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Bruno Carazza: Trump 2024
Engana-se quem acredita que Trump seja carta fora do baralho: Biden venceu, mas o trumpismo sai fortalecido
“I’ll be back”, teria dito o presidente Grover Cleveland ao deixar a Casa Branca depois de perder a reeleição em 1888. E ele cumpriu a promessa. Ao dar a volta por cima em 1892, Cleveland ainda é, até hoje, a única pessoa na história americana a governar o país em dois mandatos não consecutivos (1885-1888 e 1893-1896). Donald Trump pode lhe fazer companhia em 2024.
Cleveland era democrata - e o vínculo partidário não é a única característica que o diferencia de Trump. Discreto, fez da austeridade e da retidão seus principais ativos políticos. Na sua primeira eleição, sofreu uma intensa campanha difamatória na imprensa, com os adversários acusando-o de ter um filho ilegítimo. Ao ser questionado por seus apoiadores sobre qual deveria ser a sua estratégia de defesa, respondeu com uma frase que marcou época: “Tell the truth”. Ao assumir que caiu em tentação e admitir a possibilidade de ser pai da criança, Grover Cleveland mereceu um voto de confiança do puritano eleitorado americano no final do século XIX.
Mas à parte a coloração partidária, a discrição e a postura em relação ao dilema “fato ou fake”, há pontos em comum entre eles. Ambos tiveram uma carreira política meteórica: em apenas dois anos, Cleveland elegeu-se prefeito de Buffalo, governador de Nova York e presidente da República, enquanto Trump… bem, todos sabemos o quão rápida foi sua ascensão.
Os dois presidentes também viveram em mundos muito polarizados. Cleveland chegou ao poder derrotando seu adversário James Blaine por apenas 0,3% dos votos nacionais e se não fosse uma diferença de apenas 1.200 votos no estado de Nova York, teria perdido a disputa no Colégio Eleitoral - assim como Donald Trump venceu Hillary Clinton com margens apertadas e ainda perdendo nacionalmente.
Ao tentarem a reeleição, tanto Cleveland quanto Trump ampliaram seu eleitorado, mas por um triz não conseguiram manter o domínio sobre Estados relevantes, e acabaram sendo derrotados. Em 1888, Nova York e Indiana representaram para Grover Cleveland o que Georgia, Pensilvânia e Michigan foram para Trump em 2020.
Quatro anos depois, o retorno de Cleveland à Casa Branca foi possível pelo agravamento da situação econômica, o acirramento das disputas raciais no país e a ausência de alternativas no seio de seu partido - condições que podem contribuir para a volta de Trump em 2024.
A vitória de Joe Biden vem sendo efusivamente comemorada como o fim de uma era. Analistas chegaram a dizer que “a aventura populista norte-americana chegou ao fim” e que a razoabilidade e a sensatez se impuseram de modo definitivo sobre a truculência das táticas de Donald Trump. Calma lá.
Deixando de lado a teatralidade das acusações de fraude e as ameaças de judicialização do resultado das urnas, Trump poderá deixar a presidência de cabeça erguida. Ele conseguiu mobilizar seu eleitorado para fazer frente à onda azul que se mobilizou desde os protestos em resposta ao assassinato de George Floyd, manteve o domínio republicano em suas bases tradicionais e ainda angariou votos em redutos antes considerados monopólio democrata, como parcelas relevantes do eleitorado latino - tudo isso em meio a uma pandemia e uma crise econômica sem precedentes na história recente.
A derrota trumpista se deu em margens tão apertadas quanto as de 2016, o que evidencia que os Estados Unidos continuam tão divididos quanto antes, tanto geográfica (litoral x interior, cidades grandes x zonas rurais) quanto demograficamente (brancos x não brancos, homens x mulheres, alta x baixa escolaridade). Não é por outro motivo que tanto Joe Biden quanto Kamala Harris, em seus discursos da vitória, usaram a mesma expressão: “curar o país”, como se ele sangrasse em função de tantas divisões.
Amainar diferenças tão acirradas até 2024 será uma tarefa hercúlea, ainda mais se os democratas não conseguirem o controle do Senado. É bom lembrar que nem Barack Obama, com todo o seu carisma e contando com oito anos de mandato, conseguiu vencer resistências, unificar o país e fazer sua sucessora.
Como a Emenda nº 22 da Constituição americana não impede um ex-presidente que perdeu a eleição de candidatar-se de novo, Donald Trump tem à sua frente quatro anos para fazer campanha e azucrinar o governo de Joe Biden pelas redes sociais e manipulando as atenções da mídia.
Outra circunstância que o favorece é a ausência de novas lideranças em ambos os partidos. Do lado republicano, ainda que existam críticas às suas postura e personalidade, nenhum nome lhe faz sombra. Entre os democratas, as primárias deste ano, com um número recorde de pré-candidatos e a escolha recaindo sobre um senhor de 77 anos, dizem muito sobre o deserto de alternativas.
É verdade que o atual presidente tem um passado nebuloso e a perda da imunidade presidencial abre flancos para processos judiciais que podem inviabilizar um plano de retorno ao centro máximo do poder nos Estados Unidos. Nesse caso, ainda lhe restaria um plano B, que atende pelo nome de Donald Trump Jr.
Clãs sempre fizeram parte da política americana: John & John Quincy Adams, no alvorecer da República, e George H. & George W. Bush são duplas de pais e filhos que chegaram à presidência. Outro exemplo é William Harrison (1841-1844) e seu neto Benjamin Harrison, que derrotou Grover Cleveland em 1888. Também tivemos os Dead Kennedys na década de 1960 e o casal Clinton mais recentemente, todos com grande protagonismo. E ainda há Michelle Obama - que nega interesse em entrar no jogo, mas parece ser uma carta guardada na manga dos democratas para o futuro.
Com um perfil super ativo nas redes sociais, papel de comando nas campanhas do pai e tendo participado como consultor na administração que se encerra, não seria surpresa ver Trump Jr., 43 anos, sendo preparado para assumir o bastão do pai caso ele não possa concorrer em 2024.
É muito cedo para especular sobre o que vai acontecer nos EUA daqui a quatro anos. Mas engana-se quem acredita que Trump seja carta fora do baralho. Sua campanha, aliás, já começou.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Cláudio Couto: Frente ampla democrática é incompatível com iliberalismo
Vitória de Joe Biden sobre Donald Trump animou gente de amplo espectro ideológico a defender no Brasil uma aliança da direita à esquerda contra o bolsonarismo
A vitória de Joe Biden, batendo o populista de direita, Donald Trump, animou gente de amplo espectro ideológico, da direita à esquerda. O que uniu pessoas de posições políticas tão distintas na celebração da derrota trumpista foi a vitória da democracia (com todos seus requisitos) sobre o autoritarismo, inerente a quaisquer populismos, que tal desfecho representou.
Por isso, rapidamente se começou a defender no Brasil uma aliança ampla, da direita à esquerda, contra o bolsonarismo e sua vocação autoritária. Nesse contexto se dão conversas entre políticos e aspirantes a políticos de distintas posições, na tentativa de construir pontes. Faz sentido.
Estrela ascendente na esquerda, o governador do Maranhão, Flávio Dino, conversa com muita gente, inclusive o centro-direitista Luciano Huck – que tem como mentor o centrista e bem-sucedido ex-governador do Espírito Santo, Paulo Hartung. Na Bahia, a centro-esquerda pedetista se uniu à direita carlista na disputa pela Prefeitura de Salvador. O PT segue ausente, com algumas exceções, como Fernando Haddad.
Agora, Huck conversa com Sérgio Moro e se noticia possível chapa entre ambos em 2022. Mas aí a ideia de frente democrática esboroa. O jacobinismo judicial lavajatista é tão iliberal – e, portanto, antidemocrático – quanto o bolsonarismo. Embora o combate inclemente à corrupção tenha seduzido certos liberais, trata-se de uma contradição: frente tão ampla a ponto de incluir até quem se guia pelo autoritarismo que tal aliança pretende combater.
- Professor de Ciência Política na FGV EAESP e produtor do canal 'Fora da Política Não há Salvação'
Marcus Pestana: Os ventos que sopram do norte
Quase tudo já foi dito sobre as eleições americanas. Escrevo ainda no calor da apuração depois da postagem de mensagens dos dois candidatos à presidência dos EUA no Twitter que dão a dimensão do impasse que assistiremos nos próximos dias. Donald Trump lançou em letras garrafais: “Parem a contagem!”. Em direção oposta o democrata Joe Biden afirmou: “Todos os votos devem ser contados”. Mas, as primeiras iniciativas de judicialização das eleições demonstram que o conflito político se arrastará por dias, semanas.
Nunca houve na história americana um presidente que confrontasse de tal forma as instituições, tradições e práticas democráticas. Trump não tem nenhuma contenção na instrumentalização do poder e não reconhece legitimidade em seus adversários e críticos. Foi apontado por estudo da Universidade de Cornell como o maior disseminador de desinformação sobre a COVID e tornou prática cotidiana a promoção de fakenews “chapa branca” contra adversários.
A vitória de Biden tem dimensão histórica e universal em dois sentidos. O primeiro é o fortalecimento da democracia nos EUA e no mundo, revertendo a onda que se convencionou chamar de “populismo autoritário”. A postura agressiva e antidemocrática de Trump ecoa e estimula a radicalização de setores de extrema-direita em escala global. A eleição de Biden vai permitir que ele se alinhe a estadistas como Angela Merkel e Emmanuel Macron na defesa dos fundamentos do sistema democrático, do valor da tolerância e do diálogo, e do compromisso com a liberdade em todas as suas facetas. O segundo sentido é, em substituição ao unilateralismo do “América first”, a retomada do multilateralismo e a valorização da integração global para o enfrentamento conjunto dos desafios sociais, econômicos, sanitários, ambientais, militares e de combate ao terrorismo. Acordos, como o de Paris em favor do desenvolvimento sustentável, serão revalorizados e organismos multilaterais receberão o prestígio que merecem.
Aqui no Brasil temos muito a aprender e mudar. Dissolver o clima de contaminação ideológica das teorias da conspiração reinantes. Não há plano macabro e secreto da China de implantar o comunismo em escala global através da vacina, do 5G, ou seja lá do que for. Não há uma armação diabólica e um fio condutor ligando a nova constituição do Chile, a vitória da esquerda na Bolívia, o moribundo governo Maduro e o fracasso peronista na Argentina. É preciso urgentemente recuperar as melhores tradições diplomáticas brasileiras que sempre advogaram uma postura independente, profissionalizada, pragmática e sem alinhamentos automáticos. Não deveríamos ter saído da ideologização introduzida pelo petismo de um “terceiro-mundismo equivocado” para o extremo oposto de um alinhamento político e ideológico absoluto e sem resultados com Donald Trump.
Por último, o processo eleitoral jogou luzes sobre aspectos em que o Brasil está muito melhor que os EUA. Isto é uma verdadeira vacina contra o nosso suposto “complexo de vira-lata” ou de “pária internacional”. Temos um sistema público de saúde (SUS) mais bem resolvido que o americano, apesar de nosso investimento público por habitante ao ano ser nove vezes menor do que nos EUA (US$ 500 dólares aqui e US$ 4.500 lá). E, sem dúvida, o nosso sistema de eleição do presidente da República e de apuração é muito superior.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB- MG)
Marco Aurélio Nogueira: Uma vitória para resgatar a democracia
Se confirmada, vitória de Biden mudará o estado de espírito do mundo
O processo é longo, os resultados demoram a sair, o sistema é intrincado e arcaico. A incerteza o acompanha até as últimas urnas. Ao final, o vitorioso carrega consigo o galardão da legitimidade, dada pelo povo, mas referendada de fato pelos 538 delegados do Colégio Eleitoral. É uma batalha democrática, mesmo que impregnada de seletividade e restrições.
Hoje em dia, as eleições norte-americanas tornaram-se um show televisionado, seguido por todos. Têm forte efeito simbólico, repercutem na política internacional, alteram o humor mundial. Especialmente numa época como a nossa, em que a democracia está sob o assédio de líderes e movimentos autoritários (nacionalistas, populistas) em diversos países. Donald Trump é um deles, o que mais longe levou a corrosão democrática da democracia, quer dizer, a problematização da democracia mediante a manipulação das regras de um sistema que se mantém formalmente democrático.
As eleições de 2020 não foram entre democratas e republicanos, por mais que os dois partidos tenham sido protagonistas. Tratou-se de uma disputa em torno da democracia, do seu significado, da sua defesa e valorização ou de sua desmoralização.
O caso Trump ainda será objeto de estudos sequenciais. Nunca um presidente norte-americano agrediu tanto o sistema democrático de seu país, nunca rompeu tantas regras de conduta, nunca mentiu tão cínica e compulsivamente. Valeu-se de falcatruas constantes, explorando o ressentimento, o medo e a raiva que se acumularam nos EUA com a “desindustrialização”, a vida digital, a perda de força relativa da economia americana diante do avanço implacável do dragão chinês e da mudança dos termos do comércio internacional. Encontrou à disposição uma população preparada para a charlatanice, cortada pelo desespero e pela desilusão, levada pela perda de referências a desconfiar do sistema democrático e a se atirar nos braços de personagens “heterodoxos”, abertamente demagógicos. As redes sociais fizeram com que o rastilho se espalhasse e adquirisse status de verdade.
O personalismo populista e raivoso de Trump, sua agressividade permanente, mobilizou parte importante dos norte-americanos. Apesar de tudo – a resposta pífia à pandemia, as mentiras, o desprezo pela vida, o abandono do meio ambiente, o egocentrismo narcísico, os maus tratos com imigrantes, o racismo, a misoginia explícita – ele conseguiu conquistar mais 4 milhões de votos quando comparado com as eleições de 2016. Tem milhões de seguidores no Twitter, no Facebook e no Instagram. É um poder de fogo não desprezível, que lança torpedos tóxicos a cada minuto, minando a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.
Chega a impressionar que tal torrente de pessoas tenha aderido a uma plataforma tão mesquinha e reacionária.
Se confirmada, a vitória do democrata Joe Biden mudará o estado de espírito do mundo, impulsionará uma troca de oxigênio, afetará o modo como os cidadãos enxergam a democracia. O movimento em favor de uma internacional de extrema-direita, dita “conservadora”, perderá gás para se viabilizar. Depois do descaso e do reacionarismo antidemocrático de Trump, poderá haver novamente política democrática. Mas nada será automático. Primeiro porque os EUA estão polarizados de cima a baixo. Segundo, porque a democracia norte-americana enveredou por uma senda enviesada, torta, que distanciou o povo das instituições e da confiança nos procedimentos democráticos – uma senda que permanecerá aberta mesmo com Trump derrotado. Muito trabalho terá de ser feito para repor as coisas no lugar, abrindo espaços para as novas gerações, os movimentos de contestação e antirracistas, as mulheres. O momento pede um esforço articulado para neutralizar o populismo e repor a confiança dos cidadãos na política democrática. Sistemas, afinal, precisam saber se atualizar e cuidar de suas válvulas de escapa, para que não se inviabilizem quando as águas subirem e o vapor aumentar.
Os EUA são uma democracia mais imperfeita do que se imagina. Seu sistema político foi desenhado para beneficiar certos grupos da população mais do que outros, os estados em detrimento do poder federal. Tem um corte oligárquico acentuado. Sempre houve, por exemplo, manobras para dificultar o voto dos mais pobres, dos negros, dos menos instruídos. O próprio sistema é elitista, os votos populares não pesam como deveriam, os delegados ao Colégio Eleitoral são escolhidos de forma restrita. Com o trumpismo, o quadro piorou. O movimento conservador atual maltrata os fundamentos da democracia e mais recentemente passou não só a restringir a votação e a corromper a lógica política, como a judicializar o processo democrático, agindo em nome de um projeto que hostiliza a ideia de justeza das escolhas populares, que precisam ser acatadas. Como se vê nas eleições deste ano, faz-se o possível para roubar legitimidade dos resultados eleitorais.
A judicialização não é exclusividade norte-americana. Está instalada no mundo, reflete a crise da política em que se vive. Não é comum, porém, que se ponha em xeque a lisura das eleições ou que se as leve a decisões judiciais. Governantes autoritários e de extrema-direita é que costumam fazer isso. Bolsonaro mesmo, no Brasil, vive dizendo que teria havido fraude na sua própria eleição em 2018. A extrema-direita faz uso intenso e sistemático da deslegitimação dos processos políticos. Levanta suspeitas, faz acusações e ameaças para que se possa confundir e assustar os eleitores. A ideia é desconstruir a democracia liberal, implodir e manipular as regras e os procedimentos democráticos. É uma espécie de “golpe branco”, que interdita o diálogo, o pluralismo, a vigência de direitos e políticas sociais. Tudo contra o “sistema”, mas por dentro dele, usando-o contra a democracia.
O discurso de Trump na noite de 05/11, no qual ele acusou os democratas de estarem inventando “votos ilegais” para “roubar as eleições”, foi uma demonstração clara disso. Uma admissão dissimulada de derrota para o “sistema”.
A derrota de Trump não será o fim do trumpismo, que se enraizou na sociedade norte-americana. Será preciso acompanhar para ver como ela repercutirá no Partido Republicano e como será processada pela população. Perde a pessoa, não necessariamente o movimento por ele representado e por ele ativado. Também não é um recado a governantes que com ele se alinharam e que ajudaram a incensá-lo. Mas é uma indicação clara de que enquanto houver democracia, regras do jogo e eleições competitivas, a extrema-direita não poderá se proclamar dona do universo.
A presidência Biden não terá impacto imediato no Brasil, sobretudo porque o governo Bolsonaro agarrou-se ideologicamente a Trump e optou por seguir uma política externa obscurantista, de isolamento e auto-exclusão das negociações multilaterais. O País deixou de ter voz ativa no cenário internacional. O governo brasileiro poderá optar pelo aprofundamento da condição de “Estado-pária”, manter-se indiferente ao mundo, numa espécie de suicídio nacional. Biden é um democrata pragmático e que seguirá a via diplomática. Deverá, porém, exercer pressões não desprezíveis sobre a política ambiental brasileira e levar o ministério de Relações Exteriores a corrigir o discurso e buscar um realinhamento. Poderá contribuir para mostrar a farsa que o bolsonarismo montou no País.
A vitória democrata nos EUA não é boa notícia para Bolsonaro. Mas poderá ser ótima para o Brasil.
Terá impacto sobre as eleições presidenciais brasileiras de 2022? É difícil dizer, há dois anos de distância e sem considerar os resultados das eleições municipais de 2020. Com a derrota de Trump, o bolsonarismo tenderá a perder parte da “narrativa” e sofrer algum abalo; as correntes democráticas ganharão um fôlego adicional e serão instigadas a procurar maior unidade e coordenação. Mas tudo continuará dependendo das políticas que o governo vier a praticar até 2022 e da capacidade que tiverem os democratas brasileiros de avançarem de fato em termos de articulação. Sem que se forme uma rede sólida de entendimentos unindo liberais, conservadores democráticos, socialistas e socialdemocratas o processo político seguirá curso errático e tenderá a se inclinar em sentido não democrático.
Agora, é preciso esperar o fechamento completo das urnas, o desfecho dos questionamentos judiciais e a posse do novo presidente.
Bolsonaro está obrigado a telefonar para Biden e lhe desejar sorte. O presidente brasileiro, porém, não é dado a tais cordialidades, é mais tosco e bruto. Fará algo protocolar, mas por baixo do pano deverá mergulhar na nostalgia de um tempo em que podia se vangloriar de ser “amigo de Trump”.
Sérgio Abranches: EUA de volta ao futuro
A vitória de Joe Biden marca um novo momento político nos Estados Unidos. Em um sentido muito direto, ela repõe o país na trilha que havia sido aberta pela eleição de Barack Obama. É mais do que a eleição de Biden, um senior Democrata moderado, para presidente. A eleição de Kamala Harris é um marco em si e além do que Biden representa. É a primeira mulher, a primeira pessoa de origem em várias minorias, negra, latina, asiática, a ocupar a vice-presidência dos Estados Unidos. Esta vitória é resultado da formação de uma coalizão que uniu Democratas moderados e de esquerda, em torno dos dois. Uma nova coalizão progressista, que aposta no Green New Deal e repõe a diversidade americana no caminho da plena cidadania.
A eleição de 2008 foi um marco. Levou à Casa Branca, pela primeira vez na história, um presidente negro. Foi o resultado de uma longa luta, que começou, no plano institucional, com a aprovação da 14a Emenda à Constituição, em 1868, dando aos afroamericanos os direitos de cidadania política. Mas eleitores negros continuaram a ser barrados nos locais de votação e a supressão do voto negro continuou. Para enfrentar mais seriamente este bloqueio, a 15a Emenda à Constituição, aprovada em 1870, determinou mais claramente que o direito aos cidadãos dos Estados Unidos não podem ser negados ou reduzidos pelos Estados Unidos ou qualquer um dos estados, com base em raça, cor, ou situação prévia de servidão. Mas, a luta prosseguiu, penosa e sangrenta. Passou pelos anos 1960 e 1970, por Martin Luther King, seu sonho e seu assassinato, até chegar a 2008 e a eleição de Obama, filho do segundo casamento de um economista queniano e uma antropóloga de origem anglo-saxônica.
Mas, a luta não acabou. As vítimas negras da brutalidade policial, atravessaram o governo Obama e aumentaram com Donald Trump. O assassinato de George Floyd à luz do dia, por dois policiais brancos, tornou-se o leit motiv para o movimento Black Lives Matter, que globalizou. O retorno à trilha inaugurada por Obama, entretanto, é efetivo e relevante. Kamala Harris na Vice-Presidência dos Estados Unidos compartilha os símbolos do poder imperial da Presidência — ela terá a segurança, o avião e o helicóptero Air Force Two, o respeito e a deferência prestados aos governantes dos Estados Unidos. Esta mulher sintetiza, para além de Obama, a possibilidade de estar no poder do conjunto das minorias étnicas do país e das mulheres. Não é pouco, nem é trivial.
Este resultado é importante, também porque demonstra, inequivocamente, a incidentalidade de governantes como Donald Trump. Ele entrou numa eleição atípica, em 2016, e sai numa eleição atípica em 2020. Como eu disse ser a trajetória provável dos governantes incidentais em meu livro (O Tempo dos Governantes Incidentais, Companhia das Letras, 2020). Quando este tipo de governante obtém o segundo mandato, é muito perigoso, porque escala o ataque às instituições democráticas por dentro. Eleição atípica, no segundo caso, por duas razões. A primeira, a campanha desigual, com Biden respeitando as regras de segurança na pandemia, mesmo com prejuízo de sua presença em colégios eleitorais relevantes e da reunião de eleitores no seu entorno. Trump, ao contrário, manteve comícios em desprezo a qualquer protocolo de segurança sanitária e, nos últimos três dias, fez um rali de comícios, chegando a ir a dez estados por dia. E perdeu. A segunda, a quantidade inédita de votos antecipados e, principalmente, por e-mail. Estes votos foram esmagadoramente por Biden, porque ele e seus correligionários convocaram os eleitores a votar desta maneira, o voto era importante e a necessidade de votar de forma segura, sem aglomerações ou filas, também. Foi a vitória da responsabilidade contra a insensatez.
Politicamente, a eleição de Biden foi apoiada por uma ampla coalizão antiTrump e pela democracia, que uniu o centro e a centro-direita do partido à sua esquerda, buscou os independentes e atraiu personalidades republicanas. Uma ampla coalizão que alcançava também os representantes e os movimentos sociais das minorias. Esta amplitude e diversidade teve como representante Kamala Harris.
No plano geopolítico, a vitória de Biden/Harris, tem várias implicações importantes. É uma mensagem dizendo que os governantes incidentais, por mais poderosos que pareçam, podem ser derrotados. É, também, uma convocação para a luta contra a intolerância contra minorias étnicas, imigrantes e todas as demais minorias. Deve demarcar o início do processo de reconstrução do multilateralismo, em maior sintonia com os desafios existenciais desafiando a governança global, como a mudança climática, os refugiados, os imigrantes, a crise global e a vertiginosa transição estrutural e tecnológica.
Biden não mudará radicalmente a atitude internacional dos Estados Unidos. Não tenho a ingenuidade de imaginá-lo como um revolucionário, no plano doméstico ou internacional. Obama tampouco o foi. Mas são avanços significativos e devem ser considerados como tal. Joe Biden e Kamala Harris, presidente e vice-presidente dos Estados Unidos, repõem os Estados Unidos de volta à trilha do futuro.
*Sérgio Abranches, cientista político
César Felício: Turbulência em qualquer cenário
Eleição americana pode radicalizar o bolsonarismo
A próxima Presidência americana trará consequências para o bolsonarismo no Brasil, em qualquer cenário. A vitória de Bolsonaro em 2018 decorreu de vários fatores e um deles foi a ascensão da direita nos Estados Unidos, alavancada, sobretudo, pela habilidade no uso de redes sociais.
Até o momento em que essa coluna é escrita, não há certeza sobre quem estará na Casa Branca a partir de janeiro do próximo ano. Tenha o desfecho que tiver a contenda entre republicanos e democratas, Donald Trump pode ter cruzado uma linha vermelha, ao buscar o Judiciário para tentar se manter no poder.
Se reeleito em um pleito decidido na Suprema Corte, com intervenções judiciais não apenas em um Estado, como se deu na Flórida em 2000, durante a eleição presidencial de George W.Bush, o presidente atual tende a ser muito contestado nas ruas.
Terá um déficit de legitimidade insanável que pode desencadear uma radicalização, com reflexos no Brasil.
Caso seja derrotado, Trump planta a semente de uma possível candidatura presidencial em 2024 - ele estará legalmente habilitado a fazê-lo - e conduzirá um exército de apoiadores que passará a descrer do sistema eleitoral como solução política. As tribos de Trump e de Bolsonaro se confundem.
Um contingente grande dos influenciadores digitais mais duros do conservadorismo brasileiro está nos Estados Unidos. A começar do mais famoso deles, Olavo de Carvalho.
A extrema-direita brasileira rompeu o casulo graças a um movimento que veio de fora para dentro. Bolsonaro pessoalmente se empenhou em fazer um amálgama entre a política brasileira e a americana, tarefa da qual Eduardo Bolsonaro foi o principal operador.
Embaixador do Brasil nos Estados Unidos que foi sem nunca ter sido, patrono do primeiro congresso brasileiro do CPAC, o evento mais importante do conservadorismo americano, o deputado está aí para demonstrar quem é matriz e filial nesse processo. Não há dúvidas de que a disputa americana levou incerteza ao bolsonarismo sobre o que o destino lhes reserva na eleição brasileira de 2022.
“A esquerda é bem organizada em nível mundial. Por isso é importante acompanhar as eleições nos Estados Unidos. O que acontece lá pode ser repetir aqui”, escreveu no Twitter anteontem, apreensivo. Um aliado seu, Daniel Silveira (PSL-RJ), foi além, na mesma rede social. “Isso mostra o tamanho do perigo e o potencial do inimigo que enfrentamos. Aqui no Brasil não será diferente em 2022 para tentar retirar o presidente Bolsonaro do governo”.
Assim como Trump está fazendo nos Estados Unidos, se a coisa apertar, entrará no radar bolsonarista de pronto a contestação de resultados eleitorais, talvez por meio de uma judicialização.
Como indicou no Twitter outro aliado, o pastor Marco Feliciano (PSC-SP), é de se esperar mais questionamentos ao sistema brasileiro de voto eletrônico, e o aumento de fabulações sobre possíveis fraudes na eleição que obrigou Bolsonaro a disputar segundo turno, há dois anos: “Se por lá fazem isso com cédulas, imagino o que acontecerá aqui em 2022. Afinal por aqui usamos a tecnologia, sabidamente manipulável, com um agravante, as máquinas não são auditáveis”.
Se Biden for o eleito, deve haver de início um grande movimento do presidente democrata em relação a posições mais centristas.
Como comentou o empresário e cientista político Jared Cohen, convidado a apresentar uma palestra ontem em evento do Banco Itaú, Biden será levado ao pragmatismo para impedir que a maioria republicana no Senado obstrua por completo sua administração. Ele não terá muitos caminhos para demarcar diferenças em relação a Trump, ao menos enquanto persistir essa situação.
Na opinião do historiador Niall Ferguson, palestrante no mesmo evento, será talvez a mais fraca presidência democrata em muito tempo, com condições limitadas para avançar em muitas das agendas que se comprometeu durante a eleição. Os especialistas americanos ouvidos ontem pelo Itaú não acreditam em guinadas significativas do governo americano em relação às prioridades nacionais: enfrentar a China na nova guerra fria que divide o mundo e controlar a pandemia, que, na opinião de Ferguson, poderá matar 500 mil pessoas nos Estados Unidos antes de ser vencida.
Jogar duro com o Brasil pode, portanto, ser uma alternativa interessante para atender a um eleitorado democrata mais radical. Bolsonaro mexe com dois símbolos caros a este contingente: a ameaça ambiental e o extremismo ideológico. Para Cohen, dois países no mundo entram em uma zona de risco de problemas na relação: Brasil e Arábia Saudita.
Como nem só de extremistas vive o governo Bolsonaro, é razoável supor que a ala militar e os aliados do centrão possam aumentar o protagonismo dentro do governo federal, encolhendo a ala ideológica, com quem travam permanente disputa por espaço.
São Paulo
A pesquisa de ontem do Datafolha posiciona o ex-governador paulista Márcio França (PSB) com chances concretas de chegar ao segundo turno. Não tanto pelo seu desempenho, mas pelo fato de Guilherme Boulos (Psol) ter parado de crescer e sobretudo por Celso Russomanno (Republicanos) cair em parafuso. A se confirmar um duelo entre Bruno Covas (PSDB) e França, a eleição em São Paulo teria uma particularidade não vista desde 1985: nenhum candidato de esquerda em primeiro ou segundo lugar. Embora filiado ao PSB, França é um político de centro. Centristas têm alguma dificuldade para chegarem ao segundo turno, mas vantagem quando cruzam esta barreira, por oferecerem atrativos aos dois polos.
O curioso é que Covas, ao contrário do que fez o governador João Doria há dois anos, ao buscar associação com Bolsonaro, também se coloca no centro. Caso haja este duelo, a eleição paulistana quebraria a tendência nacional de polarização. Ambos teriam que buscar tanto os eleitores de Boulos quanto os de Russomanno, o que embalhararia o segundo turno.
Pablo Ortellado: Eleições nos EUA pautam o futuro da esquerda
Vitória de Biden deve dar alento a estratégias eleitorais mais centristas; derrota vai estimular correntes à esquerda
Joe Biden construiu sua carreira política promovendo o diálogo bipartidário no Congresso —ficou conhecido como um político de centro que sabia compor com os republicanos quando necessário. Sua candidatura à Presidência é uma aposta do Partido Democrata de que é mais viável uma candidatura de centro que tenha apelo a uma base mais larga de eleitores do que uma candidatura mais à esquerda que mobilize e estimule o eleitorado.
Por isso, uma vitória de Joe Biden terá grande repercussão sobre as estratégias eleitorais da esquerda, inclusive fora dos Estados Unidos, reorientando o debate que teve início quando Hillary Clinton foi derrotada por Trump em 2016.
A esquerda do Partido Democrata argumenta que a vitória de Trump em 2016 se deveu à concorrência com uma candidata centrista e pró-establishment, fria e sem grande apelo com o eleitorado. Ela argumenta que Bernie Sanders, o principal adversário de Hillary nas primárias, oferecia melhores respostas para os problemas sociais e ambientais do país e que o engajamento que sua campanha produziria aumentaria o comparecimento às urnas.
Já a ala tradicional do Partido Democrata atribuía o sucesso de Trump não ao programa centrista de Hillary, mas a uma combinação de regras eleitorais arcaicas, jogo sujo do adversário e pequenos erros na condução da campanha.
Debate semelhante ocorreu também em outros países. Nas eleições francesas de 2017, discutiu-se se a melhor via para derrotar a extrema-direita de Marine Le Pen seria uma candidatura centrista, como a de Macron ou Fillon, ou se seria mais efetiva uma candidatura radical de esquerda, como a de Melénchon. O mesmo debate se deu no Reino Unido em 2019, quando o Partido Trabalhista entrou na disputa com um programa de esquerda, tentando recuperar o terreno perdido desde o Brexit.
Uma vitória de Biden deve estimular estratégias mais centristas em outras partes do mundo e também no Brasil. Por aqui, ela confirmaria o entendimento produzido pelo resultado de eleições na região que mostraram que uma acomodação um pouco mais ao centro permitiu ao MAS recuperar o poder na Bolivia e à esquerda peronista retomar a Presidência na Argentina.
Por outro lado, uma nova vitória de Trump, ainda que por pequena vantagem no colégio eleitoral ou por manobra na computação dos votos, deve dar fôlego às correntes de esquerda que esperam que uma considerável ampliação dos gastos sociais ou uma tomada de posição mais clara nas guerras culturais seja o melhor caminho para engajar o eleitorado e derrotar o populismo de direita.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Pedro Fernando Nery: O que é boa política?
Nas eleições, não há espaço para propostas de políticas públicas cuidadosamente desenhadas
Os EUA decidem hoje o seu próximo presidente. Hillary Clinton, a perdedora 4 anos atrás, reflete no livro What Happened sobre as campanhas eleitorais da nossa era. Estudos mostram que o noticiário daquela eleição concentrou uma parcela insignificante da cobertura às propostas formuladas por especialistas do seu time. Acusações, questões de personalidade e propostas mirabolantes de Trump ocuparam quase toda a cobertura. Hillary dá a entender que se arrepende: a boa política pública pode não ser a boa política.
Depois de encarar promessas populistas à direita (de Trump) e à esquerda (do correligionário Sanders nas primárias), ela parece se render à máxima de que good policy is not good politics: não há espaço nas eleições para propostas de políticas públicas cuidadosamente desenhadas. Ela chegou a cogitar apresentar um programa de renda básica universal, mas desistiu por não conseguir fechar a conta do custeio. Na autobiografia, lamenta: deveria ter lançado a proposta como aspiração, e solucionar os detalhes depois.
Na coluna anterior, tratamos das promessas de Guilherme Boulos para a prefeitura. Mas as promessas hiperbólicas não são exclusivas da esquerda. No momento em que busca sua reeleição, Trump concluiu parcela ínfima do prometido muro (e não fez o México pagar por ele).
Na quinta-feira passada, o ministro da Economia declarou: “Há uma narrativa de que eu prometo e não entrego”. É uma referência pertinente de promessas à direita: em 2018, Paulo Guedes prometeu zerar o déficit primário ainda no primeiro ano de governo (o valor no vermelho foi de R$ 95 bilhões) e privatizações acima de R$ 1 trilhão (o secretário da área já se demitiu).
Na corrida à prefeitura de São Paulo, as promessas de Boulos não são menos factíveis que as de concorrentes. Adversários prometem cortes de impostos que esbarram em proibições parecidas, por exemplo, quanto à Lei de Responsabilidade Fiscal. Juras de privatização esbarram nas dificuldades enfrentadas por Guedes.
Leitores comentaram a coluna de Boulos concordando com inconsistências do programa, mas explicando ver no candidato uma chance maior de concretização de uma determinada plataforma. Efetivamente, o “vou fazer” dos candidatos é na prática um “quero fazer” – e para muitos eleitores querer já é um diferencial em relação a outros postulantes. Seja a promessa de renda básica e passe livre ou corte de impostos e privatizações.
Especificamente em Boulos, há mesmo um compromisso claro com redução da desigualdade – Jeff Nascimento, da Oxfam, destaca de forma ilustrativa que entre os principais candidatos não há programa que chegue perto em menções a “desigualdade” ou “social”. Como mostram os dados do Atlas do Desenvolvimento Humano, a capital paulista tem as 5 regiões de maior desenvolvimento humano do País, quase “gabaritando” esta versão do IDH. Uma prosperidade que divide espaço com privações, um abismo que tende a aumentar com a devastadora crise atual.
Uma gestão Boulos poderia, sim, promover transformações, ainda que não na magnitude que alguns esperam – especialmente sem brigar pelo aumento da tributação dos mais ricos e a reforma da previdência, como argumentei. De fato, a campanha aponta que os valores envolvidos no programa são bem mais modestos do que alegam os adversários, reproduzidos na coluna.
Realidade
À medida que o plano de governo do PSOL se torna mais realista, também será menos sedutor para os eleitores. Uma renda básica para 3 milhões, em continuação ao Auxílio Emergencial, e passe livre para todos sem emprego formal poderia superar os R$ 25 bilhões anuais. Nos últimos dias, a campanha colocou parte da plataforma de forma mais clara: um programa mais factível, e naturalmente menos abrangente.
O número de 3 milhões de “atendidos” com a renda básica não rivaliza com os 3,4 milhões que receberam o Auxílio Emergencial na cidade: na verdade, seriam 3 milhões de atendidos apenas indiretamente, e 1 milhão de benefícios de fato. Uma redução de pelo menos 70% no número de pagamentos em relação ao Auxílio Emergencial, ou 7 milhões a menos de “atendidos” seguindo o método proposto.
O passe livre para desempregados segue pouco claro: os mesmos 3,4 milhões do auxílio emergencial não têm emprego formal, uma conta com potencial de vários bilhões. Havendo uma lógica limitação, há entre os eleitores, inevitavelmente, muitos desempregados que não vão receber o passe livre, assim como há favorecidos pelo Auxílio que ficarão de fora da renda básica. O hiato entre aspiração e realidade será ainda maior sem aumentos significativos na arrecadação do IPTU, ISS e contribuição previdenciária, o que nenhum candidato admite.
Propor boa política pública não é a boa política eleitoral. É uma escolha sensível para todas as campanhas, principalmente uma vibrante como a de Boulos.
- Doutor em Economia
Carlos Sampaio: Risco ambiental e econômico
Não podemos dar argumentos para países criarem barreiras para nossos produtos
O Brasil sempre atraiu a atenção do mundo na questão ambiental pela sua riqueza. E o fator econômico contribui para elevar as cobranças sobre o nosso país, um dos principais players no disputado mercado internacional de commodities. Ainda mais quando se discute o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, anunciado no ano passado, depois de 20 anos de negociação.
O acordo eliminará tarifas de importação para mais de 90% dos produtos comercializados entre os dois blocos, mas ainda precisa ser ratificado por cada um dos países-membros. Há, portanto, muitas resistências a vencer.
Assim, não podemos dar argumentos para países criarem dificuldades ao acordo ou barreiras para nossos produtos, alegando que o Brasil não protege o meio ambiente. A França, por exemplo, já expressou essa posição.
Neste momento, em nada ajudam iniciativas ou omissões que possam lançar desconfiança sobre a política ambiental brasileira. A revogação pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente de resoluções para a proteção de áreas de restinga, manguezais e outros sistemas sensíveis — derrubada depois pelo STF — é a polêmica mais recente.
A minimização de dados sobre o desmatamento na Amazônia ou de focos de incêndio no Pantanal e a precarização dos órgãos de fiscalização, como o Ibama, alimentam especulações contra o Brasil. Além disso, passam a mensagem de que as regras são abrandadas, o que estimula a prática de crimes.
Se não houver respostas mais objetivas e ações mais efetivas contra o desmatamento e de proteção ao meio ambiente, o Brasil continuará sendo criticado, podendo perder espaço no mercado. E, se o meio ambiente não for, de fato, protegido, as perdas serão incalculáveis para as gerações futuras.
O Brasil tem uma das legislações ambientais mais rigorosas do mundo. E, como se diz, o governo já ajuda quando não atrapalha. Ainda mais numa área tão sensível como essa.
*Carlos Sampaio é líder do PSDB na Câmara dos Deputados e procurador de Justiça licenciado
Vinicius Torres Freire: Carta sobre a vacina brasileira para o leitor cansado do coronavírus
O que o SUS, a Alemanha e a recaída europeia dizem sobre a doença no Brasil
A Alemanha acha que é difícil vacinar seus 83 milhões de habitantes até o final de 2021. Sim, vacinar contra a Covid. Sim, a eficiente, organizada e disciplinada Alemanha. Aplicar 100 mil doses por dia seria “um desafio”, disse na semana passada Thomas Mertens, o chefe do Comitê Permanente de Vacinação do Instituto Robert Koch, agência alemã de controle e prevenção de doenças.
No Brasil, o SUS chega a atender 1 milhão de pessoas por dia nas campanhas de vacinação contra a gripe. Em alguns anos, esteve preparado para vacinar quase 1,5 milhão de pessoas por dia, em cerca de 65 mil postos.
Isso dá o que pensar nas burrices que o governo diz sobre vacina e sobre as nossas possibilidades de conter a doença, muitas desperdiçadas de modo criminoso até agora.
Sim, de um modo ou de outro, estamos fartos de ouvir, falar ou saber de coronavírus. Mas ainda podemos fazer um esforço para atenuar a situação e reagir contra a ignorância homicida. Se por mais não fosse, a Europa nos dá outro alerta de perigo, como em março.
Ainda não há vacina. Alguns países, Alemanha, Estados Unidos, Indonésia ou Brasil, se preparam para distribuí-las a partir de dezembro, mas apenas isso: preparam-se para o melhor. Cientistas discutem ainda a possibilidade de, a princípio, usar as vacinas apenas de modo comedido, limitado, experimental mesmo. Há quem diga que a vacinação precoce pode até atrapalhar a continuidade dos testes de eficácia e segurança, que ainda prosseguirão por meses ou anos.
Anthony Fauci disse nesta semana que talvez em dezembro apareçam dados suficientes para que uma ou duas das vacinas que estão sendo testadas nos Estados Unidos possam ser submetidas à aprovação das autoridades sanitárias. A vacinação ficaria então para o início do ano que vem, se tudo der certo. Fauci é chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas e a autoridade oficial americana em matéria de Covid.
Isto posto, é um crime contra a humanidade enxovalhar a vacinação em geral, como faz Jair Bolsonaro, ou uma possível vacina contra a Covid, seja anglo-sueca, chinesa, americana, alemã ou russa. Devemos nos preparar para oferecer vacinas e não esquecer que a epidemia está longe de terminar.
Os mortos por Covid no Brasil ainda são o triplo do número de assassinados no país, na média por dia. A Covid mata 15 vezes mais que o HIV, ainda pela média diária. Quatro vezes mais que os acidentes de trânsito.
Na União Europeia, o número diário de mortes baixara muito até julho, quando chegou a 0,2 por milhão de habitantes. Agora está em 2,9 por milhão, por dia, e crescendo rápido. No Brasil, estamos com 2 mortes por milhão, por dia. Mas há indícios que a taxa geral de infecção por aqui não seja lá muito diferente da espanhola, por exemplo –haveria muita gente que pode ser infectada ainda. Assim, em tese, é possível um repique da doença. Não sabemos, mas o risco é sério.
Os maiores países da Europa voltaram a fechar as portas de muito negócio e atividade. Mesmo antes disso, em outubro, a economia já balançava de novo, se é que a recaída na recessão já não estava ocorrendo. Não é o “lockdown” que derruba os negócios, mas a doença. Mesmo quase sem restrições oficiais, o movimento nos trens e metrôs de São Paulo ainda é a metade do que se via no ano passado.
Há esperanças: uma vacina, o nosso SUS e que a maioria de nós não seja infectada pela desumanidade presidencial. Enquanto esperamos, nós que aqui estamos temos de tomar cuidado ainda. A Europa está nos avisando.
Alon Feuerwerker: Mais Brasília. Menos Brasil
Há algumas dúvidas sobre o resultado desta eleição municipal. Uma: qual será o desempenho dos candidatos apoiados pelo presidente Jair Bolsonaro. Outra: em que grau o PT conseguirá se recuperar da dura derrota de 2016, no auge da Lava-Jato. Mais outra: qual será desta vez o fôlego da chamada nova política.
Dúvidas à parte, pelo menos uma coisa é certa desde já. A grande massa dos prefeitos e vereadores eleitos chegarão a janeiro de 2021 abrigados nos partidos do chamado centrão. Ou do centrão formal, estrito senso, ou do centrão ideológico, lato senso. Uso aqui o “ideológico” apesar de parecer uma contradição em termos.
A previsão tem pelo menos três razões objetivas. Os partidos do centrão são em geral legendas médias, dotadas de razoáveis fundo partidário e eleitoral. São também relativamente alheios à recente agudização da polarização político-ideológica, o que os imuniza em algum grau contra ter de carregar fortes rejeições.
A terceira razão, entretanto, é a que pesa mais. Desde quando Jair Bolsonaro ajustou a rota e estabeleceu uma quase tradicional política de alianças no Congresso Nacional, os partidos que lhe ofereceram um colchão de segurança passaram a ter acesso preferencial ao orçamento. Que costuma ser essencial para investimentos na vida dos municípios.
Uma palavra de ordem muito usada na campanha eleitoral bolsonarista foi “Menos Brasília, Mais Brasil”. A descentralização de recursos para fortalecer estados e municípios e diminuir a dependência destes ao governo federal. Seria injusto fazer um diagnóstico definitivo depois de apenas dois anos, mas por enquanto pouco ou nada aconteceu nesse sentido. Ao contrário.
Uma rotina do presidente da República tem sido visitar os estados e municípios para lançar ou inaugurar obras feitas com dinheiro federal e canalizadas para a região por emendas parlamentares da autoria de deputados e senadores que apoiam o governo em Brasília, e por isso têm mais trânsito nos ministérios a quem compete liberar a verba.
É bastante razoável prever que deputados e senadores com mais acesso ao Orçamento Geral da União terão mais facilidade para eleger seus prefeitos e vereadores. Os quais, naturalmente, estarão propensos a apoiar os benfeitores daqui a dois anos. E mantém-se o tradicional sistema de reprodução de poder na República.
Eis por que é devaneio imaginar, como chegaram alguns, anos atrás, a iminência do colapso do que a ciência política apelidou de “peemedebismo”. E que não necessariamente tem a ver com o PMDB. É o predomínio numérico de uma massa de partidos sem capacidade hegemônica mas com suficiente musculatura para impedir qualquer um de governar sem se dobrar a eles.
Como romper a lógica? Um caminho seriam reformas políticas que permitissem ao eleito para o Executivo, nos três níveis, carregar com ele uma maioria parlamentar. Ou seja, pedir ao sistema que cometa haraquiri.
E olhe que não seria difícil encontrar fórmulas. Uma: calcular as cadeiras nas Câmaras de Vereadores, Assembleias Legislativas e Câmara dos Deputados não pelo voto dado às legendas na eleição parlamentar, mas na eleição de prefeito, governador e presidente.
Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Hélio Schwartsman: Ponto para a democracia
Chile transformou Constituição com forte vício de origem em experiência real de democracia
Símbolos importam. E os chilenos foram claros quanto a isso ao determinar, por uma margem de quase 80%, que a atual Carta, herança da ditadura de Pinochet, seja substituída por uma nova, a ser elaborada por uma convenção constitucional exclusiva. Ponto para a democracia.
No mundo da vida prática, porém, o Chile, apesar da origem espúria da Carta, já era uma democracia sólida, com alguns ciclos de alternância de poder entre esquerda e direita. Os aspectos mais autoritários da Constituição foram extirpados por uma série de emendas aprovadas ao longo dos anos, notadamente em 1989 e 2005. Não teria sido impossível persistir nesse caminho.
Aliás, num cálculo puramente numérico, será mais difícil aprovar a nova Carta do que emendar a velha. Pelas regras em vigor, algumas matérias constitucionais exigem maioria de 3/5 dos parlamentares para ser modificadas, e outras, as mais sensíveis, de 2/3.
Pelas regras da convenção, só irão para o novo texto constitucional artigos aprovados por 2/3 dos constituintes, e, ao fim dos trabalhos, o projeto ainda terá de ser chancelado pela população em plebiscito.
Outro aspecto interessante do processo constitucional é que será o primeiro no mundo a ser conduzido por uma convenção paritária, com 50% de mulheres e 50% de homens. Achei um pouco autoritário não terem dado aos eleitores chilenos a oportunidade de exercer uma escolha ativa diante de algo tão novo (a opção pela convenção exclusiva já vinha com a paritária), mas são os tempos em que vivemos.
Meu ponto é que constituições são uma parte importante da democracia, mas nem de longe o jogo inteiro.
Há Cartas que são ótimas no papel, mas que na vida real não geram nada parecido com uma democracia, e há casos como o do Chile, que conseguiram transformar uma Constituição com forte vício de origem numa experiência real de democracia. Símbolos importam, mas a prática também.