brasil
Bernardo Mello Franco: Um país em tempos bicudos
Em novo livro, Oscar Vilhena Vieira diz que o Brasil vive uma fase de ‘mal-estar constitucional’. Ele defende que o STF seja mais ‘colegiado, imparcial e discreto’
O Brasil chega ao fim de 2018 em tempos bicudos. A polarização politica se aprofundou, e a sociedade ficou mais dividida e intolerante. O país passou a viver uma situação de “mal-estar constitucional”, com ameaças à democracia e ao equilíbrio entre os poderes. O diagnóstico é do professor Oscar Vilhena Vieira, diretor da FGV Direito em São Paulo.
Em “A Batalha dos Poderes” (Companhia das Letras), ele situa o início da crise nas manifestações de 2013, que “colocaram em xeque a estabilidade de um sistema político que parecia consolidado”. De lá para cá, passaram-se cinco anos de turbulências. É difícil acreditar que estejam perto do fim.
O livro sustenta que a eleição de 2014 mudou para pior os padrões da disputa política. A petista Dilma Rousseff admitiu que poderia “fazer o diabo” para vencer, e produziu uma crise fiscal que acabou em recessão. O tucano Aécio Neves não aceitou a derrota, e contestou o resultado para “encher o saco”.
Depois viriam o impeachment de Dilma, que o autor define como “controvertido”, e a posse de Michel Temer, que se salvou de duas denúncias de corrupção e agora enfrenta a terceira.
Vieira afirma que o avanço da Lava-Jato acirrou a disputa entre a classe política e o estamento jurídico. A operação rompeu uma tradição de impunidade dos poderosos, mas abriu espaço a acusações de abuso e parcialidade. O Supremo Tribunal Federal não conseguiu escapar dos mesmos desgastes.
O professor escreve que a Constituição de 1988 deu superpoderes à Corte, abrindo caminho ao que ele chama de “supremocracia”. Na sua visão, o tribunal manteve uma atitude “omissa e reticente” na Era Collor, foi “deferente ao governo e ao Congresso” sob Itamar e FH e se deslocou para o centro da arena política nos anos do PT.
Hoje é chamado para dar a palavra final sobre quase tudo. “Desconheço outro tribunal supremo do mundo que faça plantão judiciário para solucionar quizílias que os parlamentares não são capazes de resolver”, critica.
Para Vieira, a atuação do STF na proteção de direitos fundamentais é “bastante positiva”, mas o tribunal erra ao se meter demais em disputas políticas. Ele critica as decisões que derrubaram a cláusula de barreira e impuseram a perda de mandato por infidelidade partidária, estimulando a criação de novas siglas: “Sob a pretensão de corrigir falhas no sistema político, o STF contribuiu para torná-lo mais ininteligível”.
O professor defende que as decisões monocráticas deveriam ser “reduzidas ao máximo”, e pede uma atuação “mais colegiada, imparcial e com certa discrição”. “A autoridade do STF não pode ser exercida de forma fragmentada por cada um de seus ministros”, escreve. O noticiário dos últimos dias mostra que ele tem razão.
O livro foi concluído antes da eleição, mas o autor registrou sua preocupação com o favoritismo de Jair Bolsonaro, “líder de extrema direita com posições explicitamente contrárias à Constituição”. Em outro trecho, ele deixou um alerta: “O fato de a Constituição ter sobrevivido a esse período de forte turbulência não significa que sairá ilesa do novo ciclo da política brasileira”.
**
A coluna volta no dia 1º. Feliz Natal e um 2019 menos bicudo para todos.
Deutsche Welle: Brasil, um país do passado
No Brasil, está na moda um anti-intelectualismo que lembra a Inquisição. Seus representantes preferem Silas Malafaia a Immanuel Kant. Os ataques miram o próprio esclarecimento, escreve o colunista Philipp Lichterbeck.
É sabido que viajar educa o indivíduo, fazendo com que alguém contemple algo de perspectivas diferentes. Quem deixa o Brasil nos dias de hoje deve se preocupar. O país está caminhando rumo ao passado.
No Brasil, pode ser que isso seja algo menos perceptível, porque as pessoas estão expostas ao moinho cotidiano de informações. Mas, de fora, estas formam um mosaico assustador. Atualmente, estou em viagem pelo Caribe – e o Brasil que se vê a partir daqui é de dar medo.
Na história, já houve momentos frequentes de regresso. Jared Diamond os descreve bem em seu livro Colapso: Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Motivos que contribuem para o fracasso são, entre outros, destruição do meio ambiente, negação de fatos, fanatismo religioso. Assim como nos tempos da Inquisição, quando o conhecimento em si já era suficiente para tornar alguém suspeito de blasfêmia.
No Brasil atual, não se grita "herege!", mas "comunismo!". É a acusação com a qual se demoniza a ciência e o progresso social. A emancipação de minorias e grupos menos favorecidos: comunismo! A liberdade artística: comunismo! Direitos humanos: comunismo! Justiça social: comunismo! Educação sexual: comunismo! O pensamento crítico em si: comunismo!
Tudo isso são conquistas que não são questionadas em sociedades progressistas. O Brasil de hoje não as quer mais.
Porém, a própria acusação de comunismo é um anacronismo. Como se hoje houvesse um forte movimento comunista no Brasil. Mas não se trata disso. O novo brasileiro não deve mais questionar, ele precisa obedecer: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos".
Está na moda um anti-intelectualismo horrendo, "alimentado pela falsa noção de que a democracia significa que a minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento", segundo dizia o escritor Isaac Asimov. Ouvi uma anedota de um pai brasileiro que tirou o filho da escola porque não queria que ele aprendesse sobre o cubismo. O pai alegou que o filho não precisa saber nada sobre Cuba, que isso era doutrinação marxista. Não sei se a historia é verdade. O pior é que bem que poderia ser.
A essência da ciência é o discernimento. Mas os novos inquisidores amam vídeos com títulos como "Feliciano destrói argumentos e bancada LGBT". Destruir, acabar, detonar, desmoralizar – são seus conceitos fundamentais. E, para que ninguém se engane, o ataque vale para o próprio esclarecimento.
Os inquisidores não querem mais Immanuel Kant, querem Silas Malafaia. Não querem mais Paulo Freire, querem Alexandre Frota. Não querem mais Jean-Jacques Rousseau, querem Olavo de Carvalho. Não querem Chico Mendes, querem a "musa do veneno" (imagino que seja para ingerir ainda mais agrotóxicos).
Dá para imaginar para onde vai uma sociedade que tem esse tipo de fanático como exemplo: para o nada. Os sinais de alerta estão acesos em toda parte.
O desmatamento da Floresta Amazônica teve neste ano o seu maior aumento em uma década: 8 mil quilômetros quadrados foram destruídos entre 2017 e 2018. Mas consórcios de mineradoras e o agronegócio pressionam por uma maior abertura da floresta.
Jair Bolsonaro quer realizar seus desejos. O próximo presidente não acredita que a seca crescente no Sudeste do Brasil poderia ter algo a ver com a ausência de formação de nuvens sobre as áreas desmatadas. E ele não acredita nas mudanças climáticas. Para ele, ambientalistas são subversivos.
Existe um consenso entre os cientistas conhecedores do assunto no mundo inteiro: dizem que a Terra está se aquecendo drasticamente por causa das emissões de dióxido de carbono do ser humano e que isso terá consequências catastróficas. Mas Bolsonaro, igual a Trump, prefere não ouvi-los. Prefere ignorar o problema.
Para o próximo ministro brasileiro do Exterior, Ernesto Araújo, o aquecimento global é até um complô marxista internacional. Ele age como se tivesse alguma noção de pesquisas sobre o clima. É exatamente esse o problema: a ignorância no Brasil de hoje conta mais do que o conhecimento. O Brasil prefere acreditar num diplomata de terceira categoria do que no Instituto Potsdam de Pesquisa sobre o Impacto Climático, que estuda seriamente o tema há trinta anos.
Araújo, aliás, também diz que o sexo entre heterossexuais ou comer carne vermelha são comportamentos que estão sendo "criminalizados". Ele fala sério. Ao mesmo tempo, o Tinder bomba no Brasil. E, segundo o IBGE, há 220 milhões de cabeças de gado nos pastos do país. Mas não importa. O extremista Araújo não se interessa por fatos, mas pela disseminação de crenças. Para Jared Diamond, isso é um comportamento caraterístico de sociedades que fracassam.
Obviamente, está claríssimo que a restrição do pensamento começa na escola. Por isso, os novos inquisidores se concentram especialmente nela. A "Escola Sem Partido" tenta fazer exatamente isso. Leandro Karnal, uma das cabeças mais inteligentes do Brasil, com razão descreve a ideia como "asneira sem tamanho".
A Escola Sem Partido foi idealizada por pessoas sem noção de pedagogia, formação e educação. Eles querem reprimir o conhecimento e a discussão.
Karl Marx é ensinado em qualquer faculdade de economia séria do mundo, porque ele foi um dos primeiros a descrever o funcionamento do capitalismo. E o fez de uma forma genial. Mas os novos inquisidores do Brasil não querem Marx. Acham que o contato com a obra dele transformaria qualquer estudante em marxista convicto. Acreditam que o próprio saber é nocivo – igual aos inquisidores. E, como bons inquisidores, exortam à denúncia de mestres e professores. A obra 1984, de George Orwell, está se tornando realidade no Brasil em 2018.
É possível estender longamente a lista com exemplos do regresso do país: a influência cada vez maior das igrejas evangélicas, que fazem negócios com a credulidade e a esperança de pessoas pobres. A demonização das artes (exposições nunca abrem por medo dos extremistas, e artistas como Wagner Schwartz são ameaçados de morte por uma performance que foi um sucesso na Europa). Há uma negação paranoica de modelos alternativos de família. Existe a tentativa de reescrever a história e transformar torturadores em heróis. Há a tentativa de introduzir o criacionismo. Tomás de Torquemada em vez de Charles Darwin.
E, como se fosse uma sátira, no Brasil de 2018 há a homenagem a um pseudocientista na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, que defende a teoria de que a Terra seria plana, ou "convexa", e não redonda. A moção de congratulação concedida ao pesquisador foi proposta pelo presidente da AL e aprovada por unanimidade pelos parlamentares.
Brasil, um país do passado.
Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.
El País: Ameaças a defensores dos direitos humanos colocam a democracia brasileira em xeque
Polícia desbaratou plano de milicianos para executar deputado do PSOL Marcelo Freixo. Brasil é um dos que mais mata ativistas: só em 2017 foram registradas mais de 60 execuções
Na última sexta-feira, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) comparecia na frente de jornalistas na Assembleia Legislativa do Rio (ALERJ) para comentar a revelação feita pelo Jornal O Globo, um dia antes, de que sua vida poderia não ter passado deste sábado. A polícia carioca havia descoberto que milicianos, grupos paramilitares formados por ex-policiais que dominam atividades ilícitas em bairros pobres, planejavam matá-lo. Se a ação não tivesse sido descoberta, ele poderia ter sido o segundo político de visibilidade a ser morto na cidade em menos de um ano —em março, a vereadora Marielle Franco, também do partido de esquerda PSOL, foi fuzilada em plena rua, junto a seu motorista, em uma das áreas mais populares do centro, em um crime até hoje não esclarecido.
A coletiva chamada pelo político se deu em uma semana simbólica: no mesmo dia em que a brutal execução de Marielle completava nove meses; um dia depois do aniversário de 50 anos do Ato Institucional de número 5 (AI-5), que representou o endurecimento da ditadura militar brasileira; quatro dias depois que a Declaração Universal dos Direitos Humanos fez 70 anos. E em meio a uma preocupação crescente dos defensores de direitos humanos do país com um possível cenário de maior vulnerabilidade a partir do ano que vem, quando chega ao poder Jair Bolsonaro, um presidente de extrema direita que declarou, pouco antes de ganhar a eleição, que era preciso "metralhar a petralhada" ou que costumava repetir o bordão "direitos humanos para humanos direitos".
As ameaças contra Freixo são a ponta do iceberg e se estendem não só a outras figuras públicas, como também às que atuam longe dos holofotes, principalmente no campo, com a defesa da Reforma Agrária, dos direitos indígenas ou dos recursos naturais. De acordo com a Front Line Defenders, que utiliza dados da ONG brasileira Comissão Pastoral da Terra, o país é um dos que mais mata ativistas: só em 2017 foram registradas mais de 60 execuções entre as mais de 300 registradas em todo o mundo. Isso coloca o país no seleto grupo de nações, junto a Colômbia, México e Filipinas, que concentra a maior parte destes homicídios. "Essa questão do Marcelo Freixo é como se coroasse isso tudo hoje. A gente não consegue ter esclarecida a morte da Marielle, e agora a gente tem uma ameaça a uma pessoa diretamente ligada a ela", argumenta Eliana Sousa, ativista e fundadora da ONG Redes da Maré.
Freixo, que há dez anos presidiu na Assembleia do Rio uma investigação contra as milícias, foi eleito neste ano deputado federal. Atuará em Brasília com escolta da polícia legislativa ao mesmo tempo que espera continuar contando com sua escolta pessoal, com ele há dez anos e fornecida pela Secretaria de Segurança do Rio, nos dias em que estiver em seu Estado. "A morte de Marielle tem que ser esclarecida. Foi um grupo político, mas que grupo foi esse? Foi um dos crimes mais sofisticados da história do Rio. Que grupo é capaz no século XXI de mandar matar uma vereadora?", cobrou o deputado. "Enquanto isso não acontecer não tem como dizer que existe democracia no Rio". "Defensor de direitos humanos não é defensor de bandidos. Defensor de direitos humanos defende a lei. E a lei não pode permitir que um grupo tão criminoso domine a vida das pessoas", complementa Freixo.
Em Brasília, Freixo terá como companheiro de bancada partidária o deputado Jean Wyllys, que também relatou estar recebendo ameaças. Ele foi um dos maiores rivais de Bolsonaro na Câmara federal e o confrontou diretamente quando o agora presidente eleito homenageou o coronel Brilhante Ustra, torturador de Dilma Rousseff na ditadura, durante a votação do impeachment dela, em 2016. Após a fala de Bolsonaro, Wyllys cuspiu em direção a ele.
As ameaças ao deputado federal fizeram com que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) solicitasse ao Governo brasileiro que tome medidas para proteger a sua vida, ao mesmo tempo sejam investigadas as ameaças. "A decisão da CIDH é uma reação da comunidade internacional à inação do Estado brasileiro diante de uma situação que tem se prolongado no tempo e que, no último ano, agravou-se muito", disse o parlamentar ao EL PAÍS. "As constantes ameaças de morte que recebo há anos, e que passaram a incluir referências explícitas à minha família, se intensificaram especialmente durante o processo de impeachment da presidenta Dilma e depois do assassinato da Marielle", acrescentou Wyllys. "Não posso ir a lugar nenhum sem a escolta, porque essas são as condições para me proteger, de modo que é como se eu estivesse em cárcere privado sem ter praticado crime nenhum, sendo eu a vítima. Isso tem afetado muito minha saúde física e emocional."
A antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) que atua na defesa dos direitos das mulheres, também teve sua vida completamente modificada recentemente. Ela recebeu ao longo dos últimos meses dezenas de ameaças de morte e acabou incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Governo federal, sendo aconselhada a deixar o país, o que fez. As ações contra ela, que atua publicamente há ao menos 15 anos, não são novidade, mas se tornaram mais graves depois de ela acionar o Supremo Tribunal Federal em prol da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez. “Sou vítima de ataques que colocam em risco o sentido de democracia no Brasil”, afirmou ao EL PAÍS.
Participação do Estado
"Em um país como o nosso, ninguém que luta está protegido. Existem várias medidas que devem ser tomadas pelas autoridades para garantir um ambiente e valorização para essas pessoas", argumenta Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional no Brasil. Ela diz que "esse tipo de ameaça e de assassinato de defensores não acontecem sem a participação do Estado" e destaca a diferença entre as mortes que são fruto "de um ambiente de extrema violência armada" e o assassinato de ativistas pelos direitos humanos. "Eles foram calados para que essas violações [aos direitos humanos] continuem. No caso de ameaças a parlamentares, como Freixo, Wyllys e Marielle, existe uma ameaça à democracia adicional uma vez que são "ferramentas, independentemente de sua coloração partidária, para o exercício" dela.
Atila Roque, diretor da Ford Foundation no Brasil e ex-diretor da Anistia Internacional no país, concorda que "todos e todas que se empenham na luta pelos direitos humanos" no Brasil já se viram diante de alguma ameaça. "Comigo não foi diferente e lidei tomando as precauções e adotando os protocolos de segurança que me foram então recomendados".
Na década de 1980, ainda muito jovem, Roque trabalhava diretamente com conflitos agrários e convivia com o assassinato "quase cotidiano" de lideranças camponesas, religiosas e advogados que atuam em defesa do direito a terra. "Um dos crimes que me marcou mais profundamente foi o assassinato do Padre Josimo Tavares, em 1986, poucos dias antes de um encontro que tínhamos marcado em Imperatriz, Maranhão. Acabei indo para o seu enterro". "Essa é também uma rotina na vida da juventude de favelas e periferias, especialmente dos jovens homens e mulheres negros que vivem o cotidiano do racismo e da militarização dos territórios onde vivem", acrescenta.
Sousa, a fundadora da ONG Redes da Maré que também já foi alvo de ameaças em diferentes momentos, acredita que a vulnerabilidade hoje é maior porque também as denúncias são maiores. Há mais resposta e resistência daqueles que são vítimas de uma violência que também é causada pelo próprio Estado. "Depois de uma operação na favela, sempre no final você tem uma fala oficial que vai para o jornal que cria uma narrativa sobre o resultado da operação e que coloca os moradores em condição de suspeitos. Hoje, por conta das redes e outros meios, você acaba conseguindo pautar outras vozes e mostrar que a coisa não é bem assim. Se por um lado isso é positivo, expõe o que acontece, por outro nos torna mais vulneráveis", argumenta ela. Existe, segundo diz, um projeto que "tem como ideologia um enfrentamento que gera mais violência", o que se materializa em uma ameaça à democracia porque "nas áreas de favela e periferias as mesmas leis não são obedecidas ou vistas porque ali é uma favela, e as pessoas não são reconhecidas como pessoas de direito". Se uma democracia presume direitos iguais para todos, "um morador da favela não vive essa experiência de direitos estabelecidos, como o de ir e vir".
O Estado de S. Paulo: Estrangeiros detêm um Rio de Janeiro em terras no País
Levantamento mostra que, apesar da desconfiança demonstrada por Bolsonaro em relação aos chineses, eles têm fatia pequena
Por André Borges, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - As declarações feitas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro de que haveria necessidade de frear o avanço chinês sobre “nossas terras agricultáveis”, porque “a segurança alimentar do País está em risco”, estão longe de refletir a realidade fundiária do Brasil. Levantamento realizado pelo ‘Estado’ por meio de dados oficiais do governo federal mostra que a China tem atuação quase irrelevante quando o assunto é comprar ou arrendar terras para produzir no País.
Na prática, na verdade, a venda de terras para estrangeiros está praticamente estagnada desde 2010, por conta das duras regras vigentes sobre esse tema. A flexibilização dessas regras é, até, uma demanda do próprio agronegócio que apoia Bolsonaro: os produtores querem abrir a porteira para entrada de investidores internacionais, o que não ocorre hoje.
Existem hoje no País 28.323 propriedades de terra em nome de estrangeiros. Juntas, essas áreas somam 3,617 milhões de hectares. Seria o mesmo que dizer que, atualmente, uma área do território nacional quase equivalente à do Estado do Rio de Janeiro está nas mãos de estrangeiros. Desse total, 1,293 milhão de hectares está em nome de pessoas físicas, enquanto os demais 2,324 milhões de hectares aparecem em nome de empresas. A presença internacional é notada em 3.205 municípios, ou seja, o investidor estrangeiro já está presente em 60% dos municípios do Brasil.
Os números vêm de um cruzamento de informações feito pelo Estado a partir do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), banco de dados administrado pelo Incra, órgão responsável pelo controle da aquisição e do arrendamento de imóveis rurais por estrangeiros no Brasil. Foram obtidas informações sobre as áreas compradas ou arrendadas, localização, quem são os donos internacionais dessa terra e para que a utilizam. O balanço foi validado e enviado à reportagem pela Divisão de Fiscalização e de Controle das Aquisições por Estrangeiros do Incra.
Não é a China, mas sim o Japão, por exemplo, um dos grandes compradores internacionais de terras brasileiras. Entre as mais de 28 mil áreas declaradas por donos estrangeiros, 6.912 estão em nome de japoneses. Ou seja, de cada 5 áreas, uma está em nome dos japoneses. Em termos da área ocupada total, porém, essa participação japonesa é menor, com 368.873 hectares, 10% do total.
Países como Portugal, Espanha, Alemanha, Holanda, EUA, Argentina e Líbano lideram o mapa das terras de estrangeiros. Os chineses surgem no balanço com apenas 664 propriedades no País, somando 10.126 hectares. Os dados do Incra guardam algumas imprecisões, uma vez que, até 2015, os registros de terras limitavam-se a ser um ato declaratório do dono. Alguns registros mais antigos não apontam o país de origem do investidor ou a área total da posse, por exemplo. Isso indica que a área ocupada por estrangeiros tende a ser maior. Nos últimos anos, o Incra tem pressionado os proprietários para atualizarem suas informações.
Avaliação
As conclusões do mapeamento não surpreendem especialistas. “O chinês nunca foi um comprador ativo de terras no Brasil. O foco do investidor chinês está em energia elétrica, em concessões de infraestrutura, mas não vemos muita ação em aquisição de terra”, diz Márcio Perin, coordenador da área de terras da consultoria Informa Economics IEG/FNP, especializada no agronegócio.
Para o analista da consultoria em commodities agrícolas ARC Mercosul, Tarso Veloso, baseada em Chicago (EUA), o investidor estrangeiro, em especial o americano, teria interesse em investir em terras no Brasil, mas tem enfrentado dificuldades. “A falta de uma legislação mais aberta evita que muitos deles optem por ter um parceiro brasileiro, o que reduz os aportes.”
A entrada de chineses ou não nas terras brasileiras está travada por conta de um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), de 2010, ano em que a empresa Chongqing Grain Group, da China, chegou a anunciar planos para aplicar US$ 300 milhões na compra de 100 mil hectares no oeste da Bahia, para produzir soja. Para evitar a “invasão estrangeira” no País, a AGU decidiu restabelecer restrições de compra e arrendamento, proibindo que grupos internacionais obtenham o controle de propriedades agrícolas no País.
No ano passado, o governo de Michel Temer tentou avançar com uma proposta de liberação das terras para estrangeiros. O projeto de lei previa que o investidor estrangeiro poderia comprar até 100 mil hectares de terra para produção, podendo ainda arrendar outros 100 mil hectares. Esse projeto, no entanto, está parado no Congresso.
O tema é polêmico e divide opiniões. Até 1998, uma lei de 1971 permitia que empresas estrangeiras com sede no Brasil comprassem terras no País. Naquele ano, a AGU interpretou que empresas nacionais e estrangeiras não poderiam ser tratadas de maneira diferente e, por isso, liberou a compra. Em 2010, a AGU mudou de posicionamento, restabelecendo o entendimento original.
Agronegócio espera abertura para investimento externo
O fato de o presidente eleito Jair Bolsonaro criticar abertamente a entrada de estrangeiros em terras nacionais e ter um posicionamento contrário à proposta não demove o agronegócio da ideia de que é preciso abrir as terras do Brasil para o capital internacional.
Marcelo Vieira, presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB), afirma que o agronegócio espera que o governo se sensibilize com a necessidade de atrair capital externo para os negócios nacionais.
“Temos discutido esse tema há muito tempo com o Congresso. O que queremos é reverter esse parecer da AGU de 2010, que limitou a legislação que sempre vigorou no País. Não defendemos a venda de terra em si para estrangeiros, mas sim a permissão para que investidores internacionais possam investir em empresas brasileiras agrícolas”, diz Vieira. “Vamos avançar nessa discussão com o governo novo. Esperamos que ele apoie uma legislação de incentivo ao investidor internacional.”
Em carta aberta a Bolsonaro, a SRB deu parabéns a Bolsonaro e lembrou de seu “compromisso de buscar vencer paradigmas para reduzir a estrutura do Estado, desburocratizar, simplificar e assegurar mais liberdade para o empresário brasileiro investir, assim como permitir o ingresso de investimentos estrangeiros, com a garantia de maior segurança jurídica”.
Antes de pensar em aquisições de terras, porém, o setor espera respostas para eventuais mudanças locais que possam ter impacto nas exportações do que é produzido por essas terras. “Há uma apreensão sobre algumas políticas que possam criar entraves às exportações. Um exemplo: se houver um aumento forte de desmatamento na Amazônia para plantio de soja, alguns países poderão criar embargos para importação de grãos com origem no Brasil”, diz o analista Tarso Veloso, da consultoria em commodities agrícolas ARC Mercosul.
Critérios para venda de terra
Existe vedação para a aquisição e o arrendamento de terras por estrangeiros no Brasil?
Sim. É proibida a aquisição por pessoa estrangeira não residente no País e pessoa jurídica estrangeira não autorizada a funcionar no País.
O que se exige dos estrangeiros interessados em adquirir ou arrendar terras no Brasil?
Residir no País ou ter empresa instalada no País. Se for empresa, deve obter autorização no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para adquirir ou arrendar o imóvel rural. Se for pessoa física, não é necessária autorização se a área tiver menos de três módulos de exploração indefinida (MEI). A dimensão do MEI varia entre cinco a 100 hectares, de acordo com a região e município do País.
Há limite de aquisição ou arrendamento de área?
Os estrangeiros podem adquirir ou arrendar até 25% da área territorial de cada município.
Demétrio Magnoli: Medo da Ursal
O Brasil já temeu a mula sem cabeça, o boitatá, a cuca, o corpo-seco, a iara e o curupira. Hoje, teme a Ursal. Os medos antigos assombravam o universo rural de caipiras e caboclos. O medo atual assombra o novo governo que, para dormir em paz, entregou dois ministérios estratégicos a apóstolos do Bruxo da Virgínia, um astrólogo repaginado como filósofo místico. Daqui em diante, a superstição norteará nossas políticas externa e educacional. Não adianta dizer que a Ursal não existe, pois ela existe na mente dos que nos governarão.
A Ursal, União das Repúblicas Socialistas da América Latina, ganhou popularidade pela voz do Cabo Daciolo. A evocação da sigla exprime a crença de que uma conspiração comunista internacional ameaça a pátria brasileira. O Bruxo da Virgínia e seus evangelistas compartilham o credo de Daciolo, mas o vestem em peças de estilistas. Na linguagem arcana que preferem, a conspiração é conduzida por uma liga constituída por “liberais globalistas” e “marxistas”. Armados com as teses de Antonio Gramsci, os maléficos conspiradores apropriam-se silenciosamente tanto das chaves do poder quanto das mentes dos indivíduos por meio de uma prolongada guerra cultural. É Ursal, em versão de butique.
De acordo com as superstições do Bruxo da Virgínia, a China lidera o tentáculo marxista da conspiração mundial. Ernesto Araújo, futuro ministro das Relações Exteriores, dá indícios de que submeterá as relações com a China ao “Deus de Trump”, engajando o Brasil na guerra comercial deflagrada pelos EUA. O medo da Ursal ameaça degradar uma de nossas principais parcerias econômicas, fonte de quase um terço do superávit brasileiro no comércio exterior e de vultosos investimentos externos diretos.
Segundo as crendices do Bruxo da Virgínia, a escola funciona como palco de uma doutrinação dos jovens destinada a destruir a família e a religião. Ricardo Vélez, futuro ministro da Educação, declara que enfrentará o perigo por meio do projeto de lei Escola Sem Partido — ou seja, pelo uso do poder público como polícia pedagógica destinada a perseguir professores “desviantes”. O medo da Ursal ameaça bloquear os caminhos para a reforma e qualificação da educação no Brasil. No lugar dessa tarefa inadiável, o Estado anuncia uma estratégia de “contrainsurgência cultural” nas escolas.
As teocracias medievais e os regimes totalitários do século passado imaginavam-se como representações de uma verdade suprema, oriunda de Deus, do Destino Nacional ou da História. A separação entre Estado e Igreja (isto é, a laicidade estatal) e a separação entre Estado e partido (isto é, o princípio do pluralismo político) formam dois pilares estruturais dos sistemas democráticos. Nas democracias, o Estado administra as coisas, não as mentes. Os dois ministérios ocupados por acólitos do Bruxo da Virgínia ambicionam administrar as mentes, libertando-as das forças alienígenas da Ursal. Há fortes doses de ridículo nisso, mas o assunto é sério: o misticismo está no poder.
Um paralelo apropriado é com a Arábia Saudita. O reino nasceu de uma longa jihad (“guerra santa”) empreendida pela aliança do clã guerreiro dos Saud com a seita islâmica puritana Wahab. Na base da monarquia saudita, encontra-se o pacto original entre esses componentes, que se exprime pela entrega dos ministérios da Educação e das Comunicações à facção religiosa. A seita liderada pelo Bruxo da Virgínia ocupa, no governo Bolsonaro, um lugar semelhante ao dos wahabitas no reino dos Saud. A diferença é que sua doutrina não repousa sobre a leitura literal de um livro sagrado, mas sobre crendices cozidas no forno de uma espécie de ocultismo pós-moderno.
A “confluência entre História e Mito” alardeada por Ernesto Araújo, o combate sem trincheiras à “revolução cultural gramsciana” pregado por Ricardo Vélez são piadas que saltaram de túneis escuros das redes sociais para o aparelho de Estado. Uma festa estranha, com gente esquisita — nisso transformaram-se o Itamaraty e o Ministério da Educação. A Ursal passeia entre nós. Deus não é brasileiro.
Mauricio Huertas: O Brasil do "ame-o ou deixe-o" de Silvio Santos
E a mais nova patriotada do empresário e apresentador Silvio Santos ganha manchetes, rodas de conversa, posts, tuítes, mensagens e opiniões das mais desbaratadas nos grupos do whatsapp.
O mais famoso, longevo e bem sucedido camelô eletrônico de que se tem notícia no mundo, predecessor mítico dos atuais influenciadores digitais, desenterrou o "ame-o ou deixe-o" da ditadura para enaltecer o Brasil de Bolsonaro.
As peças institucionais produzidas e exibidas pelo SBT exaltam o ufanismo mais primitivo e nostálgico ao ressuscitar o "Eu te amo meu Brasil" com slogans dos anos 70 e a própria canção-título que enaltece que o coração do brasileiro é "verde, amarelo, branco, azul anil". Não poderia existir nada mais demodê (como este próprio termo), com tanto cheiro de mofo e naftalina.
Mas... espera lá! Silvio Santos pode ter mil defeitos, mas burro ele não é! Quem mais que o "patrão", às vésperas de seus bem vividos 88 anos, para compreender o que agrada a claque popular? O marketing nacionalista de Silvio Santos não ressurge à toa. Fora de moda e de sintonia estamos nós, órfãos da esquerda que foi sequestrada, chacinada e enxovalhada pelo PT. Mais perdidos que cachorro que caiu do caminhão da mudança (pior até que na época da queda do muro).
Porque o Brasil de verdade "endireitou" a olhos vistos, no sentido mais ignóbil que poderia ocorrer: pelo fracasso da geração que vociferou contra os 21 anos de domínio militar e viu tudo se perder diante da esbórnia petista. Bateu um vento daqueles que fazem a gente perder a página que estava lendo no livro (outro velho hábito que parece ter perecido com os avanços tecnológicos) e recuamos na história aos primórdios das lutas democráticas no Brasil.
Vamos ter que nos reorganizar e reconstruir todo um campo no espectro político mais progressista e social-democrata, porque hoje o cenário está denominado pelo conservadorismo (no comportamento e na retórica) e pelo liberalismo econômico que tem aversão ao Estado de bem-estar social. O anti-esquerdismo atinge um patamar inimaginável para quem achava que a direita mais rude e xucra tinha sido extinta na época das Diretas Já.
Sobem no conceito da maioria dos brasileiros os políticos que valorizam o nacionalismo; que flertam com um controle absoluto dos direitos dos cidadãos, seja no contexto político, cultural ou social; que tem obsessão com a segurança nacional; que subestimam os direitos humanos; que demonstram desprezo por intelectuais e artistas; que tentam impor controle e censura sobre a mídia e a imprensa; que usam a religião como forma de manipulação; e que legitimam a utilização da força e da violência para atingir seus objetivos.
Não por acaso, todas as características acima descrevem o ambiente do surgimento do fascismo na Europa do século XX, liderada por políticos nacionalistas e autoritários, com ideias fortemente contrárias ao marxismo, o que logo classificou o fascismo como um regime de extrema-direita marcado por um governo ditatorial e militarizado.
Em tom farsesco, a história se repete. Essa "nova" direita abrange conservadores de diferentes matizes, democratas-cristãos, capitalistas liberais, nacionalistas, militaristas, indignados e revoltados em geral com o atual sistema. Basicamente todos que derrotaram juntos, nestas eleições de 2018, a velha esquerda monopolizada pelo PT e coadjuvada por PSOL, PCdoB, setores do PDT e do PSB, além de siglas nanicas, movimentos e organizações sociais cooptadas, sindicatos mafiosos e o corporativismo estatal tradicional.
Alheios a essa guerra odiosa, preconceituosa e intolerante, espremidos num centro cada vez mais diminuto entre os ruidosos campos da nova direita (crescente) e da velha esquerda (decadente), quase num gueto ideológico, seguimos os esquerdistas democráticos, social-democratas, progressistas, socialistas, sustentabilistas, movimentos cívicos moderados e hackers da nova política.
Por mais que pareça fora da agenda atual, alguém precisa manter na pauta política a preocupação permanente com a manutenção das conquistas da cidadania, com a justiça social, a qualidade de vida e o meio ambiente, o enfrentamento das desigualdades, o respeito às minorias e a garantia estrita do estado de direito, dos conceitos democráticos e dos preceitos republicanos.
Cabe ainda a vigilância diária sobre os atos do(s) novo(s) governo(s), bem como uma postura crítica perante a reação automática das oposições, para que possamos nos diferenciar positivamente desses dois blocos, tanto da base de sustentação fisiológica quanto da oposição sistemática e impeditiva das reformas que se mostram urgentes e necessárias. Esse é o papel que nos cabe.
Lembrando sempre que iniciaremos um novo ciclo político em pleno 2019, bem distante dos idos de 60 ou 70, tão importantes para o aprendizado democrático, inegavelmente, mas cristalizados no Brasil do passado. Devemos avançar, bicho. Ser "pra frentex", manja? O Brasil mudou à beça. Hoje tem gente pra chuchu querendo construir um país melhor, mais supimpa. Esse espírito de mudança é o maior barato, mas vai dar um trampo danado. Por isso o brasileiro fica grilado.
Agora, falando sério. Tão ultrapassado como usar essas gírias dos anos 70, embolorando o parágrafo acima, ou repetir palavras de ordem da ditadura (a favor ou contra), é seguir nessa disputa obsoleta e insana entre direita e esquerda como se estivéssemos congelados no tempo. Vivemos outra década. Outro século. Outro milênio. Precisamos reconfigurar o sistema.
*Mauricio Huertas, jornalista, é secretário de Comunicação do PPS/SP, diretor executivo da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), líder RAPS (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), editor do Blog do PPS e apresentador do #ProgramaDiferente
William Waack: Brasil, Trump e o PCC
EUA seguem mesma política de Obama no tocante ao País: bem pouco interesse
Os americanos não perdem tempo e sinalizaram em menos de 24 horas ao presidente Jair Bolsonaro qual é a agenda da preferência deles. O tuíte de Trump para Bolsonaro falava em “military” e “trade” – em português, defesa e comércio. No dia seguinte o chefe da diplomacia americana, Mike Pompeo, pôs mais dois itens de caráter, digamos, “regional”, mas os itens que mais importam na visão americana deste pedaço do mundo: Venezuela e crime organizado.
Por mais que a campanha de Bolsonaro tivesse se empolgado com aspectos que a tornavam similar à famosa vitória de Trump, a recíproca não é verdadeira. Em relação a Obama, que tanto adora detestar, Trump prossegue a mesma política no tocante ao Brasil: relativamente bem pouco interesse.
Quando falou do Brasil recentemente, Trump utilizou uma linguagem ameaçadora. Acabara de encurralar México e Canadá numa revisão do acordo comercial que engloba os países da América do Norte. E aproveitou, então, no seu tom triunfalista habitual, que iria agora “atrás de Índia e Brasil”. Países que, na visão de Trump, tratam de maneira desleal empresas americanas.
A ameaça deve ser levada a sério: Trump alimenta profundo desdém por instituições multilaterais, a começar pela Organização Mundial do Comércio (OMC), tão cara ao Brasil nos últimos anos. E acredita que ao negociar pactos bilaterais tem melhores condições de barganha. No curto prazo, assinalam os críticos, a conta faz sentido. A longo prazo terá como provável consequência a articulação de aliados ou ex-aliados contra o que consideram bullying por parte do governo americano.
Ainda sob Obama, os americanos propuseram aos brasileiros uma espécie de “pacto estratégico”, mas o então assessor de segurança nacional do presidente dos Estados Unidos saiu de Brasília conjecturando se os brasileiros haviam entendido a proposta. Qualquer possibilidade foi enterrada pouco depois com a espionagem da NSA sobre Dilma e outros, e o consequente irrecuperável mau humor da mandatária brasileira (que enterraria a compra de caças produzidos pela Boeing em favor dos caças suecos, por exemplo).
As queixas brasileiras sobre cooperação em defesa e tecnologia de ponta com os americanos são antigas: de que adianta cooperar e comprar, se na hora de revender produtos desenvolvidos a partir dessas tecnologias Washington exerce poder de veto. Recentemente, num seminário organizado pelo Ministério da Defesa brasileiro, a presidente da Boeing para esta região (e antiga embaixadora americana em Brasília) fez um reparo interessante: “Esse veto não vale para tecnologias militares desenvolvidas por parceiros nossos FORA do território americano” (o destaque é meu). Uma abertura? A conferir se Bolsonaro estará disposto a explorar, e a qual preço.
As outras questões são ainda mais espinhosas. Washington há tempos vem dizendo que a crise venezuelana é uma questão para ser resolvida pelos países próximos, ou seja, pelo Brasil em primeiro lugar (dado o que seria a “natural”, hoje perdida, liderança brasileira nesta parte do mundo). Há um plano em Brasília de como lidar com a ditadura de Maduro? Em articulação com quais outras potências regionais? Ou organismos multilaterais?
Finalmente, é recorrente a preocupação americana com “segurança” hemisférica entendida sobretudo como “segurança pública”: narcotráfico, crime organizado. No começo da semana, participei de conferência internacional organizada por Paulo Sotero, diretor do Brazilian Center no Wilson Center (e antigo correspondente deste jornal em Washington), e de um diplomata do Departamento de Estado veio apenas uma pergunta.
“Como Bolsonaro vai lidar com o PCC?” Pelo jeito, Washington já vê esse tipo de organização criminosa como um flagelo nacional. Aguardamos todos a resposta.
FAP lança revista Política Democrática digital
Totalmente on-line e com design responsivo, publicação tem acesso gratuito e traz análises, entrevista e reportagens especiais
Em celebração aos 30 anos da democracia e a quatro dias do segundo turno das eleições no Brasil, a Fundação Astrojildo Pereira (FAP) lança, nesta quarta-feira (24), a revista Política Democrática em formato totalmente on-line e com design responsivo. A publicação contempla análises de renomados articulistas, entrevista exclusiva e reportagens especiais, as quais poderão ser acessadas, de graça, pelos internautas.
Nesta edição de lançamento do formato digital, Política Democrática destaca o drama de imigrantes oriundos da Venezuela que peregrinam no maior êxodo da história da América Latina e conta, em vídeos, fotografias e textos, histórias de quem atravessou a fronteira com o Brasil, em busca de sobrevivência. Repórteres da FAP viajaram a Caracas para mostrar, ainda, os reflexos do colapso político e socioeconômico que assola o país presidido por Nicolás Maduro.
Além disso, a revista também reservou, assim como para outras análises, um espaço para entrevista com a economista Monica de Bolle, única mulher latino-americana a integrar a equipe do Peterson Institute for International Economics, nos Estados Unidos e diretora do Programa de Estudos Latino Americanos da Johns Hopkins University, em Washington, D.C. Na avaliação dela, a agenda fiscal deverá ser prioridade do novo presidente.
Objetividade
Com o propósito de entregar conteúdo de altíssima qualidade para o público em seu novo formato, a revista reuniu um time de profissionais capazes de fazer análises do contexto brasileiro, de forma mais objetiva possível, especialmente das eleições de 2018. “O critério de seleção foi a alta capacidade profissional e interpretativa dos jornalistas e acadêmicos que assinaram as matérias, convicção que, estamos certos, justificará plenamente o título de Política Democrática”, diz o diretor da revista, André Amado.
Em relação às análises, André avalia que a publicação mostra opiniões baseadas em reflexões acadêmicas ou em experiências pessoais, que, por isso, segundo ele, “ganham legitimidade além do marco habitual e distorcido dos maniqueísmos ideológicos”. “Seu lançamento, entre os dois turnos das eleições, incorpora apreciação dos resultados da primeira volta e afina as perspectivas para a reta de chegada das candidaturas, apesar do clima visceral com que se vêm desenrolando as campanhas de um e de outro”, afirma o diretor, referindo-se aos candidatos do PT, Fernando Haddad, e do PSL, Jair Bolsonaro, à Presidência da República.
» Para acessar a revista, clique na imagem acima ou no link abaixo:
http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2018/10/24/revista-politica-democratica-online/
Relevância e agilidade
O período eleitoral, de acordo com o editor da revista, Paulo Jacinto Almeida, faz com que a revista sirva como palco de debates sobre os projetos propostos para o país. “É de extrema relevância neste momento em que estamos escolhendo o próximo presidente da República”, destaca ele. “É a continuidade de um projeto existente desde o início do século, que vem debatendo política, democracia, esquerda e cultura na conjuntura brasileira e se torna fundamental ao auxiliar o internauta com informações e análises sobre este momento decisivo em nossa história”, acrescenta.
O editor ressalta que a publicação digital poderá ser acessada em qualquer plataforma, como celular, tablet ou desktop, e a qualquer momento. Segundo ele, a nova revista poderá otimizar um fator cada vez mais importante na sociedade do conhecimento: o tempo. “Ele (internauta) ganha agilidade e praticidade para se manter informado e acessar análises de temas cruciais para o nosso país”, diz Paulo.
A seguir, confira a relação de conteúdos da revista e seus respectivos autores:
*Lições do primeiro turno (Caetano Araújo)
*O que esperar de Jair Bolsonaro (Creomar Lima Carvalho de Souza)
*O que esperar de Fernando Haddad (Creomar Lima Carvalho de Souza)
*A verdade do oráculo digital (Sergio Denicoli)
*Quadrinhos (JCaesar)
*Reportagem de capa: Um país à beira do abismo (Cleomar Almeida e Germano Martiniano)
*Um olhar crítico sobre a democracia (João Batista de Andrade)
*Por quem os sinos dobram (Alberto Aggio)
*Ameaças à democracia (Elimar Pinheiro do Nascimento)
*Entrevista com Monica de Bolle: Agenda fiscal terá de ser prioridade do próximo presidente (André Amado, Caetano Araújo, Creomar de Souza e Priscila Mendes)
*Fernando Gasparian e a morte do nacional-desenvolvimentismo (Jorge Caldeira)
*Yuval Noah Harari investiga as inquietações do presente em “21 lições para o século 21” (Dara Kaufman)
*Atropelado pelas Emergências (Sérgio C. Buarque)
Merval Pereira: O aburguesamento do brasileiro
Bolsonaro é identificado como aquele que mais ajuda os ricos, primeira vez que um candidato lidera a disputa com essa definição
O Brasil que está saindo das urnas merecerá no futuro próximo análises mais aprofundadas de sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, mas os desdobramentos das pesquisas de intenção de votos já permitem fazer um retrato da sociedade brasileira que Bolsonaro, por instinto próprio ou orientação de alguém ainda não identificado, compreendeu melhor do que o PT e outros partidos.
Um momento exemplar dessa falta de compreensão é aquele em que a filósofa Marilena Chaui grita que detesta " a classe média", provocando risos do então presidente Lula.
O que o diretor do Datafolha Mauro Paulino chama de “aburguesamento de valores” da classe média brasileira já estava identificado em pesquisa do Instituto Perseu Abramo, ligado ao PT, logo após as eleições municipais de 2016, quando o partido perdeu largamente.
O Instituto avisava que o “imaginário social dos moradores da periferia de São Paulo”, já àquela época, revelava uma intensa presença dos valores liberais do “faça você mesmo”, do individualismo, da competitividade e da eficiência.
Uma população que não crê em partidos; almeja crescer individualmente; busca transformações, mas é pouco afeita a rupturas; anseia por novas ideias, mas é também pragmática.
As pesquisas de hoje confirmam que a sociedade exalta o “autoritarismo” de Bolsonaro, provavelmente confundindo com “autoridade”, para trazer ordem aos serviços públicos, proteção à família, (instituição mais valorizada pelos brasileiros segundo o Datafolha), e meritocracia no trabalho. “Tudo sob a proteção divina”.
Uma novidade relevante é que Bolsonaro é identificado como aquele que mais ajuda os ricos, primeira vez que um candidato à Presidência da República lidera a disputa com essa definição, que era depreciativa, e hoje parece ser uma qualidade almejada pela maioria, com sonhos de ascensão social.
Outro que anteviu esse processo foi o ex-ministro Mangabeira Unger, professor de Harvard, que achava “decisivo” para qualquer orientação transformadora do Brasil o surgimento de uma nova classe média, e uma nova cultura de emergentes, “esse pessoal que estuda à noite, luta para abrir um negócio, ser profissional independente, que está construindo uma nova cultura de autoajuda e de iniciativa, e está no comando do imaginário nacional”.
Ele percebeu o movimento “como um elemento entre muitos dessa nova base social. São dezenas de milhões de brasileiros organizados”. Mangabeira desenvolveu a tese de que evangélicos brasileiros têm semelhança com pioneiros que fundaram os EUA e tinham o espírito empreendedor que faria a diferença para o desenvolvimento do Brasil.
Com base nisso, participou da criação de um novo partido, em outubro de 2005, o Partido Municipalista Renovador (PMR), cognominado pelo então prefeito Cesar Maia como “o gospel do crioulo doido”, hoje Partido Republicano Brasileiro (PRB), criado pelos evangélicos da Igreja Universal para substituir a marca PL, manchada pelo escândalo do mensalão que estourara naquele ano.
O projeto era o controle político da chamada “nova classe média”. A preocupação do PT com a ascendência da Universal nesse universo eleitoral foi explicitada pelo ministro Gilberto Carvalho, então secretário-geral da Presidência, que alertou que as esquerdas deveriam disputar ideologicamente a massa dos emergentes. Gilberto Carvalho chegou a falar na criação de um sistema de comunicação de massas para transmitir a esses novos consumidores as ideias do governo.
Os evangélicos reagiram com vigor, e o projeto político se manteve afastado do PT. A sigla manteve-se nas eleições gerais de agora entre os maiores, à frente do PSDB e do DEM, por exemplo: elegeu 30 deputados federais, 42 deputados estaduais e um senador, além de um vice-governador, Carlos Brandão, no Maranhão.
Um exemplo de como os políticos tradicionais não entenderam essa transformação está num vídeo em que o então governador Sérgio Cabral visitava no Rio, com o presidente Lula, um condomínio popular do subúrbio. Um rapaz aproximou-se e reclamou que não tinha quadra de tênis na área de lazer. Cabral passou-lhe uma descompustura: " Deixa de bobagem. Tênis é jogo de burguês".
A popularidade de Lula hoje, mais do que nunca, se ancora nos grotões do interior, onde uma horda de desvalidos é cuidadosamente manipulada por seus programas assistencialistas. São os excluídos, presentes em maior parte no Nordeste, única região em que o petista ganha de Bolsonaro com 60% dos votos válidos.
Bernardo Mello Franco: Revisionismo de toga
O novo presidente do STF resolveu reescrever a História. “Eu me refiro a movimento de 1964”, disse Dias Toffoli, descartando a palavra “golpe”
O presidente do Supremo Tribunal Federal resolveu reescrever a História. Em seu 19º dia no cargo, ele decidiu que não houve golpe militar no Brasil. “Eu não me refiro mais nem a golpe, nem a revolução de 1964. Eu me refiro a movimento de 1964”, informou.
Ao expor a sua visão particular dos fatos, Dias Toffoli citou o historiador Daniel Aarão Reis. Foi uma surpresa desagradável para o professor da UFF. “Chamar o golpe de movimento é uma aberração. Rejeito categoricamente a paternidade dessa ideia, com a qual eu não concordo”, ele afirma.
Em palestra na USP, Toffoli atribuiu ao historiador a avaliação de que a “tanto para a esquerda, tanto para a direita passou a ser conveniente culpar o regime militar de tudo”. Para Aarão Reis, o ministro distorceu suas palavras e fez uma “interpretação vesga da História”.
“Esse tipo de análise sustenta que os dois lados cometeram excessos. É uma forma de lavar as mãos sobre o que aconteceu. Ao igualar o que não é igual, acaba legitimando a ditadura”, critica.
O professor lembra que o “movimento” de Toffoli rasgou a Constituição, derrubou um governo legítimo e submeteu o país a um estado de exceção. “Ao dizer isso, o ministro recupera uma triste atitude do ministro Ribeiro da Costa, que era presidente do Supremo e apoiou o golpe. Depois ele se arrependeu, mas já era tarde demais”, afirma.
A ditadura instaurada em 1964 cassou três ministros do STF e forçou a aposentadoria de outros dois. Ao assumir o comando do tribunal, Toffoli surpreendeu ao nomear um oficial da reserva para sua assessoria direta. O general Fernando Azevedo e Silva participou do grupo de militares que formulou propostas para o presidenciável Jair Bolsonaro.
Para a crônica eleitoral da Lava-Jato: a 11 dias do primeiro turno, a Polícia Federal acusou o ex-ministro Antonio Palocci de arrecadar propina para o PT. Aconteceu em 2016, às vésperas da disputa municipal.
Marco Aurélio Nogueira: O tamanho da indefinição
O Brasil não acabará depois das eleições, seja quem for o vencedor do pleito presidencial
O mundo gira e a caravana roda. Com o avançar do calendário eleitoral, a definição dos candidatos, de suas coligações e seus compromissos, com as primeiras pesquisas e os debates iniciais, subiu a temperatura e ingressamos em um tempo de tomadas de posição.
Não há porque temer esse tempo ou fugir dele em nome do candidato ideal ou de uma candidatura única que jamais existiu, que dificilmente poderia existir e que nem sequer deveria ser tida como exigência democrática. Democracia é pluralidade, divergência, choque de opiniões, manifestação de preferências. Numa época de partidos e verdades em crise, pregar a ordem unida é caminhar às cegas, sem poder de convencimento.
Guerras entre candidatos são suicidas, mas não há como contorná-las: lutam pela própria afirmação, não pela afirmação de um campo ou polo. É da lógica da disputa eleitoral. O sangue que escorre dos guerreiros pode mesmo adubar candidaturas autoritárias. Não há como evitar isso, ao menos no primeiro turno. Correr riscos é um dos preços da democracia.
A sabedoria está em minimizar os efeitos, evitar que os choques ultrapassem o razoável, traduzindo-se em agressão e ruptura. Mentiras escabrosas e campanhas negativas de desconstrução são tóxicas, envenenam a democracia. Não se trata somente de cordialidade, mas de bater sem deixar marcas e sem poupar o adversário principal, facilitando-lhe a vida.
Sempre será preciso fazer a análise concreta da situação concreta. A frase é marxista, mas não é preciso ser marxista para aceitá-la: trata-se de um suposto do realismo político e do esforço que se deve fazer para enxergar o todo, com suas determinações, suas possibilidades reais e as relações de força que nele têm lugar. Alcançar uma compreensão abrangente e a mais racional possível é boa norma de conduta na política.
O amplo e heterogêneo campo da democracia no Brasil vive hoje um dilema: é ou não possível trabalhar para que se tenha uma mudança consistente no país, uma mudança que mexa nas estruturas, nos sistemas em geral, nas instituições, nos hábitos políticos? Mudar tornou-se um imperativo, virá mais cedo ou mais tarde, já está vindo sem que percebamos bem, cegos que estamos por disputas e polarizações paralisantes. Não devemos ser maximalistas nem exagerar no argumento. O Brasil não é um doente terminal, não vai acabar nem descarrilhar depois das eleições, seja quem for o o próximo Presidente. Não há porque ficar parado perante o pior inimigo da democracia, nem temer os populistas de plantão. Não haverá salvadores da pátria e todos terão de cooperar entre si, fazer alianças, negociar, assimilar a velha política, pedir sacrifícios à sociedade. Errarão e acertarão, uns mais, outros menos. Perigos e ameaças virão mais de uns do que de outros. Mas a roda continuará a girar.
A exigência cabal de cooperação tem um efeito colateral positivo: faz com que todos tenham de abaixar o topete, moderar suas fantasias, aprender a respeitar os limites, arregimentar as forças que podem garantir que algo seja feito. Impõe a que se privilegiem a articulação e a mediação.
Os candidatos são o que são. Nenhum deles exibe propriamente força. Não dispõem nem de poderio político extraordinário, nem de particular força de persuasão. Cada um tem seu gueto, seu estilo, suas convicções, seu séquito. Todos precisam sair de si, ir além dos muros que os protegem, chegar onde o povo está. Uns acreditam que conseguirão isso com a televisão, outros com as redes. Mas ninguém sabe quão potentes serão esses meios.
Tudo somado, é o que explica o tamanho da indefinição.