são controlados pelo Facebook. Não admira que a empresa-mãe seja a quinta mais valiosa do mundo, com um valor de mercado de 445 bilhões de dólares.
Ao comunicar o crescimento do Facebook, Zuckerberg ainda fez um anúncio que pode ou não ser significativo. Disse que a empresa havia decidido mudar a “declaração de princípios” – sua própria versão da hipócrita e cultivada afirmação de nobres preceitos da América corporativa. A missão do Facebook costumava ser “tornar o mundo mais aberto e conectado”. Um não usuário poderia se perguntar: a troco de quê? A conexão era apresentada como um fim em si mesmo, uma coisa boa pela própria natureza. Mas será mesmo? Flaubert falava dos trens com ceticismo, porque julgava (na paráfrase de Julian Barnes) que “as estradas de ferro simplesmente permitiram que mais gente se desloque daqui para lá, encontrando-se com outros e sendo, juntos, os idiotas de sempre”. E ninguém precisa ser um misantropo da magnitude de Flaubert para se perguntar se o mesmo não se aplicaria à tal conexão que o Facebook propõe. Por exemplo, acredita-se que a rede tenha desempenhado importante papel, crucial até, na eleição de Donald Trump. O benefício para a humanidade, no caso, não fica muito claro. Essa ideia, ou algo assim, parece ter ocorrido a Zuckerberg, pois sua nova declaração de intenções apontou uma razão para toda essa conectividade. Agora, a nova missão do Facebook seria “dar às pessoas o poder de construir comunidades e deixar o mundo mais próximo”.
Hummm. A declaração de intenções da Alphabet – “organizar a informação do mundo e torná-la universalmente acessível e útil” – era acompanhada da máxima “Não fazer o mal”, que rendeu muita risada: para Steve Jobs, não passava de uma “babaquice”.[1] É verdade, mas não é só isso. Muitas empresas, ou mesmo indústrias, baseiam seu modelo de negócios numa intenção perversa. O ramo dos seguros, por exemplo, funciona porque as empresas cobram bem mais do que seus clientes porventura venham a receber – o que é até justo, pois de outro modo as seguradoras não seriam viáveis. O que não é justo é o estratagema de recorrer a técnicas capciosas para evitar ao máximo os pagamentos devidos aos clientes. Basta perguntar a alguém que tenha tido uma propriedade atingida por algum sinistro importante.
Faz sentido, portanto, declarar a intenção de “não fazer o mal”, porque é assim que atuam muitos negócios. Sobretudo no mundo da internet, ambiente em que as empresas operam num campo mal compreendido pelos clientes e pelas autoridades reguladoras, se é que alguém de fato entende como funcionam. O que elas fazem, se competentes, é por definição inédito. E, nessa área em que novidade, desconhecimento e desregulação se sobrepõem, vale lembrar que os funcionários não devem fazer o mal, uma vez que, caso a empresa seja bem-sucedida, não faltarão oportunidades para que se pratiquem as mais variadas maldades.
Desde suas origens, mas com estilos diversos, Google e Facebook vêm palmilhando essa tênue linha divisória. Um conhecido meu já fez negócios com os dois. “O YouTube sabe que rola muita sujeira no site, e o pessoal sempre faz o possível para tentar melhorar e aliviar a situação”, ele disse. Perguntei o que ele entendia por “sujeira”. “Conteúdo extremista e terrorista, material roubado, violações de direitos autorais. Esse tipo de coisa. Mas o Google, na minha experiência, tem consciência das ambiguidades, da moral duvidosa que envolve boa parte do que fazem, e pelo menos tenta pensar numa resposta. Já o Facebook não está nem aí. Quando você tem uma reunião com eles, percebe na hora. Eles são (e por um instante ficou procurando a palavra certa) meio nojentos.”
Pode parecer um julgamento muito severo. Desde sua fundação, porém, o Facebook enfrenta problemas éticos e ambiguidades – sabe-se disso porque seu criador mantinha um blog e registrava tudo. E o nascimento da empresa ocorreu como se vê no filme de Aaron Sorkin, A Rede Social. Em seu primeiro ano em Harvard, Zuckerberg sofreu um revés sentimental. E quem não se vingaria com a criação de um site que exibisse lado a lado as fotos de todos os alunos, para que se votasse no mais atraente? (No filme, fica parecendo que só eram postadas fotos de moças; na vida real, eram de homens e mulheres.) O site chamava Facemash. Por ocasião do lançamento, seu criador disse:
Estou um pouco mexido, não vou negar. Ainda nem são dez horas, estamos numa terça-feira à noite. Como assim? O álbum do dormitório Kirkland está aberto no meu computador, e as fotos de algumas dessas pessoas são horríveis. Quase me dá vontade de pôr as fotos ao lado de imagens de animais de fazenda, para as pessoas votarem nos mais atraentes […] Vamos começar a hackear.
Como explica Tim Wu em seu novo livro The Attention Merchants [Os Mercadores de Atenção], vigoroso e original, o “álbum” a que Zuckerberg se refere aqui (chamado em inglês, justamente, facebook) é, “tradicionalmente, um folheto físico produzido nas universidades americanas para promover a socialização à maneira dos eventos em que cada um porta um crachá com o respectivo nome; as páginas são preenchidas por fileiras e mais fileiras de fotos de rostos acompanhados apenas do nome de cada um”. Harvard já vinha trabalhando numa versão eletrônica desses álbuns ou facebooks. A principal rede social existente à época, a Friendster, já tinha 3 milhões de usuários. A ideia de associar uma coisa à outra não foi de todo original, mas, como declarou Zuckerberg em certo momento, “acho ridículo a universidade precisar de anos para chegar a esse resultado. Faço isso melhor que eles, e no máximo em uma semana”.
Wu afirma que capturar e revender atenção vêm constituindo a base de grande número de negócios da era moderna, dos cartazes da Paris do fim do século xix, passando pela invenção de jornais de grande tiragem que lucram não com a circulação, mas com anúncios, até o advento das indústrias da publicidade e da tevê sustentada pela propaganda. O Facebook se filia a uma linhagem de empreendimentos desse tipo, embora talvez seja o exemplo mais puro, em todos os tempos, de empresa voltada unicamente à captura e à revenda da atenção. E quase não houve qualquer ideia nova envolvida em sua criação. Como observa Wu, é “um empreendimento com uma relação extremamente baixa entre taxa de invenção e sucesso”.
Em vez de buscar a originalidade, Zuckerberg cultivou a persistência em levar as coisas até as últimas consequências e a capacidade de distinguir as grandes questões em jogo. Para as empresas de internet iniciantes, o crucial é saber pôr os planos em prática e se adaptar às circunstâncias voláteis. E foi a habilidade de Zuck para esse tipo de direção – contratando técnicos talentosos e sabendo aproveitar as principais tendências de sua atividade – que levou sua empresa aonde se encontra. As duas imensas companhias-irmãs abrigadas sob as asas gigantescas do Facebook, o Instagram e o WhatsApp, foram compradas, respectivamente, por 1 bilhão e 19 bilhões de dólares – num momento em que não eram rentáveis. Nenhum banqueiro, analista de mercado ou adivinho poderia dizer a Zuckerberg o valor justo para essas aquisições; ninguém teria como avaliá-las melhor do que ele. Ele percebeu a direção que as coisas estavam tomando, e soube como fazê-las chegar lá. E este talento redundou num valor de várias centenas de bilhões de dólares.
O ator Jesse Eisenberg apresenta um retrato de Zuckerberg brilhante mas enganoso, segundo Antonio García Martínez, um antigo gerente da rede social, em Chaos Monkeys [Macacos do Caos] – um livro cáustico e divertido sobre o tempo em que o autor passou na empresa. O Zuckerberg do cinema é um personagem de alta credibilidade, um gênio da computação alocado em algum ponto do espectro autista, com um talento mínimo ou nulo para o convívio social. Na vida real, Zuckerberg estudava para obter dois diplomas, um em informática e o outro – o que todos tendem a esquecer – em psicologia.
As pessoas que se encaixam em algum ponto do espectro autista só têm uma noção limitada de como opera a mente alheia; os autistas, ao que se diz, não conseguem adquirir uma “teoria da mente”. Não é bem o caso de Zuckerberg. Ele conhece bem o funcionamento da psiquê, sobretudo a dinâmica social da popularidade e do status. No começo, o Facebook se dirigia apenas a quem tinha um endereço de e-mail de Harvard; àquela altura, pretendia-se tornar exclusivo o acesso ao site, e transformá-lo em objeto de desejo. (E também manter o tráfego limitado, de maneira que seus servidores jamais viessem a cair. A psicologia e a informática de mãos dadas.) Depois, a rede se estendeu a outras universidades americanas de elite. Quando foi lançado no Reino Unido, restringiu-se a Oxford e Cambridge, além da London School of Economics. A ideia era que o usuário satisfizesse a curiosidade quanto ao que outros como ele faziam, compartilhar suas conexões sociais, permitir a comparação, o autoelogio e o exibicionismo, dando plena vazão à ânsia e à inveja, mantendo o nariz pressionado contra a vitrine da loja de doces da vida alheia.
E foi isto que chamou a atenção do primeiro investidor externo do Facebook, Peter Thiel, hoje um conhecido bilionário do Vale do Silício. Também aqui o filme é fiel à história: o investimento de Thiel, de 500 mil dólares, em 2004, foi fundamental para o sucesso do empreendimento. Mas havia outro motivo, ligado aos apetites intelecuais de Thiel, que o levou a se interessar pelo experimento. Enquanto estudava em Stanford, onde se formou em filosofia, ele sentiu-se atraído pelas ideias do filósofo francês René Girard, residente nos Estados Unidos, expostas no mais influente de seus livros, Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo. A principal ideia de Girard é o que ele chama de “desejo mimético”. Seres humanos nascem precisando de alimento e abrigo. Uma vez atendidas essas necessidades básicas, espiamos ao redor para ver o que os outros estão fazendo e desejando, e nossa tendência é copiá-los. Em suma, disse Thiel, “a imitação se encontra na raiz de todos os comportamentos”.
Girard era cristão, e sua visão da natureza humana tem a ver com a noção da Queda. Não sabemos o que desejamos nem o que somos; não temos crenças nem valores próprios; o que nos domina é o instinto de cópia e comparação. Somos o Homo mimeticus. “O homem é a criatura que não sabe o que desejar, e precisa recorrer aos outros para se decidir. Desejamos o que os outros desejam porque imitamos seus desejos.” Olhai em volta, ó insignificantes, e comparai-vos uns aos outros.
O motivo pelo qual Thiel aderiu ao Facebook com tamanho entusiasmo foi por ter visto pela primeira vez um empreendimento essencialmente girardiano: escorava-se em nossa necessidade de nos copiarmos uns aos outros. “O Facebook começou a se espalhar pelo boca a boca, e funciona com base no boca a boca, de modo que é duplamente mimético”, disse Thiel. “As redes sociais se mostraram mais importantes do que pareciam à primeira vista porque têm a ver com essa nossa natureza.” Fazemos o possível para que nos vejam como queremos ser vistos, e o Facebook é a ferramenta mais popular que a humanidade já criou com essa finalidade.
Visão
Avisão da natureza humana implícita nessas ideias é bastante sombria. Se tudo que desejamos é olhar para os outros a fim de podermos nos comparar a eles e copiar o que nos der na telha – se é esta a verdade final e mais profunda sobre a humanidade e suas motivações –, o Facebook de fato não precisa se preocupar muito com o bem-estar da humanidade, uma vez que tudo de ruim que nos acontece se deve enfim a nós mesmos. Apesar do tom elevado da declaração de intenções da empresa, sua premissa essencial é misantrópica. E talvez seja por isso que o Facebook, mais que qualquer outro empreendimento das mesmas dimensões, tenha um veio claramente perverso correndo em sua trama. A versão mais visível disso, a mais corriqueira na imprensa marrom, toma a forma de incidentes como o streaming ao vivo de estupros, suicídios, assassinatos e matanças de policiais. Mas esta é uma das áreas em que o Facebook me parece relativamente isento de culpa. Os usuários transmitem essas coisas terríveis através do Facebook porque é lá que se encontra a maior das audiências; se o Snapchat ou o Periscope tivessem mais espectadores, seriam eles os preferidos.
Em muitas outras áreas, porém, o Facebook está longe de ser inocente. As críticas mais visíveis e mais recentes à empresa se devem ao papel que ela desempenhou na eleição de Trump. O que tem dois componentes, um dos quais implícito na natureza do site, que tende a separar e atomizar seus usuários em grupos de pensamento semelhante. A missão de “conectar” acaba significando, na prática, conectar pessoas que pensam como elas. Não há como provar o quanto essas “bolhas” produzidas por filtros diversos são perigosas para a sociedade, mas parece óbvio que vêm tendo um impacto considerável sobre nossa ordem civil cada vez mais fragmentada. A ideia que temos do que seja “nós” vem ficando mais e mais estreita com o passar do tempo.
Esta fragmentação criou as condições para a segunda vertente da culpabilidade do Facebook no que diz respeito aos desastres políticos anglo-americanos do ano passado. Esses desdobramentos são referidos, de maneira geral, como fake news[notícias forjadas] e “pós-verdade”, e se tornaram possíveis porque retrocedemos de uma ágora ampla do debate público para bunkers ideológicos isolados. Na mídia, as notícias forjadas podem ser rebatidas e denunciadas; no Facebook, se você não integrar a comunidade à qual essas mentiras são direcionadas, é provável que nem tome conhecimento delas. E isso porque o Facebook não tem qualquer interesse financeiro em só dizer a verdade. Nenhuma empresa ilustra melhor a máxima que rege a era da internet: se o produto for de graça, você é que é o produto. Os verdadeiros clientes do Facebook não são os frequentadores do site, mas os anunciantes que aproveitam sua rede e se beneficiam da capacidade dela de direcionar seus anúncios ao público mais receptivo. Para o Facebook, que diferença faz se as notícias postadas são verdadeiras ou falsas? Seu interesse está no direcionamento dos anúncios, no targeting, e não no conteúdo que os acompanha.
Este é um dos prováveis motivos para que a empresa tenha alterado sua declaração de intenções. Se seu único interesse é conectar as pessoas, por que se incomodar com a calúnia? Na realidade, os embustes podem até funcionar melhor que a verdade, pois ajudariam a identificar em menos tempo as pessoas que pensam parecido. A intenção recém-declarada de “construir comunidades” dá a impressão de que a empresa vem desenvolvendo um interesse crescente pelas consequências das conexões que propicia.
Fake News
As fake news não foram, como o próprio Facebook reconhece, o único recurso que o site usou para influir no resultado das eleições presidenciais de 2016. Em 6 de janeiro de 2017, o diretor nacional de inteligência dos Estados Unidos divulgou um relatório afirmando que os russos haviam promovido uma campanha de desinformação pela internet visando prejudicar a candidatura de Hillary Clinton e contribuir para a eleição de Donald Trump. “A campanha de Moscou obedeceu a uma estratégia russa de mensagens que combina operações secretas de inteligência – como a esfera cibernética – aos esforços explícitos de órgãos do governo da Rússia, da imprensa financiada pelo Estado, de intermediários terceirizados e de usuários pagos das redes sociais, os chamados trolls”, dizia o relatório. No final de abril, o Facebook acabou admitindo a verdade (àquela altura) já bastante óbvia, num interessante estudo produzido por sua divisão de segurança interna. Fake news, diz o texto, é um termo vago e pouco útil, pois na verdade a desinformação se espalha de várias maneiras:
Operações de Informação (ou Influência) – Atitudes tomadas por governos ou atores organizados não estatais com a finalidade de distorcer o sentimento político doméstico ou estrangeiro.
Notícias Falsas – Artigos noticiosos que passam por factuais, mas na verdade contêm afirmações forjadas destinadas a despertar paixões, atrair a atenção pública ou enganar os leitores.
Amplificadores Falsos – Atividade coordenada por contas inautênticas com a finalidade de manipular a discussão política (p. ex. desestimulando certos grupos a participar da discussão, ou dando às vozes sensacionalistas destaque muito maior do que às demais).
Desinformação – Distribuição intencional de conteúdo inexato ou manipulado. Pode se limitar a notícias forjadas, ou envolver métodos mais sutis, como a atribuição infundada de autoria (as chamadas “operações de bandeira falsa”), o direcionamento de citações ou matérias inexatas a intermediários inocentes, ou a amplificação deliberada de informações tendenciosas ou francamente enganosas.
A empresa promete abordar esse problema, ou conjunto de problemas, com a mesma seriedade com que encara outros de natureza diferente, como o malware [software malicioso], o sequestro de contas alheias e a difusão de spam. Veremos. A fake news de um é a verdade do outro, e o Facebook se esforça ao máximo para evitar qualquer responsabilidade pelo conteúdo do seu site – exceto no que diz respeito ao conteúdo sexual, questão em que demonstra um rigor extremo. Mamilos femininos são banidos. A escala de prioridades é bizarra, e só faz sentido no contexto americano, em que a mais ligeira sugestão de sexualidade explícita é logo tingida de impureza moral. Mesmo fotos de mulheres amamentando seus filhos são banidas e eliminadas num átimo. Já mentiras e mera propaganda podem circular à vontade.
Para entender esse quadro, basta adotar o ponto de vista dos anunciantes: nenhum deles quer aparecer ao lado de uma foto de seios nus, pois isso pode prejudicar sua marca; mas não se incomodam em aparecer ao lado de mentiras, porque essas mentiras podem inclusive ajudá-los a encontrar os consumidores aos quais pretendem direcionar seus anúncios. No livro Move Fast and Break Things [Aja Rápido e Quebre as Coisas], em que polemiza contra os “barões gatunos da era digital”, Jonathan Taplin ressalta uma análise do BuzzFeed: “Nos últimos três meses da campanha presidencial americana, as principais matérias de fake news ligadas à eleição e divulgadas pelo Fa-cebook engendraram reações mais determinantes que as principais matérias publicadas por órgãos de imprensa como o New York Times, o Washington Post, o Huffington Post, a NBC News e outros.” Mas isso não parece um problema que o Facebook tenha pressa em corrigir.
Conteúdo forjado e conteúdo roubado pululam no Facebook sem que a empresa se incomode: não lhe interessa se incomodar com eles. Boa parte do conteúdo em vídeo do site é roubado de seus criadores. Um vídeo muito esclarecedor divulgado no YouTube pela Kurzgesagt, uma produtora alemã de filmes explicativos de alta qualidade, mostra que, em 2015, 725 dos mil vídeos mais assistidos no Facebook eram roubados. E esta é mais uma área em que os interesses do site vão contra os da sociedade. Podemos ter um interesse coletivo em sustentar o trabalho criativo e imaginativo em diferentes formas, e em muitas plataformas. Mas o Facebook não. Como explica Antonio García Martínez, ele só tem duas prioridades: o crescimento e a monetização. Não quer saber de onde vem o conteúdo. Só agora começa a se preocupar com a percepção de que boa parte de seu conteúdo é falsa, porque essa percepção, se generalizada, pode abalar a confiança no que exibe e, portanto, o tempo que as pessoas gastam no site.
O próprio Zuckerberg se pronunciou sobre o tema, no post “o Facebook e a eleição”, veiculado pela rede. Depois de certa embromação sentimentaloide e cheia de platitudes (“Nosso objetivo é dar voz a cada pessoa. Acreditamos profundamente nas pessoas”), Zuck afinal chega ao ponto: “De todo o conteúdo do Facebook, mais de 99% do que as pessoas veem é autêntico. Só uma proporção mínima é composta de mentiras e fake news.” No entanto, mais de um usuário do Facebook já assinalou que, em seus feeds de notícias, o post de Zuckerberg aparecia ao lado de um exemplo de fake news. Num dos casos, a história falsa alegava ter sido produzida pelo canal de esportes ESPN. Quando o usuário clicava no link, porém, era direcionado para um anúncio de suplemento dietético. Nas palavras do escritor Doc Searls, trata-se de uma fraude dupla, “uma mentira flagrante vinda de uma fonte falsa”, o que não deixa de causar impressão ao aparecer bem ao lado do post em que o dono do Facebook se gaba de não exibir nada de falso em seu site.
Evan Williams, cofundador do Twitter e fundador do site Medium, especializado em textos longos, deparou-se com o mesmo post de Zuckerberg entre outra matéria falsamente atribuída à espn e uma nota supostamente publicada pela CNN anunciando que o Congresso americano afastara Donald Trump da Presidência. Quando o usuário clicava no link, via que a notícia falsa tinha sido postada por uma empresa que oferecia um programa de doze semanas para o fortalecimento dos dedos dos pés. (Isso mesmo: o fortalecimento dos artelhos humanos.) De todo modo, agora ficamos sabendo que Zuckerberg acredita nas pessoas. E isso, no final, é o que importa.
Observador
Um observador neutro poderia se perguntar se o Facebook é cumpridor em relação aos criadores de conteúdo. É óbvio que ele precisa de conteúdo, porque é o que seu site exibe: conteúdo produzido por terceiros. O único detalhe é que ele não faz muita questão de que alguém mais, além dele próprio, ganhe dinheiro com esse conteúdo. Ao longo do tempo, essa atitude vem tendo consequências profundamente destrutivas para as indústrias criativas e de mídia. O acesso a um grande público – esses inéditos 2 bilhões de espectadores – é uma coisa ótima, mas o Facebook não demonstra a menor pressa em ajudar qualquer outro a faturar com isso. Se os fornecedores de conteúdo acabarem indo à bancarrota, talvez o problema nem seja tão sério. Continuam a existir, nos dias que correm, muitos fornecedores dispostos a colaborar: em certo sentido, qualquer pessoa que frequente o Facebook trabalha para ele, agregando valor à empresa. Em 2014, o New York Times fez as contas e descobriu que a humanidade vinha gastando, por dia, 39 757 anos coletivos no site. Jonathan Taplin assinala que isto equivale a “quase 15 milhões de anos de mão de obra gratuita por ano”. E isso num momento em que o Facebook tinha apenas 1,23 bilhão de usuários.
Taplin trabalhou na universidade e na indústria cinematográfica. O motivo de dar tanta importância a essas questões é que começou na indústria da música, como empresário do conjunto The Band, e pôde assistir de perto à destruição dessa atividade pela internet. A indústria da música, que em 1999 faturava 20 bilhões de dólares, reduziu-se a 7 bilhões quinze anos mais tarde. Taplin viu músicos que ganhavam bem passarem a viver na miséria. E isto não ocorreu porque as pessoas tenham parado de ouvir o que eles produzem – o número de ouvintes é maior do que nunca –, mas porque todo mundo se acostumou a receber música de graça. O YouTube é a maior fonte de música do mundo, divulgando bilhões de fonogramas por ano; ainda assim, em 2015, ele e seus sites rivais, todos sustentados por anúncios, renderam menos para os músicos do que as vendas de seus discos de vinil. Não as vendas totais de cds e gravações em geral: só as vendas de vinil.
Coisa semelhante vem acontecendo no mundo do jornalismo. O Facebook é, em essência, uma empresa de publicidade indiferente ao conteúdo, exceto na medida em que este ajuda a direcionar e vender anúncios. Opera no caso uma versão da Lei de Gresham – a moeda má expulsa a moeda boa –, em que as fake news, que são clicadas mais vezes e custam zero para produzir, acabam provocando a exclusão das notícias reais, muitas vezes mais incômodas para quem lê, além de terem produção custosa. Afora isso, o Facebook ainda emprega uma ampla série de truques para aumentar seu tráfego e a renda que obtém com o direcionamento de anúncios, às expensas das instituições provedoras de notícias cujo conteúdo ele hospeda. Seus feeds de notícias encaminham o tráfego para os usuários não com base em seus interesses, mas na maneira de extrair o máximo de renda dos anúncios direcionados a cada um. Em setembro de 2016, Alan Rusbridger, ex-editor chefe do Guardian, declarou numa conferência do Financial Times que o Facebook tinha “sugado 27 milhões de dólares” da renda de publicidade projetada para o jornal naquele ano. “Estão ficando com todo o dinheiro porque controlam algoritmos que não entendemos e funcionam como um filtro entre o que produzimos e a maneira como nosso produto é recebido pelas pessoas.”
E isto vai ao cerne da questão do que é o Facebook, e de como funciona. A despeito de todas as declarações sobre conectar pessoas, construir comunidades e acreditar nos outros, ele é uma empresa de publicidade. Martínez revela com toda a clareza como o Facebook acabou assim, e de que maneira a propaganda funciona. Nos primeiros anos de existência do site, Zuckerberg estava muito mais interessado no crescimento da empresa do que na sua monetização. Mas isso mudou quando o Facebook decidiu arrecadar uma fortuna em sua oferta pública inicial (ou IPO, de Initial Public Offering), o dia de glória em que as ações de uma empresa são vendidas pela primeira vez ao público em geral. Trata-se de um teste para qualquer empresa iniciante: para muitos que trabalham na chamada indústria da tecnologia, a esperança e as expectativas associadas a essa “estreia” respondem por seu ingresso nessas empresas, e/ou os mantêm grudados a seus postos de trabalho. É o ponto em que o dinheiro imaginado na fase inicial de um empreendimento se transforma no capital real de uma empresa aberta ao público.
Martínez estava presente no momento exato em que Zuck reuniu todo mundo e comunicou que iam se transformar numa empresa de capital aberto, o momento em que todos os empregados souberam que estavam a ponto de enriquecer:
Escolhi um assento atrás de um par isolado, que mais adiante identifiquei como Chris Cox, diretor de produtos do fb, e Naomi Gleit, uma ex-aluna de Harvard que foi a funcionária de número 29 do Facebook e era considerada na época a pessoa que trabalhava há mais tempo na empresa, afora o próprio Mark.
Naomi, entre uma e outra conversa curta com Cox, clicava intensamente em seu laptop, dando pouca atenção à parolagem zuckiana. Olhei por cima de seu ombro para a tela do computador, e vi que ela estava percorrendo um e-mail com inúmeros links que ia abrindo um atrás do outro, cada qual numa aba nova do seu navegador. Ao terminar essa verdadeira maratona de abertura de links, começou a examinar o conteúdo de cada aba com os olhos muito atentos. Eram anúncios de imóveis em São Francisco.
Imóveis
Martínez tomou nota de um dos imóveis e mais tarde foi consultar a oferta. Custava 2,4 milhões de dólares. Ele escreve de maneira irresistível, e com uma amargura fascinante, sobre as diferenças de classe e status no Vale do Silício, abordando em especial a questão, jamais ventilada em público, do imenso abismo entre os primeiros funcionários das empresas, que muitas vezes enriquecem numa escala fantástica, e os escravos assalariados que ingressam em momentos posteriores. “O protocolo manda não declarar nada em público a esse respeito.” No entanto, Bonnie Brown, massagista empregada nos primórdios do Google, escreveu em suas memórias que “um grande contraste se desenvolveu entre googlers que trabalhavam lado a lado. Enquanto um consultava os horários dos cinemas locais, o outro reservava passagens de avião para um fim de semana em Belize. E agora, como ficavam as conversas das manhãs de segunda-feira?”.
Quando chegou o momento da IPO, o Facebook, de empresa de imenso crescimento, passou a ser uma empresa com um faturamento incrível. Já vinha faturando algum dinheiro graças a seu tamanho (como observa Martínez, “um bilhão de vezes qualquer número é sempre um número grande à beça”), mas não o suficiente para garantir um valor de fato espetacular no lançamento de suas ações. Foi a essa altura que Zuckerberg começou a se concentrar na questão de como monetizar o Facebook. É interessante, e meritório, que não tenha dedicado muita atenção a ela antes disso – talvez porque não sinta um interesse particular pelo dinheiro em si. Mas sem dúvida ele gosta de vencer.
A solução era disponibilizar a montanha de informações que o Facebook reúne sobre sua “comunidade”, de modo a permitir que os anunciantes direcionassem suas mensagens com um grau de especificidade sem precedente em qualquer meio de comunicação. Martínez: “O corte pode ser demográfico (p. ex., mulheres entre 30 e 40 anos), geográfico (pessoas que vivam num raio de 10 quilômetros em torno de Sarasota, na Flórida), ou até com base em dados do próprio perfil do usuário no Facebook (você tem filhos? Ou seja, pertence ao segmento das mães?).” E Taplin diz o mesmo: “Se eu quiser atingir mulheres entre 25 e 30 anos do código postal 37 206 que gostam de música country e costumam tomar bourbon, o Facebook pode cuidar disso para mim. E mais: muitas vezes ele pode incluir uma ‘história patrocinada’ no feed de notícias de seus consumidores-alvo, dando a impressão de que é postagem de amigo, e não anúncio. Como diz Zuckerberg na apresentação dos Facebook Ads[2]: ‘Nada influencia mais que a recomendação de um amigo de confiança. Uma recomendação de confiança é o Santo Graal da publicidade.’”
Essa foi a primeira etapa do processo de monetização da empresa, quando ela transformou sua escala gigantesca numa verdadeira máquina de produzir dinheiro. O Facebook oferecia aos anunciantes uma ferramenta de precisão inédita para direcionar seus anúncios a determinados consumidores. (Certos segmentos de eleitores também podem servir de alvo para um direcionamento de precisão absoluta. Um exemplo de 2016 foi um anúncio anti-Clinton repetindo o célebre discurso de 1996 em que Hillary falava de “superpredadores”.[3] O anúncio foi especificamente direcionado aos eleitores afro-americanos em áreas onde os republicanos ainda podiam – e conseguiram, como ficou demonstrado – superar a votação democrata. Ninguém mais viu os anúncios na ocasião.)
A segunda grande mudança em matéria de monetização ocorreu em 2012, quando o tráfego da internet começou a migrar para os celulares. Se você usa um computador para acessar quase tudo que lê online, saiba que está em minoria. E essa migração representou um desastre potencial para as empresas que dependem da propaganda virtual, porque ninguém gosta de anúncios no telefone, e a tendência é clicar bem menos do que na tela de um computador. Noutras palavras: embora o tráfego geral viesse aumentando rapidamente, esse aumento tinha a ver com a multiplicação dos celulares, o que tornava o tráfego proporcionalmente menos valioso. A se confirmar essa tendência, todas as empresas que dependiam da contagem de cliques – ou seja, quase todas, mas sobretudo as gigantes como Google e Facebook – passariam a valer muito menos dinheiro.
O Facebook resolveu o problema por meio de uma técnica conhecida como onboarding. Como explica Martínez, a melhor maneira de entendê-la é pensar em nossos vários tipos de nome e endereço.
Por exemplo, se a Bed Bath and Beyond quiser me enviar um de seus maravilhosos cupons de desconto de 20%, ela precisa se dirigir a:
Antonio García Martínez
1 Clarence Place #13
San Francisco, CA 94107
Se quiser me alcançar em meu celular, o nome que precisa usar é:
38400000-8cfo-11bd-b23e-10b96e40000d
Essa é a identidade quase invariável do meu aparelho, transmitida centenas de vezes por dia em transações publicitárias para o celular. Já no meu laptop, meu nome é o seguinte: 07J6yJPMB9juTowar.AWXGQnGPA1MCmThgb9wN4vLoUpg.BUUtWg.rg.FTN.0.AWUxZtUf.
Este é o conteúdo do cookie de redirecionamento do Facebook, usado para me direcionar anúncios personalizados com base na minha navegação habitual pelo telefone celular.
Embora possa não ser óbvio, cada um desses códigos está associado a um rico apanhado de dados sobre nosso comportamento pessoal: todos os websites que visitamos, muitas coisas que compramos em lojas físicas, todos os aplicativos que usamos e o que fazemos em cada um deles…
Em termos de marketing, o que mais conta nos dias de hoje, e vem gerando dezenas de bilhões de dólares em investimentos, além de um planejamento interminável nas entranhas do Facebook, do Google, da Amazon e da Apple, é descobrir a maneira de associar esses vários conjuntos de nomes, e determinar quem controla esses links. E só.
Pessoas
OFacebook já detinha uma quantidade astronômica de informação sobre as pessoas, suas redes sociais, suas preferências e antipatias declaradas.[4] Depois de despertar para a importância da monetização, acrescentou aos dados que ele próprio colhia um gigantesco estoque novo de dados ligado ao comportamento offline de cada consumidor, no mundo real, adquirido de grandes empresas como a Experian, que há décadas monitora as compras dos consumidores por meio de relações com firmas de marketing direto, empresas de cartão de crédito e varejistas. Difícil descrever essas empresas numa única palavra – “agências de crédito de consumidores”, ou algo semelhante, seria um resumo aproximado. Seu alcance, porém, é muito maior do que essa definição daria a entender.[5] Essas empresas sabem tudo que se pode saber sobre seu nome e endereço, sua renda e nível de instrução, seu estado civil, além de tudo que você comprou usando um cartão de crédito. Agora, o Facebook poderia combinar a identidade de cada usuário ao identificador único do respectivo aparelho de celular.
E isso foi crucial para o aumento da lucratividade do Facebook. Nos celulares, as pessoas tendem a preferir a internet aos aplicativos, que se apoderam da informação que reúnem e se recusam a compartilhá-la com outras empresas. É improvável que um aplicativo de jogo do seu celular saiba mais a seu respeito do que o nível que você alcançou naquele determinado joguinho. Por outro lado, como todo mundo está no Facebook, a empresa conhece o identificador dos celulares de todo mundo. E foi capaz de criar um servidor que direciona os anúncios para celular com muito mais precisão que qualquer outra empresa, de um modo mais elegante e integrado do que ninguém jamais conseguiu.
E assim o Facebook conhece a identidade do seu telefone e sabe associá-la à sua identidade no Facebook. E junta isso ao resto de sua atividade online: cada site que você visita, cada link que você segue – o botão do Facebook rastreia cada usuário do Facebook, independentemente de ele clicar ou não. Como o botão do Facebook é quase onipresente, a rede consegue ver você em todo lugar. Hoje, graças às parcerias com as empresas tradicionais de crédito, ele sabe quem todo mundo é, onde todo mundo mora, e tudo que todo mundo já comprou com o cartão de crédito em qualquer loja offline do mundo real.[6] E toda essa informação é usada para uma finalidade, em última análise, altamente rasteira: vender coisas por meio de anúncios online.
Os anúncios funcionam de acordo com dois modelos. Num deles, o vendedor pede ao Facebook que direcione seu anúncio a consumidores de uma determinada camada demográfica – fã de música country e apreciadora de bourbon de 30 e tantos anos, ou afro-americano da Filadélfia que não demonstra muito entusiasmo por Hillary. Mas o Facebook também direciona anúncios por meio de um processo de leilões online, que ocorrem em tempo real cada vez que você clica num site da web. Como todo site que você visita planta (mais ou menos) um cookie em seu navegador, toda vez que você vai para um novo site ocorre um leilão em tempo real, com a duração de milionésimos de segundo, para decidir o valor da sua atenção e determinar os anúncios que lhe serão apresentados, com base no que se sabe de seus interesses, sua renda e assim por diante. E é por isso que os anúncios apresentam essa tendência desconcertante a nos seguir por toda parte: você procura uma nova televisão, um par de sapatos ou um local para passar as férias, e a publicidade correspondente continua a pipocar em cada site que você visita semanas mais tarde. E foi assim, canalizando seus talentos e recursos para o problema, que o Facebook conseguiu transformar o advento do celular, de potencial desastre financeiro, num imenso e vigoroso gêiser de lucros.
O que isso quer dizer é que, mais do que vender anúncios, a principal atividade do Facebook é a vigilância. Na verdade, ele é a maior empresa com base na vigilância de toda a história da humanidade. Ele sabe de muito mais a nosso respeito que o governo mais invasivo jamais soube acerca de seus cidadãos. É impressionante como as pessoas não perceberam esse caráter da empresa. Passei muito tempo refletindo, e sempre retorno à ideia de que os usuários não se dão conta da real atividade da empresa: manter-nos a todos sob vigilância, e em seguida usar as informações para vender anúncios. Não sei se já existiu tamanha desconexão entre o que uma empresa alega fazer – “conectar”, “construir comunidades” – e a realidade de sua prática comercial. E notem que as informações acumuladas não são usadas apenas para o direcionamento de anúncios, mas também para definir o fluxo de notícias dirigido a cada um.
Diante da vastidão do conteúdo postado no site, o que você acaba vendo é determinado por algoritmos que filtram e direcionam esse conteúdo: as pessoas acreditam que seu “feed de notícias” tem a ver basicamente com seus amigos e seus interesses, e isso é mais ou menos verdade, observada uma condição fundamental: é determinado sim por seus amigos e interesses, mas da maneira como são mediados pelos interesses comerciais do Facebook. Os olhos dos usuários são sempre conduzidos para o ponto onde rendem mais para a empresa.
Fico imaginando o que irá ocorrer quando – e se – cair esta ficha de 450 bilhões de dólares. A história dos mercadores de atenção, segundo Wu, costuma seguir um padrão sugestivo: todo boom é quase sempre sucedido por um efeito oposto de retrocesso; períodos de expansão explosiva em geral provocam uma reação pública, às vezes de ordem legislativa. O primeiro exemplo evocado pelo autor foi a implantação de leis draconianas contra cartazes de propaganda, na Paris do início do século XX (e ainda hoje em vigor). Como diz Wu, “quando o produto em questão é o acesso à mente do público, a busca perpétua do crescimento desencadeia formas de retrocesso praticamente inevitáveis, de maior ou menor importância”. E ele dá o nome de “efeito de desencanto” a uma das formas menores desse fenômeno.
O Facebook parece vulnerável a esse desencanto. Um dos pontos em que tais efeitos podem se manifestar é na essência do modelo de negócio – a venda de anúncios. A publicidade veiculada é “programática”, ou seja, determinada por algoritmos que associam o usuário aos anunciantes. O problema desse método, do ponto de vista do cliente – e o cliente, no caso, é o anunciante, e não o usuário do Facebook –, é que muitos dos cliques nesses anúncios são falsos. E aqui encontramos uma disparidade de interesses. O Facebook sempre quer mais e mais cliques, porque é assim que ele fatura: sempre que os anúncios são clicados. E se os cliques não forem reais mas automáticos, produzidos por contas fajutas administradas por robôs computadorizados, os bots? Esse é um problema conhecido que afeta sobretudo o Google, porque é fácil criar um site, admitir a hospedagem de anúncios programáticos e depois programar um bot para ficar clicando nesses anúncios, e em seguida basta recolher a grana que não para de entrar. No Facebook, os cliques fraudulentos tendem a vir mais de empresas que procuram aumentar os custos dos anúncios de suas concorrentes.
A publicação Adweek, voltada para a indústria da publicidade, estima que o custo anual da fraude dos falsos cliques seja de 7 bilhões de dólares, mais ou menos um sexto de todo o mercado. Um único site fraudulento, Methbot, descoberto no final do ano passado, dispõe de uma rede de computadores hackeados e gera entre 3 e 5 milhões de dólares de cliques diários. As avaliações da proporção do mercado tomada pelo tráfego fraudulento são variáveis, com estimativas que chegam a quase 50% do total; certos websites afirmam que seus dados indicam uma proporção de até 90%. O que cria problemas não só para o Facebook – pode-se imaginar que as empresas que pagam pela ad tech, como é conhecida esta tecnologia, se revoltem contra ela. Estudiosos do assunto me disseram que o mundo das empresas que mais compram publicidade, responsáveis por canalizar grande parte de seus orçamentos para o Facebook, é dominado por certo efeito de rebanho. Mas essa postura pode mudar. Por outro lado, muitos dos parâmetros medidos pelo Facebook sofrem uma leitura tendenciosa, que procura captar a luz num ângulo que lhe confira maior brilho. Um vídeo que passe por três segundos no Facebook já é dado como “visualizado”, ainda que só visto de passagem no feed de notícias – e mesmo que exibido sem som. Muitos vídeos com centenas de milhares de “visualizações” no Facebook, se avaliados à luz dos critérios de contagem empregados para medir as audiências de televisão, veriam seu número de espectadores reduzido a zero.
E uma revolta da clientela poderia coincidir com uma reação brusca de retrocesso por parte dos governos e das agências reguladoras. O Google e o Facebook detêm o monopólio virtual da publicidade na web, e esse poder monopolista vem se tornando cada vez maior à medida que os gastos com publicidade migram mais e mais para a internet. Juntos, os dois já destruíram grandes setores do ramo da imprensa diária. O Facebook foi determinante para o rebaixamento do debate público, permitindo com mais facilidade a circulação das “grandes mentiras” (Große Lügen) de que Hitler falava com entusiasmo – dessa vez transmitidas para um público gigantesco. A empresa não é obrigada a lidar com esse tópico, mas ela pode acabar atraindo a atenção das autoridades reguladoras. O que não constitui a única ameaça externa ao duopólio Google/Facebook. A postura dos Estados Unidos diante da lei antitruste deve sua definição a Robert Bork, juiz indicado por Reagan para a Suprema Corte, mas não confirmado pelo Senado americano. A orientação jurídica mais influente de Bork se dá na área do direito da concorrência: a única forma relevante de conduta anticoncorrencial é a que afeta o preço pago pelo consumidor. Segundo ele, a queda dos preços indica que o mercado está funcionando, e que medida nenhuma é necessária contra o monopólio. Esta filosofia ainda rege as atitudes de regulação nos Estados Unidos, e é a razão pela qual a Amazon, por exemplo, jamais foi incomodada pelas autoridades reguladoras, apesar da posição claramente monopolista que ocupa no mundo das vendas online a varejo, em especial de livros.
Por esses motivos estritos, as grandes empresas da internet continuam a parecer invulneráveis. Pelo menos até que se considere a fixação individualizada de preços. O imenso rastro de dados que todos produzimos em nossas perambulações pela internet vem sendo cada vez mais usado para nos cobrar preços que não têm mais a ver com etiquetas coladas às mercadorias nas lojas. Pelo contrário, são preços dinâmicos, que variam conforme nossa capacidade aparente de pagamento.[7] Quatro pesquisadores sediados na Espanha estudaram em 2012 o fenômeno criando identidades virtuais que se comportavam como se fossem, num caso, “preocupadas com o orçamento” e, em outro, “afluentes”; depois, verificaram se essa divergência de comportamento redundava em preços diferentes. E a resposta foi claramente positiva: uma busca por fones de ouvido obteve como resposta uma série de preços, na média, quatro vezes maiores para o consumidor virtual afluente. Um site que vende passagens aéreas com desconto cobra preços mais altos dos consumidores afluentes. De maneira geral, a simples localização de quem faz a busca chega a produzir variações de até 166% nos preços que lhe são apresentados. Em suma, preços personalizados existem e são fixados de acordo com os rastros que deixamos. O que me parece à primeira vista uma violação das leis antimonopolistas americanas posteriores a Bork, que têm como foco a variação dos preços. E não deixa de ser um tanto engraçado, além de meio grotesco, que, aparentemente, um aparato de gigantismo inédito voltado para a vigilância do consumidor seja considerado aceitável, enquanto um aparato de gigantismo inédito de vigilância do consumidor que resulte em preços mais elevados para algumas pessoas seja considerado ilegal.
A maior ameaça potencial para o Facebook talvez seja a eventualidade do desligamento de seus usuários. Dois bilhões de frequentadores mensais ativos é muita gente, e os “efeitos de rede” – a escala da conectividade – são, obviamente, extraordinários. Mas existem outras empresas que conectam pessoas em escala semelhante – o Snapchat tem 166 milhões de usuários diários, o Twitter, 328 milhões de usuários mensais – e, como vimos no ocaso do MySpace, que chegou a ser a maior rede social, assim que as pessoas mudam de ideia a respeito de um serviço, seu desligamento pode ocorrer em massa, e em altíssima velocidade.
Por esta razão, o Facebook se veria em perigo caso se difundisse o entendimento de que seu modelo de negócios se baseia na vigilância. A única ocasião que ele promoveu uma sondagem entre os usuários sobre o modelo de vigilância foi em 2011, quando propôs a mudança de seus termos e condições de uso – mudança que hoje rege o modo como são usados os dados recolhidos. O resultado não deu margem para dúvida: 90% das respostas foram contrárias às mudanças. O Facebook ignorou, afirmando que o número de votantes havia sido muito pequeno. O que não constitui nenhuma surpresa – nem a repulsa dos usuários à vigilância, nem a indiferença da empresa a esta repulsa. Mas isto ainda pode mudar.
Outro fenômeno que pode afetar os usuários é que eles interrompam a frequência devido à infelicidade que ela lhes traz. Não é o mesmo caso do escândalo de 2014, quando se descobriu que cientistas sociais da empresa haviam manipulado os feeds de notícias de certos usuários para avaliar os possíveis efeitos sobre as suas emoções. O artigo resultante da experiência, publicado nos Proceedings of the National Academy of Sciences [Atas da Academia Nacional de Ciências], era um estudo sobre o “contágio social”, ou a transmissão de emoções entre grupos de pessoas, resultante de uma modificação na natureza das notícias vistas por 689 003 usuários do Facebook. “Quando as expressões positivas eram reduzidas, as pessoas produziam posts menos positivos e mais negativos; quando as expressões negativas eram reduzidas, ocorria o padrão oposto. Esses resultados indicam que as emoções expressas pelos outros têm uma influência sobre nossas emoções, é um indício experimental do contágio em grande escala através das redes sociais.” Mas os cientistas parecem não ter considerado como essa informação seria recebida, e o caso repercutiu por algum tempo.
Talvez a notoriedade dessa história tenha acidentalmente desviado a atenção do que poderia ter sido um escândalo maior ainda: a publicação, no início do ano, do artigo “O uso do Facebook e o comprometimento do bem-estar: um estudo longitudinal”, no American Journal of Epidemiology. Os cientistas que conduziram o estudo constataram que, quanto mais as pessoas usam o Facebook, mais elas são infelizes. Um aumento de 1% no número de “curtidas”, cliques e atualizações de status está correlacionado a um decréscimo de 5 a 8% na saúde mental dos usuários. Além disso, ficou claro que o efeito positivo das interações ocorridas no mundo real, que contribuem para o nosso bem-estar, encontra um paralelo exato nas “associações negativas do uso do Facebook”. De fato, as pessoas vêm trocando as relações reais, que contribuem para o seu bem-estar, por um tempo cada vez maior no Facebook, que lhes provoca sentimentos negativos. Esta extrapolação é minha, e não dos autores do artigo, que tomam o cuidado de sublinhar que se trata apenas de uma correlação, e não de uma relação direta de causa e efeito; mas chegam a dizer que os dados “sugerem uma possível substituição das relações offline por relações online”. E esse não foi o primeiro achado desse tipo: muitas pesquisas vêm demonstrando que o Facebook faz as pessoas se sentirem uma merda. E por isso talvez um dia parem de usá-lo.[8]
Ese nada disso acontecer? Se os anunciantes não se revoltarem, se os governos não tomarem nenhuma atitude, se os usuários não debandarem, se o navio abarrotado de passageiros comandado por Zuckerberg seguir navegando livre, leve e solto?
Precisamos reexaminar a cifra de 2 bilhões de usuários ativos mensais. Em todo o mundo, o número de pessoas com algum acesso à internet – definido da maneira mais ampla possível, das mais lentas conexões discadas ao serviço precário de celular nos países em desenvolvimento, contando ainda todos que têm algum acesso, mas não o utilizam – é de 3,5 bilhões. Deste total, 750 milhões vivem na China e no Irã, que bloqueiam o Facebook. Cerca de 100 milhões de russos que se conectam à internet tendem a não usar o Facebook porque preferem seu equivalente nativo, o VKontakte. O que define uma audiência potencial de 2,6 bilhões de pessoas para o Facebook. Nos países desenvolvidos onde ele funciona há vários anos, seu uso atinge picos de uns 75% da população total (nos Estados Unidos). Isto resultaria numa audiência potencial de 1,95 bilhões de pessoas para o Facebook. No entanto, com 2 bilhões de usuários mensais ativos, a rede já ultrapassou este número, e agora começam a faltar humanos conectados. Martínez compara Zuckerberg a Alexandre, o Grande, triste porque lhe faltavam novos mundos para conquistar. Talvez esse seja um motivo dos sinais prematuros que Zuck vem emitindo a respeito de concorrer à Presidência – uma turnê pelos cinquenta estados fingindo que se importa com tudo, a pose de pensador atento em que foi fotografado tomando um milk-shake num restaurante (alarme de Pretensões Presidenciais!!) no estado de Iowa.
O que vai ocorrer a partir de agora nos remete aos dois pilares da empresa – o crescimento e a monetização. O crescimento só pode brotar da extensão da conectividade a novas áreas do planeta. O Facebook tentou o Free Basics, programa que oferecia conexão em aldeias distantes da Índia, sob a condição de que o leque de sites disponibilizados fosse determinado pela empresa. “Quem pode ser contra isso?”, escreveu Zuckerberg no Times of India. A resposta: milhões e milhões de indianos enfurecidos. O governo indiano decidiu que o Facebook não tinha o direito de “delimitar a experiência dos usuários”, embargando seu acesso ao resto da internet. Um membro do conselho da empresa tuitou: “O anticolonialismo vem sendo uma calamidade econômica para o povo indiano há décadas. Por que mudar agora?” Como afirma Taplin, essa observação “revela, sem querer, uma verdade até então nunca enunciada: Facebook e Google são os novos poderes coloniais”.
Assim, o lado da equação que lida com o crescimento não deixa de apresentar seus desafios, tanto tecnológicos quanto políticos. O Google (que tem um problema similar de carência de usuários potenciais) vem trabalhando no Projeto Loon, “uma rede de balões que flutuam no limiar do espaço, destinados a estender a conectividade para pessoas em áreas rurais e remotas do mundo inteiro”. O Facebook está empenhado num projeto que envolve um drone movido a energia solar, o Aquila, com envergadura de uma aeronave comercial, peso inferior ao de um carro e consumo de energia menor do que um micro-ondas. A ideia é que ele circunde áreas remotas do planeta hoje desconectadas, em voos que poderão durar até três meses, conectando os usuários via laser. (O projeto vem sendo desenvolvido em Somerset, na Inglaterra. O programa de drones da Amazon também tem sua base no Reino Unido, perto de Cambridge. A regulamentação legal britânica é francamente favorável aos drones.) Mesmo o mais calejado dos céticos em relação ao Facebook não tem como não se impressionar com tanta energia e ambição. Ainda assim, os próximos 2 bilhões de usuários vão dar muito trabalho para serem arregimentados.
Isto no que diz respeito à expansão, que deverá ter como alvo especial o mundo em desenvolvimento. Nos países ricos, como a Inglaterra, o foco está mais na monetização, e é nessa área que me vejo obrigado a admitir algo que talvez já tenha deixado claro. O Facebook me mete medo. A ambição da empresa, sua falta de escrúpulos e de uma bússola moral me assustam. E isso desde o momento de sua criação: Zuckerberg digitando em seu teclado depois de algumas doses, criando um website para comparar a aparência das pessoas, por nenhum outro motivo além de sua capacidade de fazê-lo.
Eis a questão crucial no que diz respeito ao Facebook, o ponto mais importante que poucos entendem: ele faz certas coisas só porque pode. Zuckerberg sabe fazer uma coisa, outras pessoas não sabem, então ele faz. Esse tipo de motivação não funciona na versão hollywoodiana da vida, e por isso Aaron Sorkin precisou inventar para ele uma motivação ligada à aspiração social e à rejeição. Mas isso no mundo da ficção. Zuckerberg não foi motivado por esse tipo de psicologia de quintal. Ele faz o que faz porque pode, e todas as justificativas que falam de “conexão” e “comunidade” são racionalizações posteriores. O impulso foi mais simples e mais básico. E é por isso que a necessidade de crescer sempre foi tão fundamental para a empresa, cujo comportamento em muitos aspectos lembra antes um vírus que um negócio. Crescer, multiplicar-se e monetizar. Por quê? Não há um porquê. A resposta é porque sim.
A automação e a inteligência artificial hão de ter um impacto extraordinário sobre mundos de todos os tipos. São tecnologias novas, reais, e prestes a acontecer. O Facebook se interessa profundamente por essas tendências. Não sabemos onde elas vão dar, não sabemos quais serão os custos e as consequências sociais, não sabemos qual vai ser a próxima área da vida a ser esvaziada, qual o próximo modelo de negócio a ser destruído, a próxima empresa a ter o mesmo destino da Polaroid ou a próxima atividade a dar com os burros n’água como o jornalismo impresso, ou qual novo conjunto de ferramentas e técnicas poderá ser empregado pelas mesmas pessoas que usaram o Facebook para manipular as eleições de 2016. Não temos como saber o que virá, mas sabemos que há de ser momentoso, e que um papel de destaque está reservado à maior rede social do planeta. Com base no que indicam suas atitudes até aqui, é impossível encarar essa perspectiva sem algum desconforto.
[1] Quando o Google se relançou com o nome de Alphabet, a divisa “Não fazer o mal” foi substituída, no código de conduta da empresa, por “Fazer a coisa certa”.
[2] Facebook Ads é a plataforma usada pelo Facebook para gerir e direcionar anúncios.
[3] Embora Hillary Clinton nunca tenha especificado a quem se referia quando falou de “superpredadores” nessas suas declarações sobre jovens criminosos em 1996, o senador Bernie Sanders, que com ela concorria à indicação democrata no início da campanha de 2016, afirmou que o termo tinha um conteúdo “racista”, o que mais tarde seria amplamente explorado por Donald Trump nas redes sociais.
[4] Destaque para “declaradas”. Como afirma Seth Stephens-Davidowitz em seu novo livro Everybody Lies [Todo Mundo Mente], pesquisadores estudaram a diferença entre a linguagem usada no Google, onde os usuários tendem a dizer a verdade porque são anônimos e estão em busca de respostas, e a linguagem empregada no Facebook, onde projetam uma imagem. No Facebook, os termos mais comuns associados à expressão “meu marido é…” são “o melhor do mundo”, “meu melhor amigo”, “incrível”, “o maior” e “tão lindo”. No Google, os cinco mais presentes são “incrível”, “um babaca”, “um chato”, “gay” e “mau”. Seria interessante descobrir se existe algum marido que corresponda a todo o conjunto de principais atributos do Google, e seja um babaca incrivelmente chato, além de mau e gay.
[5] Um exemplo de seu trabalho é o sistema “Mosaico” da Experian, usado para caracterizar segmentos de consumidores, que divide a população em 66 segmentos, entre eles “Cafés e Redondezas”, “Elegantes de Cobertura”, “Avós Clássicos” e “Inquilinos Usuários de Ônibus”.
[6] Devo dizer que a informação é misturada e dividida (hashed) antes de ser compartilhada, de forma que as empresas envolvidas, embora saibam tudo a seu respeito e pratiquem o intercâmbio desses dados, fazem-no de forma pseudonimizada, ou sob a proteção do anonimato. Ou de forma pseudo-pseudonimizada, tendo em vista a discussão corrente sobre o quanto essa forma de anonimato é efetivamente anônima.
[7] A ideia de um preço único para todos é relativamente recente. Atribui-se a John Wanamaker a noção da cobrança de um preço fixo por mercadoria, surgida na Filadélfia em 1861. A ideia teria vindo dos quakers, para os quais todo mundo devia ser tratado de maneira igual.
[8] O estudo “O uso do Facebook, inveja e depressão entre universitários: o Facebook induz depressão?”, publicado em 2015 no periódico Computers in Human Behaviour, chegou a uma resposta negativa – exceto quando também se levavam em conta os efeitos da inveja, caso em que a resposta era afirmativa. Mas como a comparação marcada pela inveja constitui a base girardiana de todo o Facebook, esse “não”, quando qualificado, soa bem mais como um “sim”. Um artigo de 2016, publicado no periódico Current Opinion in Psychiatry – “A interação entre o uso do Facebook, a comparação social, a inveja e a depressão”, concluía que o uso do Facebook aparece ligado à inveja e à depressão, outra descoberta que não surpreenderia Girard. Em 2013, a PLOS ONE publicou o artigo “Uso do Facebook pode prenunciar um declínio do bem-estar subjetivo em adultos jovens”, demonstrando que o Facebook deixa os jovens tristes. Um artigo de 2016 na revista Cyberpsychology, Behavior and Social Networking, intitulado “A experiência do Facebook: largá-lo leva a níveis mais altos de bem-estar”, concluía que o Facebook deixa as pessoas tristes e que elas ficam mais felizes quando param de usá-lo.