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Folha de S. Paulo: Negros são minoria no serviço público federal e ocupam apenas 15% de cargos mais altos
Salários de servidores brancos são mais elevados e disparidade é ainda maior no topo da hierarquia do funcionalismo
Bernardo Caram, Folha de S. Paulo
Observada no setor privado, a sub-representação de negros também marca a estrutura da administração pública. Dados do governo mostram que, embora sejam aproximadamente 55% da população, negros ocupam 35,6% dos postos no serviço público federal.
A disparidade fica ainda mais visível quando é feito o recorte por hierarquia de cargos e nível de escolaridade. Pretos e pardos ocupam apenas 15% das cadeiras mais altas.
O governo federal não deixa disponível para consulta pública estatísticas de pessoal com recorte por cor e raça. O dado detalhado mais recente, referente a 2018, foi compilado pela Enap (Escola Nacional de Administração Pública), vinculada ao Ministério da Economia.
No entanto, informações preliminares da pasta, que ainda não foram disponibilizadas ao público, indicam que o cenário pouco mudou de 2018 até agora.
Em outubro de 2020, entre os que fizeram a declaração, a parcela de servidores negros na administração federal ficou em 36,8%.
Mestre em desenvolvimento econômico e participante do Programa das Pessoas de Ascendência Africana do Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, Clara Marinho Pereira, 36, faz parte dessa minoria.
Servidora federal desde 2013, com passagem pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, ela foi aprovada em novo concurso, em 2017, para assumir vaga de analista de Planejamento e Orçamento do Ministério da Economia.
"Nos lugares onde trabalho, eu sou a única ou uma das poucas pessoas negras. Isso é muito frequente. No meu departamento, por exemplo, eu sou a única mulher negra", disse.
"É uma realidade gritante, a despeito de nossos representantes máximos dizerem que não existe racismo no Brasil", afirmou.
Em seu último concurso, Pereira foi aprovada por meio da política de cotas. Em 2014, entrou em vigor no país a lei que reserva para negros 20% das vagas oferecidas em concursos públicos.
"As cotas são importantes, mas não suficientes. Elas foram aprovadas em 2014, mas justamente naquele ano começou a desaceleração econômica e o ritmo de contratações no serviço público diminuiu. É uma pena que as ações afirmativas no serviço público não tenham chegado antes", disse.
Segundo o levantamento da Enap, a disparidade salarial entre brancos e negros no serviço público caiu lentamente ao longo dos anos, mas ainda persiste.
Em 2018, dado mais recente, brancos e amarelos ganharam em média 14% a mais do que negros e indígenas.
Os números consideram os servidores que declararam sua raça ou cor. Do total de funcionários públicos, 11,9% não prestaram essa informação naquele ano.
Evoluir na formação escolar e acadêmica também gera mais benefícios para brancos no serviço público.
Entre os servidores com pós-graduação, mestrado ou doutorado, 42% dos brancos têm salário superior a R$ 12 mil. Com a mesma formação, apenas 28% dos negros têm remunerações superior a esse patamar.
Além da diferença salarial, quanto maior o nível de formação dos servidores, menor o número de negros que ocupam esses cargos.
Do total de funcionários públicos que estudaram até o ensino fundamental, normalmente ocupando cargos de nível mais baixo, 60,9% são negros e 31,2%, brancos. A partir do ensino médio a proporção se inverte, com tendência de ampliação da desvantagem para negros.
Pretos e partos são 50,5% dos servidores com ensino médio. Entre os que fizeram ensino superior, eles representam 31% do total. No grupo dos pós-graduados no serviço público, os negros são 29,7%.
Mesmo nos cargos comissionados de livre nomeação, o padrão da sub-representação também aparece.
Nas cadeiras de DAS (direção e assessoramento superior), que podem ser ocupadas por servidores ou pessoas de fora da administração, 29,6% dos funcionários são negros. Para os cargos DAS-6, o nível mais alto, a participação cai para 15%.
No recorte por órgão, o Ministério de Relações Exteriores tem a menor proporção de negros em seus quadros. Entre diplomatas, por exemplo, 5,9% se declaram pretos ou pardos.
"A diversidade no serviço público é condição para o melhor atendimento à sociedade. Não basta apenas aumentar a presença dos negros na base da pirâmide dos servidores. É preciso garantir que os mecanismos do racismo estrutural não limitem a progressão dos negros nas carreiras e a presença em cargos de decisão", disse Joyce Trindade, analista de diversidades do instituto República.org, que organiza a campanha "Onde estão os negros no serviço público?".
Dados reunidos pelo instituto República.org mostram que esse retrato não é exclusivo da administração federal. No município de São Paulo, os negros são 37% da população, mas ocupam 28,6% dos postos na prefeitura.
Em alguns órgãos, a presença de negros é ainda menor. Eles são 7,8% dos servidores na Procuradoria-Geral do município, por exemplo. Nas chefias de gabinete da prefeitura, estão em 10% dos postos.
De acordo com o instituto, São Paulo é a única capital do país a divulgar ativamente estatísticas de cor e raça de seus servidores.
Sobre os dados federais, o Ministério da Economia disse que está trabalhando para disponibilizar o recorte por cor e raça no painel estatístico de pessoal, sistema que apresenta um raio X do serviço público federal. A pasta não informou qual a previsão de data para o lançamento.
Trindade afirmou que a realidade racial no serviço público não é diferente da iniciativa privada. No entanto, ela disse acreditar que cabe ao Estado o papel de dar exemplo para um sistema do qual também é fiscalizador.
"Para cobrar o setor privado, o Estado e os poderes públicos devem ser espelhos daquilo que desejam para a sociedade", afirmou.
Miguel Reale Júnior: Cegueira deliberada
Fazer de conta que não há racismo não é daltonismo, é imensa hipocrisia
João Alberto Silveira Freitas, negro de 40 anos, soldador, foi massacrado por dois seguranças, um deles policial militar fazendo bico numa loja do Carrefour em Porto Alegre. Caído ao chão, João foi espancado e esmagado até morrer asfixiado, sob a supervisão de fiscal do supermercado. É tristemente reiterada a violência praticada contra pessoas negras pelas autoridades, no caso, os “seguranças” particulares fardados.
A exclusão do exercício de direitos da população negra, vítima de discriminação ao longo da História, traz à tona a constatação do racismo estrutural vigente no Brasil. Com o racismo instala-se a inferiorização do outro, que se considera diverso, não se lhe atribuindo a possibilidade de estar “entre nós”, gozar dos mesmos direitos. É uma manifestação cultural, fruto do sistema social, político e econômico, presente no comportamento cotidiano produtor da diminuição de determinadas pessoas por causa de sua cor, orientação sexual, etnia, religião.
O racismo em razão da cor da pele é fato inconteste na História e na realidade social e econômica de hoje. Os brancos privilegiados, como eu, têm o dever maior de primeiramente reconhecer a existência do racismo: dizer o contrário perpetua a odiosa discriminação.
Durante séculos, pretos eram tratados como coisas. Segundo Jacob Gorender, o escravizado era propriedade privada de outro indivíduo, trabalhava sob coação física e o produto de seu trabalho pertencia ao dono (A Escravidão Reabilitada, São Paulo: Ática, 1991, pág. 87). Reduzido ficticiamente o homem a objeto de propriedade de outro homem, como dizia Perdigão Malheiros, o escravo era vendido como semovente, alugado, doado, dado em penhor, separado de seus parentes e sua mulher, pois o “escravo não tinha família”, não se casava, apenas se unia, sem exercer pátrio poder sobre seus filhos. A pena de açoites, proibida pela Constituição imperial, era, todavia, prevista no artigo 60 do Código Criminal para os escravos.
Reconhecia-se o direito do senhor de pôr o escravo que perdera a perna a esmolar na rua, ficando, porém, o proprietário com o resultado da caridade prestada ao preto deficiente físico. Autorizava-se que moças pretas fossem a mando do senhor se prostituir, ficando o resultado do comércio carnal em poder do seu dono.
O Tribunal da Relação de Fortaleza, em 24/2/1887, decidiu que “a favor de escravo não tem lugar o recurso de Habeas-corpus por não ser cidadão e ter restrictos os direitos criminaes e civis…”.
O Ministério Público de Pernambuco, em nome da escravizada Honorata, de 13 anos, pessoa miserável, propôs ação penal contra o senhor que a estuprara. A condenação de primeira instância foi revista, pois Honorata era miserável, mas não pessoa.
Essa exclusão de pretos da possibilidade de vida digna, em todos os planos, estendeu-se no tempo, porque a Abolição, sem medidas de auxílio ao escravizado liberto, tornou-o um miserável na sociedade competitiva.
A desvantagem persiste. O Observatório Afro-Brasileiro, com base em estudo do IBGE de 2000, destaca que de todo o rendimento, somando salários, aposentadorias, programas de renda mínima e aplicações financeiras, 74,1% ficam com os brancos. A população negra (pretos e pardos), quase 60% dos brasileiros, tem apenas um quarto dos resultados econômicos (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2011200315.htm).
No estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, do IBGE, de 2019, há significativa constatação: “Enquanto as mulheres receberam 78,7% do valor dos rendimentos dos homens, em 2018, as pessoas de cor ou raça preta ou parda receberam apenas 57,5% dos rendimentos daquelas de cor ou raça branca. O diferencial por cor ou raça é explicado por fatores como segregação ocupacional, menores oportunidades educacionais e recebimento de remunerações inferiores em ocupações semelhantes” (https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf). Em suma, as pessoas negras receberam ainda menos do que as já discriminadas mulheres.
São inaceitáveis as declarações do presidente da República e do vice. Disse Bolsonaro: “Somos um povo miscigenado. Brancos, negros e índios edificaram o corpo e espírito de um povo rico e maravilhoso. Foi a essência desse povo que conquistou a simpatia do mundo. Contudo há quem queira destruí-la. E colocar em seu lugar o conflito, o ressentimento, o ódio e a divisão entre raças. Sempre mascarados de lutas por direitos, igualdade ou justiça social. Tudo em busca de poder”. O vice negou veementemente haver racismo no Brasil.
Como diz Sueli Carneiro, o argumento da miscigenação dá suporte ao mito da democracia racial na medida em que o intercurso sexual seria o indicativo de nossa tolerância sexual, omitindo-se o estupro colonial (Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil, pág. 55).
Fazer de conta que não há racismo é imensa hipocrisia, especialmente quando se acusa quem aponta a verdade como destruidor da “simpatia” brasileira. Não é daltonismo, é cegueira deliberada.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Cristovam Buarque: “Eu não sou brasileiro?”
''Educação é um direito de cada brasileiro e, também, o vetor para o progresso de todos os brasileiros. 'Eu não sou brasileiro?' é um grito tão importante moralmente quanto 'vidas negras importam' e tão relevante politicamente quanto 'independência ou morte', 'viva a República', 'queremos democracia'"
Ao assistir pela televisão um homem negro sendo espancado até à morte, imaginei-o gritando: “eu não sou brasileiro?”. Foi o grito de um negro perguntando “eu não sou um ser humano?” que despertou o movimento contra a escravidão, na Inglaterra, no século XIX. Se ele era um ser humano, como puderam arrancá-lo de sua família e de sua vila na África, forçando-o a caminhar por centenas de quilômetros, jogando-o em um navio fétido, por meses no mar, através do Atlântico, vendendo-o como animal e obrigando-o ao trabalho forçado por toda sua vida, assim como a seus filhos e netos? Milhões de pessoas negras viveram e morreram nessas condições, sob a aceitação dos brancos.
Aquela pergunta ajudou a despertar os ingleses para a indecência da escravidão, a incentivar a luta abolicionista e a provocar a emancipação dos escravos em 1834, em todas as colônias inglesas. No Brasil, a pergunta não foi ouvida. Esperamos ainda meio século, para sermos o último país do Ocidente a abolir a legalidade da escravidão. A Lei Áurea proibiu, em 1888, a venda e a compra de pessoas, impedindo que negros fossem propriedade de brancos.
Mas quando, em 2020, olhamos as estatísticas de assassinatos, pobreza, violência, renda, desemprego, moradia, saúde, educação, um brasileiro negro tem razão em perguntar: “eu não sou brasileiro?”. Igualmente se justifica a pergunta de milhões de crianças pobres, brancas ou negras: “se sou brasileira, como podem me negar escola com a mesma qualidade da escola de outras crianças brasileiras?”.
A escravidão se faz sob a forma do cativeiro ou negando-se educação; a primeira escraviza o corpo, a outra o intelecto. De qualquer forma é escravidão, porque o ser humano tem corpo e mente: a liberdade exige o fim da escravidão do corpo e o acesso da mente à educação.
A Lei Áurea proibiu a comercialização de vidas negras, mas manteve as algemas do analfabetismo e da baixa educação que ainda aprisionam, devido à falta de conhecimento e consequente desemprego, forçando trabalhos em condições desumanas com salários insuficientes, impedindo a liberdade plena para todos os pobres, cuja imensa maioria é descendente dos escravos. Impede também o Brasil de se beneficiar do trabalho com alta produtividade graças à educação da mão de obra. Por isso, cada adulto pode se perguntar: “se eu também sou brasileiro, por que me negaram uma educação de qualidade no passado, e no presente fazem o mesmo com meus filhos? Por que 132 anos depois da Abolição, Escolas-Casa-Grande para uns e Escola-Senzala para nós?”
“Eu não sou brasileiro?” pode ser perguntado por cada um dos 12 milhões que não sabem ler o lema na bandeira do Brasil e por dezenas de milhões que sabem ler palavras, mas não conseguem entender plenamente um livro com a história do país; e pelos milhões sem coleta de esgoto em suas casas, sem comida para seus filhos.
Ao ver a fartura nos bairros ricos, o pobre brasileiro tem razão em perguntar “eu não sou brasileiro?”, tanto quanto os negros da África do Sul se perguntavam “eu não sou sul-africano?”, ou os judeus, durante o holocausto, indagavam “eu não sou ser humano?”. Na ótica da escravidão, do apartheid e do nazismo, nem todos eram considerados seres humanos. Na hipocrisia da nossa democracia, dizemos que todos os brasileiros têm o mesmo direito, mas as crianças que ficam em Escolas-Senzalas, que aprisionam o futuro delas, têm direito à pergunta de todos os que sofrem holocaustos – na escravidão, no apartheid, no nazismo, ou no holocausto educacional que incinera cérebros no Brasil, dizendo que são cérebros de brasileiros.
Essas perguntas se justificam do ponto de vista moral, por alguns, mas também do ponto de vista patriótico, por todos nós. Porque negar escola de qualidade é deixar milhões de cérebros para trás, sem desenvolver o potencial de cada um deles; é imoral, como última trincheira da escravidão, e é uma estupidez por ser um muro contra o progresso nacional.
Educação é um direito de cada brasileiro e também o vetor para o progresso de todos os brasileiros. “Eu não sou brasileiro?” é um grito tão importante moralmente quanto “vidas negras importam”, e tão relevante politicamente quanto “independência ou morte”, “viva a República”, “queremos democracia”. Ela pode despertar a consciência, tanto do ponto de vista moral do direito de cada criança, quanto do ponto de vista político do interesse nacional, do conjunto de todos os brasileiros.
Pena que ainda não descobrimos a força dessa pergunta, feita por um escravo na Inglaterra, 200 anos atrás.
*Cristovam Buarque professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
El País: Na briga entre Eduardo Bolsonaro e a China, Planalto deveria temer destino da Austrália
Igor Patrick e Lucas Wosgrau para o El País
Presidente vê o Brasil como intocável, mas deveria olhar com atenção para as reprimendas comerciais que Pequim impôs ao gigante da Oceania
“Não temos problema nenhum com a China (...), nós precisamos da China e a China precisa muito mais de nós”. A mais recente declaração do presidente Jair Bolsonaro em relação ao maior parceiro econômico do Brasil é menos um reconhecimento da importância estratégica da relação bilateral que a tentativa de deixar claro que seu governo não vê —ou, pelo menos, evita anunciar— a China como um inimigo.
O presidente assumiu um papel pelo qual seu vice, o general Hamilton Mourão, se tornou conhecido na China: o de bombeiro de posicionamentos incendiários do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). A confusão patrimonial entre o que é governo e o que é família —marca da atuação dos Bolsonaro na política doméstica— revelou finalmente seu potencial de minar a relação estratégica entre Brasil e China.
A fala em dia eleitoral conclui uma semana marcada por tweets pró-Estados Unidos, e anti-China, assinados pelo deputado federal e membro da família presidencial. Provocativas, ameaçadoras e filosóficas, as mensagens trocadas na rede social favorita dos Bolsonaro (e dos diplomatas chineses) esticaram a corda na já tensionada relação Brasil-China.
A postura da embaixada da China, porém, denota uma subida de tom. Desta vez, a diplomacia não foi velada quanto a ameaças ao Brasil. Pelo Twitter, reagiu alertando para “consequências negativas” ao relacionamento bilateral e acusou o parlamentar de “solapar a relação amistosa” entre os países. É um sinal inequívoco de que, mais do que relegar ao quase-embaixador em Washington o papel de um simples parlamentar com viés sinofóbico, Pequim começa a dar ao “03” a importância de um oficial do Governo.
É óbvio —aqui e na China— que Eduardo Bolsonaro não é um deputado abusando de sua liberdade de expressão. Mourão, em março, deixou clara a mensagem que o pai do deputado, e presidente da República, não poderia dizer: “Se o sobrenome dele fosse Eduardo Bananinha, não era problema nenhum (...), ele não representa o Governo”.
O vice —personagem frequente na imprensa chinesa pela sua defesa da evolução das relações comerciais e culturais entre os dois países— tentava superar a verborragia do filho do presidente, que dias antes comparava a pandemia de covid-19 ao encobrimento da catástrofe nuclear em Chernobyl e acusava diretamente a China pelo espalhamento do vírus.
Se havia alguma dúvida sobre a origem e o respaldo aos comentários dentro do Palácio do Planalto, foi o chanceler Ernesto Araújo, o responsável por corroborar a impressão. A despeito dos apelos da embaixada chinesa por uma intervenção do Itamaraty na contenção de danos, o ministro criticou as declarações irritadas do embaixador Yang Wanming e negou que o deputado tivesse ofendido o Estado chinês.
À época, coube ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) colocar panos quentes. O recado veio por meio de uma reprimenda pública a Eduardo, cuja “atitude não condiz com a importância da parceria estratégica Brasil-China e com os ritos da diplomacia”, nas palavras de Maia. Em parte, também era uma tentativa de blindar o Congresso: pelo menos por enquanto, Eduardo segue como presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e, se não fala pelo Planalto, em alguma medida representa seus colegas congressistas.
Entre política de Estado e estratégia eleitoreira
Os tweets de Eduardo Bolsonaro foram percebidos em março como perigosa provocação e depois como tomada de posição. A China vem denunciando mundialmente o que considera “antagonismo à moda da Guerra Fria” e os danos dessa mentalidade ao multilateralismo, ao direito internacional e à possibilidade de avanço do desenvolvimento global percebido desde sua entrada na Organização Mundial do Comércio em 2001.
Em um país democrático, a representação oficial chinesa no Brasil deveria esperar opiniões críticas e expressões de parlamentares que buscam representar um eleitorado tradicionalista —mais que conservador— insensível a qualquer argumento econômico. A disputa se justifica, no entanto, porque o sentimento vocalizado por Eduardo ecoa na opinião pública brasileira, normalizando a antítese do pragmatismo ganha-ganha que marcou a construção da relação bilateral desde Geisel até Dilma.
A política doméstica chinesa e a legitimidade do governo Partido Comunista da China se tornaram assunto nos salões do Itamaraty e do Alvorada. A chancelaria de Ernesto Araújo reservou à Fundação Alexandre Gusmão (a histórica FUNAG) o espaço de crítica intelectual —por falta de melhor adjetivo— ao comunismo, globalismo e materialismo anti-ocidental.
Essa ideologia esquerdista teria encontrado na China —após a queda do muro de Berlim— uma campeã irresistível apoiada por elites liberais, Hollywood, Wall Street e o Vaticano do papa Francisco. Os aliados ideológicos da China, por serem modernos, são os inimigos íntimos do tradicionalismo defendido por Olavo de Carvalho e Araújo. É compreensível que os chineses critiquem a convivência de pragmatas —capitaneados por Mourão e os ministros Teresa Cristina (Agricultura) e Tarcísio Freitas (Infraestrutura)— e cruzados dedicados à metapolítica.
Há, portanto, pouca margem de questionamento sobre por que a China deixou de ver Eduardo como um parlamentar sem filtros, com pouca influência na política externa brasileira para alguém que legitimamente fala em nome do governo. A resposta está em seu entorno, quando o líder da chancelaria, os membros da ala ideológica e, em alguma medida, até o presidente endossam seu discurso (mesmo que de forma mais sutil e, por vezes, normalizando embaraçosamente ideias pouco convencionais no debate público).
Esta abordagem caótica é, em parte, o reflexo direto de um problema nunca superado na cultura política brasileira e aprofundado consideravelmente nesta gestão bolsonarista: o patrimonialismo do presidente e sua família desconhece (ou ignora) a personalidade jurídica simbolizada na figura do Estado. Jogam para a claque porque o eleitorado fiel ou compra de bom grado a narrativa ou não se importa com as consequências dela. O bolsonarismo instrumentalizou o Itamaraty como braço da campanha de 2022.
Para os chineses —onde os limites entre Partido e Estado também são nebulosos—, os ruídos de comunicação são mais barulhentos que as vozes sensatas espalhadas em outras esferas políticas ou mesmo dentro da administração. Ainda que o Ministério das Relações Exteriores evite liderar acusações à China em matérias polêmicas, como as causas da pandemia da covid-19 e o leilão do 5G, o dano midiático já está feito.
Perdida, culturalmente ignorante sobre a história, a cultura e a política chinesa, a imprensa pouco faz para contestar o discurso xenofóbico e ignorante que escorre dos esgotos de Brasília. Sem repertório e com pouca tradição na cobertura de eventos internacionais, se fia pelos exemplos de outros países do hemisfério Norte na tentativa de encontrar alguma pista do que o futuro nos reserva nessa briga sem sentido. Mas as respostas não estão nos Estados Unidos: estão em um país da Oceania.
“Australização” das relações é ameaça real
No espectro de trocas bilaterais, poucos governos ocupam um espaço tão destacado para a política externa chinesa quanto o australiano. Não obstante ser o lar da maior comunidade chinesa fora da China em todo mundo, Camberra mantém fortes laços educacionais e comerciais com Pequim, essenciais ao seu crescimento. É a Austrália —não o Brasil— a principal fornecedora de carne bovina, vinhos e minério de ferro ao gigante asiático. Sua matriz exportadora é muito semelhante à nossa, guardadas as proporções em volume: a balança comercial deles com a China chegou a 103 bilhões de dólares (cerca de 600 bilhões de reais) em 2019, número maior que o Brasil registrou no mesmo período (pouco mais de 98 bilhões de dólares, ou 560 bilhões de reais).
Nada disso evitou as duras reprimendas comerciais chinesas aos australianos. Com o acirramento de relações e acusações que vão desde espionagem até crimes de guerra, passando pela insistência do premiê Scott Morrison em comandar uma investigação independente sobre as origens da covid-19, as trocas comerciais foram duramente afetadas.
Em agosto, a alfândega da China já tinha banido a importação de cinco tradicionais frigoríficos australianos, justificando a decisão por motivos sanitários (de acordo com os chineses, amostras indicavam o uso de cloranfenicol, um antibiótico veterinário para combate à febre tifóide). Coincidência ou não, a ordem foi anunciada dias após Morrison apresentar uma legislação dando ao governo federal o poder de veto a acordos com potências estrangeiras, uma clara tentativa de barrar cooperação comercial do Estado de Vitória com a iniciativa chinesa Um Cinturão, Uma Rota.
A mais recente investida de Pequim? A decisão de impor tarifas de até 212% ao vinho australiano, uma decisão que contrária ao próprio posicionamento chinês na Organização Mundial do Comércio, mas com potencial para efetivamente falir a indústria australiana.
Números e retórica tão dura assim ainda deixam margem para pensar que a China depende mais do Brasil que nós deles? Se ainda restar dúvidas, basta ver os movimentos recentes dos chineses. Em agosto, a Rússia anunciou que pretende ampliar o volume de suprimentos de soja para os chineses em 3,7 milhões de toneladas até 2024. Dois meses depois, Pequim fechou acordo para importar 103 milhões de toneladas de soja anualmente da Tanzânia, país com ambiente político muito mais favorável aos chineses. São iniciativas tímidas e incapazes de substituir o peso de Brasil e Estados Unidos para suprir a demanda do grão, mas funcionam como mensagem cifrada. Há alternativas.
A conta pelo isolacionismo promovido por Bolsonaro vem chegando aos poucos. Sem o apoio do “amigão” Donald Trump na cadeira da Casa Branca, os apelos de socorro podem encontrar uma comunidade internacional conscientemente surda e ansiosa por um escolha melhor e minimamente civilizada nas urnas de 2022.
Igor Patrick é um jornalista especializado na cobertura da China e mestrando em Política e Relações Internacionais na Yenching Academy da Universidade de Pequim. É diretor de comunicação da Observa China.
Lucas Wosgrau Padilha é advogado especializado em Direito Econômico e Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). É mestrando em Direito e Sociedade na Yenching Academy da Universidade de Pequim e diretor de estratégia da Observa China.
Beatriz Jucá: Brasil fica para trás na estratégia de vacinação contra a covid-19 e acende alerta
Ausência de informações sobre estratégia nacional levanta receio de que o país desperdice sua expertise na imunização contra o coronavírus. Governo admite que vacina não será oferecida a toda a população em 2021
Enquanto laboratórios anunciam resultados preliminares promissores de suas vacinas contra o coronavírus e o mundo já desenha seus planos de vacinação, ainda não se sabe quase nada sobre quais serão as estratégias que o Brasil deverá adotar. O país ―onde a pandemia voltou a ganhar velocidade nas últimas semanas― dispõe de um Programa Nacional de Imunizações (PNI) reconhecido mundialmente, mas tem visto a disputa ideológica contaminar as decisões sobre as ações de combate ao vírus deste o início da crise. Diante da ausência de informações sobre o plano vacinal, pesquisadores e parlamentares receiam que o país desperdice sua expertise e não consiga apresentar uma estratégia consistente à sociedade logo que as vacinas sejam registradas. Na última semana, o Ministério da Saúde admitiu que a vacina contra a covid-19 não deverá ser disponibilizada para toda a população em 2021 e que a lógica de imunização deve ser semelhante à da vacinação contra a gripe, que prevê a aplicação do medicamento em grupos específicos.
Por enquanto, nenhum laboratório solicitou ainda o registro de sua vacina à Anvisa e o órgão diz que precisará de pelo menos 60 dias pra analisar eventuais pedidos. No mundo, ainda não há um medicamento imunológico licenciado, mas os países já começam a informar parte de suas estratégias. A Espanha, por exemplo, já anunciou que dividiu a população em 15 grupos e definiu quais teriam prioridade para receber a vacina: idosos em casas de repouso, cuidadores e pessoas com deficiência. No Brasil, um comitê técnico (do qual participam representantes do Governo, secretarias estaduais e municipais da Saúde, entidades de classe e organismos internacionais) foi criado em setembro para pensar nas estratégias. Uma reunião está prevista para a esta terça-feira para discutir uma primeira versão de um plano de vacinação para a covid-19. O país optou por esperar os registros dos imunizantes para avaliar quais serão incorporados no SUS e, a partir daí, desenvolver seu plano nacional.
O Brasil já tem um acordo para a transferência de tecnologia da vacina da AstraZeneca e participa de um consórcio global para ter prioridade na aquisição de outras nove vacinas, o Covax Facility. Também tem dialogado com laboratórios, ainda que não haja novos contratos de aquisição avançados neste momento. Alguns Estados já fizeram acordos para adquirir vacinas promissoras, como por exemplo São Paulo com a Coronavac e a Bahia com a Sputinik V. Mas desde que a corrida por uma vacina entrou na retórica ideológica de Bolsonaro, paira uma desconfiança sobre as futuras ações de imunização. O Ministério da Saúde afirma que trabalha com a possibilidade de incorporar diferentes vacinas no plano nacional, mas a possibilidade de rejeição de determinados imunizantes ganhou força desde que o presidente desautorizou seu ministro a firmar um contrato de intenção de compra da Coronavac, adquirida pelo seu adversário político e governador de São Paulo, João Dória.
O ministro Eduardo Pazuello garante que o plano nacional está, sim, sendo construído e chegou a afirmar que parte dele já estaria pronto. “Podem ficar tranquilos. Estamos acima do momento, estamos adiantados. Quando estivermos com dados logísticos das vacinas, a gente fecha o plano”, afirmou na última semana, sem apresentar maiores detalhes. Pazuello disse apenas que a lógica segue a mesma de outras campanhas: estudar os grupos prioritários e as áreas mais afetadas. No dia seguinte, porém, a equipe técnica do Ministério da Saúde afirmou que o que está definido são os objetivos do plano: reduzir a mortalidade e proteger pessoas mais expostas, já que neste momento não há capacidade de produção de vacina para toda a população brasileira.
“Definimos objetivos para a vacinação, porque não temos uma vacina para vacinar toda a população brasileira. Além disso, os estudos não preveem trabalhar com todas as faixas etárias inicialmente, então não teremos mesmo como vacinar toda a população brasileira”, disse a coordenadora do Programa Nacional de Imunizações, Francieli Fantinato. Gestantes e crianças, por exemplo, não entraram nos testes dos imunizantes. Segundo Fantinato, os detalhes logísticos de um plano nacional de vacinação só devem ser definidos após o registro pela Anvisa. Por enquanto, a pasta trabalha em uma fase preparatória para desenvolver sua estratégia.
Mas a demora para algumas definições preocupa especialistas e parlamentares. A cobrança para que o Governo apresente um plano de vacinação para a covid-19 está na Justiça. O Supremo Tribunal Federal recebeu pelo menos quatro ações sobre o tema, motivadas pelo discurso de Bolsonaro contra a obrigatoriedade da vacinação e por sua rejeição à Coronavac. A Corte deverá tomar uma decisão no dia 4 de dezembro, mas nesta semana o ministro Ricardo Lewandowski, que é relator das ações, antecipou o voto favorável à iniciativa. Lewandowski declarou que, na iminência de aprovação de várias vacinas, “constitui dever incontornável da União considerar o emprego de todas elas no enfrentamento do surto da covid-19”.
A microbiologista Natalia Pasternak alerta que um atraso no planejamento da vacinação é prejudicial, mesmo com a expertise do SUS, especialmente no caso do coronavírus. O cenário que se desenha no momento é que os países precisarão adotar diferentes vacinas para atingir a imunização coletiva e, num país continental como o Brasil, exige-se um plano complexo. Os medicamentos imunológicos mais promissoras atualmente envolvem diferentes necessidades de logística e armazenamento (alguns precisam de ultracongeladores), então é importante que o Governo planeje quais deverão ser incorporadas e quais seriam as mais adequadas para cada região, além de desenvolver um sistema de controle da vacinação e das doses de cada usuário.
“O Ministério da Saúde está devendo esse planejamento. Espero que estejam planejando e só não tenham comunicado ainda à população. Pensar que não há um plano é desastroso”, afirma Pasternak. A pesquisadora argumenta que é preciso pensar na aquisição de equipamentos (como câmaras frias para determinados medicamentos), nas possibilidades de distribuição, nas necessidades de ampliação de estruturas de postos de saúde e mesmo um plano de capacitação rápida para profissionais. “Quais vacinas vão pra quais regiões? A Coronavac e a da AstraZeneca são mais fáceis de armazenar. Quem vai ser atendido com qual vacina? E fazer um acompanhamento adequado, porque cada uma delas tem seus regimes de doses. Tudo isso precisa de planejamento e treinamento de pessoal”, explica. Para ela, a falta de transparência do Governo sobre isso deixa a população desamparada e confusa, além de estimular teorias da conspiração contra as vacinas.
A questão também tem preocupado parlamentares da comissão externa da Câmara que acompanha as ações de enfrentamento à pandemia. O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT), opositor de Bolsonaro e membro do colegiado, teme que o Brasil priorize a vacina da AstraZeneca e opte por um plano de vacinação mais restrito diante da guerra política protagonizada pelo presidente. “Acredito que o desejo do atual Governo é um plano limitado de vacinação, usando apenas a vacina de Oxford (Astrazeneca). Ele torce pra que esta seja a primeira registrada, quando o Brasil deveria ter uma postura mais ousada e participar de vários projetos, mas pra isso tem que ter investimento. E o Governo está querendo retirar recursos da Saúde em 2021″, afirma.
A vacina da AstraZeneca ―a principal aposta do Governo até o momento― deve refazer testes após um problema de falta de transparência sobre os dados preliminares. Novos dados apresentados sobre seu estudo geraram dúvidas sobre sua autêntica eficácia. Isso deve acarretar atrasos no seu registro, mas o Brasil diz que não modifica seu planejamento. O Ministério da Saúde dialoga com outros laboratórios, mas mesmo assim já admitiu que não deverá oferecer a vacina da covid-19 a toda a população em 2021. A estratégia, assim como na imunização contra a gripe, será a de definir grupos prioritários com base em mortalidade, exposição e análise epidemiológica. “O fato de determinados grupos da população não serem imunizados não significa que não estarão seguros, porque outros grupos que convivem com aqueles estarão imunizados e dessa forma não vão ter a possibilidade de se contaminar”, afirma o número 2 da pasta, Élcio Franco.
O risco de desigualdade na vacinação
As vacinas só poderão ser distribuídas nacionalmente pelo SUS se tiverem aval da Anvisa e forem implementadas pelo Governo Federal. São Paulo, por exemplo, pode incluir a Coronavac em seu programa, mas não pode distribuir para outros Estados. Nesse sentido, há um risco de que haja desigualdade na distribuição das vacinas, já que Estados mais pobres podem não ter recursos para adquiri-las. Isso já aconteceu no país, mas nos últimos anos o programa nacional foi ganhando robustez e promovendo campanhas unificadas e amplas de imunização. “O Governo Federal deve garantir calendário mais amplo possível. Até porque o Estado isolado dificilmente vai ter força para garantir a transferência de tecnologia”, argumenta Padilha. Por enquanto, o Governo de São Paulo não diz se trabalha com um plano próprio ou se esperará as diretrizes do Governo Federal. Afirma apenas que trabalha nas estratégias de vacinação e que elas serão divulgadas no momento oportuno.
Enquanto isso, a pandemia volta a ganhar força no Brasil. O ministro Pazuello admitiu nesta semana novos “repiques” de infecções, especialmente nas regiões Sul e Sudeste, mas não apresentou novas ações para conter os contágios. A estratégia continua voltada ao tratamento de pessoas já infectadas. O país segue falhando em uma política de controle e rastreio de casos, mesmo dispondo de um amplo exército de agentes de saúde, presentes em praticamente todos os municípios. O ex-ministro Mandetta chegou a justificar que, no início da crise, essa estrutura não foi utilizada para o rastreio porque havia escassez de equipamentos de proteção individual e testes.
Mas nove meses e duas trocas de ministros depois, o país continua sem uma política efetiva de controle de casos. E quase sete milhões de testes RT-PCR que poderiam ser usados para controlar a pandemia estão vencendo nos estoques do Governo, conforme noticiou o Estadão. O Ministério da Saúde diz a empresa responsável pelos testes já pediu a prorrogação da validade desses insumos à Anvisa e que monitora o caso. Os testes venceriam em dezembro e janeiro. A pasta também diz que não há risco de falta de testes. “Estamos repetindo os mesmos erros. No começo do ano, a gente demorou a reagir. De novo, vemos aumento de casos na Europa e também não nos preparamos para o aumento que chegaria aqui. Nunca tivemos um planejamento realmente organizado, centralizado, e direcionado pelo Ministério da Saúde. Passaram-se nove meses. Não deu tempo até agora de termos um plano de enfrentamento?”, questiona a microbiologista Natalia Pasternak.
Sergio Lamucci: Um país cada vez mais isolado
Com a derrota de Trump nas eleições americanas, o Brasil fica distante de todas as principais potências globais
Novembro foi mais um mês em que o presidente Jair Bolsonaro se esforçou ao máximo para criar incidentes diplomáticos com parceiros comerciais importantes do Brasil, contando ainda com a ajuda de seu filho Eduardo Bolsonaro para a tarefa. Como resultado desse empenho, o país está cada vez mais isolado no cenário externo, especialmente por causa da política ambiental. Para Matias Spektor, professor da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), é o momento em que as relações exteriores do Brasil “estão mais deterioradas” desde a transição para a democracia.
Há pouco menos de 20 dias, Bolsonaro ironizou Joe Biden, o vencedor das eleições nos EUA. Ao comentar declarações do americano sobre eventuais sanções ao Brasil por causa do desmatamento da Amazônia, o brasileiro lançou uma bravata, dizendo que “apenas pela diplomacia não dá” e que “depois que acabar a saliva, tem que ter pólvora - não precisa nem usar a pólvora, tem que saber que tem”. Na semana seguinte, ameaçou divulgar o nome de países que comprariam madeira ilegal do Brasil. Ele voltou atrás, mas já havia causado outro mal estar com países europeus.
Por fim, Eduardo Bolsonaro provocou mais um ruído nas relações com a China na semana passada. Presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, o filho do presidente escreveu que o governo apoiou a aliança “Clean Network”, lançada por Donald Trump, por ser uma frente global para um “5G seguro, sem espionagem da China”. Eduardo apagou a publicação, que recebeu resposta agressiva da embaixada chinesa, advertindo para “consequências negativas” dessa retórica.
Com a derrota de Trump nas eleições americanas, o Brasil fica distante de todas as principais potências globais. Até o momento, Bolsonaro não fez nenhum gesto em direção a Biden. O brasileiro é um dos poucos chefes de Estado ou de governo a não ter cumprimentado o americano pela vitória. Ontem, Bolsonaro disse ainda que tinha informações de que houve “muita fraude” nas eleições americanas.
Spektor diz que a “relação interpessoal entre Bolsonaro e Biden será difícil, tendo em vista a “reação visceral” que o brasileiro “provoca no Partido Democrata de modo específico, mas também “na classe política americana de modo mais geral”. Segundo ele, não se trata apenas do meio ambiente, mas também dos valores que o brasileiro representa, vistos no contexto americano não só “como antiquados, mas como politicamente incorretos”.
O mal estar em relação ao Brasil não se resume à política ambiental, mas esse será o terreno em que o país tende a enfrentar maiores problemas com os EUA. A nomeação do ex-secretário de Estado John Kerry como czar do ambiente mostra a importância central que o tema terá no governo Biden, diz Spektor. “O meio ambiente será para Biden o que a reforma do sistema de saúde foi para Barack Obama no primeiro mandato” avalia ele, observando que isso coloca o Brasil numa situação muito difícil, num momento em que se consagrou a ideia e a imagem do país como um “vilão do clima”. Para Spektor, reverter essa tendência demandaria um esforço muito forte do Brasil, algo que até o momento o governo Bolsonaro não parece disposto a fazer.
Para Spektor, há “um risco enorme” para as exportações brasileiras por causa desse tema. “O mundo está avançando numa direção na qual as normas internacionais de preservação ambiental não serão implementadas pelo Conselho de Segurança da ONU, pela Otan, por um país invadindo o outro. O processo de implementação será feito via regras comerciais. É nos acordos comerciais que os países vão sentir a pressão para se adequarem”, afirma ele, para quem já parece “contratada” essa crise do comércio exterior brasileiro. Ou o Brasil se adapta a essas normas e dá uma sinalização clara de que está em conformidade com elas ou o setor exportador brasileiro arcará com esse custo, diz Spektor. Segundo ele, para todos os efeitos, os países europeus não vão ratificar neste momento o acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul.
O governo Bolsonaro também tem se especializado em criar ruídos com a China, o principal destino das exportações brasileiras. Spektor diz que, nesse front, “o que está em jogo agora, para além da briga pública entre a embaixada chinesa e o deputado Eduardo Bolsonaro, é o papel do Brasil diante da presença econômica chinesa na América Latina”. É o país da região no qual a China enfrenta mais dificuldades, nota ele. “Um exemplo disso é o processo licitatório do 5G. Para onde o Brasil vai avançar deve depender da relação com os EUA, de quanto pressão os americanos colocarão”, diz Spektor. “O Brasil é a principal economia que ainda não tomou a decisão para que lado penderá. A Argentina não tem muita opção, a não ser pender para a China, idem o Chile, idem a Colômbia. No caso do Brasil, ainda há incerteza.”
Dada a orientação do governo Bolsonaro para a política externa e a política ambiental, o isolamento do Brasil se acentua. Para Spektor, é uma tendência que vem de antes de Bolsonaro. “A operação Lava-Jato aumentou muito o isolamento brasileiro na América do Sul, por causa dos efeitos deletérios que teve para a classe política, sobretudo da Argentina, Peru, Colômbia e México”, diz ele. O ponto é que, com Bolsonaro, a tendência de um Brasil isolado se reforçou, afirma Spektor, observando que o brasileiro não foi capaz nem sequer de montar uma coalizão com os governos de direita da região, como Iván Duque na Colômbia ou Sebastián Piñera no Chile. “O nosso isolamento já está contratado, e pelo menos hoje não parece haver um sinal de que essa tendência será revertida. À medida que o tema ambiental ganhar força, essa tendência deve se acirrar”, diz Spektor. Para ele, o Brasil começa a se colocar numa posição um “pouco análoga” a que o país tinha em meados dos anos 1980, quando estava assolado por uma crise ambiental (por fatores como o desmatamento na Amazônia, a poluição em Cubatão e o assassinato de Chico Mendes), uma imagem muito negativa da classe política e uma crise fiscal com implicações inflacionárias.
Para ele, este é o momento em que o país se encontra mais isolado desde a época da transição para a democracia, há mais de 30 anos. “É uma notícia muito negativa para a qualidade de vida dos brasileiros, porque boa parte do bem-estar da população depende ativamente do sistema internacional, da economia internacional, do comércio internacional, da taxa de juros internacional, da capacidade de cooperação em áreas como saúde global no contexto da pandemia”, lamenta Spektor.
Marcelo Godoy: Com Bolsonaro, tropas brasileiras deixam as forças de paz da ONU após 21 anos
Brasil perde projeção do poder nacional e reforça isolamento diplomático do governo, que se compraz em ser pária internacional
Caro leitor,
Na manhã da quarta-feira, dia 2, quando o mestre da fragata Independência executar os toques de apito para o comandante da embarcação, em Beirute, no Líbano, a cerimônia de bordo da Marinha vai marcar o fim de uma era da diplomacia brasileira e de sua Defesa: pela primeira vez em 21 anos o Brasil ficará sem tropa em missões de paz das Nações Unidas.
Desde 2011 o Brasil fazia parte da Unifil, a única força de paz marítima da ONU, responsável pelo patrulhamento das águas territoriais libanesas. A Marinha exercia o comando da missão, que, agora, deve passar para a Alemanha. A Independência foi a última fragata enviada ao Oriente Médio. Ela havia partido, em 8 de março, do Rio, para o Líbano, onde já havia estado em outras duas oportunidades, levando seu helicóptero Super Linx e um grupo de mergulhadores de combate (GruMeC), além de um destacamento de fuzileiros navais. Era o navio capitânia da Unifil quando escapou por pouco da explosão do depósito de nitrato de amônia que devastou a capital libanesa em agosto.
A embarcação, cuja missão era impedir a entrada de armas e materiais ilegais no Líbano, deixará o porto de Bierute no dia 2 e deve chegar ao Brasil em 28 de dezembro. No dia 1.º de janeiro de 2021, o contra-almirante Sergio Renato Berna Salgueirinho passará o comando da força, encerrando assim a participação do País na missão – restarão como capacetes azuis apenas os militares que trabalham como observadores militares em missões individuais, em países como Chipre, Eritreia e Sudão do Sul.
Foi nos anos 1990 que aconteceu a retomada da presença brasileira em forças de paz. Em 1994, duas centenas de paraquedistas brasileiros foram mandados para a Onumoz, a força enviada pela ONU à Moçambique, após o acordo de paz de Roma, entre o governo da Frelimo e a guerrilha da Renamo. Desde 1967, quando se retirara da região de Suez em razão da Guerra dos Seis Dias, o Brasil não participava dessas missões. Então comandante do Contingente Brasileiro em Moçambique (Cobramoz), quando era major, o general Franklimbergue Freitas lembra que a tropa no país africano abriu o caminho na ONU para que a presença do Brasil fosse requisitada em outras oportunidades. "E nós procuramos contribuir com nossa experiência com aqueles que foram para Angola."
A missão seguinte foi justamente em Angola e durou quase três anos, mobilizando 4.485 militares das Forças Armadas e policiais militares. Em 1997, o Brasil ficaria pela última vez sem fazer parte de nenhuma missão de paz. Isso aconteceu por causa da retirada das tropas brasileiras da missão Unavem 3, das Nações Unidas, em Angola, em razão do recomeço da guerra civil entre a guerrilha da Unita e o governo do MPLA. A ausência brasileira duraria pouco mais de dois anos.
O atual período de 21 anos contínuos de missões com tropas se iniciou em 25 de setembro de 1999, quando o então major Fernando do Carmo Fernandes chegou ao Timor Leste, como oficial de ligação do futuro contingente brasileiro com as tropas australianas. A ação na ilha foi autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU, antes da formação propriamente de uma força de paz. Ela devia estabilizar o país, depois de os invasores indonésios – a ocupação do Timor Leste durou 25 anos – terem adotado a política de terra arrasada ao deixar o lugar. Dias depois, 51 homens – um pelotão da Polícia do Exército – desembarcaria em Dili.
Depois do Timor, o País mandou tropas para o Haiti e para o Líbano, como capacetes azuis. Ao todo, 38,2 mil militares brasileiros participaram dessas operações, que não se limitaram ao entorno estratégico do País, compreendido pela América Latina e pela África Ocidental. A presença nessas missões era considerado uma forma de projeção do poder nacional em um momento em que o Itamaraty buscava abrir novos espaços para o Brasil nos organismos internacionais, com reivindicações como a reforma do Conselho de Segurança da ONU a fim de nele obter uma cadeira para o País.
"Havia da parte dos diplomatas e dos militares essa consciência de que essas operações eram complemento indispensável à ação de um país como o nosso, que não tem propriamente poder militar – não somos uma potência nuclear ou convencional", afirmou o embaixador Rubens Ricupero. Diplomatas e militares concordam que a ausência de tropa do País nas forças de paz trará consequências para o Brasil e para suas Forças Armadas.
Na área da Defesa, elas podem afetar a sua modernização por meio da aquisição de experiência e doutrina para o emprego de suas tropas – exemplo disso foi a mudança da logística do Exército brasileiro em operações no exterior depois da experiência do Haiti. Mas não só os militares devem ser sofrer com a retirada. É a própria presença do País no mundo e sua relevância internacional que serão diminuídas. "A força no Líbano era a única presença significativa brasileira em uma área estratégica importante. Dentro do grande jogo, a única que tínhamos era essa.", afirmou Ricupero.
O general Adhemar da Costa Machado Filho, um dos comandantes do contingente brasileiro em Angola, escreveu uma monografia sobre o tema, em 1999, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), no qual afirmava que a participação brasileira nas operações de manutenção da paz proporcionava a "oportunidade de projetar a expressão militar do poder nacional no exterior o que, em última análise, representa um acréscimo da influência do poder nacional no contexto internacional". Passados 21 anos, o general Adhemar mantém sua opinião. "O Brasil tem um perfil que se ajusta muito a essas missões."
O desejo de militares e diplomatas de manutenção de tropas no exterior esbarrou nos gastos. Entre 2004 e 2017, a tropa no Haiti custou R$ 2,6 bilhões aos cofres públicos. De 2011 a 2018, o governo havia colocado R$ 483,5 milhões na Unifil para manter uma fragata, um helicóptero e as tripulações patrulhando as águas do Líbano. Nos últimos anos, gastava-se de R$ 80 milhões a R$ 100 milhões por ano com o contingente da Marinha no exterior, de acordo com dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação. Ao todo, durante os dez anos de operações, quatro fragatas, uma corveta e um navio de patrulha oceânico passaram pelo Líbano.
“A presença do Brasil nessas forças é uma modalidade muito original de soft power por meio de um poder hard sem os inconvenientes do hard power, da imposição da força, pois ela tem um contexto jurídico, sempre aprovado pelo Conselho de Segurança e dentro da carta das Nações Unidas”, disse Ricupero. Para ele, tratava-se de uma "maneira nobre de projetar esse poder".
Mesmo que a da força do Líbano estivesse prevista desde agosto de 2019, quando a Marinha anunciou a medida, o retorno da fragata brasileira acontece no momento em que o Brasil aumenta ainda mais seu isolamento internacional, por meio da política levada à cabo pelo chanceler Ernesto Araújo, que disse se comprazer em ser um pária diplomático. Ao mesmo tempo, o chefe do chanceler afirma ter provas de que houve fraude na eleição de Joe Biden – sem apresentá-las –, acusa a China de querer derrubá-lo com o coronavírus e diz que a Europa quer saquear a Amazônia.
Ninguém sabe qual o propósito de Bolsonaro em escalar crises com praticamente todos os maiores parceiros comerciais do Brasil. "É o sinal dos tempos nos retirarmos do último domínio (as forças de paz) em que tínhamos uma presença multilateral." O Itamaraty não se manifestou sobre o tema e não há notícia de que a chancelaria tenha procurado reverter a decisão sobre as forças de paz. "Esse tipo de atitude está em harmonia com a posição do Ernesto Araújo, que é hostil ao multilateralismo e ao que ele chama de globalismo."
E, assim, é em um governo, como o de Jair Bolsonaro – com um Estado-Maior alojado no Planalto dominando os principais ministérios civis e no qual os militares conseguiram emplacar um projeto de reajuste de salários que preservou a paridade e a integralidade das aposentadorias –, que o abandono das missões de paz punirá, não só os objetivos históricos da diplomacia brasileira, mas também os mais capazes entre os militares, cuja experiência no exterior constituía etapa essencial de sua formação. Em todos os governos há os que fecham os olhos e preferem o dinheiro no bolso, o cargo e os favores dos poderosos. São estes os que causam os desastres nacionais, como os argentinos descobriram nas Malvinas.
Gustavo H. B. Franco: Um acordo de transição
Não, o mercado financeiro não está enxergando nenhum golpe, ou descontinuidade, mas vislumbra ao menos oito boas razões para presumir que a Presidência Bolsonaro iniciada em 2018 vai terminar diferente do que começou
Mesmo antes da derrota de Donald Trump parecia que o Brasil passava por uma transição, como se a segunda metade da Presidência Jair Bolsonaro fosse uma mudança de governo, uma sensação curiosa e paradoxal, pois mudança mesmo só teremos mais adiante, depois das eleições de 2022, ou não.
Entretanto, a “sensação de transição” foi se acentuando nas últimas semanas.
O problema começou com dificuldades com (a rolagem de) a dívida pública (os deságios nas LFTs), um clássico sinalizador de problemas em transições (o sujeito não quer comprar um título de um governo que vai ser pago, ou não, pelo próximo).
O Tesouro e o BCB têm experiência nesse assunto, sabem trabalhar de forma tópica, mas não são capazes de eliminar as dúvidas ensejadas por uma transição. Só o novo governante é capaz de fazê-lo.
Bem, como o novo governante é o mesmo, não deveria ser tão complexo. Porém, é fato que estamos experimentando a “sensação de transição” no meio do mandato presidencial. O que pode estar produzindo essa distorção?
Não, o mercado financeiro não está enxergando nenhum golpe, ou descontinuidade, mas vislumbra ao menos oito boas razões para presumir que a Presidência Bolsonaro iniciada em 2018 vai terminar diferente do que começou:
- O ocaso do populismo em escala global, iniciado nos EUA e criando um vento de fim de festa na Hungria como em Brasília;
- Uma segunda onda de covid, ou simplesmente o desdobramento da primeira, com amplos impactos em escala global, e impactos relevantes na recuperação que o País vinha experimentando;
- Mudanças nas lideranças das duas Casas legislativas e, consequente, revisão da equação de apoio parlamentar do governo. Talvez mesmo com reforma ministerial para atender ao “Centrão”.
- O ministro da Fazenda parece uma sombra de si mesmo, não é mais o “infiltrado liberal”, mas alguém mais organicamente ligado ao projeto de poder da família Bolsonaro. O ministro não vai cair, mas não é mais o mesmo, ou ao menos, não é mais atacante nas pautas reformistas, mas um “meia de contenção”, focado em evitar retrocessos. O casamento arranjado com os liberais terminou, pois as entregas em matéria de privatização, abertura e reformas mais profundas foram pífias;
- O fim dos auxílios emergenciais, sem que se saiba o que vem no lugar;
- O fim das linhas especiais, e de outras tantas providências dependentes da vigência do estado de calamidade que se encerra oficialmente em 31 de dezembro;
- Novos patamares de déficit primário e de dívida pública, o primeiro ultrapassando R$ 800 bilhões, e a segunda se aproximando de 100% do PIB.
- Recrudescimento da inflação que, em novembro, pelo IGPM, alcançou estonteantes 24,52% no acumulado de 12 meses;
Portanto, é como se a segunda metade tivesse se convertido no segundo governo Bolsonaro, e com desafios econômico aterradores.
Bem, o Brasil possui uma larga experiência em transições turbulentas, normalmente de um governo para o outro, não dentro do mesmo, para as quais a receita canônica é um acordo com o FMI. Uma das funções mais importantes, e menos faladas, desse tipo de acordo é a de terceirizar culpas, bem como responsabilidades sobre medidas que precisam ser tomadas, que se tornam imperativos de um tratado internacional, e que seriam inexecutáveis fora disso.
Será que é o caso?
Bem, é claro que o FMI, nesse caso, funciona apenas como um exercício retórico.
Nosso problema agora é fazer um acordo com o FMI, sem o FMI, um acordo do Brasil com ele mesmo. É fácil em tese, mas dificílimo de fazer, no atual estado de polarização, quando o governo está tão isolado que não consegue fazer acordo nem com ele mesmo.
Há sobre a mesa um desafio gigante e urgente, no terreno fiscal, de conciliar uma versão prática e socialmente aceitável da ideia de responsabilidade fiscal, que compreenda a preservação do teto (uma “última defesa” já bastante combalida), com iniciativas que coíbam um aumento catastrófico do desemprego e a volta da inflação.
O verbo aqui é conciliar, um que o governo não costuma conjugar, e para o qual não estava preparado.
* EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS
João Gabriel de Lima: O telefonema de Kennedy e os tuítes do Carrefour
O crime recente envolvendo racismo no Brasil poderá influenciar pleitos municipais?
Uma história envolvendo racismo mudou uma eleição e, no longo prazo, toda a política americana. No dia 19 de outubro de 1960, três semanas antes do pleito presidencial que opôs John Kennedy a Richard Nixon, um grupo de ativistas negros invadiu uma loja de departamentos no sul dos Estados Unidos. Era um protesto contra a segregação racial no restaurante da loja.
Todos foram presos e soltos em seguida. Menos um: o reverendo Martin Luther King Jr., maior ativista de direitos civis da história americana. Dias mais tarde, ele seria transferido para uma prisão de segurança máxima. Coretta, mulher de Luther King, entrou em desespero. Temia que o marido fosse vítima de violência dentro da cadeia. Ela ligou para Harris Wofford, conselheiro da campanha de Kennedy. Wofford – que narra o fato num episódio da série Race for The White House, produzida pela CNN – disse que ia ver o que poderia fazer.
Em 1960, o partido mais próximo do movimento dos direitos civis era o Republicano. Os democratas eram identificados com movimentos racistas do sul, entre eles a Ku Klux Klan. Nixon conhecia Luther King pessoalmente, e ligou para a Casa Branca pedindo que intercedessem pelo ativista. Não foi atendido. Nixon ficou em silêncio – não quis fazer uma declaração pública sobre um assunto tão delicado. Bob Kennedy, irmão de John e coordenador de sua campanha, defendia que os democratas também deveriam guardar silêncio para não afastar os eleitores do sul. Wofford sabia disso. Fez com que a informação sobre Coretta chegasse a John por meio de um assessor, sem que Bob soubesse.
Num misto de impulso e cálculo político, John ligou para Coretta e apresentou sua solidariedade. A imprensa noticiou o fato, e Bob ficou irado, achando que o gesto custaria a eleição do irmão. Pouco depois, percebeu que havia ali uma oportunidade. Passou ele próprio a defender Luther King. O ativista foi solto, e o voto dos negros americanos acabou sendo decisivo para que Kennedy ganhasse uma eleição apertada contra Nixon. Os democratas, que tinham a pecha de racistas, viram seu partido se tornar, aos poucos, o campeão dos direitos civis.
Mudanças de trajetória em partidos políticos são comuns nas democracias, já que eles existem para representar tendências e ideias que surgem na sociedade. No minipodcast da semana, o cientista político português António Costa Pinto fala sobre o assunto. Conhecedor da vida americana – ele lecionou em Stanford e Berkeley – Costa Pinto aponta os novos desafios dos democratas. No século 21, o partido deu outra virada, tornando-se a sigla da nova economia e dos jovens urbanos. No caminho, perdeu os operários e a classe média dos rincões. Precisa recuperá-los na guerra contra o derrotado (mas ainda bem vivo) Donald Trump.
Em tempos de eleições, o telefonema de Kennedy deixa uma pergunta no ar. O episódio recente envolvendo racismo no Brasil – o crime do Carrefour – poderá influenciar os pleitos municipais? A resposta, ao que tudo indica, é negativa. O País não se dividiu. A imensa maioria dos candidatos, da esquerda à direita, de Sebastião Melo a Manuela D’Ávila, de Guilherme Boulos a Bruno Covas, tuitou contra o crime bárbaro e nomeou sua motivação: racismo. Sessenta anos se passaram entre o telefonema de Kennedy e os tuítes do Carrefour. O racismo não morreu, mas algo mudou na política. Uma vitória do movimento dos direitos civis.
Juan Arias: Novo ministro do Supremo de Bolsonaro surpreende com defesa do Estado laico
Magistrados como Kassio Nunes Marques devem ser terrivelmente fiéis à Constituição, sem maracutaias políticas que acabam manchando a lei
O presidente Jair Bolsonaro havia anunciado que a primeira nomeação de um novo magistrado do Supremo Tribunal Federal seria alguém “terrivelmente evangélico”, o que criou preocupação visto que o Brasil, pela Constituição, é um Estado laico. O novo ministro do STF, Kassio Nunes Marques, porém, surpreendeu, na última quarta-feira, ao defender enfaticamente a laicidade do Estado, que deve respeitar todas as confissões religiosas igualmente sem se identificar com nenhuma.
Segundo Nunes Marques, “a laicidade do Estado não significa Estado ateu, mas Estado de todas as religiões e de religião alguma”. E acrescentou que “o fato é que o Estado não deve professar religião alguma e que se manter neutro não significa manter uma postura hostil ou impeditiva da religiosidade”.
A postura impecável do novo magistrado na defesa da laicidade do Estado contrasta com a ideia quase obsessiva de Bolsonaro desde que era um simples deputado, quando defendia que o Estado brasileiro não é laico, mas cristão. “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico, não”, gritou durante a campanha eleitoral, acrescentando: “o Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”.
Não é descabido pensar que o sonho de Bolsonaro e dos pastores evangélicos, que já têm três partidos próprios no Parlamento e estão presentes em outros 16, é mudar a Constituição para eliminar sua laicidade e trocá-la pela Bíblia, para criar uma espécie de República islâmica.
E o sonho dos evangélicos, que passam de 30% da população, sempre foi ter um presidente deles. Até agora só conseguiram que um deputado, o pastor Marco Feliciano, presidisse a importante Comissão Parlamentar de Direitos Humanos. O pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, já havia profetizado que “era a vontade de Deus que um evangélico chegasse à presidência”.
Com Bolsonaro o conseguiram só pela metade, pois na verdade sempre foi católico e se fez rebatizar na Igreja Evangélica por cálculos eleitorais, já que essas igrejas poderosas movimentam milhões de votos sob o lema “o irmão vota no irmão”.
Todos os presidentes até agora nas campanhas eleitorais tiveram que se render aos evangélicos e se ajoelhar para pedir sua bênção, inclusive a candidata agnóstica Dilma Rousseff, escolhida por Lula para substituí-lo. Dilma foi obrigada, para não perder o voto dos evangélicos, a enviar-lhes uma carta se comprometendo a não tocar na lei contra o aborto durante seu mandato. Dilma foi eleita e cumpriu sua promessa.
O deputado Feliciano, que foi coroinha aos 13 anos na Igreja Católica e se converteu ao evangelismo quando conseguiu sair do mundo das drogas, hoje é um evangélico que chega a dizer que “os católicos adoram Satanás e têm seus corpos entregues à prostituição”.
No Brasil, o reino de Deus é cada vez mais deste mundo. As igrejas evangélicas e pentecostais atuam cada vez mais como um tea party à brasileira.
O pastor Feliciano, que dirige uma das igrejas mais importantes, chegou a dizer que os africanos carregam uma maldição divina desde os tempos de Noé, que faz com que vivam na miséria.
Ainda é cedo para saber se o novo ministro do Supremo, Nunes Marques, se manterá firme na defesa da Constituição e do Estado laico. E ainda é difícil saber o que Bolsonaro pensou da defesa da laicidade do Estado feita por seu magistrado. Como é cedo para saber se, em se tratando de assuntos que dizem respeito ao delicado tema das denúncias de corrupção da família Bolsonaro, o novo magistrado continuará sendo coerente com seu juramento de defender a Constituição em vez de ser um lacaio do presidente que o escolheu a dedo.
Para não cair no pessimismo, prefiro pensar que o presidente tenha ficado decepcionado com seu novo ministro e que este preferirá não sujar sua carreira de alto jurado da mais alta corte e, como acaba de fazer, seja fiel à Constituição.
Prefiro pensar que essa defesa aberta da laicidade do Estado estabelecida na Constituição continue alinhada com a independência que todo magistrado do Supremo deve ter, o que nem sempre tem sido o caso, pois levou não poucas vezes a relações espúrias entre alguns magistrados e o mundo político, ao que tantas vezes se dobraram, traindo a importante separação entre as instituições que devem ser independentes, como exige a Constituição.
Mais do que “terrivelmente evangélicos”, os magistrados do Supremo devem ser terrivelmente fiéis à Constituição, sem maracutaias políticas que acabam manchando a Carta Magna dos brasileiros.
Raul Jungmann: 5G - Politização e interesse nacional
Esta semana, mais uma vez, tivemos um conflito diplomático entre o Brasil e China, motivado por um tuite desrespeitoso e irresponsável do Presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara seguida de resposta do embaixador da China.
Os países mais avançados na introdução de tecnologia 5G são a Alemanha, China, Coreia do Sul, EUA e Japão. Existem atualmente 40 operações comerciais de 5G em 16 países, conduzidas por duas dezenas de operadoras.
O Brasil é um player de peso no comércio global das tecnologias de informação e comunicações e nas principais instâncias da governança cibernética. Somos, depois da China, Índia e EUA, o quarto maior usuário global da Internet. Entre 2000 e 2017, o percentual da população brasileira com acesso à Internet evoluiu de 3% para 67,5%.
A companhia chinesa Huawei é hoje a principal ofertante de serviços 5G, com preços de mercado mais vantajosos do que as outras duas concorrentes, Nokia e Ericsson. O governo dos EUA pressiona seus parceiros econômicos a não adquirir os produtos e serviços de 5G da Huawei, sob a argumentação de que eles trariam graves riscos securitários.
Países influentes nas agendas econômica e securitária globais, como Alemanha, Coreia do Sul, França, Índia e Reino Unido têm indicado, entretanto, intenção de não desconsiderar a priori quaisquer das ofertas de 5G, inclusive da Huawei, desde que atendidos os objetivos nacionais de desenvolvimento tecnológico e critérios de segurança.
Contrariando essa tendência, o Reino Unido e a Suécia reviram sua decisão recentemente e colocaram impedimentos para a participação da Huawei em projetos de 5G.
Em junho de 2019 o Ministério da Ciência Tecnologia e Inovações divulgou a Estratégia Brasileira de Redes de Quinta Geração. Em 31/10/2019, foi instaurado Grupo de Estudo sobre a tecnologia 5G.
O principal objetivo do grupo é subsidiar o Governo federal para a adoção de um ecossistema 5G que atenda aos requisitos de maior cobertura nacional possível, prestação eficiente de serviços, fomento à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico e segurança das infraestruturas críticas e cadeias de produção.
A Anatel e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) têm defendido o princípio de neutralidade tecnológica. Em fevereiro de 2020, a Anatel aprovou proposta de edital de leilão 5G.
O leilão deverá movimentar R$ 20 bilhões em arrecadação e investimentos. Após sucessivos adiamentos, a estimativa do Presidente da Anatel é a de que o leilão ocorra no primeiro semestre de 2021.
Ideologizar e/ou politizar essa decisão estratégica e seguir um dos lados em disputa, EUA ou China, e não o interesse nacional é desservir ao Brasil.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Roberto DaMatta: Americanização do Brasil
Estados Unidos ‘brasilianizados’ seriam marcados por ruidosa desigualdade
Quando falei “americanização”, pensei imediatamente numa correspondente “brasilianização” dos Estados Unidos.
A expressão causou barulho quando, em 1995, Michael Lind publicou o livro “The Next American Nation” (“A próxima nação americana”). Nele, o professor aponta o brutal enriquecimento dos americanos ricos, ancorado em políticas do Partido Democrata.
Esses bilionários não formariam apenas uma “classe dominante”, mas uma “sobre-classe branca”: um segmento dotado de um poder jamais visto. Sua contrapartida seria uma “subclasse pobre-negra-asiática e marrom”. Nesse novo modo de dominação, o ideal não seria mais construir uma bíblica “cidade sobre uma montanha”, mas o egoísmo de possuir uma “mansão atrás de um muro”.
É nesse contexto que Lind alerta para uma “brazilianization” da sociedade americana: “uma anarquia feudal, altamente tecnológica, constituída por um privilegiado arquipélago de brancos em meio a um oceano de pobreza branca, negra e marrom”; uma riqueza sustentada por políticas erradas (porque seriam antiestatais), sobretudo no que diz respeito à imigração.
Eis, numa cápsula, o programa de um Trump que começou a construir o muro, focou nos brancos pobres e adotou o “primeiro a América”. Um programa político que o elegeu e hoje — graças à eleição como um rito de mudança, cujo resultado foi raramente posto em dúvida na América —vai tirá-lo (assim espero) da Casa Branca.
Mas, tanto lá quanto cá, persiste uma curiosa inversão. De fato, uns Estados Unidos “brasilianizados” seriam marcados por uma ruidosa desigualdade e por um desmesurado personalismo populista — uma americanização do nosso “Você sabe com quem está falando?”; ao passo que um Brasil americanizado seria o exato oposto: uma contenção dos impulsos personalistas, fonte e razão de populismos autoritários, ao lado de uma busca de programas públicos responsáveis e factíveis. No fundo, um inesperado e americano “Quem você pensa que é?” — num país em que toneladas de privilégio neutralizam todas as éticas — jamais foi seriamente dirimido.
Todo centralismo repete a realeza e se concretiza na figura de um chefe parecido com “O grande ditador” chapliniano. Um filme, aliás, cujo enredo se funda num engano de pessoa, infelizmente muito mais real do que pensa a nossa vã sociologia.
Não é, pois, difícil encontrar um presidente mandão ou, como diria um puxa-saco, um “presidente forte” — esse eufemismo para estilos absolutistas de exercer um poder que, em repúblicas que se prezam, é periodicamente contido pela eleição. O chocante no caso de Trump não é só o negacionismo ou o uso de argumentos conspiratórios fantasiosos. O que assombra é a tentativa de usar o “Você sabe com quem está falando?” num sistema fundado na igualdade de todos perante a lei.
Conforme revelei há décadas e reitero num novo livro — “Você sabe com quem está falando? Estudos sobre o autoritarismo brasileiro”, Editora Rocco —, esse brasilianismo é um relativizador agressivo de normas, costumes e leis que valem para todos; menos, é claro, para quem se acha…
Como é possível que tal personalismo —populista e hierarquizador, resíduo da escravidão que estigmatizou o trabalho como valor no Brasil —esteja ocorrendo num sistema obcecado em seguir normas, essa fonte de igualdade, conforme assinalou, em 1835-40, Alexis de Tocqueville?
E, ao inverso, como é possível que nestas eleições estejamos buscando o difícil equilíbrio entre regras e pessoas, programas realizáveis e utopias populistas, gastos públicos responsáveis e corrupção?
Lá, o personalismo é o hospede não convidado. Aqui, a intrusiva novidade é a luta pela eliminação das enormes desigualdades, responsáveis por mazelas como um entranhado racismo e uma tragicômica hipocrisia política. Minha esperança é que a “americanização” do Brasil seja tão bem-sucedida quanto a “brasilianização” dos Estados Unidos.
P.S.: Toda negação da realidade espanta porque é uma manifestação de poder e privilégio real ou imaginário de quem a realiza. Todas as sociedades humanas, como provam crenças e hinos nacionais, contêm sua dose de etnocentrismo. É deplorável que o vice-presidente não saiba que a diversidade de cor (que não pode ser mudada como as fardas, insígnias e roupas) provoque reações que vão — esse é o objeto da antropologia — da total desumanização e de um denso e inconsciente preconceito à segregação física e legal, como foi o caso americano e da África do Sul. Nosso “racismo estrutural” é o resíduo abjeto de um estilo senhorial e escravocrata de vida que, pela chibata, pelo contato pessoal e pelo pelourinho, transformava negros em mercadorias, máquinas e animais. Com a devida vênia, sou — por dever de ofício — obrigado a dizer que o general Mourão não está apenas errado. Está, histórica e culturalmente, míope.
*É historiador e antropólogo social, autor de ‘Fila e Democracia’