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Cristovam Buarque: Afogamento e fuga
Em 1995, nasceram 3,1 milhões de crianças no Brasil. Em 2017, 30 mil delas continuam analfabetas por não terem entrado ou terem abandonado a escola antes de aprender a ler. Cerca de 2,6 milhões concluíram o ensino fundamental. Apenas dois milhões terminaram o ensino médio e dessas, não mais do que 600 mil adquiriram conhecimento suficiente para enfrentar os desafios da sociedade do conhecimento onde viverão, falando línguas estrangeiras, dominando Matemática, Informática, Geografia, História, Literatura, Filosofia.
Pouco mais de 720 mil (49%) estão no ensino superior e, considerando a atual taxa de evasão/abandono nesse nível educativo, não chegará a 355 mil (11,5%) o número daquelas 3,1 milhões de crianças que, até o ano de 2022, concluirão o ensino superior. As avaliações mostram que a qualificação profissional desses graduados deixa muito a desejar. O aumento no número de vagas não teve correspondência no aumento do número e da qualidade do ensino médio. Apenas 17 mil (0,55%), no máximo, farão cursos de pós-graduação e terão condições de serem alguns dos raros cientistas de que o Brasil tanto carece.
Destes nascidos em 1995, o Brasil não terá mil como cientistas de nível internacional trabalhando com ciência. A perversidade dessa pirâmide é suficiente para mostrar o despreparo do Brasil para ingressarmos com eficiência no século XXI, com a economia global baseada no conhecimento. Ainda pior, boa parte dos nossos raros talentos científicos estão emigrando para países onde poderão desenvolver melhor suas atividades profissionais e terão melhores condições de vida para si e para suas famílias.
Entre o nascimento e a vida adulta, o Brasil afoga milhões de seus cérebros na infância e adolescência, e está provocando a fuga dos poucos que conseguem avançar até o último nível do conhecimento formal e do exercício da atividade científica. A dificuldade criada por estes dois fatos, afogamento e fuga de cérebros, mostra uma sociedade imediatista nos propósitos e sem vocação para o desenvolvimento intelectual. Os brasileiros se revoltariam se tomassem conhecimento de que nossos governos estão omissos diante da destruição de parte de nossas minas e deixando que países estrangeiros levem uma parte de nossos minérios.
Entretanto, nenhuma indignação é manifestada, e nada é feito para impedir essa realidade. Assistimos passivamente ao afogamento e fuga, sem ao menos percebermos que estamos perdendo nosso ouro do século XXI: o conhecimento, a ciência, a tecnologia e a cultura que nossos cérebros poderiam criar. Permitimos que levem a verdadeira e permanente riqueza: a inteligência de nossas crianças que deixamos de desenvolver e a inteligência de nossos doutores que partem para o exterior. Não teremos futuro se não formos capazes de aproveitar os cérebros de todas as nossas crianças, de mantê-los aqui em plena atividade profissional e de trazer de volta os nossos cientistas que emigraram para outros países, dando-lhes todas as condições de trabalho.
Clóvis Rossi: O Brasil, esse 'sem vergonha'
Abro "Brasil, brasileiro. Por que somos assim?", uma coletânea de 16 ensaios editada pela Verbena Editora, por inspiração da Fundação Astrojildo Pereira (FAP). Seus autores são acadêmicos do mais alto nível com a vantagem adicional de que não participam da pirotecnia que, em geral, caracteriza o debate público no Brasil.
Já na apresentação, vem o choque: "O Brasil é um país curioso, é um país extremamente sem vergonha".
O choque não é tanto pela frase em si. Também acho que o Brasil é sem vergonha, mas eu não sou ninguém, ao passo que Antonio Callado, que a pronunciou, é um intelectual do maior respeito, um escafandrista da alma brasileira, autor de obras primas como "Pedro Mico" e "Quarup".
Que seja capaz de um julgamento tão severo obriga a pensar, ainda mais que a frase completa é assim: "Quando chega a hora de as coisas mudarem, as coisas não mudam. Não tenho mais esperanças".
O choque é também pela época em que a frase foi pronunciada: em entrevista à Folha, no dia 26 de janeiro de 1997, quando fazia 80 anos e dois dias antes de morrer.
Se a constatação fosse feita hoje, seria auto-explicativa: a sem-vergonhice desfila todos os dias pelas páginas dos jornais, no horário nobre dos telejornais (e até nos horários não tão nobres). Mas, em 1997, o Brasil ainda vivia um pouco da ilusão de estabilidade que o Plano Real introduzira, a crise cambial só apareceria no ano seguinte e o "apagão" que destruiu o prestígio de Fernando Henrique Cardoso demoraria mais uns quatro anos.
Agora, constatações tão negativas são, digamos, normais. "Os ensaios, em sua maioria, são pessimistas em relação ao estado atual da sociedade brasileira, e mesmo em relação ao futuro próximo", escrevem os organizadores na apresentação (o senador Cristovam Buarque, Francisco Almeida e Zander Navarro, doutor em Sociologia pela Universidade britânica de Sussex).
A exceção ao pessimismo, curiosamente, vem do único não-brasileiro convidado a escrever: o americano John W. Garrinson 2º, que, no entanto, viveu anos suficientes no país para se considerar "brasileiro por opção e não por nascença".
Nos demais, aparecem sentenças tão duras quanto as de Callado. Escreve, por exemplo, José de Souza Martins, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP: "Não sobrevivemos sem mediadores, condutores, abridores de caminho. Estamos sempre à espera de que um deles apareça para nos dizer o que somos e o que queremos. Neste 2017 estamos perdidos, mais uma vez à espera de que ele chegue para abrir o caminho que nos levará a 2018".
Agora que ninguém está olhando, confesse: você também não está se sentindo perdido, esperando alguém?
Há mais: "O brasileiro perdeu a guerra para si mesmo. [...] Ele foi incapaz de organizar e fazer funcionar bem o seu aparelho de Estado e a sua economia", escreve Flávio Kothe, professor na Universidade de Brasília e presidente da Academia de Letras do Brasil.
Se há 20 anos, Callado enxergava um país sem vergonha, hoje Cristovam Buarque, senador e único político presente no livro, chora "o nosso [do Brasil] desprezo a um rumo para o futuro. [...] Não conseguimos formular metas e estratégias".
Nessa toada, daqui a 20 anos, tais avaliações talvez pareçam otimistas. Ou será que o Brasil tomará vergonha?
* Clóvis Rossi é repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano.
Míriam Leitão: Conflitos do Brasil
Exposição revela a memória dos conflitos da República. Deixe do lado de fora do Instituto Moreira Salles, no Rio, qualquer ideia que você tenha sobre o Brasil ser um país pacífico, sem guerras, e prepare-se para ver a história em fotos e ângulos inesperados. Em Ponta Grossa, em abril de 1894, o cabo Sebastião Juvêncio, ao lado de superiores, faz pose para o fotógrafo Affonso de Oliveira Melo, minutos antes de degolar um rebelde.
Era a Revolução Federalista, no Sul do Brasil, uma guerra civil que deixou dez mil mortos, mil deles degolados. A Kodak havia acabado de chegar ao Brasil, e “as partes em luta contratavam estúdios fotográficos para retratar líderes, tropas, acampamentos e vitórias", diz o texto da curadora Heloisa Espada. Algumas fotos são de arquivos públicos, outras são de coleções pessoais, e houve um esforço de procura de documentos inéditos.
A exposição conta com imagens a História do Brasil através dos seus conflitos, do início da República até 1964. Trata do golpe, mas não da ditadura militar, porque aí seria uma outra história, explica Heloisa Starling. Ela e Angela de Castro Gomes são as organizadoras. A exposição exibe imagens de uma sequência impressionante de revoltas, motins, guerras sangrentas ao longo de 75 anos da República, dissolvendo a ideia de que o Brasil resolveu desavenças apenas na negociação.
A maioria das fotos expostas é de fotógrafo desconhecido, mas algumas têm autoria. Marc Ferrez e Juan Gutierrez registram a Revolta da Armada, no Rio. Anos depois, em 1923, os gaúchos se envolvem em nova peleja. Marcante a foto feita por fotógrafo desconhecido do general Zeca Netto andando entre o povo com seu chapéu, durante a ocupação em Pelotas. Neste e em outros conflitos, os brasileiros com sombreiros se parecem com mexicanos.
A guerra do Contestado, de 1912 a 1916, na região de Paraná e Santa Catarina, deixou dez mil mortos. Os registros são do fotógrafo Claro Jansson contratado pela Southern Brazil Lumber & Colonization, empresa que recebera do governo terras das quais os posseiros foram deslocados, iniciando a revolta.
A foto de dois jovens numa sala em meio a escombros, imagens de fábricas destruídas por bombardeio aéreo. É São Paulo em 1924, na Revolta Tenentista. As tropas do governo com 18 mil homens bombardearam a cidade para reagir ao governo provisório que havia sido instalado pelos rebeldes. Em 1932, na Revolução Constitucionalista, chamada de guerra civil na exposição, há uma foto de paulistas, derrotados, presos e amontoados em vagões de gado. Na frente do trem, tropas do Exército e em cima do vagão a figura solitária de um homem com capa e quepe.
A espessa fumaça que sobe do 3º Regimento de Infantaria do Rio de Janeiro, na Insurreição Comunista de 1935; as fotos e filmes que Benjamin Abrahão fez em 1936 de Lampião e seu grupo; a praia do Flamengo tomada pelo povo, e a fúria popular após a morte de Getúlio, 1954; o corpo do capitão Cazuza, morto em Jacareacanga, em 1956. Há uma sucessão de ângulos não vistos e mal-entendidos da História do Brasil. Tantos que espantam um jovem que trabalha como segurança na mostra. Ele me disse que está na expectativa de seguir uma visita guiada. Quer aprender mais sobre esse Brasil.
As fotos de Flávio de Barros da Guerra de Canudos, de 1896 a 1897, são projetadas na parede, como fez o autor ao voltar de lá e passar a ganhar a vida no Rio com essas imagens. Ele exibia as fotos, com uma tecnologia anterior ao cinema, a da lanterna mágica. Pagava-se para ver as fotos de Antônio Conselheiro e seus seguidores, ou do Exército que o derrotou, no conflito em que morreram, nos sertões, 20 mil brasileiros. Em uma das cenas se pode ver o corpo de uma criança entre escombros.
Uma voz descreve cenas de tortura. É Gregório Bezerra, líder comunista, contando seu sofrimento na prisão em 1964. Ele fora professor na escola militar e no seu depoimento descreve um primeiro sentimento: “a atitude da oficialidade do CPOR, dos alunos e a dos soldados me encorajaram”. Achou que, na visão desses militares, o que acontecia com ele “manchava a tradição do Exército Nacional". Gregório Bezerra foi torturado e arrastado pelas ruas de Recife com uma corda no pescoço. Era o início de um novo ciclo de violências.
Davi Zaia: O Brasil precisa contar com todos nós
Vimos recentemente grande movimentação no cenário político por causa da possível candidatura de Luciano Huck à presidência da república nas próximas eleições. Toda essa especulação sobre o comunicador se findou no dia 27, quando ele se manifestou, por meio de um artigo, que não seria candidato.
Embora a discussão sobre sua candidatura tenha se acabado, a situação toda suscita uma reflexão sobre o papel de cada cidadão.
Em seu artigo sobre a “desistência” de se tornar candidato, Luciano afirma que o Brasil pode contar com ele, mas não como presidente. Aí está a chave de tudo.
Diante de um cenário de desânimo popular, sabemos que é difícil acreditar em avanços. Mas devemos acreditar em nós mesmos como agentes de transformação. Se queremos mudança, devemos fazê-las. Como?
Exercendo nossa cidadania. Sendo participativos.
Seja na política partidária ou em movimentos organizados, o que importa é promover atitudes que, como o próprio Huck mencionou, se revertam em transformações capazes de tornar o Brasil “de um país à deriva em uma nação de verdade, que possa de uma vez por todas refletir a qualidade indiscutível do seu povo”.
Ao contrário do que prega o senso comum, a omissão só nos leva ao retrocesso. É hora de contarmos com pessoas que, independentemente de status ou posição, se coloquem à disposição do futuro do Brasil.
Neste sentido, o voto é o começo do exercício da cidadania. Porém, além de escolher os governantes e demais representantes, precisamos nos organizar, diagnosticar nossos problemas, elencar prioridades, apontar soluções cabíveis e construir juntos o Brasil que queremos. É ingênuo achar que haverá um “salvador da Pátria” se não somarmos esforços. Portanto, passemos juntos pela “Odisseia” em favor de nosso país.
* Davi Zaia é deputado estadual pelo PPS-SP e vice-presidente nacional do partido
Monica De Bolle: A medida do Estado
Reduzir esse debate a princípios simplórios como máximo e mínimo arrisca confundir as pessoas
Com a aproximação das eleições de 2018, a tragédia desvelada da corrupção endêmica, e os anseios políticos de matizes diversos que afloram no Brasil, proliferam opiniões sobre o tamanho do Estado. Há inúmeros defensores do chamado “Estado mínimo”, mas pouco entendimento do que isso significa. Para uns, trata-se de remover o Estado de qualquer atividade que possa ser feita com maior eficiência pelo setor privado. Para outros, trata-se de enxugar a despesa de modo a restringir a atuação do governo apenas a áreas consideradas fundamentais, como a saúde, a educação, a segurança pública. A visão do Estado mínimo – conceito que não tem definição clara nem entre os economistas, nem entre cientistas sociais – parte da premissa de que quanto “menor” o Estado, menores serão os entraves ao crescimento. A intuição parece óbvia, sobretudo diante dos desperdícios nefastos dos governos brasileiros. Intuição, porém, não é fato ou evidência.
A relação entre o tamanho do Estado e o crescimento econômico documentada está em vasta literatura acadêmica. Nessa literatura, a métrica mais utilizada para medir o tamanho do Estado é o nível das despesas do governo. De um lado, há a tese de que um Estado inchado emperra o crescimento pois para viabilizá-lo é necessário aumentar impostos e/ou elevar o endividamento público – dívidas altas fragilizam o ambiente macroeconômico prejudicando o crescimento. Adicionalmente, se o Estado gasta de modo pouco transparente e ineficiente, a corrupção se alastra e as ineficiências impedem que os recursos fluam para áreas que trariam ganhos de produtividade. Por outro lado, se o governo gasta muito pouco, a provisão de bens públicos pode ser insuficiente, prejudicando o crescimento – bens públicos são aqueles para os quais o consumo de um indivíduo não afeta a quantidade que pode ser consumida pelos demais. Exemplos de bens públicos são: a segurança, a produção de conhecimento, serviços de utilidade pública em geral. Bens públicos também incluem infraestrutura, educação e saúde quando relaxada a definição estritamente econômica.
Há, portanto, custos e benefícios associados ao tamanho do Estado, seja ele qual for. Não surpreendentemente, estudos empíricos que tentam abordar a relação de forma rigorosa são inconclusivos. Em alguns casos, se conclui que a relação entre despesa do governo e crescimento é negativa; em outros, a relação é positiva. Diante dos custos e benefícios anteriormente descritos, o consenso acadêmico é de que a relação entre gastos do governo – a medida do tamanho do Estado – e crescimento econômico obedece uma curva em U invertida: até determinado ponto, gastos estão positivamente associados ao crescimento; a partir daí a relação é negativa. Na literatura econômica, essa curva é conhecida como a curva de Bars, iniciais dos estudiosos que contribuíram para tal compreensão da relação entre o tamanho do Estado e o crescimento. Portanto, se tomarmos a curva de Bars como referência, existe um tamanho adequado para o Estado que não é nem grande demais, nem pequeno demais – nem máximo, nem mínimo.
O que é possível dizer sobre o tamanho do Estado no Brasil? Se medirmos o tamanho do Estado pela despesa total do governo geral, fica evidente que há muito estamos do lado errado da curva de Bars: desde 96, quando o FMI disponibiliza essa medida das despesas, o tamanho do Estado exibe correlação negativa com o crescimento econômico. Caso queiramos analisar a relação entre o tamanho do Estado e o crescimento desde o final da década de 60, a medida disponível é o consumo final do governo geral, que corresponde a uma parte da despesa total. Usando tal medida, a conclusão a que se chega é que desde meados dos anos 80 o Brasil está do lado errado da curva de Bars.
Claramente, é preciso diminuir o tamanho do Estado brasileiro para destravar o crescimento, assim como é preciso reformá-lo para que possa servir à sociedade de modo eficiente, com atenção especial às nossas desigualdades. Reduzir esse debate tão importante a princípios simplórios como máximo e mínimo arrisca confundir a cabeça das pessoas, além de levar a recomendações de política econômica equivocadas para nosso País tão sofrido, ineficiente, e profundamente desigual.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Míriam Leitão: O interior das despesas
Primeiro gasto a cortar é o subsídio ao capital. Este ano, em viagens pelo Brasil, encontrei duas vezes inovações resultantes de pesquisas da Universidade Federal de Santa Catarina, uma em energia e outra em tecnologia para a agricultura. Recorri a professores de universidades públicas em questões ambientais, tanto no Nordeste, quanto no Sul, porque eles tinham pesquisas sobre cada um dos biomas. Difícil encontrar isso nas universidades privadas.
A universidade pública sempre teve mais alunos ricos e da classe média, mas comparar gasto de universidades privadas e públicas por aluno tem uma distorção: no Brasil são as públicas que fazem pesquisa. A pergunta que o Banco Mundial faz, em relatório sobre as despesas federais, é essencial para um país desigual como o nosso: a quem se destina o dinheiro público? Este é o principal mérito do estudo. No caso do ensino superior público, o estudo alerta que 65% dos alunos estão entre os 40% mais ricos. Universidades Federais custam 0,7% do PIB ao ano, e o Banco Mundial propõe reduzir 0,5% do PIB. Evidentemente isso não é realista. A proposta de ampliar o Fies para as públicas não funciona. Este programa de crédito está sendo contido porque cresceu demais. Os alunos de escolas particulares pagam pelo ensino médio e podem pagar pelo ensino superior. Não resolveria o financiamento, mas reduziria a regressividade.
O relatório do Banco Mundial é resultado de uma análise das contas brasileiras pedida pelo governo Dilma. O olhar profundo sobre os números ajuda o país a fazer escolhas em época de escassez. Não exatamente as que foram propostas. Martin Raiser, diretor do Banco Mundial no Brasil, e Antonio Nucifora, economista-chefe, me disseram que esses estudos serão detalhados ao longo de 2018 por áreas específicas. Haverá tempo para novos debates. A reação ideológica ao estudo, como se ainda vivêssemos na era do monitoramento da economia brasileira pelos gêmeos de Bretton Woods, é desatualizada. A aceitação acrítica das propostas do Banco Mundial é igualmente sem sentido.
O ponto alto do estudo é mostrar que o Brasil transferiu, em 2015, 4,5% do PIB para o capital. Isso dá em dinheiro perto de R$ 269 bilhões. Antes do governo do PT, eram 3%. O que era excessivo ficou extravagante. Grande parte desse dinheiro vai para empresas sem exigências de contrapartida e sem transparência. Para que mesmo dar dinheiro para multinacional do setor automobilístico? Por que o governo deu tanto subsídio para um frigorífico comprar outros frigoríficos e se expandir no mundo, enriquecendo uma família rica? Mesmo se não tivesse ocorrido o que sabemos hoje sobre o grupo de Joesley Batista, já seria absurda essa opção preferencial pelos ricos nos aportes de recurso no governo de um partido que se diz de esquerda. Os subsídios ao capital, eis o primeiro ponto a ser atacado. O curioso é que no relatório se coloca “incerto” na avaliação sobre se a redução desses subsídios melhorará a equidade.
O Banco Mundial propõe fundir os programas sociais como BPC, aposentadoria rural e salário-família com o Bolsa Família. E diz que esta proposta aumenta a equidade. Eles constatam que, de todos os programas, o Bolsa Família é o mais eficiente e chega realmente aos mais pobres. Fazer essa fusão melhora os outros ou reduz a qualidade do Bolsa Família? Entre seus méritos está o de ser um benefício com contrapartida, que é o de manter a criança na escola. O programa piorou quando relaxou com essa exigência. Misturar tudo pode tirar esse mérito.
Outra proposta é a de que a pessoa demitida saque primeiro o seu Fundo de Garantia em parcelas mensais e só depois receba o seguro-desemprego. O cálculo do Banco Mundial é que isso diminui em 95% esse gasto. Reduzir tanto assim é, na prática, acabar com o programa. Essa proposta exigiria também controlar ainda mais o acesso do trabalhador ao FGTS. O seguro-desemprego é um direito de apenas parte dos trabalhadores. Os que estão no mercado formal. Ele é desigual porque reflete a desigualdade do mercado de trabalho. Mas acabar com ele não é a resposta.
O Brasil cria e reproduz desigualdades nas escolhas que têm feito nas despesas públicas. Esse é um bom diagnóstico. Mas é preciso cuidado na hora de escolher receitas para enfrentar esse velho mal.
Míriam Leitão: Gasto alto e injusto
Qualquer família ou empresa que tivesse de consultores o diagnóstico de que “gasta mais do que pode e gasta mal” estaria a caminho da bancarrota. O Brasil recebeu do Banco Mundial este atestado junto com uma série de números e propostas. Ele pode recusar todas as sugestões. Mas é fundamental admitir que o país está arruinado e que isso piorou nos últimos anos. A realidade precisa ser encarada.
O Banco Mundial já fez estudos como esse, de análise do gasto público, em diversos países e a radiografia é sempre importante para orientar escolhas. Mesmo que seja a de deixar tudo como está e depois pagar o preço, ou procurar um resultado parecido por outros meios. Só não é possível ignorar os dados. Eles mostram que de 2012 para cá a dívida pública saltou de 51% do PIB para 74%, e desde 2015 o governo gasta 8% do PIB a mais do que arrecada. As sugestões feitas, caso aplicadas, gerariam uma economia de 7% do PIB até 2026.
Se todo esse gasto estivesse alavancando o crescimento, alguém poderia dizer que há mérito porque mais tarde o país aumentaria a receita. Mas não. Estamos cavando mais fundo o poço no qual caímos. E para tornar a sociedade brasileira mais injusta.
Na Previdência, os 20% mais ricos ficam com 35% do que é pago; os 40% mais pobres, com 18%. Os subsídios às empresas custaram 4,5% do PIB em 2015 e, segundo o banco, não há evidência de que impulsionaram a produtividade e o emprego. Na verdade, é pior. Esse dinheiro todo foi transferido a empresas e houve queda do emprego e da produtividade. Alguns desses programas nos causaram embaraço internacional, como o Inovar-Auto. E as montadoras estrangeiras já estão de novo bajulando o governo para recriar o mesmo programa, com outro nome, até 2030.
O Brasil gasta mais em Educação que a média dos países da OCDE, em percentual do PIB. O aumento foi rápido na última década. A questão é a eficiência. O desempenho avançou, mas a um ritmo menor do que o necessário. As matrículas de curso superior triplicaram nos últimos 15 anos, e apenas um quarto delas é atendida por universidades públicas. Dos oito milhões de universitários, dois milhões estão nas faculdades públicas. A despesa com universidades federais saltou 7% em termos reais e as matrículas aumentaram 2%. Cresceu a presença de estudantes pobres no ensino superior, mas a participação ainda é pequena. Em 2002, 4% dos estudantes eram dos 40% mais pobres, agora são 15%. Em universidades públicas, 20% dos estudantes estão entre os mais pobres. É um avanço. Porém, 65% dos alunos estão entre os 40% mais ricos.
Por isso o Banco Mundial sugeriu cobrar pelo ingresso. E cobrar de maneira diferente, dando subsídios maiores aos mais pobres. “O ensino superior pode estar perpetuando a desigualdade brasileira", diz o estudo. A sugestão é cobrar dos mais ricos, financiar quem não puder pagar, e dar bolsa integral para os mais pobres. O sistema universitário público continuaria, mas receberia parte do seu financiamento dessa forma de tarifa. É um assunto tabu, claro, mas por que não discutir?
A transferência de dinheiro para empresas aumentou 50% entre 2006 a 2015; saiu de 3% do PIB para 4,5%. O aumento aconteceu no governo petista, que se define como de esquerda. O ideário da esquerda, como se sabe, é a redução das desigualdades. Essa política faz o oposto. Pior, a maior parte do dinheiro para as empresas não passa pelo Orçamento. É menos transparente. A parcela mais relevante é dada através de desconto no pagamento de impostos, com programas como o Simples, a Zona Franca de Manaus, a desoneração da folha, o Inovar-Auto e o Programa de Sustentação do Investimento. O crédito subsidiado para capitalistas, através de bancos públicos, custou 1,2% do PIB em 2015, mais do que todo o gasto com universidades federais. E se era para sustentar o crescimento, fracassou porque o país entrou na pior recessão da nossa história.
Ontem, o que o Banco Mundial divulgou foi, na verdade, o resumo de estudos. As 150 páginas formam apenas o sumário executivo. O Banco soltará avaliações setoriais aprofundando as análises e propostas em cada área. Pode-se ignorar tudo ou encarar a realidade de um país que gasta mais do que pode e ainda desperdiça. Mesmo que não sejam os caminhos sugeridos, alguma solução o Brasil precisa encontrar para esse impasse nas contas do governo.
Monica de Bolle: Guerreiros de teclado
O resultado é uma arena de cacofonia onde tribos gritam e se esbofeteiam na internet e, de bom mesmo, nada sai
“Há algo terrivelmente errado. Os Estados Unidos, hoje, são país obcecado pela adoração de sua própria ignorância. Não se trata do fato de que as pessoas não saibam muito sobre a ciência, a política, a geografia; elas não sabem, mas isso sempre foi assim. (…) O problema maior é que hoje nos orgulhamos de nossa própria ignorância. A ignorância, especialmente em relação a qualquer coisa associada à política pública, é virtude. (…) Tudo é passível de conhecimento, e toda opinião sobre qualquer assunto é tão válida quanto qualquer outra.” O trecho é de “The Death of Expertise”, livro de Tom Nichols publicado pela Oxford University Press esse ano.
Leiam novamente o início da segunda frase. Substituam “os Estados Unidos” por “Brasil”. Soou familiar? Não importa qual seja sua profissão, é provável que, em algum momento, tenha encontrado opiniões disparatadas sobre sua área de conhecimento em alguma mídia social. Talvez você tenha tentado explicar para o indivíduo que expôs opinião equivocada os motivos de seu equívoco. Talvez você tenha se indignado com a possível resposta malcriada que de volta recebeu. Talvez você tenha resolvido não perder seu precioso tempo com a estultice que predomina nas redes, forma menos suave de denominar aquilo que o sociólogo Manuel Castells chamou de “autismo eletrônico”.
Como economista, já observei inúmeras opiniões equivocadas sobre políticas relacionadas à minha área de atuação e conhecimento, opiniões untadas de qualquer matiz ideológico. Há, por exemplo, o batido argumento de que o sistema previdenciário brasileiro é superavitário, e que, portanto, não há necessidade de reforma alguma. Há, também, o argumento de que as desigualdades estonteantes que esgarçam o Brasil seriam resolvidas bastasse que se reduzisse o tamanho do Estado e que se desse maior protagonismo ao indivíduo. Ambas as visões estão erradas, não só em suas premissas, mas em termos da assertividade com que são apregoadas.
Contudo, se a primeira for combatida mostrando que, na ausência de uma reforma da Previdência – e a de Temer deixa muito a desejar – a matemática implacável do envelhecimento populacional brasileiro levará ao caos nos próximos anos, o especialista será desqualificado, acusado de não conhecer a Constituição, não saber fazer conta, ou de ser “de direita”, logo descartável. Caso trate-se da segunda opinião, a tentativa de explicar ao interlocutor que a velha ideia de Estado mínimo jamais funcionaria em um País onde a desigualdade fundamental é de acesso às oportunidades – sobretudo ao ensino de qualidade, mas também à saúde, à segurança, ao saneamento básico, e por aí vai – as chances de que o especialista seja desconstruído com argumentos que variam de um longo discurso sobre as vicissitudes do Estado brasileiro até a denominação de “esquerdopata” são imensas.
O resultado é uma arena de cacofonia onde tribos gritam e se esbofeteiam no Facebook, no Twitter, e, de bom mesmo, nada sai. O que sai é a raiva, a indignação, a necessidade de preservar a visão de mundo errada para não ser expulso do grupo ao qual pertence o sujeito nas anarquias virtuais. Há três semanas, a matéria de capa da revista The Economist cavucou essa ferida. O fato de estarem as pessoas sugadas por suas “linhas de tempo”, seus “news feeds”, absortas em seus teclados, faz com que sejam facilmente sorvidas por sentimentos negativos. O discurso de intolerância é, assim, explorado com enorme facilidade por políticos que se alimentam desse ambiente de conspirações e desilusões. Não é preciso citá-los – sabemos, no Brasil quem eles são. Eles, no plural.
Eventualmente, haverá adaptação. O apelo das redes e das emoções que destilam desgaste há de diminuir. Até lá, entretanto, más políticas endossadas por maus governantes e políticos poderão resultar das brigas incessantes no mundo virtual, e do nefasto pouco caso que se faz dos especialistas. Já ouviram falar da Lei de Pommer? Diz ela que: “A opinião de uma pessoa pode mudar ao ler alguma informação na internet. A natureza dessa mudança será a de não ter opinião alguma para ter a opinião errada”. Opiniões erradas não costumam dar bom resultado nas urnas.
Esse é o risco que corre o Brasil em 2018 com seus guerreiros de teclado.
* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Elisa Lucinda: Convocação à luz dos novos tempos!
Quero reafirmar que à luz dos novos tempos velhas narrativas não mais passarão.Não sobreviverão provérbios retrógados e retóricos e, menos ainda ,tradicionais omissões. Quando eu disse que “ coisa de preto” era subtexto de grande parte da mente nacional e muitas vezes das mentes do mundo, eu não estava fazendo uma hipótese. Estou falando de uma teoria filha da prática de uma experiência de existir numa sociedade racista, sendo muitas vezes a única negra não funcionária daquele ambiente, o que me dá um lugar muito particular que eu faço questão de compartilhar. Inúmeras vezes já ouvi e vi essa legenda gritando no olhar do meu julgador, depois de uma gargalhada, depois de uma coisa mais surpreendente, mais espontânea , de alguma coisa mais “exótica” , mais espalhafatosa, menos “comportada”.
Já vi esse olhar muitas vezes: “Coisa de preto, só podia ser preto”. O olhar sussurra pra si mesmo e eu escuto. É claro que fui criada num país multicolor, é claro que acreditei na democracia racial, mas só até entender a bipolarização fragrante entre brancos e pretos exposta como uma hemorragia atuante e invisível em todos os lugares que frequentei sendo a única negra do colégio de freiras, sendo eu e meus irmãos os únicos negros dos clubes, das colônias de férias dos funcionários da Vale do Rio Doce, e mais tarde , a única negra de muitos elencos. Uma espécie estranha de solidão. Então está posto o que é estrutural, o que é endêmico, o que é constituinte desta educação racista brasileira estendida a todos sob o manto da famosa “democracia racial.”
Balela.
Não sou eu, é o IBGE que afirma por cálculos concretos: da multidão de desempregados que perambula pelas ruas da desesperança no país 66% são negros. Os salários dos brancos são 55% maiores que os salários dos pretos, formando assim enormes corredores de exclusão preenchendo o quesito da subutilização da força de trabalho brasileira.Gerações e gerações de mulheres negras são multiplamente mais assassinadas que as não negras. O Brasil desperdiça seus filhos e têm especial predileção em desperdiçar as filhas e os filhos pretos.
Não os reconhece. Disso tudo sabemos e nos debatemos sem compreender a profundeza da teia racista que, impingida na cabeça de cada brasileiro, produz este estrago ,essa matança. O brasileiro ignorante histórico ,aquele ingênuo que cresceu sem se estarrecer com o ter existido o cruel tráfico humano nos navios carniceiros negreiros, cresceu achando bonito o quadro triste e trágico da primeira missa no Brasil, o retrato da primeira missa jesuíta; o ignorantemente histórico é aquele que aprendeu a gostar daquela Tragédia: índios nus nos cantos da igreja, tomando banho de vergonha, vivendo a violenta catequização, o extermínio de uma cultura , amargando a escrota e danosa fundação da culpa sendo por ela contaminados até não mais reconhecerem mais o que era Liberdade.
Pois é, meus senhores, o pretensioso domínio branco primou por dizimar, por encher de sangue a história do país a partir de sua predatória colonização. Agora, neste momento em que a República está em chamas e os poderes estão de costas para o povo, estamos por nossa conta e precisamos amadurecer como sociedade, lavar os preconceitos das escadarias da alma, uma lavagem forte, uma exigência do Axé.
É de tarde. Entro no carro, o taxista que me aguardava, com um bom desconto de 30% , me disse: “Eu esperava que vc saísse por esse portão aqui”. Era o portão da esquerda que ,na minha casa é o dos fundos, e é igualzinho ao da direita, portanto ele não podia supor, obviamente. Mas mesmo assim brinquei: Não, aquela, meu senhor, é a entrada dos fundos, a entrada dos brancos. Ele então, deu um sorriso muito sem graça, e eu completei : É estranho, né, para o senhor que é branco pensar assim? Ele disse: “É verdade, a gente não tá acostumado a pensar isso não”. E eu: Já pensou na televisão, numa novela , um elenco de 40 atores, 38 serem pretos e só 2 brancos?
E ele: “Já pensou, tudo ao contrário?”. Incrível, “ao contrário”, ele disse. Normatizamos tanto o preconceito que achamos normal uma situação de opressão. O certo perde a referencia. É ao contrário. Esse tema tem que vir para as mesas, tem que ser discutido e estar dentro da educação brasileira como conteúdo. Nem percebe-se que , dos 200 indicados na lava a jato todos os ladrões são brancos.Tem nenhum preto . A maioria infratores reincidentes. Mas nem se repara, nem comentamos.
É hora de lavarmos os olhos .Por isso a importância da disciplina de relações étnico raciais, nas universidades, nas escolas, na formação de professores. Urge.
Toda essa minha conversa, meus queridos, é a base para uma convocação,pois chegamos a um limite. O silêncio dos não racistas brancos tem feito falta nessa luta.
E está pegando mal. Vem constrangendo bons brancos.
José Bonifácio deixou muitos herdeiros, tratava-se de um homem branco, abolicionista, que não admitia escravos, pagava a quem contratava os serviços, um revolucionário. Onde estão seus descentes?
Um amigo louro meu me disse que havia na sua infância um garotinho que morava na rua de trás com quem ele gostava muito de brincar e que era o filho do dono da borracharia onde o pai consertava os pneus. Ainda assim seu pai dizia: “Não quero você brincando com esse menino”. Por que papai?” Quando você crescer entenderá; a gente trata bem, mas não deve se misturar. Você vai entender.”
Perguntei então a esse amigo hoje, se ele, agora que é grande já cresceu ,se ele entendeu. E , se entendeu , que escreva sobre isso, quero ler tais depoimentos. Os que receberam a educação escravagista da Casa Grande e não concordam com ela, não podem mais se calar. Foram proibidos de sonhar com a igualdade, treinados a produzir desigualdades, ensinados à ideia de uma “natural “ supremacia. Foram adestrados profundamente no seu imaginário de modo a não lhes ser permitido amar e casar com uma mulher ou um homem negro.
E aí ? Vai ficar por isso mesmo? Vão passar a mesma educação para as crianças de hoje? Continuará sendo perpetuado o racismo assim, na cara do século 21 e com essa contribuição destes silêncios? Pensará também assim a geração filha da esquerda brasileira, filha dos sociólogos, pesquisadores, antropólogos, engenheiros, ecologistas , médicos e artistas ? Filhos da elite branca e dita de esquerda deste país? Como vai ser isso?
Por isso a minha proposta no mês da Consciência Negra é chamar a todos os não negros que reflitam publicamente sobre a educação racista que receberam.Quando foi que perceberam que havia um plano diabólico e separatista envolvendo suas vidas? E o que vão fazer pra limpar a própria barra?
É isso mesmo,se não se pronunciam ,é natural que pensemos que todos os brancos são racistas ,a não ser que estes mesmos provem que não. Eis a minha proposta, ponham a mão neste vespeiro, contem aquilo que foi passado durante sua educação de forma sistemática , mas também como uma espécie de segredo,como algo do qual não se fala nunca, quase nunca abertamente.Será libertador.
Pela saúde geral , falem meus brancos, contem, libertem ,descubram se houve algum negro ou negra , ou mesmo um branco revolucionário em sua árvore genealógica ,ao qual trataram de esconder na névoa do tempo. Vamos abrir a caixa preta do silêncio branco até aqui.
Que se indague. Se investigue.O que terá ficado oculto nas partes escondidas , historicamente?
Vamos à está reflexão? É urgente. Quem diz é nossa antiga gente: Se posicione pois quem cala consente.
El País: O discurso de ódio que está envenenando o Brasil
A caça às bruxas de grupos radicais contra artistas, professores, feministas e jornalistas se estende pelo país. Mas as pesquisas dizem que os brasileiros não são mais conservadores
Artistas e feministas fomentam a pedofilia. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o bilionário norte-americano George Soros patrocinam o comunismo. As escolas públicas, a universidade e a maioria dos meios de comunicação estão dominados por uma “patrulha ideológica” de inspiração bolivariana. Até o nazismo foi invenção da esquerda. Bem-vindos ao Brasil, segunda década do século XXI, um país onde um candidato a presidente que faz com que Donald Trump até pareça moderado tem 20% das intenções de voto.
No Brasil de hoje mensagens assim martelam diariamente as redes sociais e mobilizam exaltados como os que tentaram agredir em São Paulo a filósofa feminista Judith Butler, ao grito de “queimem a bruxa”. Neste país sacudido pela corrupção e a crise política, que começa a sair da depressão econômica, é perfeitamente possível que a polícia se apresente em um museu para apreender uma obra. Ou que o curador de uma exposição espere a chegada da PF para conduzi-lo a depor forçado ante uma comissão parlamentar que investiga os maus-tratos à infância.
“Isto era impensável até três anos atrás. Nem na ditadura aconteceu isto.” Depois de uma vida dedicada a organizar exposições artísticas, Gaudêncio Fidelis, de 53 anos, se viu estigmatizado quase como um delinquente. Seu crime foi organizar em Porto Alegre a exposição QueerMuseu, na qual artistas conhecidos apresentaram obras que convidavam à reflexão sobre o sexo. Nas redes sociais se organizou tal alvoroço durante dias, com o argumento de que era uma apologia à pedofilia e à zoofilia, que o patrocinador, o Banco Santander, ante a ameaça de um boicote de clientes, decidiu fechá-la. “Não conheço outro caso no mundo de uma exposição destas dimensões que tenha sido encerrada”, diz Fidelis.
O calvário do curador da QueerMuseu não terminou com a suspensão da mostra. O senador Magno Malta (PR-ES), pastor evangélico conhecido por suas reações espalhafatosas e posições extremistas, decidiu convocá-lo para depor na CPI que investiga os abusos contra criança. Gaudêncio se recusou em um primeiro momento e entrou com um pedido de habeas corpus no STF que foi parcialmente deferido. Magno Malta emitiu então à Polícia Federal um mandado de condução coercitiva do curador. Gaudêncio se mostrou disposto a comparecer, embora entendesse que, mais que como testemunha, pretendiam levá-lo ao Senado como investigado. Ao mesmo tempo, entrou com um novo pedido de habeas corpus no Supremo para frear o mandado de conduçãocoercitiva. A solicitação foi indeferida na sexta-feira passada pelo ministro Alexandre de Moraes. Portanto, a qualquer momento Gaudêncio espera a chegada da PF para levá-lo à força para Brasília.
“O senador Magno Malta recorre a expedientes típicos de terrorismo de Estado como meio de continuar criminalizando a produção artística e os artistas”, denuncia o curador. Ele também tem palavras muito duras para Alexandre de Moraes, até há alguns meses ministro da Justiça do Governo Michel Temer, por lhe negar o último pedido de habeas corpus: “A decisão do ministro consolida mais um ato autoritário de um estado de exceção que estamos vivendo e deve ser vista como um sinal de extrema gravidade”. Fidelis lembra que o próprio Ministério Público de Porto Alegre certificou que a exposição não continha nenhum elemento que incitasse à pedofilia e que até recomendou sua reabertura.
Entre as pessoas chamadas à CPI do Senado também estão o diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo e o artista que protagonizou ali uma performance em que aparecia nu. Foi dias depois do fechamento do QueerMuseu e os grupos ultraconservadores voltaram a organizar um escândalo nas redes, difundindo as imagens de uma menina, que estava entre o público com sua mãe e que tocou no pé do artista. “Pedofilia”, bramaram de novo. O Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito e o próprio prefeito da cidade, João Doria (PSDB), se uniu às vozes escandalizadas.
Se não há nenhum fato da atualidade que justifique esse tipo de campanha, os guardiões da moral remontam a muitos anos atrás. Assim aconteceu com Caetano Veloso, de quem se desenterrou um velho episódio para recordar que havia começado um relacionamento com a que depois foi sua esposa, Paula Lavigne, quando ela ainda era menor de idade. “#CaetanoPedofilo” se tornou trending topic. Mas neste caso a Justiça amparou o músico baiano e ordenou que parassem com os ataques.
A atividade de grupos radicais evangélicos e de sua poderosa bancada parlamentar (198 deputados e 4 senadores, segundo o registro do próprio Congresso) para desencadear esse tipo de campanha já vem de muito tempo. São provavelmente os mesmos que fizeram pichações recentes no Rio de Janeiro com o slogan “Bíblia sim, Constituição, não”. Mas o verdadeiramente novo é o aparecimento de um “conservadorismo laico”, como o define Pablo Ortellado, filósofo e professor de Gestão de Políticas Públicas da USP. Porque os principais instigadores da campanha contra o Queermuseu não tinham nada a ver com a religião. O protagonismo, como em muitos outros casos, foi assumido por aquele grupo na faixa dos 20 anos que durante as maciças mobilizações para pedir a destituição da presidenta Dilma Rousseff conseguiu deslumbrar boa parte do país.
Com sua desenvoltura juvenil e seu ar pop, os rapazes do Movimento Brasil Livre(MBL) pareciam representar a cara de um país novo que rejeitava a corrupção e defendia o liberalismo econômico. Da noite para o dia se transformaram em figuras nacionais. Em pouco mais de um ano seu rosto mudou por completo. O que se apresentava como um movimento de regeneração democrática é agora um potente maquinário que explora sua habilidade nas redes para difundir campanhas contra artistas, hostilizar jornalistas e professores apontados como de extrema esquerda ou defender a venda de armas. No intervalo de poucos dias o MBL busca um alvo novo e o repisa sem parar. O mais recente é o jornalista Guga Chacra, da TV Globo, agora também classificada de "extrema esquerda". O repórter é vítima de uma campanha por se atrever a desqualificar -em termos muito parecidos aos empregados pela maioria dos meios de comunicação de todo o mundo-, 20.000 ultradireitistas poloneses que há alguns dias se manifestaram na capital do pais exigindo uma “Europa branca e católica”.
Além de sua milícia de internautas, o MBL conta com alguns apoios de renome. Na política, os prefeitos de São Paulo, João Doria, e de Porto Alegre, Nelson Marchezan Jr., assim como o até há pouco ministro das Cidades, Bruno Araújo, os três do PSDB. No âmbito intelectual, filósofos que se consideram liberais, como Luiz Felipe Pondé. Entre os empresários, o dono da Riachuelo, Flávio Rocha, que se somou aos ataques contra os artistas com um artigo na Folha de S. Paulo no qual afirmava que esse tipo de exposição faz parte de um “plano urdido nas esferas mais sofisticadas do esquerdismo”. O objetivo seria conquistar a “hegemonia cultural como meio de chegar ao comunismo”, uma estratégia diante da qual “Lenin e companhia parecem um tanto ingênuos”, segundo escreveu Rocha em um artigo intitulado O comunista está nu.
“Não é algo específico do Brasil”, observa o professor Pablo Ortellado. “Este tipo de guerras culturais está ocorrendo em todo o mundo, sobretudo nos EUA, embora aqui tenha cores próprias”. Um desses elementos peculiares é que parte desses grupos, como o MBL, se alimentou das mobilizações pelo impeachment e agora “aproveita os canais de comunicação então criados, sobretudo no Facebook”, explica Ortellado. “A mobilização pelo impeachment foi transversal à sociedade brasileira, só a esquerda ficou à margem. Mas agora, surfando nessa onda, criou-se um novo movimento conservador com um discurso antiestablishment e muito oportunista, porque nem eles mesmos acreditam em muitas das coisas que dizem”. A pauta inicial, a luta contra a corrupção, foi abandonada “tendo em vista de que o atual governo é tão ou mais corrupto que o anterior”. Então se buscaram temas novos, desde a condenação do Estatuto do Desarmamento às campanhas morais, que estavam completamente ausentes no início de grupos como o MBL e que estão criando um clima envenenado no país. “É extremamente preocupante. Tenho 43 anos e nunca tinha vivido uma coisa assim”, confessa Ortellado. “Nem sequer no final da ditadura se produziu algo parecido. Naquele momento, o povo brasileiro estava unido.”
O estranho é que a intensidade desses escândalos está oferecendo uma imagem enganosa do que na realidade pensa o conjunto dos brasileiros. Porque, apesar desse ruído ensurdecedor, as pesquisas desmentem a impressão de que o país tenha sucumbido a uma onda de ultraconservadorismo. Um estudo do instituto Ideia Big Data, encomendado pelo Movimento Agora! e publicado pelo jornal Valor Econômico, revela que a maioria dos brasileiros, em cifras acima dos 60%, defendem os direitos humanos, inclusive para bandidos, o casamento gay com opção de adotar crianças e o aborto. “Em questões comportamentais, nada indica que os brasileiros tenham se tornado mais conservadores”, reafirma Mauro Paulino, diretor do Datafolha. Os dados de seu instituto também são claros: os brasileiros que apoiam os direitos dos gays cresceram nos últimos quatro anos de 67% para 74%. Paulino explica que “sempre houve um setor da classe média em posições conservadoras” e que agora “se tornou mais barulhento”.
As pesquisas do Datafolha só detectaram um deslocamento para posições mais conservadoras em um aspecto: segurança. “Aí sim há uma tendência que se alimenta do medo crescente que se instalou em parte da sociedade”, afirma Paulino. Aos quase 60.000 assassinatos ao ano se somam 60% de pessoas que confessam viver em um território sob controle de alguma facção criminosa. Em quatro anos, os que defendem o direito à posse de armas cresceu de forma notória, de 30% a 43%. É esse medo o que impulsiona o sucesso de um candidato extremista como Jair Bolsonaro, que promete pulso firme sem contemplações contra a delinquência.
Causou muito impacto a revelação de que 60% dos potenciais eleitores de Bolsonaro têm menos de 34 anos, segundo os estudos do instituto de opinião. Apesar de que esse dado também deve ser ponderado: nessa mesma faixa etária, Lula continua sendo o preferido, inclusive com uma porcentagem maior (39%) do que a média da população (35%). “Os jovens de classe média apoiam Bolsonaro, e os pobres, Lula”, conclui Paulino. Diante da imagem de um país muito ideologizado, a maioria dos eleitores se move na verdade “pelo pragmatismo, seja apoiando os que lhe prometem segurança ou em alguém no que acreditam que lhes vai garantir que não perderão direitos sociais”.
Apesar de tudo, a ofensiva ultraconservadora está conseguindo mudar o clima do país e alguns setores se dizem intimidados. “O profundo avanço do fundamentalismo está criando um Brasil completamente diferente”, afirma Gaudêncio Fidelis. “Muita gente está assustada e impressionada.” Um clima muito carregado no qual, em um ano, os brasileiros deverão escolher novo presidente. O professor Ortellado teme que tudo piore “com uma campanha violenta em um país superpolarizado”.
Fernando Gabeira: Adeus aos salvadores da Pátria
Não elegeremos anjos em 2018. Mas o pessimismo não nos deve desesperar
De passagem pelo Brasil, um dirigente espanhol do Podemos, Rafael Mayoral, afirmou que a esquerda não vai salvar as pessoas e o essencial é fortalecer a sociedade para que ela possa controlar qualquer governo no poder. Não vi o restante do seu discurso. Mas até onde li, concordo. De certa forma, tenho usado esse argumento com novos grupos que querem a mudança no Brasil.
Muitos deles estão legitimamente preocupados com a falta de alternativas na eleição presidencial. Mas, ainda assim, afirmo que a descoberta de um nome não é tão importante quanto fortalecer a sociedade para que possa monitorar ativamente o governo.
No fundo, o objetivo maior deve ser a construção de um controle social tão preciso, diria até tão virtuoso que possa tornar mais amena a constatação de que não elegemos anjos, mas pessoas de carne e osso. Isso é válido para qualquer sociedade, mas no Brasil parece que somos mais intensamente de carne e osso.
De certo modo, já exercemos algum controle sobre o governo Temer. Duas medidas foram revertidas por pressão social: a abertura de uma área de mineração na Amazônia e o abrandamento da lei que pune o trabalho em condições análogas ao de escravo. Mas esse esforço de controle só tem surgido em grandes temas. Estamos tratando como normais e cotidianas várias aberrações que nos transformam num país virado de cabeça para baixo.
Um exemplo que me espantou foi o pedido oficial de Geddel Vieira Lima para saber o nome e o telefone de quem o denunciou. No apartamento ligado a Geddel foram encontradas as malas com R$ 51 milhões. Até agora não sabemos, e creio que a polícia também não, de onde veio o dinheiro atribuído a Geddel. Mas ele quer saber quem o denunciou. Se a polícia desse o nome e o telefone de quem denunciou, Geddel iniciaria uma prática internacionalmente nova: quebrar o anonimato dos informantes, para serem devidamente assassinados.
Raquel Dodge negou o pedido de Geddel. Mas o fato de ter existido e circulado como uma notícia normal revela como o País, no cotidiano, foi posto de cabeça pra baixo.
No caótico Estado do Rio de Janeiro, outra dessas barbaridades que quase passam em branco: o governador Pezão indicou um deputado para o Tribunal de Contas do Estado (TCE), o mesmo cujos membros foram presos. Questionado na Justiça, Pezão chamou o procurador Leonardo Espíndola para defendê-lo. Impossível, disse o procurador, sua decisão é inconstitucional. Ato contínuo, Pezão demitiu Espíndola. Felizmente, o indicado por Pezão caiu nas garras da Polícia Federal antes de tomar posse no TCE. É acusado de corrupção, ao lado do presidente da Assembleia Legislativa, deputado Jorge Picciani.
São só dois fatos cotidianos. Há algo comum em sua origem. Nascem de políticos do PMDB envolvidos em corrupção. Um quer o nome de quem o denunciou, o outro considera defender a Constituição algo incompatível com o serviço público.
E a vida continua. Engolindo alguns sapinhos no cotidiano, nosso estômago é preparado para os grandes sapos de fim de mandato.
Um deles, que está sendo preparado nos bastidores, é a derrubada da prisão em segunda instância. As articulações correm no Congresso e no próprio Supremo Tribunal Federal (STF). Tanto ministros do Supremo como parlamentares veem nisso uma saída para neutralizar não só a Lava Jato, como todas as operações que envolvam políticos corruptos.
Enunciado apenas como uma tese jurídica, o fim da prisão em segunda instância é palatável. Todos são inocentes até que a sentença seja confirmada pelo STF. Na prática, resultará em impunidade geral. Todos terão direito a uma trajetória semelhante à de Paulo Maluf, que de recurso em recurso vai tocando sua vida, exercendo seus mandatos e até defendendo outros acusados de corrupção, como Michel Temer.
No momento em que as aberrações se acumulam, a tendência é criar um País monstruoso. Algo que já tentei definir num discurso, no alto de um caminhão, em protesto de rua: um País onde os bandidos fazem a lei.
Enquanto essas coisas acontecem, o debate entre os que querem a mudança tende a concentrar-se no perfil do líder que nos vai salvar. Em que rua, em que esquina vamos encontrá-lo? No Acre, em Alcácer Quibir?
Enquanto não aparece, creio ser necessário fortalecer as organizações que trabalham com a transparência. Estão surgindo de vários pontos. Hoje se investiga como os partidos gastam seu dinheiro. Há um grupo que cuida exclusivamente de despesas de parlamentares. A intensa busca da transparência fortalece a sociedade. Da mesma maneira, ela ficará mais forte se todos os grupos que buscam a mudança se unirem num esforço comum.
Nem todos pensam da mesma maneira, estamos cansados de saber. Mas é preciso um mínimo de maturidade, na situação dramática do País, para encontrar pontos de convergência.
Não importa tanto se um grande líder vai emergir dos escombros. Mesmo se aparecer, não será um anjo. Não elegeremos anjos em 2018. Nunca o faremos, creio eu.
A fronteira do pessimismo não nos deve desesperar. Há algumas instituições funcionando, há grupos trabalhando na busca da transparência, há a possibilidade real de que todos os que querem mudança encontrem pontos de contato, um denominador comum.
Como o poeta que fabrica um elefante de seus poucos recursos, a sociedade brasileira terá de construir seu sistema de defesa. Alguns móveis velhos, algodão, cola, a busca de amigos num mundo enfastiado que duvida de tudo – o elefante de Drummond é inspirador.
Quem sabe, como em Portugal, conseguiremos construir nossa própria geringonça? Prefiro essa visão modesta e realista a esperar dom Sebastião. Curado de sua megalomania, talvez o Brasil aceite, finalmente, tornar-se um grande Portugal.
Lúcio Flávio Pinto: Amazônia, a terra do bandido
Líder em trabalho escravo, em violência no meio rural, em pistoleiros de aluguel, em destruição da natureza, em educação ruim, em precariedade de serviços e saneamento básico nas cidades, em saúde pública — a lista de fatos desabonadores em uma agenda cotidiana na Amazônia é extensa e assustadora.
Em algumas situações e em alguns lugares, parece que a defasagem entre a Amazônia e as áreas mais desenvolvidas do Brasil, no Sul e Sudeste (e mesmo em suas áreas imediatamente periféricas, como no Centro-Oeste), é, mais do que de dezenas de anos, de século — ou de séculos. Cumprir as leis parece ser um exagero, um excesso de suscetibilidades, iniciativa incabível, aspiração ilegítima.
Garimpeiros que extraem ilegalmente ouro do fundo do rio Madeira, valendo-se de balsas velhas, se apropriando de um bem que só pode ser explorado com autorização estatal, poluindo as águas e contaminando os peixes, quando são punidos por sua flagrante ilegalidade reagem com fúria, sentindo-se no direito de destruir bens do patrimônio público e ameaçar os servidores que cumprem a lei, como aconteceu duas semanas atrás
Madeireiros apanhados no interior de unidades de conservação da natureza ou em reservas indígenas, a abater e arrastar árvores que levaram décadas para atingir a maturidade e se integrar num conjunto harmônico, que precisa ser mantido na sua integridade, partem para atos de vandalismo e mobilizam a população da área para protegê-los, embora estejam se apropriando de um bem nobre em benefício exclusivamente deles, como aconteceu mais atrás na rodovia Cuiabá-Santarém.
Apesar da evolução nas leis (principalmente ecológicas) e na fiscalização para o seu cumprimento, além dos números da grandeza crescente da atividade produtiva, quem anda pela região tem uma sensação de insegurança, de atraso e de precariedade. Um clima de tensão e agressividade que distancia a Amazônia da posição das regiões mais desenvolvidas dentro e fora do Brasil.
Com olhos para ver, constata-se que os sinais de enriquecimento e progresso são precários, transitórios. Como se o incremento econômico entrasse por uma porta e saísse por outra, sem se enraizar de forma perene na condição de verdadeiro progresso. Indo gerar seus melhores efeito à distância, frequentemente além-mar.
Esse mecanismo se alimenta da condição de fronteira imposta à Amazônia e do modelo colonial de exploração das suas riquezas, que só geram efeito multiplicador fora dela. A fronteira deve ser amansada pelo bandido antes que chegue o mocinho, disse o economista Delfim Netto, no auge do seu poder, sob o regime militar, na década de 1970 (quase tão forte quanto sob o PT de Lula e Dilma, de 2003 até 2014). A colônia deve, sobretudo, gerar dólar, determinou o II Plano de Desenvolvimento da Amazônia (1975-1979), elaborado pela Sudam, a agência federal de Brasília no sertão amazônico. Essas regras prevalecem até hoje.
A ditadura acabou e seis presidentes se sucederam em 32 anos de democracia, eleitos por quatro partidos diferentes, de um extremo a outro do espectro político e ideológico. Mas a Amazônia continua a ser uma fronteira de natureza colonial, com vocação imposta: produzir bens de aceitação no mercado internacional, intensivos em energia. Fora desse circuito favorecido, que o caos siga seu curso no restante das relações econômicas, sociais, políticas e culturais.
Não importa quem esteja na ponta dessas frentes de penetração aos extremos dessa vasta fronteira, que, só no Brasil, constituiria o segundo maior país do continente: posseiro, colono, madeireiro, garimpeiro, minerador, João da Silva ou sociedade anônima, todos agridem a natureza, modificam radicalmente a paisagem, investem furiosamente contra o ambiente, passam por cima dos nativos, ignoram que há história realizada por eles e seguem para objetivos previamente definidos, independentemente do conhecimento (precário ou falso, quando existente) sobre cada uma das partes dessa vasta Amazônia.
A fronteira amazônica é definida por uma vertente ancorada na doutrina de segurança nacional. É o lema dos militares abrindo estradas de penetração pelo centro desconhecido da região: integrar para não entregar. Haveria uma permanente e perigosa ameaça de internacionalização a exigir do governo central a expansão da população para áreas ditas vazias e fazê-las desenvolver uma atividade qualquer de fixação nesses locais, já que a terra nua não tem valor (é o conceito do VTN). Só assim os ameaçadores vizinhos estrangeiros ou os distantes povos imperialistas deixariam de se aproveitar desses “espaços vazios” para usurpar os brasileiros e anexar sua reserva de futuro.
A história real já se encarregou de desmentir essa geopolítica. O exemplo máximo foi a possibilidade que o governo imperial brasileiro abriu para a Inglaterra, maior potência no século XIX, para estabelecer um governo metropolitano na Amazônia, a partir da repressão aos cabanos. Ao invés disso, os ingleses mandaram seu banco para financiar a extração da borracha e garantir sua supremacia nesse comércio.
Essa teoria geopolítica tem valor utilitário. Esgrimindo a cobiça internacional como ameaça iminente e constante, a ação nacional integradora a qualquer preço se legitima. Ela faz a remissão dos males a cada dia em que se derrubam centenas ou milhares de árvores em floresta nativa. Tudo bem: é para proteger a Amazônia, mantendo-a nacional. E cada vez menos Amazônia.
Os atos violentos dos últimos dias mostram que, em cada um dos locais de conflito, a situação real difere muito dos relatos que dela são feitos e do diagnóstico produzido à distância. Os grileiros de terras, os madeireiros clandestinos, os garimpeiros ilegais e vários dos personagens de destaque e poder já não agem isoladamente, Passam a formar organizações criminosas, para usar a expressão corrente, manipulando inocentes úteis ou insuflando revoltas procedentes, em grande medida produzidas pela insensibilidade do poder central.
Mais e mais me convenço de que a única saída com efeito prático, embora de mais longa maturação, com a força e as limitações de uma utopia, é substituir os agentes que se encontram na linha de frente desse avanço sobre as áreas pioneiras por pessoas qualificadas a entender a região e utilizá-la da melhor maneira possível.
Seriam — como já sustentei em artigo anterior — os assentamentos científicos, a que dei o nome de kibutz, inspirado no espírito e na mística do exemplo de Israel em outra fronteira, a do deserto. Ao invés de seguir pelo rastro da destruição praticada por todas as frentes de ocupação, eles provocariam uma onda de saber em sentido inverso: do ponto mais avançado da penetração para trás, numa maré de saber a arrastar e lançar a irracionalidade para fora da Amazônia.
O silêncio à proposta dói, como o retrato de Itabira no retrato poético de Carlos Drummond de Andrade.
* Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e do blog Amazônia hoje – a nova colônia mundial. Entre outros, é autor de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).