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Oliver Stuenkel: Política antiglobalista de Bolsonaro tem um preço
Com derrota da Donald Trump, Brasil fica ainda mais isolado em sua política radical e negacionista
Desde que assumiu a presidência, Jair Bolsonaro executa uma política externa precisa e disciplinada, cujo objetivo é manter sua base mobilizada. Trata-se de uma postura internacional feita sob medida para a cozinha de casa, e não para o mundo lá fora. Atitudes como não parabenizar o novo líder argentino, alegar que Joe Biden venceu as eleições de maneira fraudulenta, atacar a ONU, Xi Jinping, Emmanuel Macron e quem mais aparecer pela frente integram uma retórica cuidadosamente articulada para atiçar os ânimos de sua torcida. Ter se aproximado do Centrão e se afastado do discurso anticorrupção e antissistema fez com que o presidente dependesse ainda mais desses comentários bombásticos para garantir a fidelidade de seus seguidores mais radicais.
Mas a política antiglobalista tem um preço. Em dois anos de mandato, Bolsonaro deteriorou praticamente todas as relações do País. A reputação nos quatro mercados mais relevantes para a economia brasileira – o chinês, o norte-americano, o europeu e o latino-americano – é a pior em décadas. Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, a retórica antiambientalista fortalece aqueles que se opõem a uma aproximação com o Brasil. Em círculos diplomáticos europeus, fala-se abertamente que o presidente brasileiro é o pior inimigo da ratificação do acordo comercial com o Mercosul. Fora os nacionalistas da Hungria, Polônia e Eslovênia, não há um único chefe de Estado da União Europeia que receberia uma visita oficial de Bolsonaro hoje em dia.
Com a onda ambientalista que vem dominando a política europeia, cresce o risco de boicotes mais amplos contra os produtos daqui. Isso ocorre não só pelas escolhas problemáticas do presidente no campo interno, mas também porque Jair Bolsonaro abriu mão de uma arma poderosa da qual os governos anteriores dispunham. Ao rifar as relações externas para manter sua popularidade interna, o presidente atou as mãos de um dos Ministérios de Relações Exteriores mais sofisticados do mundo. Até poucos anos atrás, o Itamaraty servia de escudo para a reputação do País no exterior mesmo em momentos em que o governo brasileiro estava obviamente errado. Essa proteção foi crucial em crises como os massacres do Carandiru e da Candelária, em 1992 e 1993, ou quando as taxas de desmatamento tiveram uma aceleração, nos anos 1990 e 2000. Enquanto um chanceler normal mobilizaria as missões brasileiras no exterior para reagir à crise de reputação, o atual chefe do Itamaraty amplia o isolamento ao defender teorias conspiratórias, e faz tempo virou chacota mundial.
Se antes a atuação independente do Itamaraty ajudava a reparar os danos de catástrofes nacionais, hoje o órgão encontra-se escanteado por um governo que ofusca até o que deveria capitalizar. Avanços com a reforma da Previdência de 2019 foi o grande exemplo disso. Em vez de ficar calado e deixar que uma medida celebrada pelos mercados ganhasse visibilidade na imprensa especializada, Bolsonaro lançou uma bomba que deixou o assunto em segundo plano: a tentativa de emplacar seu filho como embaixador nos EUA.
Com a vitória de Biden, o risco econômico da política bolsonarista tende a aumentar ainda mais. As nomeações do democrata sugerem que o tema ambiental será um pilar de seu mandato tanto no âmbito interno quanto no externo. A futura secretária do Interior, Deb Haaland, tem sido uma das críticas mais ferrenhas da política ambiental do presidente brasileiro. O desmatamento da Amazônia foi citado por Biden ainda em campanha. Na ocasião, Bolsonaro foi ao Twitter dizer que a soberania nacional não seria negociada. O atrito dá uma amostra do que vem pela frente na relação com os EUA. Para piorar a situação, é provável que o governo Biden coordene sua política ambiental com a União Europeia.
A derrota de Trump deixa o Brasil ainda mais isolado em sua política radical e negacionista. Antes ofuscadas pela atuação do colega americano, as patacoadas de Bolsonaro devem ganhar ainda mais atenção negativa dos observadores internacionais. Tivemos uma prévia disso logo em dezembro, quando ele virou notícia internacional por ser o último líder de um país democrático a parabenizar Joe Biden pela vitória.
Em 2021, cada aparição de Bolsonaro no noticiário internacional será um risco para a já combalida economia brasileira. O mesmo se estende ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e ao Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. No caso desses dois, sua mera permanência no cargo já contamina qualquer tentativa de apaziguar investidores europeus e americanos preocupados com o desmatamento.
Se em 2019 Hamilton Mourão e Tereza Cristina foram a Pequim tentando desfazer o mal-estar causado pela retórica anti-China, em 2021 já não existe campanha publicitária ou iniciativa de quadros mais moderados que possa consertar a imagem tóxica da ala radical do governo.
A substituição de Salles e Araújo reduziria o risco de boicotes, fugas de investidores estrangeiros e complicações na ratificação de acordos comerciais. O problema é que eles representam dois grupos-chave de sustentação do governo: ruralistas e antiglobalistas. Sobretudo no caso de Salles, a facilitação do desmatamento e o desmonte das estruturas de fiscalização estão no cerne do programa bolsonarista. Desistir disso complicaria as relações do governo com uma parte obtusa, porém importante, do setor ruralista.
Em meio a essa confusão, avanços diplomáticos como a entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) já são improváveis, e os riscos de reputação do País inevitavelmente entrarão na conta de qualquer investidor. O País está aprendendo de um jeito doloroso que a imagem externa é uma abstração com consequências bastante reais, e que doem no bolso.
* COORDENADOR DA PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV-SP
Conteúdo Completo:
A vida de milhões de pessoas vai piorar em 2021
Os desafios da economia em 2021
Nunca estivemos tão perto e tão longe da reforma tributária
Política ambiental é entrave ao crescimento
Privatização mesmo só veremos nos governos estaduais
Reforma administrativa é a agenda que precisa caminhar
O governo Bolsonaro precisaria se reinventar, mas isso é muito improvável
O grande risco para o Brasil este ano é interno, e não externo
Política antiglobalista de Bolsonaro tem um preço
O que é bom para os EUA nem sempre é bom para o Brasil
Vinicius Torres Freire: Brasil ainda pode ter sucesso com a vacina e alta do PIB com mais miséria em 2021
Como será possível vacinar contra Covid e gripe ao mesmo tempo?
É fácil fazer previsão. Difícil é acertar. Desde o começo do século, dois terços das previsões de crescimento da economia feitas em dezembro (para o ano seguinte) estavam muito erradas: não ficaram nem dentro do intervalo das estimativas mínima e máxima de “o mercado”.
Talvez seja útil mencionar obviedades importantes para o que vai ser de 2021. O óbvio não tem charme, mas quebramos a cara quando não nos damos conta de que ele é o muro adiante das nossas fuças.
VACINAS. O Brasil pode vacinar 1,5 milhão de pessoas por dia ou mais, em esforço de guerra (se não precisar usar essas supergeladeiras para vacinas modernas). Em tese, daria para vacinar todo o mundo com mais de 18 anos em quatro meses.
Butantan e Fiocruz dizem que podem produzir 1,3 milhão de doses por dia a partir de fevereiro (menos que isso em janeiro, mas mais no segundo semestre), bastantes para vacinar 650 mil pessoas por dia.
Desde que a eficácia e/ou efetividade dessas vacinas não seja uma porcaria e os crimes de Jair Bolsonaro não atrapalhem muito, lá por outubro daria para ter acabado o serviço. Bem antes, haveria grande alívio: daria para quase acabar com o morticínio de idosos, liberar os hospitais, reduzir custos do combate à doença, animar a economia etc. Problema de que pouco se fala: como será possível vacinar contra Covid e gripe ao mesmo tempo?
MISÉRIA. O número de novos miseráveis pode aumentar de 10 milhões a 20 milhões (sem auxílio e sem trabalho). Parece que o país se esqueceu dessa tragédia que começa já neste mês.
INFLAÇÃO: chegará a 6% ao ano em junho. Por mês, deve crescer mais devagar agora, mas o estrago acumulado em 12 meses chegará a isso. É uma dentada na renda real, na capacidade de consumo, da metade mais pobre do país em particular.
TETO. Essa inflação vai permitir um aumento considerável de gasto federal em 2022 (6%). Vai ser difícil manter o teto em 2021 (mas haverá gambiarras). Em 2022, o teto pode se manter graças à contribuição imprevista da inflação. Vantagem para Bolsonaro.
PIB PARA RICOS. Se governo e Congresso não arrumarem confusão maior com o teto, é possível que a economia cresça uns 4% em 2021, dados os juros baixos, os preços de commodities em alta, o dólar menos caro e o crescimento menor do que o previsto da dívida pública, afora acidentes.
Não se quer dizer que o teto seja intocável, mas é grande a chance de, agora, a emenda ser pior do que o soneto. De resto, 4% de crescimento nem repõe o que se perdeu em 2020. Mas pode ser o bastante para remediar a vida de metade da população.
É para pensar: o prestígio de Bolsonaro pode se manter perto de onde está, a depender do sucesso da vacinação, que ele pode faturar sem ter feito nada, e dos miseráveis (vão morrer de fome quietos?).
ELEIÇÃO NA CÂMARA. Desde meados do ano, era óbvio que a disputa pelo comando da Câmara dos Deputados seria crucial e emperraria o Congresso. Se a turba de Bolsonaro vencer, facilita o projeto autoritário. A depender de quem ganhar, vai haver mais ou menos “reformas”, que não serão grande coisa.
REFORMAS. Alguém acha que o Congresso vai arrochar os servidores? Esse é o núcleo da PEC “emergencial”, o arremedo de plano fiscal do governo. Alguém acha que o Congresso vá aprovar reforma tributária “profunda” (que provocaria crise com setores como serviços, entre outros conflitos)? Se eu fosse jogar na “Mega das Reformas”, apostaria no seis por meia dúzia, reforminhas.
Este jornalista prevê também que volte de férias em fevereiro.
Fernando Henrique Cardoso: Annus horribilis
Num ano terrível, a democracia triunfou nos EUA, um alento para seguirmos lutando para melhorar a vida da maioria
Mal escrevi o título deste artigo (usando o pouco latim de que ainda me recordo), e já me arrependi. Será mesmo, ou o ano que nos espera à frente será ainda pior? Difícil imaginar, mas não impossível. É certo que a pandemia, o novo coronavírus, mata sem piedade e... Não só os mais velhos, molesta também os mais jovens; o que piora a situação. Também é certo que nos tocou um governo com pouca imaginação e que olha o país por um espectro curto. Mas, se olharmos para o mundo, pelo menos não houve guerra global, e a recessão, embora forte, não é comparável com outras crises que paralisaram os negócios internacionais. Enfim, sem “panglossismo”, bem-feitas as contas, o ano foi mal, mas poderia (como quase sempre) ser pior...
Não digo isso para me consolar, ou, quem sabe, apascentar o eventual leitor. Digo porque é preciso olhar para frente com alguma esperança. Sei também que é mais fácil imaginar que “não fosse este governo”, a pandemia talvez não tivesse matado ou maltratado tanta gente. Será verdade? Provavelmente. Mas, o vírus é soez e está dizimando as pessoas, independentemente da qualidade dos governos. Parece uma saída simples “culpar” só o governo (no caso o federal) pelos males que nos afligem. Claro, não é sensato —para dizer o mínimo — trocar tantos ministros da Saúde e nomear, por fim, quem, por profissão, não conhece a matéria. Tão grave quanto isto é considerar os adversários como “inimigos”, jogando o país em divisões imaginárias. E sempre é possível ampliar a lista do que falta aos governantes para que tudo dê certo...
Não é hora, contudo, para o ajuste de contas. A experiência mostra que é melhor esperar que o tempo escoe do que precipitar o fim de governos. Mais um pouco — se o povo não insistir nas antigas preferências e se tivermos a sorte de existir alguém que abra um caminho mais promissor — haverá novas eleições. Mudaremos algo?
Para responder com franqueza, e deixando de lado o que não entendo (fico na torcida pelo fim da pandemia), temo que continuemos a “não ver”. Talvez o maior problema do país seja a desigualdade. E ela “se naturalizou”. Podemos até vê-la e fazer comentários gerais a seu respeito. Mas, no dia a dia, como o problema vem de longe, acabamos por, implicitamente, aceitá-la. E esta talvez seja a maior dificuldade para obter o que, em geral, mais desejamos: que o país continue crescendo economicamente. Na cultura tradicional é como se crescimento equivalesse a melhor distribuição de renda. Existe, é claro, uma relação entre a prosperidade econômica e o bem-estar geral. Mas é enganoso crer que basta a economia crescer para as “questões sociais” se resolverem.
Nos dias que correm, não só a oferta de empregos está reduzida como as transformações tecnológicas do mundo requerem maior capacitação profissional. Torna-se mais visível que educação e saúde são requisitos para a modernização da sociedade e da economia. Como, entretanto, somos mais de duzentos milhões de pessoas, os setores dominantes parecem não se dar conta de que no longo prazo não haverá prosperidade com tanta miséria. Quem sabe a crise atual, dupla, a de saúde e a do desemprego, despertem não só “o governo”, mas cada um de nós. Quem sabe nos permita “ver” melhor e perceber que a transformação necessária é mais profunda e mexe com as pessoas, com cada pessoa, e não só com as instituições.
Que pelo menos quanto à pandemia sejamos capazes de assumir nossas responsabilidades individuais. Não basta dizer: “Fiquem em casa”. Para isto é preciso “ter casa”. Ter emprego, sentir solidariedade. Se não estiver ao nosso alcance fazer as mudanças de maior profundidade, assumamos nossa parte: se puder, isolemo-nos; quando a vacina chegar — quanto antes, melhor — vacinemo-nos. Pelo menos isso.
Neste ano terrível, a democracia triunfou sobre o preconceito e a intolerância nos Estados Unidos. A nação estava profundamente dividida em termos de filiação partidária e visão de sociedade. A maioria dos eleitores brancos, protestantes, pessoas sem diploma universitário e moradores nas cidades do interior votou em Trump. A maioria das mulheres, jovens, negros, pessoas com diploma universitário e moradores das grandes cidades votou em Biden. A recusa de Trump em reconhecer a gravidade da pandemia lhe custou caro. Como também suas atitudes misóginas e racistas. Suprema ironia, o voto negro foi decisivo tanto na escolha de Biden como candidato do partido democrata quanto em sua vitória nos estados de Pensilvânia, Michigan e Geórgia que lhe deram a maioria no colégio eleitoral. O espírito de liberdade, fundamento da democracia americana, prevaleceu sobre a polarização. As manifestações de protesto do movimento Black Lives Matter, em vez de assustar o eleitorado conservador, consagraram o respeito à diversidade como um valor constitutivo da América.
Isso nos dá alento para continuarmos vivos e lutando para melhorar a vida da maioria: menos desigualdade, maior prosperidade. Mais respeito às leis e às pessoas. É o que desejo neste novo ano de 2021.
Pedro Doria: Menos Mises, mais Mill
O 2020 foi tão intenso, gera tanta expectativa para 2021, que esquecemos que começa uma década
Aquele 2020 foi tão intenso, gera tanta expectativa para este 2021 e mal esquecemos que hoje não é só um ano que começa. É, também, uma década. Os anos 20 do século passado foram os da esperança, da celebração de vida pós-Primeira Guerra e gripe espanhola, enquanto a democracia liberal desmoronava no entorno perante fascistas e bolcheviques. Estes nossos anos 20 não precisam ser assim. Mas, para que seja um tempo de esperança, precisamos compreender que o Brasil está muito atrasado para chegar ao século XXI. E isto pode representar uma crise muito séria.
Na década de 10, apostamos numa imagem de país que data dos anos 1950. Apostamos em petróleo, em estaleiros, numa indústria hidrelétrica que ignora a mata e, claro, na agroindústria. Nada contra. Mas deveríamos ter colocado mais fichas na indústria de software, no conhecimento genético, energia limpa, e incrementado em muitos níveis a educação para termos brasileirinhos bem formados em matemática. No final deste século, trocamos aquela visão por outra – a dos ditadores dos anos 1960. China, Índia e Rússia mergulharam no século XXI. Pois é.
O problema é o seguinte: nesta década que entra algumas tecnologias vão se encontrar. São 5G, a inteligência artificial que chamamos “aprendizado de máquina” e robótica. O resultado será a completa automação do mundo físico. O resultado será também uma imensa onda de desemprego.
Se o Brasil for apanhado neste momento sem uma indústria de século XXI e com o desemprego que virá da automação, estaremos no pior dos mundos. E ainda temos dois anos do mais inepto dos governos pela frente. Ou seja: nas eleições de 2022, não podemos errar.
A um ponto da história, ocorreu este feliz encontro entre estas duas ideias – a democracia e o liberalismo. A democracia trazia consigo o sufrágio, o voto popular. O liberalismo, a ideia de que não pode haver opressão contra cada pessoa. Todos somos iguais em nossos direitos e deveres. E, assim, construímos um Estado de leis, atribuímos a todos direitos humanos, garantimos que o sistema pode ser democrático, mas a maioria nunca tem o poder de oprimir a minoria. Que ninguém tem o poder absoluto – os poderes são divididos, distribuídos. A democracia temperada pelo liberalismo é um achado. Que precisamos preservar.
Liberais-democratas sempre demonstraram a capacidade de se reinventar perante a realidade que encontravam. É a velha sabedoria do Eclesiastes: há um tempo para plantar e outro para colher. Ou, como diria John Maynard Keynes, há o tempo de o Estado entrar, e o tempo de ele sair. Keynes, um liberal.
Em meados do século XIX, perante o estrago social e a mancha de miséria trazidos pela revolução industrial em Londres, Karl Marx imaginou que, perante a incapacidade de se reformar dos liberais, só a guerra entre classes promoveria uma sociedade na qual todos podem de fato ser iguais em seus direitos.
Enquanto isso, um seu vizinho na mesma cidade, John Stuart Mill, percebia que o Estado precisava entrar para garantir que todos tivessem a mesma base. Percebeu que liberdade só existiria se dignidade fosse garantida a todos. Estas democracias com as quais nos acostumamos no pós-guerra são todas fruto do pensamento de Mill.
Nas últimas décadas, liberais brasileiros se abraçaram demais com a escola austríaca de Luwig von Mises. Pois bem, precisaremos de um grande investimento do Estado em educação a partir de 1.º de janeiro de 2023. De regras muito ágeis, sem burocracia, para a nova indústria. E de políticas que mantenham o povo fora da miséria mesmo com o tranco do desemprego. Precisaremos de um Estado com muito foco. E, para termos este foco, a conversa tem de começar já.
Quem sabe até Caetano Veloso não possa chegar a 2030 se encontrando com seu lado liberalóide.
Míriam Leitão: Os oásis em um ano áspero
Pareceu, em certos dias, que o deserto não acabaria. Mas houve pontos de refresco na caminhada. Quero falar deles nos derradeiros instantes de 2020. Na crise, as empresas fizeram doações em volumes nunca vistos. Diante da escalada da ameaça ao meio ambiente, empresas e bancos formaram coalizões com organizações sociais e anunciaram compromissos em defesa dos biomas brasileiros. Fundos internacionais avisaram que ou o Brasil protege a floresta, ou ficará fora da rota do capital.
A sociedade fez movimentos na direção certa, num ano torto. Médicos e enfermeiros foram à exaustão, mas fizeram a diferença entre vida e morte. A ciência venceu a sua luta mais difícil, enfrentando o vírus e o negacionismo. Saiu vitoriosa. Nunca tantos cientistas nos ilustraram tanto. Em tempo recorde, a ciência está entregando ao mundo as vacinas que abrem a janela para a esperança.
Emicida é parte das boas notícias do ano. É o futuro. Ver tantos negros no Theatro Municipal de São Paulo deu uma sensação de alívio a quem não se conforma com a partição da sociedade brasileira. Ver o jovem Leandro, como a mãe ainda o chama, levar todos a um passeio pela História para constatar que os negros estiveram presentes — o tempo todo presentes — nas grandes conquistas do país foi muito bom. Esse “reescrever” da História para corrigi-la é um deslumbramento. “AmarElo” foi um ponto de virada. A ideia de que se pode matar o mal de ontem com a pedra lançada hoje é tranquilizadora. Então nós podemos ainda corrigir o mal feito antes? Sim. Podemos começar de novo.
As empresas iniciaram o combate à desigualdade racial em seus quadros de funcionários, que ainda mantêm os negros nas funções com menor remuneração e nenhum poder, e os brancos no comando. Essa paisagem corporativa começou a mudar. O recrutamento ativo passou a ser levado a sério. Não por benemerência, mas por necessidade algumas empresas corrigem sua forma de pensar e de recrutar pessoas. Foi um avanço num ano distópico. Eu sei que muitos podem pensar: foi um avanço mas pessoas morreram por isso. George Floyd e João Alberto Freitas. É verdade. Mas no passado houve mortes que foram esquecidas sem mover a roda emperrada da História.
Donald Trump perdeu a eleição e isso foi muito bom. Sua escalada de desmonte da democracia americana, sua negação da mudança climática, seu estímulo aos supremacistas e governantes autoritários estão acabando. Joe Biden está compondo um governo com diversidade. A vice Kamala Harris reforça essa esperança. Na área ambiental e climática, Biden fez uma equipe que convenceu, segundo editorial do New York Times. O veterano John Kerry vai organizar a volta ao Acordo de Paris. A primeira indígena no governo, Deb Haaland, será a secretária do Interior. Terá poder sobre parques e florestas nacionais que antes estavam entregues a um lobista do petróleo. O setor de energia ficará com Jennifer Granholm. Como governadora de Michigan ela liderou a implantação de energia renovável. A lista dos acertos é longa.
Foi o ano em que as famílias, as empresas, os eventos, o jornalismo testaram o fim da distância. Não era mais preciso estar presente, para estar presente. Houve um salto digital enorme. Era possível antes, mas não era tentado nessa escala. Seminários, encontros, reuniões, entrevistas, festivais tudo feito pelas plataformas que nos agregam em pontos diferentes do país, e do mundo. Esse salto tecnológico deixará um legado. O mundo ficou mais estreito, entre quatro paredes e, ao mesmo tempo, ampliou-se.
O ano foi farto de eventos ruins, mas quero falar dos bons e me lembro dos aniversariantes. Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto teriam feito 100 anos. O centenário do nascimento desses dois gênios nos ajudou em 2020. As leituras ou releituras apontaram caminhos. Clarice ensinou em “Paixão segundo G.H.” que “a atualidade não tem esperança, a atualidade não tem futuro”, e isso nos dá esperança de que essa atualidade não se perpetue. E escreveu, como se intuísse a grande aflição que vivemos este ano. “Se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca parasse de gritar. (…) nós que guardamos o grito em segredo inviolável”. João Cabral foi ofendido no ano de seu centenário, no Itamaraty, local de seu trabalho como diplomata. Quem o ofendeu não será lembrado na história, mas o poeta sim, esse ficará. Estará nos rios que ele seguiu, nas pedras que ele amou, nos brasileiros desvalidos que ele homenageou com seus versos. “E ainda se me permite mais uma vez indagar: é boa essa profissão na qual a comadre ora está?” Se a mim fosse dirigida a pergunta, e não à rezadeira, diria que sim, o jornalismo viveu um grande ano, dando boas informações, num tempo confuso.
Cada pessoa sabe o que viveu, e houve perdas irreparáveis. Foi difícil sim, mas os oásis nos ajudaram na travessia. O calendário marca o recomeço daqui a algumas horas. Feliz Ano Novo.
Sergio Amaral: Cena internacional mudou, política externa terá de se ajustar
O Brasil precisa estar presente nas negociações que definirão as regras de convívio internacional
As relações entre os Estados Unidos e a China, de cooperação ou de conflito, serão, na visão de Henry Kissinger, o eixo central da nova ordem internacional. Barack Obama optou pela cooperação. Donald Trump, pela adoção de sanções unilaterais. Sua estratégia, no entanto, alcançou resultados modestos.
Após as sanções da guerra comercial, o déficit com a China permanece no mesmo patamar de antes, ou seja, cerca de US$ 350 bilhões, na média, por ano. As restrições à transferência de tecnologia abalaram a Huawei, mas também prejudicaram empresas e consumidores norte-americanos. A rejeição da Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês), que reunia 12 países sob a liderança dos Estados Unidos, mas sem a presença da China, mostrou-se um erro estratégico de Trump, ao ensejar a formação da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP em inglês) na Ásia, assinada em novembro passado, entre 15 países asiáticos, que representam um terço da população e do produto mundiais, sob a liderança de Beijing, sem a presença dos Estados Unidos. Por fim, a China saiu fortalecida da covid-19 e da crise econômica mundial, pela capacidade de conter a expansão do vírus e de recuperar mais rapidamente a sua economia.
Joe Biden propõe-se a reverter várias das políticas de seu antecessor. No plano interno, deverá promover a volta da política e a caminhada para o centro, em vez do populismo nacionalista e da radicalização. Na diplomacia, as mudanças serão substanciais. Em lugar das sanções unilaterais, a prioridade do presidente eleito estará na retomada das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, para a negociação de um modus vivendi com a China, na retomada do Acordo de Paris sobre o Clima, na renegociação das salvaguardas nucleares com o Irã e no fortalecimento do multilateralismo.
Os Estados Unidos de Biden e a Europa pós-crise coincidirão na agenda climática, inspirada por um green new deal que encontra adeptos fervorosos em ambos os lados do Atlântico. É preciso ter presente que ambientalismo, mais do que uma decisão de governo, é um compromisso da sociedade. É a utopia do século 21, que como uma mancha verde influencia os consumidores, espalha-se pela economia, pela política e pela cultura.
Não há razão para que Biden tome a iniciativa de hostilizar o Brasil. Mas fortes correntes políticas tanto em Washington quanto em Bruxelas farão pressão para a imposição de restrições comerciais se o Brasil não mostrar determinação em reduzir a taxa de desflorestamento na Amazônia. União Europeia e Estados Unidos, juntos, representam quase 50% das exportações brasileiras. Se a esse grupo adicionarmos a China, quase 70% das exportações poderão ser postas numa zona de risco, seja por motivações ambientais, seja pelas provocações contra Beijing.
O mundo mudou. É hora de mudar a política externa, em consonância com as opções da sociedade, com os interesses da economia, especialmente do agronegócio, e a necessidade de recuperar a imagem do Brasil entre os importadores e investidores.
A esse respeito valeria considerar quatro temas de uma nova agenda:
1) Revisão da política sobre o clima, de modo a considerar a Amazônia não como um passivo, mas como um valioso ativo e fator de uma liderança natural que o País já exerceu e pode voltar a exercer. A região precisa ser vista não como um problema recorrente ou hipotético objeto de cobiça externa, mas como um patrimônio a ser explorado de modo sustentável, mediante o engajamento da sociedade, particularmente do setor privado e da comunidade científica.
2) Preservação de espaços de autonomia ante a disputa hegemônica entre as duas grandes potencias. Em artigo recente para a revista Foreign Affairs, um grupo de influentes militares norte-americanos, entre os quais Jim Mattis, ex-secretário de Defesa, condenou a pressão de Trump sobre aliados para o seu alinhamento a interesses norte americanos, por serem contraproducentes. Destacados intelectuais, como Joe Nye, e diplomatas como o embaixador Tom Shannon reconheceram publicamente o direito soberano do Brasil de tomar decisões no seu interesse nacional.
3) Revalorização das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, o Mercosul e a Aliança para o Pacífico, de modo a fortalecer a presença externa do País.
4) Reafirmação do multilateralismo como instrumento tradicional da diplomacia e um caminho para sair do isolamento em que o Brasil se colocou, seja em foros internacionais, como a OMS, o BID e a Ompi, seja em suas relações bilaterais, por vezes na insólita companhia da Polônia e da Hungria.
No momento em que os principais atores mundiais estão engajados em redefinir as bases da economia, forjar uma nova configuração geopolítica e promover a revisão das instituições internacionais, o Brasil não se pode isolar nem deixar de estar presente às mesas de negociação em que serão definidas as novas regras do convívio internacional.
*Conselheiro de Felsberg e advogados, foi secretário executivo do ministério do Meio Ambiente e da Amazônia
Cristiano Romero: Por que o Brasil não é uma nação?
Fim do auxílio é demonstração de que não há contrato social
O jornalista e escritor Nelson Rodrigues escreveu que o Fla-Flu, o clássico dos clássicos, começou 40 minutos antes do nada. A hipérbole rodrigueana, usada para definir o caráter épico da rivalidade entre dois times de futebol, acabou sendo incorporada como síntese do antagonismo de ideias que caracteriza o debate dos problemas nacionais. Se a discussão de um tema relevante vira um Fla-Flu, é porque não há racionalidade, ou melhor, honestidade intelectual de uma ou das duas partes, uma forma de impedir mudanças que reduzam ou eliminem seus privilégios.
Numa sociedade profundamente desigual, marcada pela prática da escravidão (oficial, fator de acumulação de capital durante quase 400 anos, e dissimulada desde a abolição, em 1888), há poucos consensos, logo, não existe contrato social. Não há pacto social num país onde a maioria negra (56% da população) é discriminada pela minoria não negra.
Não há entendimento social se pouco menos de um quarto da população (50 milhões de pessoas) vive abaixo da linha de pobreza (com menos de dois dólares por dia), e todos conhecemos essa realidade há pelo menos quase 20 anos, afinal, graças a um dos poucos consensos de nossa história, criou-se nesse período um programa de transferência de renda para lidar com o problema - o Bolsa Família é excelente, cuida das consequências de políticas equivocadas que seguem provocando tanta miséria e desequilíbrio entre nós, brasileiros.
Não se pode falar em contrato social se metade dos adolescentes está fora do ensino secundário. Tampouco, é razoável afirmar que estejamos sob uma sociedade pactuada, uma vez que que 35 milhões de pessoas não possuem acesso à água tratada e 100 milhões (de uma população de 210 milhões) não têm coleta de esgotos. O pior: os números, compilados pelo Instituto Trata Brasil a partir de dados oficiais, referem-se apenas às cem maiores cidades.
Sem saneamento básico, não há saúde. Sem saúde, não há cidadania. Junte-se esta precariedade à outra (a baixa qualidade do ensino fundamental público), o que temos? Que futuro aguarda o país com a 5ª população do planeta, habitante do 4º maior território em terras contínuas?
Formadores de opinião espantam-se com a facilidade com que outras nações, não apenas as ricas, respondem prontamente a situações de emergência, como a enfrentada nesta pandemia. "Por que não conseguimos resolver rapidamente questões simples que afligem milhões de nossos compatriotas?", indagam-se os cidadãos de bem.
Não é preciso pensar muito para concluir que nossa dificuldade está no fato de o Brasil não ser uma nação - como a palavra "brasil" não significa coisa alguma (foi tirada de pau-brasil), seu significado depende da construção de uma nação, daí, a insistência do titular desta coluna em chamar este país de Ilha de Vera Cruz, a primeira denominação dada pelos invasores portugueses.
Numa nação, a distância entre ricos e pobres é muito menor, todos (ou quase todos) têm acesso às mesmas oportunidades, a maioria dos cidadãos compartilha dos mesmos valores culturais e aspirações, independentemente de sua renda e origem étnica.
Um exemplo do quão distante este território povoado por 210 milhões de viventes está de ser uma nação: o auxílio emergencial criado em abril para assegurar a sobrevivência de mais de 60 milhões de brasileiros, surpreendidos repentinamente pela parada súbita de seu ganha-pão nesta crise sanitária, expira em 31 de dezembro.
Amanhã, alguns milhões de brasileiros vão brindar a chegada de 2021 e da segunda década do século XXI com champagne e espumante, enquanto outros milhões dormirão sem saber como cuidar da família ou de si próprios no ano "novo". Para estes, 2020 não acaba nessa quinta-feira. Ademais, a segunda onda da covid-19, apesar do silêncio negligente das autoridades, já é uma realidade, cujos efeitos econômicos serão iguais ou piores que os do primeiro surto - não custa lembrar: por causa da pandemia, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro deve recuar algo em torno de 4,5%, segundo previsão da maioria dos analistas consultados pelo Banco Central.
Ora, virar o ano sem resolver esse grave problema é a prova inequívoca de que não só a classe política mas toda a sociedade não se importam com a crise humanitária que se avizinha. Onde estão os intelectuais das universidades públicas e fora dela, os sindicatos, as centrais sindicais sempre dispostas a parar o país em defesa os trabalhadores, as elites empresariais pensantes (das que só vivem às custas do Estado não se deve esperar nem cumprimento de “bom dia”), as lucrativas instituições financeiras que se "comoveram" tanto com o primeiro capítulo da tragédia pandêmica, os artistas que se mobilizaram para cuidar de seus pares em situação menos favorável, uma vez que o isolamento social lhes tirou a possibilidade de trabalhar? Cadê os manifestantes que foram às ruas em 2013 exigir educação e saúde públicas de qualidade?
No país onde não há carência de problemas a serem resolvidos, o tema mais controverso, o que inflama discursos, provoca cizânia, separa amigos de infância e resulta até em divórcio, não é o racismo estrutural, esta infâmia, ou a situação dos cidadãos sem-auxílio emergencial a partir de 1º de janeiro, mas a privatização, a venda de empresas estatais ao setor privado. Por que a classe média brasileira é tão suscetível à proposta de redução do Estado como produtor de bens e serviços?
Quando estourou o mega-escândalo de corrupção na Petrobras, em 2014, não demorou para que se promovesse um “abraço” na sede da estatal, no Rio. Não houve protesto contra as malfeitorias realizadas, responsáveis por desvio de recursos estimado em R$ 20 bilhões. Não houve sequer mobilização para que o acionista majoritário que nos representa na companhia - a União - melhorasse a governança da maior empresa do país. Por isso, leitor, duvide da palavra "estratégica" quando alguém defender as estatais.
O Estado de S. Paulo: Número de brasileiros em missões de paz cai 72% em 2020
País ainda mantém 77 homens em oito missões; presença do país entre os capacetes azuis é consenso entre os militares
Marcelo Godoy e Paulo Beraldo, O Estado de S.Paulo
O Brasil vai terminar o ano de 2020 com 77 homens em oito forças de paz das Nações Unidas. É o menor número de militares em missões de paz desde que 51 homens da Polícia do Exército chegaram ao Timor Leste em 1999. A participação brasileira caiu 72% com a retirada de 200 homens que serviam na fragata Independência na força de paz marítima do Líbano, a Unifil, ocorrida em 2 de dezembro.
O Ministério da Defesa e a gestão do governo de Jair Bolsonaro negam que a redução seja uma mudança de política do País, associada à gestão do atual chanceler Ernesto Araújo e alegam que a decisão de deixar a Unifil foi tomada em 2019, por motivos operacionais, logísticos e estratégicos, relativos ao Atlântico Sul. A atual gestão também não estabeleceu planos para participar de nenhuma outra força de paz. A Defesa ainda afirma que o País mantém seu compromisso com o sistema de paz da ONU.
A falta da participação do País com contingentes contrasta com a política de dois vizinhos: o Uruguai e a Argentina. Esta última mantém tropa na força de paz no Chipre, ao lado do Reino Unido e da Eslováquia. É em Chipre que o Brasil mantém seu último homem que faz parte de um contingente – na ilha do Mediterrâneo, um capitão do Exército atua agregado à tropa argentina na força de paz da ilha dividida entre a comunidade grega e a turca.
O Brasil mantém ali também um observador militar. O major Fernando Ferreira Manhães esteve lá em 2018. O brasileiro fez parte do Estado-Maior da missão. “O nível de tensão ali é muito baixo. A gente sente uma segurança muito grande no país. Eu costumava brincar que tinha uma sensação de insegurança maior no Rio do que lá”, disse. O major explica que registrava apenas provocações entre as duas forças armadas. A maioria dos incidentes ali era causado por civis que entravam na zona neutra. “A missão está há quase 50 anos e a paz não chegou ainda.”
Outro vizinho do Brasil, o Uruguai, mantém um batalhão com 906 homens na Monusco, a força de paz que atua na República Democrática do Congo (RDC). Comandada por um general brasileiro - Ricardo Augusto Ferreira Costa Neves -, a Monusco abriga hoje 21 brasileiros, a maioria é formada por um grupo de instrutores de guerra na selva que estão treinando o exército da RDC. Trata-se de uma das forças com maior presença de brasileiros no exterior. Já o Uruguai mantém ainda outros 210 militares na Undof, a força de paz mantida pela ONU nas colinas de Golã, entre Síria e Israel.
O Brasil tem 22 militares na Unifil, no Líbano, mas esse número deve diminuir quando o País deixar o comando da força, que deve ser assumido pela Alemanha em janeiro. Abaixo da Unifil, a força de paz que conta com mais brasileiros, segundo dados da ONU, é a mantida pela organização no Sudão do Sul, a Unmiss. Tanto lá quanto no Líbano, os brasileiros estão lá desde 2011. Atualmente, 13 militares e policiais brasileiros estão no país africano – havia 24 no começo do ano.
O coronel Taylor de Carvalho Neto era um dos 14,9 mil militares de 63 países que estavam na Unmiss em janeiro. Ali presenciou três combates entre integrantes das forças do governo e grupos armados que atuam na região. “O país possui inúmeras etnias com costumes e tendências belicosas, cujas ações, muitas vezes, colocam o acordo de paz em risco. Por este motivo, é comum escutarmos, durante as avaliações da conjuntura, a seguinte frase: ‘a situação é calma, porém imprevisível’.”
Para Taylor, apesar de o país não ter contingente na Unmiss, os oficiais enviados à operação passaram “por um rigoroso processo de seleção, cujo reflexo está na qualidade do trabalho realizado”. Para ele, “esses oficiais estabelecem contato com pessoas dos mais diferentes países e passam uma imagem muito positiva de nosso Exército e de nosso País.” Taylor conclui que essa é “uma forma de projeção do poder: mostrar ao mundo que o Brasil possui um grande Exército, com profissionais competentes e dedicados e que são a exata expressão do povo brasileiro”.
Ainda na África, o Brasil mantém nove militares na Minurso, a força de paz do Saara Ocidental, e outros sete na Minurca, a força que atua na República Centro-Africana. O coronel Rodrigo Santos Boueri, que esteve na força, descreve a situação enfrentada pelos brasileiros no país. “A situação é de incerteza. Os grupos armados agem frequentemente para conquistarem novas áreas, especialmente de exploração mineral ou de pastagens. Entre outubro de 2018 e outubro de 2019, houve vários combates entre os grupos armados e destes contra tropas da ONU, incluindo emboscadas de comboios com mortes de capacetes azuis.”
Para Boueri, mesmo com os riscos das missões, trabalhar em operações de paz “é fundamental para a projeção de poder”. “Não participar desse ambiente é abrir mão da responsabilidade de cada país de intervir em nome da paz internacional, o que coloca um país na condição de ator medíocre no concerto das nações.” Segundo o coronel, a missão em que ele serviu é de “suma importância, pois, graças à Minusca, há ajuda humanitária chegando a milhares de pessoas e redução da violência em algumas áreas antes dominadas por grupos armados”.
Consenso
As declarações dos militares, de diplomatas e do Ministério da Defesa mostram a existência de um consenso em torno da importância para o País e para suas Forças Armadas na participação nessas missões. Para o professor Guilherme Dias, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), o fato de o Brasil estar no quarto force commander na RDC (o comandante da Minusco, o general Costa Neves) mostra que o Brasil tem “algo a oferecer em termos de missão de paz, que respaldam e dão legitimidade”. “Quando olhamos a participação do Brasil no Haiti, a repercussão e os ganhos políticos em termos de projeção são flagrante.” De acordo com ele, 23 dos 140 alunos da Eceme estudam atualmente missões de paz.
Para o coronel Carlos Eduardo de Franciscis Ramos, o aprendizado do Exército em missões no exterior ajudou a consolidar o interesse pelo estudo dessas operações no País. “A perspectiva de um oficial aluno com experiência de observador militar ou como tropa no Haiti é muito rica.” O Haiti foi a última operação com tropa do Exército no exterior. Ao todo, mais de 37,3 mil militares brasileiros estiveram na ilha caribenha, onde trabalharam estabilizando o país e mantendo a ordem. “Há semelhanças e diferenças entre GLO (Garantia da Lei e Ordem) no Brasil e no Haiti e na África. Aqui estamos tratando de crime, atividade criminosa e lá estamos tratando de gangues opressoras”, afirmou o coronel.
Seu colega de ECEME, o coronel Flávio Roberto Bezerra Morgado destacou a situação jurídica como a principal diferença das ações de GLO e as missões de paz da ONU. “O que muda é o seu amparo jurídico, a liberdade de ação para fazer determinadas coisas. E aí que eu acho que é a grande virtude das tropas brasileiras: é a inteligência cultural. GLO é diferente da missão de paz. E o soldado brasileiro tem capacidade para entender isso. Ele entende a diferença do povo haitiano e do brasileiro, as culturas diferentes”, afirmou. Para ele, outra herança das missões de paz são o aprendizado da tropa. “Como organizar, equipar e como combater. Se pegar a estrutura inicial de nossas forças no Haiti era uma. E, no fim, era totalmente diferente por causa da evolução doutrinária que foi acontecendo. São as lições aprendidas.”
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Neca Setúbal: Brasil entra em 2021 com desafio urgente de diminuir desigualdades
Questões de raça e gênero, educação, saúde, meio ambiente e democracia são temas essenciais no país
Um dos principais desafios, entre os vários que o Brasil precisa enfrentar em 2021, são as suas desigualdades. Todos os dias elas impedem que a maior parte da nossa população, estimada hoje em mais de 211,7 milhões, tenha seus direitos assegurados e viva com dignidade e qualidade de vida.
Nossas desigualdades derivam em parte do racismo estrutural e da desigualdade de gênero, bem como da disparidade de renda e de acesso à educação e saúde de qualidade, que são temas que devem pautar o país com prioridade no próximo ano. Existe, por exemplo, uma interseccionalidade perversa entre raça e gênero que faz com que milhares de mulheres negras brasileiras fiquem à margem da sociedade, muitas delas líderes de família nas periferias urbanas, com pouca escolaridade, baixos salários e vivendo em situação vulnerável, vítimas de inúmeras violências. Para piorar, em 2020, a pandemia de coronavírus agravou ainda mais a dura realidade de quem já vive as desigualdades.
Primeiramente, todas essas urgências demandam que saíamos do discurso individual, da simples conscientização sobre o problema, e partamos para ações concretas no espaço público. Ou seja, é importante ser antirracista e antissexista num nível individual e desejar mais saúde e educação, mas isso só não basta. Dada a gravidade dos problemas, são necessárias ações —e ações no espaço comum—, sejam de cidadãos, governos de diferentes instâncias, empresas, organizações da sociedade, universidades, entre outros.
Neste ano, grandes corporações mostraram que é possível agir com intencionalidade para colocar negros e negras em cargos de chefia e o voto popular e democrático os elegeu para cadeiras em várias Câmaras Municipais. Mas é preciso mais: “É o momento de mover estruturas que foram criadas por pessoas brancas e de reestruturar o pacto social no qual vivemos. Para a mudança estrutural, é hora dos mais privilegiados cederem parte dos seus privilégios”, afirmou Thiago de Souza Amparo, professor da FGV Direito SP, no 11º Congresso GIFE, Fronteiras da Ação Coletiva, em novembro.
E, como nos alerta o filósofo camaronês Achille Mbembe, trata-se de “sair de si mesmo, tecer relações onde cada um é participante da sociedade e do universo”. Ou como convida o escritor moçambicano Mia Couto: “abrir as janelas para o mundo na chegada do novo para que fique impregnado de luzes, ruídos e sombras. É assim o nascer do tempo: apenas a vida nos defende do viver”. Significa, portanto, colocar-se na realidade e corresponsabilizar-se por ela, com ações para melhorá-la. Ou, como mostra a série de vídeos Enfrente, no canal do Youtube de mesmo nome, em que a Fundação Tide Setubal traz histórias de quem lidera transformações nas periferias, é preciso: “tecer a rede, furar a bolha, responsabilizar-se pelo outro. Criar ações para poder ser, em conjunto. A história é de cada um, o movimento é do todo”.
A área da Educação, brutalmente golpeada pela pandemia, segue como um desafio fundamental e estruturante no país. Em 2020, o coronavírus obrigou milhões de estudantes a terem aulas remotas, longe dos professores e colegas, e a enfrentarem a falta de internet, o que aumenta as desigualdades de aprendizado, uma vez que só uma parcela da população possui conexão adequada para acompanhar o ensino remoto. Não é possível falar de ensino híbrido para o próximo ano enquanto essa questão tecnológica não for uma pauta prioritária dos governos, ao lado das empresas de telecomunicações. Municípios pobres não conseguirão distribuir chips nem no curto prazo. Isso pode até ocorrer em grandes centros como São Paulo, mas não em localidades pequenas.
O distanciamento social e a irregularidade nos estudos devido à falta de internet são muito preocupantes porque podem elevar os já altos índices de evasão escolar, sobretudo no ensino fundamental 2 e no ensino médio e em regiões periféricas, o que afasta mais ainda o Brasil dos países membro da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) em qualidade da Educação. Por isso, são necessárias agora políticas específicas de reforço e de recuperação escolar e uma especial atenção no acolhimento a professores, crianças e jovens na volta à escola porque a saúde emocional é algo fundamental neste momento.
Diante desse cenário, todos os profissionais da educação, tais quais médicos e enfermeiros, devem ser considerados como de atividades essenciais e serem vacinados contra a covid-19, com prioridade, para que ocorra uma retomada segura e cuidadosa das aulas presenciais no início de 2021, com condições adequadas que não representem riscos à comunidade escolar.
Além disso, o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) expira em 2020 e o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), em 2021, quando acabam suas metas. São dois mecanismos fundamentais para a melhoria da educação, que podem diminuir desigualdades. Se o novo Fundeb, recém-aprovado, já foi reconfigurado num bom formato, em que municípios mais pobres vão poder receber recursos, mesmo estando em estados ricos, reduzindo-se assim desigualdades regionais, o novo Ideb, se quiser avançar e aprimorar a educação básica, não deve focar apenas nas desigualdades de forma geral, isto é, nos alunos abaixo do nível adequado, mas adicionar a questão racial.
Uma equação muito simples do professor Mauricio Ernica da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) ilustra de forma objetiva como os negros continuarão tendo a pior aprendizagem no país, se a questão racial for deixada de lado no Ideb. Supondo-se que, em determinada localidade, existam mil alunos no nível adequado, sendo que 500 são brancos e 500 são negros, e consegue-se melhorar a aprendizagem de 500 deles, colocando-os acima do adequado. Se 400 forem brancos e 100 negros, isso significa que a maioria dos negros ainda continua em um nível inferior. Ou seja, sem medir avanços por raça, o Ideb pode continuar a reproduzir nosso racismo por mais anos.
Em paralelo, a pauta do meio ambiente é também um desafio fundamental porque interliga o Brasil ao resto do planeta, tamanha a relevância das mudanças climáticas no globo. Ao mesmo tempo, é urgente proteger os povos indígenas e a rica biodiversidade da Amazônia e de outros biomas, como o Pantanal, vítima de inúmeros incêndios neste ano. Outra iniciativa necessária reside na mitigação dos efeitos do clima nas grandes cidades, que ocasionam enchentes e desastres, os quais atingem e prejudicam principalmente as populações mais vulneráveis, que vivem em condições insalubres, sem saneamento básico —um tema fundamental, dado que quase metade dos brasileiros ainda não possui esgotamento sanitário em pleno século 21.
Por trás de tudo isso, reside algo essencial a todos os avanços de que o Brasil precisa no próximo ano: a democracia. A pandemia mostrou o quanto as instituições democráticas foram importantes para garantir dignidade aos brasileiros mais desassistidos, como no caso da renda emergencial, proposta pelo Congresso Nacional —que, na verdade, poderia e deveria se tornar perene, uma “renda cidadã”, como já provam matematicamente muitos economistas. Por isso, mais do que nunca, em 2021, durante a recuperação dos terríveis efeitos da covid-19 na vida da população, os brasileiros precisam contar com o pleno funcionamento das instituições democráticas.
Ao mesmo tempo, a sociedade civil se conscientizou e se mobilizou durante este ano, de uma maneira poucas vezes vista, trazendo para si muita responsabilidade e demonstrando solidariedade, e no campo das instituições filantrópicas, como fundações e institutos, aumentaram significativamente as doações, inclusive de forma conjunta e colaborativa. Esse comportamento valoroso precisa ser de longo prazo, não só emergencial e pontual, para que ocorra um combate às desigualdades mais duradouro, estruturante e interligado às políticas públicas, mas sem a perda da autoria e do protagonismo da sociedade, que sempre deve cobrar os governantes. Organizações da sociedade podem realizar novas iniciativas junto com o governo, levando modelos, de pesquisas e de avaliação de projetos de grande escala, para subsidiar e aprimorar as políticas públicas, porém sem perderem seu lugar importante de crítica, pressão e advocacy.
Num Brasil contemporâneo perpassado por tantas polarizações, disputas maniqueístas de ideias e narrativas e saídas individuais, um desafio que se impõe é o da escuta ativa e do diálogo franco. Parece que tem sido cada vez mais difícil nos escutarmos uns aos outros, aprendermos com pontos de vista distintos dos nossos, sem fazermos generalizações e julgamentos, e chegarmos a novos consensos, o que de fato pode gerar mais avanços coletivos. Recentemente, fazendo releituras de Paulo Freire à luz do momento atual, revi como ele já propunha construirmos conhecimento a partir da experiência própria de vida de cada um e da experiência de outros — como os lavradores pernambucanos que ele atentamente escutava.
Isso me fez relembrar de como teóricos africanos e negros também valorizam a escuta e a oralidade e de como jovens pretos e pardos relatam o quanto aprenderam e aprendem em conversas memoráveis com suas avós e bisavós, que sobreviveram num Brasil excludente e racista, pois acredito que somos a soma de encontros que vamos criando ao longo da vida e, como afirma Cris Bartis, cocriadora do podcast Mamilos, existe uma “importância de deixar acontecerem rachaduras nas nossas certezas para que infiltrações possam entrar”. Assim, mais do que um desafio, nutro um forte desejo de que possamos dialogar mais em 2021 para forjarmos um Brasil mais inclusivo, justo, equitativo e democrático, onde todos, e não só uma minoria, tenham a oportunidade efetiva de se desenvolver e prosperar, voltando a ter esperanças no nosso país, tão potente e diverso.
Neca Setubal é doutora em psicologia da educação (PUC-SP), mestre em ciências políticas e socióloga (USP), educadora, presidente dos conselhos da Fundação Tide Setubal e do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) e fundadora do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária).
Marc Bassets: Futuro, ano zero
Depois de meses fora de órbita, em 2021 é hora de pôr os pés no chão. Empreenderemos a recuperação da crise sanitária e econômica? Lutaremos seriamente contra a mudança climática? Especialistas fazem suas apostas
Pode ser uma aterrissagem suave ou forçada. Depois de um 2020 de morte, doença, confinamento e recessão em que o mundo flutuou em uma estranha irrealidade, o ano de 2021 começa entre a promessa de vacinas que acabem com tudo isso e a angústia por novas ondas que nos devolvam à linha de largada. A humanidade está fora de órbita há um ano e se aproxima o momento de pôr os pés no chão.
“As coisas não voltarão a ser como antes. Começamos a ter consciência de que foi a civilização que criou e espalhou o vírus: os aviões e os carros, as concentrações multitudinárias e os estádios de futebol”, diz o neuropsiquiatra Boris Cyrulnik, uma das 10 pessoas consultadas ― todas especialistas em áreas que vão da história ao pensamento, da economia à geopolítica ― para preparar este artigo. “Se restabelecermos as mesmas condições de consumo e de transporte, em dois ou três anos haverá outro vírus e será preciso recomeçar.”
Nada está escrito. O ano de 2021 pode ser o momento de decisões ― sobre a organização das relações internacionais, sobre a economia, sobre o meio ambiente, sobre os valores democráticos ― que marquem as próximas décadas. Um ano zero.
“A história sempre está radicalmente aberta. Sempre pode ir por um lado ou por outro. A crença de que haverá um progresso simplesmente porque queremos que o bem vença é um erro”, diz a historiadora Anne Applebaum, autora de Twilight of Democracy (“Crepúsculo da democracia”), ensaio que narra em primeira pessoa o conflito no mundo ocidental entre liberais e autoritários. “Também é um erro acreditar que, inevitavelmente, fracassaremos. Não sou declinista, mas também não acho que tudo sairá bem sem fazer nada para conseguir isso.”
O historiador marxista Eric Hobsbawm falava de um século XX curto, entre 1914, ano do início da Primeira Guerra Mundial, e 1991, ano do fim da Guerra Fria, com o desaparecimento da URSS. E se também houvesse um século XXI curto? E se sua data inaugural não tivessem sido os atentados de 11 de setembro de 2001, ou a quebra do banco Lehman Brothers em setembro de 2008, e sim o surgimento do vírus SARS-CoV-2 na cidade chinesa de Wuhan no final de 2019? Ou, melhor, a esperada derrota do vírus em 2021 ou 2022, do mesmo modo que 1991 marcou a vitória do campo ocidental contra o bloco soviético?
“O momento em que se proclama que uma pandemia terminou é arbitrário”, avisa Laura Spinney, autora de Pale Rider: The Spanish Flu of 1918 and How it Changed the World (”cavaleiro pálido: a gripe espanhola de 1918 e como ela mudou o mundo), livro de referência sobre a mal denominada gripe espanhola, que matou entre 50 e 100 milhões de pessoas entre 1918 e 1920. “Suponho que isso ocorrerá quando os Governos, de maneira escalonada pelo mundo, levantarem as restrições, quando as pessoas tiverem um certificado atestando que estão vacinadas e sentirem confiança para retomar sua vida anterior.”
Spinney assinala que a diferença entre a pandemia de agora e a gripe de 1918 é a existência de uma vacina. “Até alguns dias atrás, enfrentávamos a pandemia da mesma forma que isso foi feito ao longo da história, com as velhas técnicas de distanciamento social: afastar-nos uns dos outros, fechar espaços públicos, impedir encontros em massa, usar máscaras. Lutávamos com armas antigas e agora lutamos com a arma mais moderna possível.”
A dúvida é o que ocorrerá depois da vitória, se esta chegar. “Imaginemos que no verão [boreal, inverno no Hemisfério Sul] as vacinas permitam acabar com o distanciamento social. Passaremos uma boa parte do resto do ano nos acostumando a viver no novo mundo, que não será igual ao antigo”, diz George Friedman, presidente da Geopolitical Futures, empresa especializada em previsões geopolíticas. “A questão é superar com sucesso a transição de uma realidade, uma economia e uma sociedade baseadas na covid-19 para algo mais estável”.
Friedman, que vive no Texas, acredita que a situação atual é insustentável, e não só por razões econômicas. Cita como exemplo seu neto de quatro anos e a possibilidade de que, se as vacinas não funcionarem, ele não vá à escola em um futuro próximo. “Você vai à escola para quê? Para aprender? Não. Para brigar. Para discutir. Para se entender com outras crianças”, diz. O perigo é que a excepcionalidade de 2020 acabe se prolongando, algo que ele descarta. “Teríamos uma geração deformada. Isto não é a realidade”, diz. É preciso aterrissar, e quanto antes, melhor.
O filósofo Bruno Latour, autor de um ensaio titulado precisamente Où Atterrir? (“Onde aterrissar?”), argumenta, ao contrário de Friedman, que a pandemia significou um banho de realidade, uma tomada de consciência sobre nossos limites e nossa dependência da natureza, do clima até os micróbios. “Vivemos uma mudança cosmológica ou cosmográfica que tem a mesma importância que as grandes mudanças do século XVI. Naquela época foi descoberto o infinito do mundo. Agora passamos de um mundo que acreditávamos ser global e universal para um mundo relocalizado, no qual é preciso prestar atenção a cada gesto, a cada sopro que damos”, afirma. Ao pensar no que 2021 nos reserva, Latour fala da mudança climática ― a “mutação ecológica”, diz ―, “tão próxima que sabemos que passaremos de uma crise a outra, de um confinamento a outro”. Com a diferença de que o futuro confinamento não será em casa, mas em uma terra convulsionada.
“Espero que 2021 seja o ano da volta à normalidade, mas a uma normalidade com consciência coletiva renovada, que permita avançar em matéria ambiental”, diz a economista Mar Reguant, professora da Northwestern University em Illinois e codiretora do grupo de trabalho sobre a mudança climática na comissão de especialistas encarregada pelo presidente francês, Emmanuel Macron, de preparar a economia para o pós-covid-19. “Na frente pessimista, será um ano de novos desastres ecológicos e humanos nos quais a mudança climática ficará evidente com mais força”, prevê Reguant. Mas ela também deseja que o fundo de recuperação europeu, aprovado em julho, “dedique-se a transformar um modelo econômico e energético obsoleto”; que o futuro presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, cumpra suas promessas de combate à mudança climática, e que as empresas petrolíferas “entendam que não terão lugar em um futuro próximo se não se reinventarem”.
Outra crise potencial é a da desigualdade. Durante 2020, os trabalhadores com menor renda empobreceram, devido aos fechamentos forçados pelos confinamentos em setores como os de restaurantes e turismo e à redução dos salários. As pessoas com maior renda, por sua vez, gastaram menos e economizaram mais. “Há uma lacuna que já existe e não vai desaparecer quando a vacina chegar e as restrições forem levantadas”, diz o economista Marc Morgan, membro do Laboratório Mundial da Desigualdade, do qual Thomas Piketty é um dos diretores. “O papel dos gastos governamentais será muito importante para voltar a criar empregos depois da chegada da vacina.”
“O que considero absolutamente urgente é que, com a crise do coronavírus ― mas não só, também com a crise climática e a crise alimentar, que sempre é esquecida, e a grande instabilidade econômica ―, sejam modificadas nossas instituições internacionais e nossas atitudes, e segurança global seja colocada à frente de nossas preocupações”, enfatiza Bertrand Badie, professor emérito do Instituto de Ciências Políticas em Paris. “A segurança global é a que afeta toda a humanidade e não só uma nação ou outra. É isso que faz com que o vírus seja mais ameaçador do que os tanques russos para a Europa.”
Badie, no entanto, acrescenta: “O que pode ocorrer é justamente o contrário: que a crise, em vez de levar a um fortalecimento da governança global, favoreça uma tensão neonacionalista no mundo todo. A eleição de novembro nos Estados Unidos mostrou uma incrível resistência do nacionalismo. O fato de 74 milhões de pessoas terem votado em Donald Trump é a prova de que o neonacionalismo já é um componente fundamental dos comportamentos políticos no mundo atual”.
“Em alguns lugares, a pandemia fortaleceu os autoritários”, assinala Anne Applebaum. “Quando as pessoas sentem medo, estão dispostas a aceitar coisas às quais, em tempos normais, fariam objeções. Não estou falando da coisa superficial dos confinamentos: todo mundo entende para que servem”, acrescenta. “Ao mesmo tempo, a pandemia foi uma prova do valor da ciência e da cooperação internacional. Finalmente sairemos desta, graças às vacinas. E de onde vêm as vacinas? São criadas por consórcios internacionais, pela cooperação germano-americana, por fábricas na Bélgica que exportam para toda a Europa. Todas as soluções para o problema envolvem cooperação internacional, cooperação científica e cooperação comercial. Deveria ser uma lição para os nacionalistas.”
Um risco em relação às vacinas são as teorias da conspiração que proliferaram durante a pandemia e atribuem aos imunizantes todos os tipos de males. Não é incomum que uma pandemia ― na qual o medo do desconhecido se soma à falta de harmonia de governantes que adotam medidas confusas e contraditórias ― seja um terreno fértil para teorias absurdas, algumas com fedor antissemita, que veem um complô para a instalação de um Governo mundial.
“A retórica antivacinas ganhou muita força. Como a palavra oficial ― da imprensa, da política, do mundo médico ― está desacreditada, muitas pessoas não vão querer ser vacinadas”, diz a historiadora Marie Peltier, autora de Obsession: Dans les Coulisses du Récit Complotiste (“obsessão: nos bastidores da narrativa conspiracionista”). “O conspiracionismo e seu impacto na realidade foram subestimados. Para acabar com uma pandemia, é necessária uma vacinação em massa. O problema não será só político, mas também sanitário.”
Sem as vacinas, não será possível reduzir o distanciamento físico nem retomar completamente as atividades. Em seu livro Les Capitalismes à l’Épreuve de la Pandémie (“os capitalismos postos à prova pela pandemia”), o veterano economista Robert Boyer alerta que quanto mais as medidas profiláticas forem prolongadas, mais difícil será restaurar a economia: “Apesar das ajudas em massa, as falências reduzirão a capacidade de produção e de emprego, empobrecerão os mais desfavorecidos, e os jovens dificilmente se integrarão à vida ativa, correm o risco de se ver penalizados de forma duradoura, sem esquecer que a queda dos investimentos hipoteca o crescimento futuro”.
“A tarefa prioritária dos Governos é restaurar até dezembro 2021 a confiança de ficar frente a frente”, diz Boyer por telefone. “A segurança sanitária é uma precondição para o reinício do crescimento. E isso ocorrerá depois de acontecimentos que podem ser dramáticos: mortalidade, incerteza, protestos pela liberdade”, acrescenta. “Uma terceira onda teria efeitos devastadores para a credibilidade dos governantes.”
Não sabemos o que encontraremos no desembarque. Em um dos cenários possíveis, deixaremos lentamente para trás a pandemia, que já matou mais de 1,7 milhão de pessoas e infectou 78 milhões. A economia voltará a andar depois da pior recessão em décadas. As democracias, depois que muitas delas administraram pessimamente a covid-19, resistirão aos ataques das forças autoritárias. Depois de recuar para as fronteiras nacionais quando o vírus ameaçou com mais força, as grandes potências e os grandes blocos econômicos buscarão novas formas de cooperação ― uma globalização com rosto humano ― e, escaldados pelo impacto que um fenômeno natural pode ter no planeta, redobrarão as medidas contra a mudança climática. A derrota de Trump nas eleições americanas de novembro anuncia o início do fim do nacionalismo populista, de sua retórica incendiária e suas teorias da conspiração.
É um cenário possível, mas não o único. No caso oposto, as campanhas de vacinação serão tão caóticas como foram a distribuição de máscaras no início da pandemia e, depois, a organização dos sistemas de rastreamento e teste. Quando os Governos suspenderem as ajudas milionárias para os trabalhadores e os setores mais afetados pela crise, as empresas quebrarão, o desemprego aumentará e as desigualdades dispararão. A volta das fronteiras para frear a expansão do vírus se tornará permanente. Os demagogos saberão aproveitar o descontentamento e darão as respostas que as democracias, transformadas em símbolo de mau governo e polarização, não terão conseguido oferecer. A resposta da China à pandemia estabelecerá as tecnocracias ditatoriais como modelo de eficácia.
Aterrissagem forçada? Ou suave? O ano de 2021 dificilmente reproduzirá ao pé da letra um dos dois cenários mencionados; é mais provável que se mova em uma zona cinzenta na qual nenhuma das duas tendências prevaleça.
Boris Cyrulnik, filho de judeus assassinados nos campos de extermínio nazistas, estuda há décadas o conceito de resiliência, a capacidade de superar a adversidade. É possível, diz ele, que a saída da pandemia signifique uma volta ao business as usual, como se nada tivesse mudado. Ou que nas ruínas da devastação sanitária e econômica surja um salvador, um ditador que agite os ressentimentos. Isso ocorreu em outras épocas de medo e caos. Mas há outra saída, diz o neuropsiquiatra e autor, entre outros, de La Nuit, j’Écrirai des Soleils (“à noite, escreverei sóis”).
“O sprint, a corrida constante, provoca estresse”, diz Cyrulnik. “É preciso redescobrir o prazer da lentidão, porque a lentidão protege, oferece o prazer de viver em paz.”
O Estado de S. Paulo: Missões de Paz e Guerra
As histórias desconhecidas dos militares brasileiros da ONU
Textos e dados: Marcelo Godoy e Paulo Beraldo / Design: Vitor Fontes
Fabiano foi ao Timor Leste e viu cabeças cortadas, foi cercado por guerrilheiros e salvou a vida de Xanana Gusmão, o líder da independência do País. Leonel foi feito refém para ser usado como moeda de troca entre os sérvios e as Nações Unidas. Bruno viu aldeões serem caçados por um leão enquanto milicianos hutus massacravam a minoria tutsi em Ruanda. Romeu, que combateu os comunistas no Brasil, tornou-se amigo dos guerrilheiros esquerdistas de El Salvador. A história desses homens ajuda a contar passagens desconhecidas da presença de militares brasileiros em áreas de conflito ao redor do mundo.
ENTREVISTA GENERAL SANTOS CRUZ
Desde que, em 1989, voltou a estar presente em forças de paz, o Brasil enviou homens em missões individuais ou contingentes de tropa para 50 missões em todos os continentes. Ao todo, cerca de 48 mil militares enfrentaram desafios tão distintos quanto leões das colinas de Ruanda ou um cativeiro na Bósnia enquanto seus colegas eram transformados em escudos humanos. A linha que divide a paz e a guerra nem sempre era clara nas missões dos capacetes azuis. Ou por ação dos beligerantes, ainda incapazes de fazer as armas calarem, ou porque a própria missão dos homens das Nações Unidas previa a possibilidade de se usar a força para manter a ordem ou estabilizar uma região.
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Essa é uma história de indivíduos diante de crises que marcaram o fim do século passado e o começo deste. É possível considerar suas histórias como típicas de um fenômeno que uniu as Forças Armadas ao Itamaraty: a decisão de fazer da presença desses militares um dos principais instrumentos da diplomacia do País que buscava um lugar ao sol para o Brasil entre as nações após o término da Guerra Fria. É o que diz o general Adhemar da Costa Machado Filho, que esteve em Angola comandando os homens da força de paz Unavem 3.
“O Brasil acertadamente aceitou participar da missão, pois essa postura muito contribuiu para nos inserir entre os grandes ‘players’ das missões de paz.” Com ele concorda o ex-chanceler Celso Lafer: “Essa participação é uma combinação do soft power da presença com essa dimensão do papel das Forças Armadas que, sem entrar em conflito, contribuem para a manutenção da paz. É um custo que vem junto com as aspirações de uma presença do Brasil no plano internacional.”
Neste ano, o País ficou pela primeira vez em 21 anos, desde a missão no Timor Leste, sem contingente de tropa entre os capacetes azuis. Isso ocorreu por causa da retirada da fragata Independência da força de paz do Líbano, a Unifil. A embarcação chegou no sábado, dia 26, ao Brasil. O Ministério da Defesa alega que a saída ocorreu porque a Marinha decidiu concentrar seus recursos na defesa e na segurança do Atlântico Sul. A decisão não impede que os militares do País voltem no futuro a atuar com tropa entre os capacetes azuis.
As histórias desses militares nas missões permitem jogar luz sobre o processo de pacificação da América Central e a influência de seu modelo nas sucessivas tentativas de paz na antiga África portuguesa. Ou acompanhar o impacto das crise em Ruanda e na Bósnia sobre os capacetes azuis, que levaria à mudança do formato das forças da ONU. O fim da Guerra Fria impulsionara ainda a criação de novos Estados nacionais, como a Eritreia, e viu o temor de uma pandemia mortal, com o surto de ebola na África Ocidental, substituir o medo do holocausto nuclear. “As evidências demonstram que a ONU estava melhor organizada e preparada para atuar no Timor Leste do que na ex-Iugoslávia. A atuação no Timor Leste é considerada um caso de sucesso”, afirmou o general João Batista Bezerra Leonel Filho.
Os militares voltaram ao País marcados pelas missões. O general Adhemar lembra que passou a “dar valor às coisas simples, deixando o ranço burocrático de lado”. O paraquedista Franklimberg de Freitas, que comandou em Moçambique a primeira tropa brasileira a atuar no exterior desde 1967, inaugurou uma prática que seria comum nos anos seguintes: o uso dessa experiência em Operações de Garantia da Lei e Ordem (GLO) no Brasil. Seus homens voltaram direto para a Operação Rio, em 1994, participando do combate ao narcotráfico em morros e comunidades cariocas. Mais tarde, seriam os veteranos do Haiti.
“O próprio governo percebeu que, para utilizar Forças Armadas como um veículo de projeção externa, tinha que aplicar recursos em treinamento, preparação e equipamentos básicos. E isso foi feito durante todo o período do Haiti. Os recursos foram muito bons. Deu para fazer uma preparação excelente”, disse o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que comandara os brasileiros no Haiti e a brigada de intervenção da ONU, no Congo. “A cultura da preparação que já existia ficou muito reforçada e todos tiveram suas especialidades aperfeiçoadas”. Depois, ele se tornaria ministro de Jair Bolsonaro, como tantos outros que estiveram nessas missões.
Por fim, o historiador francês Marc Ferro escreveu que as pessoas passam pela história ao mesmo tempo em que a história compõe com elas o seu drama. “Alguém pode se prevenir contra o roubo e o incêndio, mas não pode fazer o mesmo com a história.” Foi isso o que esses militares descobriram em suas missões.
EXPEDIENTE
Editor executivo multimídia: Fabio Sales / Editora de infografia multimídia: Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia: Adriano Araujo, Carlos Marin, Glauco Lara e William Mariotto / Designer multimídia: Vitor Fontes / Infografia multimídia: Diogo Shiraiwa / Editor-coordenador de Política e Internacional: Eduardo Kattah / Editores de Política: Tiago Dantas e Marta Cury / Editor assistente de Política: Vítor Marques / Reportagem: Marcelo Godoy e Paulo Beraldo / Edição: Marcelo Godoy (textos), Cláudio da Luz (áudio e vídeo) e Ricardo Nascimento (vídeo) / Foto de abertura: Marcos Michael/JC Imagem
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Eliane Cantanhêde: Quem ama não mata
As vidas da mulheres importam e isso é cultura, é educação, depende do Estado e de cada um de nós
O Brasil está doente, não apenas por causa da pandemia, da economia, do desemprego, da corrupção e do desgoverno, mas porque a desigualdade social é a oitava do mundo, o trânsito é assassino e o feminicídio, endêmico, está em toda a parte, em todas as classes sociais. Um horror, uma vergonha, uma sensação de impotência num País tão especial, tão lindo, com uma natureza tão privilegiada.
Fiquemos no feminicídio, depois de dois fatos chacoalharem o Judiciário na reta final de um ano tão dramático no mundo inteiro: o assassinato no Rio de uma juíza, Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, 45, e as declarações insanas de um juiz (e um juiz de Vara de Família!), Rodrigo Azevedo Costa, reveladas pelo programa Papo de Mãe, das jornalistas Mariana Kotscho e Roberta Manreza.
Na véspera do Natal, data da esperança e da generosidade, o engenheiro Paulo José Arronenzi assassinou a juíza Viviane a facadas, na frente das três filhas de ambos, uma de 9 anos e as gêmeas de 7. Viviane tentava reagir à insanidade com racionalidade, tinha dispensado a escolta e estava levando as crianças para passar o Natal com o pai, que nem sequer se deu ao trabalho de fugir. Ficou ali, olhando a mulher morrer, até a polícia chegar.
É chocante, desesperador, e gerou reações do presidente do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luiz Fux, do também ministro do STF Gilmar Mendes, da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e da Defensoria Pública. Mas está dentro da "normalidade". Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 88% dos feminicídios são cometidos por atuais ou ex-companheiros e 43% deles – pasmem! – na frente dos filhos.
É, evidentemente, uma patologia. Comprova o quanto os doentes se recusam a se assumir doentes, as famílias não reconhecem o tamanho do problema, as vítimas viram reféns do pavor e da pena. Mas, muito mais do que um problema individual e familiar, trata-se de uma patologia social, em que pesam uma cultura machista e dominadora, uma educação nas escolas e nos lares que gera e reforça a sensação de posse, de proprietário e propriedade.
O resultado, macabramente caricato, é um juiz de Vara de Família capaz de bater no peito e gritar ao mundo – ou às mulheres? – que "ninguém apanha de graça", "não está nem aí para a Lei Maria da Penha" e se orgulha de ter tirado a guarda dos filhos de mães agredidas para dar aos pais agressores. Equivale a dizer: a mulher maltratada, abusada e ameaçada pede socorro ao Estado e é maltratada, abusada e ameaçada pelo agente do Estado. Estarrecedor.
A mídia está repleta de casos de mulheres espancadas e mortas, de diferentes idades e classes sociais, em todos os Estados. Na capa do Correio Braziliense de 22 de dezembro, as fotos de três moças do DF: Luciene, morta a socos no meio da rua, Maria e Cleide, vítimas de tiros. Todas três eram mães. E se tivessem recorrido ao juiz Azevedo Costa? Ou a alguém do mesmo feitio? Morreriam do mesmo jeito, mas ainda mais humilhadas e sem os filhos.
Os dois novos fatos, o assassinato de uma juíza e a exposição de um juiz injusto, jogam o foco no Judiciário, mas produzem mais discursos do que mudanças. Até porque, como adverte a juíza e escritora Andréa Pachá, não adianta endurecer ainda mais as leis, é preciso intervir em comportamentos sociais que geram e, de certa forma, estimulam a violência contra as mulheres.
Ela ensina: os criminosos não vão parar de matar a companheira por temer dois, cinco ou dez anos a mais na prisão, eles só vão parar quando a sociedade mudar, quando homens, mulheres, inclusive juízes e policiais, mudarem. Isso é cultura, é educação, depende do Estado, dos líderes, dos pais, de cada um de nós. As vidas das mulheres importam.